Economia digital

O que a obra “Intermitências da Morte” de José Saramago tem a ver com a soberania econômico-orçamentária brasileira no contexto da transformação digital?

Editorial

José Saramago na sua obra “Intermitências da Morte” traz reflexões muito importantes a respeito do custo e do benefício de algo que chega para alterar o status quo. De maneira breve, o autor apresenta a alegria da cidade ao saber que a morte não se fazia mais presente entre eles. No primeiro momento a imortalidade foi vista com regozijo, mas em pouco tempo os conflitos começaram a surgir. 

A ausência das mortes colocou em xeque, por exemplo, a existência das funerárias e das seguradoras de vida. O desajuste dos setores econômicos resultou em soluções criativas e um dos principais efeitos colaterais apontados por José Saramago foi o surgimento da clandestinidade, da contravenção e da criminalidade. 

A descoberta de que a morte não estava extinta nas cidades que faziam fronteira foi o estopim para o surgimento de empreendimentos para fazer o transporte dos enfermos moribundos para as cidades vizinhas, onde estes poderiam alcançar a morte tão desejada, com o retorno da sociedade ao equilíbrio social anterior.

A extinção da morte no Estado era um fenômeno repentino e o Estado, com as suas leis e regras administrativas, não encontrava ajuste ao novo. Na presença de tamanha rigidez legal e de hábitos, o resultado foi o crescimento das atividades clandestinas e do envolvimento do próprio Estado nestas atividades. A existência de policiais de fronteira complacentes com a prática do transporte de moribundos para além da fronteira vizinha é um exemplo de como as alterações na sociedade caminham de avião supersônico e o Estado de carroça.

Pois então, o novo atropela, desafia e causa transtorno e o Estado somente se acautela quando o novo fica velho, mas é entre o novo e o velho que surgem o oportunismo e o descaminho.

A partir da reflexão de José Saramago coloca-se a seguinte pergunta para reflexão: o que está por surgir no Estado brasileiro como resultado da avassaladora transformação digital? 

Bem, parece que ainda estamos “abestalhados” com toda esta transformação digital, tal como foi a atitude dos moradores da cidade mediante a extinção da morte. Os órgãos públicos mergulham de cabeça nestas tecnologias e, ao se deliciarem com as maravilhas virtuais, transferem informações relevantíssimas do Estado para bancos de dados, se não suspeitos, pelo menos bastante obscuros. 

Tá bem, o discurso sempre é de que não podemos perder o bonde etc etc etc!!!

Sim, não podemos perder o bonde, mas também não podemos viajar pendurados na porta, pois a chance de cairmos dele é uma questão de tempo.

Estaria a soberania econômico-orçamentária brasileira em perigo?

A soberania do Estado é um tema constitucional, ela está em tudo aquilo que diz respeito a uma nação e a soberania econômico-orçamentária faz parte da soberania nacional. Alguns autores têm afirmado que a sociedade tem experimentado conjuntamente as transformações econômicas, sociais, jurídicas, políticas e morais, ao contrário do que acontecia anteriormente.

Como tratar a soberania econômico-orçamentária de um país frente aos contratos internacionais de transferência de tecnologia, em que empresas poderosas como as big techs (Microsoft, Apple, Google etc), que possuem PIBs superiores ao de muitos países, estão enraizadas em todos os continentes e detêm acesso a todas as informações fiscais relevantes dos países a velocidades inimagináveis. 

Talvez porque o saudoso romancista José Saramago seja português, a Europa já luta como nunca para proteger as suas fronteiras do avanço destas transformações digitais sobre a sua soberania, mas e o Brasil? Para onde vamos?

Características Econômicas das Grandes Plataformas Digitais e o Poder de Mercado

César Mattos

O poder econômico das grandes plataformas digitais (ou “Big Techs”) tem sido cada vez mais destacado nas análises de concorrência em todo o mundo. O fundamental Relatório do Congresso Americano-RCA-(2020)[1] sobre concorrência e Big Techs, organizado pela atual Presidente da Federal Trade Commission (FTC) americana, Lina Khan, descreve o que seriam as condutas anticompetitivas das quatro principais plataformas: Google, Amazon. Facebook e Apple.

A emergência deste fenômeno é algo relativamente novo, tendo início neste século e surpreendendo com a rapidez com que aconteceu. Wu (2018)[2] aponta a grande concentração de mercado nas Big Techs: “de repente, não havia uma dúzia de mecanismos de busca, cada um com uma ideia diferente, mas apenas um mecanismo de busca (o Google). Não havia mais centenas de lojas que todos iam, mas apenas uma “loja de tudo” (a Amazon). E evitar o Facebook era como fazer de você mesmo um hermitão digital”.

Além dos vários casos antitruste que apareceram e continuam surgindo no mundo, a partir do Relatório americano de 2020 foi proposto em 2022, o American Innovation and Choice Online Act[3] para conter este processo de concentração pela via regulatória. O Digital Market Act (DMA) Europeu também caminha na mesma direção. Ambas as iniciativas americana e europeia apresentam uma postura hostil ao conjunto de condutas de self-preferencing, que ocorre quando a Big Tech privilegia empresas de seu grupo em detrimento de outras.

Mas afinal, quais são as características econômicas das Big Techs que propiciam esta tendência de concentração dos mercados de plataformas digitais? O objetivo deste artigo é fazer uma síntese de quais elementos explicariam este fenômeno. Vejamos um a um.

Efeitos de Rede

Quando uma plataforma digital traz diferentes grupos de usuários para interagirem, são gerados “efeitos de rede” (network effects): quanto mais usuários, maior o valor da plataforma para cada usuário.

Esta característica repete a falha de mercado dos mercados de telecomunicações, a qual justificou a regulação de interconexão neste setor. Como o valor de um telefone para qualquer pessoa se deriva de quantas pessoas de suas relações também possuem telefones e podem ser contactados, uma nova companhia telefônica que entre no mercado, mas que não seja capaz de se interconectar com os usuários da empresa incumbente, não será de grande valor, ainda que tenha a melhor tecnologia e serviço disponível.

Da mesma forma, uma rede social como o Facebook, o Instagram, o Twitter ou o Linkedin apenas atraem mais usuários porque já têm muitos usuários com quem se deseja interagir. Documentos internos do Facebook[4], inclusive com falas de Mark Zuckerberg, indicam que a empresa montou sua estratégia de competição apoiada no reforço destes efeitos de rede na “família de produtos” desta rede social.

A questão econômica relevante é que, de um lado, os efeitos de rede induzem a uma lógica “the winner takes most[5] ou “the winner takes it all[6], o que concentra o mercado. De outro lado, a realização desses efeitos de rede pela interação entre usuários é, ao mesmo tempo, positiva para os usuários, o que é um benefício. 

O RCA (2020) aponta dois tipos principais de efeitos de rede nos mercados digitais. Primeiro, os “efeitos diretos” nos quais quanto mais pessoas usam um produto, mais pessoas obtêm valor desse produto como é o caso dos serviços de E-mail ou Whats app por exemplo.

Segundo, há os chamados efeitos de rede indiretos quando o maior uso de um serviço digital estabelece um padrão tecnológico no setor que induz terceiros a inventarem e desenvolverem produtos com tecnologias compatíveis e que podem ser utilizadas de forma complementar ao serviço digital inicial. Essa multiplicação de serviços compatíveis reforça a popularidade dos serviços originais, o que constitui os efeitos de rede indiretos. Estes são muito relevantes nas duas grandes lojas de aplicativos, Apple Store (sistema ioS) e Google Play (sistema Android).

Mercados de Dois ou Vários Lados

Os usuários das plataformas podem estar “no mesmo lado” ou em “mais de um lado” do mercado. O Google oferece acesso não apenas para os usuários finais que realizam buscas na internet em “um lado do mercado” como para os sites a serem acessados, no “outro lado do mercado”. O Google também intermedeia os usuários finais em um lado com outros sites de acesso no outro lado que, por sua vez, intermediarão estes com sites em um terceiro lado. 

A questão relevante aqui é que a microeconomia de mercados de mais de um lado é diferente da convencional e isso afeta diretamente a lógica da análise concorrencial. Por exemplo, como destacado pela OCDE (2022), os testes SSNIP (o que acontece com a quantidade e o lucro quando há um pequeno, mas substantivo e não transitório aumento nos preços), usados para delimitar mercados relevantes na análise concorrencial, devem ser completamente ajustados em mercados de vários lados. Isso porque passam a ser requeridos múltiplas interações, estimando o impacto inicial de um aumento de preço em um lado, a reação em outros lados e o retorno dos efeitos nestes outros lados no lado original. Nesse contexto, não faz sentido pensar no exercício de poder de mercado em apenas um lado da plataforma, cabendo avaliar as elasticidades da demanda e as taxas de desvio (diversion ratios) dos usuários de uma plataforma a outra em resposta a alterações em preços relativos em todos os lados dos mercados analisados.

Estas múltiplas interações fazem com que o cálculo das participações de mercado e índices de concentração se tornem menos significativos para a análise concorrencial nos mercados com mais de um lado, dado que não capturam as relações em todos os lados das plataformas e entre plataformas.

Note-se o incentivo para subsídios cruzados entre os diversos lados do mercado. Por exemplo, se a existência de muitos usuários em um lado do mercado gera maior atratividade para aderir ao outro lado, os usuários desse último se tornam mais dispostos a pagar pelo produto. Daí pode fazer sentido reduzir bastante o preço no primeiro lado para induzir à adesão no segundo lado, inclusive podendo cobrar mais. É o caso de casas noturnas em que homens (um lado do mercado) pagam mais do que mulheres (o outro lado do mercado), o que no mundo digital tem o seu equivalente em sites de namoro como o Tinder[7]. Assim, se o “preço” do lado feminino estiver abaixo do custo não quer dizer que haja uma conduta de preço predatório, pois é economicamente racional subsidiar este lado para atrair mais usuários para o outro lado que se tornará mais disposto a pagar mais caro.

Para avaliar se isso é uma conduta anticompetitiva, cabe verificar se preços abaixo de custo em um dos lados é lucrativo porque amplia a base de usuários, gerando receitas em outros lados, ou apenas porque enfraquece concorrentes. O problema é diferenciar as duas.

Economias de Escala[8] e Escopo[9]

“junte todos os nossos produtos, e assim nós prenderemos os consumidores ainda mais em nosso ecossistema”     Stevie Jobs

Os mercados digitais apresentam altos custos fixos para desenvolver a plataforma, incluindo hardware e armazenamento de dados, e custos variáveis e marginais baixos para incorporar cada novo usuário. Isso inclusive em produtos relevantes distintos, mas relacionados, com custos comuns de hardware e de know-how sobre como operar a plataforma, configurando economias de escopo. Conforme o CADE (2021)[10], em alguns casos, os “custos e/ou dados de desenvolvimento podem ser compartilhados entre linhas de negócios. Inclusive, os aplicativos podem ter uma aparência e um comportamento parecidos para que os usuários se acostumem com as plataformas de forma mais rápida”.

Tanto como nos efeitos de rede, economias de escala e escopo induzem a mercados mais concentrados (um custo), mas tais estruturas são mais eficientes por reduzir o custo médio da plataforma (um benefício), tal como ocorre nos mercados de infraestrutura que têm alta proporção custo fixo/variável.

O CADE (2021) ressalta que os mercados digitais, diferente dos setores de infraestrutura, possuem a chamada “escala sem massa”, por não possuírem um bem tangível físico, possibilitando às plataformas crescer de maneira mais rápida e barata comparativamente aos mercados de bens físicos e com custos marginais de processamento, armazenamento, replicação e transmissão de dados muito baixos. Isso, no entanto, vale tanto para incumbentes quanto para entrantes, o que indica não representar uma barreira à entrada no sentido de Stigler.

Vantagem da Firma Pioneira

Um ponto comum das quatro Big Techs é o desafio bem sucedido às então “firmas pioneiras”, questionando o que se considera usualmente como a vantagem de ser incumbente pelas autoridades de concorrência.

De fato, segundo Picker (2020)[11], em julho de 2001, a FTC iniciou investigação sobre os mecanismos de busca da Microsoft, AOL Time Warner, AltaVista, Direct Hit Technologies, iWon, Looksmart e Terra Lycos. O curioso é que nesse momento o Google era tão pequeno em relação a essas outras empresas (e só as duas primeiras ainda existem!!!!) que não integrava a lista das investigadas. Apenas dois anos depois, o Google já era considerado o líder claro deste mercado, tendo a Microsoft chegado a propor uma aquisição do Google que foi recusada pela empresa.

Conforme Picker (2020), a Apple que lançou o iPhone em janeiro de 2007 desafiando as posições dos incumbentes Research in Motion (RIM) que aperfeiçoava o seu Blackberry original e da clara líder em aparelhos celulares, a Nokia. A loja de aplicativos da Apple, um conceito até então inexistente, foi aberta um ano e meio depois.

Prossegue o autor, lembrando que Jeff Bezos lançou a Amazon em julho de 1995 para vender livros online, disputando o mercado com incumbentes bem estabelecidos como as livrarias Barnes & Noble e Borders. A empresa estende sua venda de livros para CDs e DVDs em 1998 e eletrônicos em 1999. A partir de outubro de 1999, começa a vender vários produtos de terceiros em seu novo programa zShops. Nesse alcance maior de produtos, uma das concorrentes da Amazon é a Walmart que teve em 1996 um faturamento de US$ 93,6 bilhões, muito maior que o da Amazon em seu negócio com livros no mesmo ano de US$ 15,7 milhões.

Por fim, Picker (2020) aponta que quando Mark Zuckerberg lançou o Facebook em 2004, já existiam redes sociais, sendo a mais conhecida a Friendster.com, a Tribe.net de 2003, a Tickle (de encontros amorosos) e o Linkedin (profissional). A SixDegrees.com havia sido lançada em 1997, mas não deu certo. O Myspace chegou a ser a maior rede social em julho de 2005, antes de ser ultrapassado pelo Facebook.

No entanto, apesar de não serem tão pioneiras assim, as Big Techs conseguiram “enraizar” (uma medida de como firmas pioneiras conseguem adquirir uma vantagem sobre entrantes) melhor a sua posição dominante do que os predecessores e a dificuldade de entrada parece maior que antes.

Um exemplo relevante de maior “enraizamento” da posição dominante é o do Google. O RCA (2020) aponta que a indexação de títulos da busca requer elevados custos fixos e grandes capacidades de armazenamento e de computação. O rastreamento da internet (web crawling) é custoso e favoreceu o pioneirismo do Google que rastreou toda a rede mundial de computadores. E o custo deste rastreamento, mesmo com o avanço da tecnologia, aumentou muito por causa do crescimento exponencial da internet.

A grande vantagem da firma pioneira “Google” ou “Bing” (da Microsoft) decorre do fato que, como ser rastreado pode causar danos às páginas, as maiores páginas da web permitem a apenas uma pequena parte dos “rastreadores” existentes rastrearem suas páginas. Ao mesmo tempo não estar nos índices dos principais buscadores, Google e Bing, implica perder tráfego. Assim, as principais páginas da Web autorizam o rastreamento apenas daqueles buscadores principais. Ou seja, buscadores entrantes serão provavelmente bloqueados pelas principais páginas da web, dificultando sua operação. Buscadores horizontais como Yahoo e DuckDuckGo não rastreiam, mas adquirem acesso dos índices de Google e Bing por meio de acordos. Esta atuação dependente reduz, naturalmente, o vigor competitivo daqueles buscadores.

Custos de Troca e Dados

Os usuários investem tempo e esforço para utilizar uma plataforma, gerando custos de troca.

A plataforma, por sua vez, coleta e “acumula” os dados desses usuários. No caso de redes sociais como o Facebook ou Instagram, são fotos, vídeos, textos e outras informações que os usuários vão postando e que se tornam os seus “dados” naquelas plataformas.

Nesse contexto, se um usuário desejar mudar de plataforma, mas não puder levar este histórico de dados, há custos de troca (switching costs), reduzindo a capacidade de entrantes capturarem a clientela (locked-in) dos incumbentes.

Conforme o RCA (2020), no Facebook, os usuários não são capazes de migrar ou fazer o download de seus dados para uma plataforma concorrente. Caso quisesse migrar, o usuário teria que refazer o upload de suas fotos e informação pessoal na nova plataforma. Na Amazon, quando um vendedor online já gerou várias avaliações de produto, terá problemas similares de recuperação desses rankings se migrar para outra plataforma.

Mesmo para aplicativos, o custo de troca pode ser alto. Um exemplo são os usuários do Spotify que quando assinam pelo Facebook, conforme o RCA (2020) “não conseguem desconectar o Spotify do Facebook”. Para fazê-lo, apenas por uma nova conta no Spotify, o que implica perder as playlists, história do que escutou e outros dados do aplicativo.

A regulação da “portabilidade de dados” visa justamente reduzir esses custos de troca, dando conveniência para o usuário migrar de plataforma, promovendo a concorrência. Por isso é uma medida de promoção da concorrência indicada no RCA (2020).

O CADE (2021) foi particularmente sanguíneo quanto a restrições de uma plataforma relativamente à negativa de portabilidade dos dados, entendendo que tais restrições seriam anticompetitivas quase per se.

Relacionada à regulação de portabilidade de dados está a interoperabilidade das plataformas, o que também diminui custos de troca dos usuários. Quanto mais os sistemas se comunicarem, mais fácil para os usuários não só trocarem de plataformas, mas também usarem as duas simultaneamente, fazendo o multihoming, o que favorece a concorrência.

O mais importante é que, conforme lembra o RCA (2020), a interoperabilidade “quebra o poder dos efeitos de rede”, ao permitir que os entrantes também se beneficiem destes efeitos “ao nível do mercado e não apenas ao nível da firma”. 

Obrigar a interoperar pela regulação, por outro lado, pode impor restrições à inovação já que o desenho dos produtos estará sempre condicionado a ter que interoperar com outros produtos. Essa restrição técnica será tão mais significativa quanto mais diferentes e/ou inovadores forem aqueles. De fato, de um lado, o desenho de um produto pode ser concebido de forma deliberada para restringir a interoperabilidade e/ou a portabilidade de dados, diminuindo a concorrência.

De outro lado, o próprio fato de haver muita inovação pode gerar uma dificuldade técnica genuína de o inovador promover a interoperabilidade com as plataformas existentes. O produto é tão diferente do que existe que dificulta tecnicamente a ser interoperável. Alternativamente, para viabilizar a interoperabilidade, é possível que o inovador tenha que tornar o seu novo produto um “pouco menos diferente”, o que pode reduzir o próprio grau de inovação. Em síntese, pode haver um trade-off grau de inovação/interoperabilidade.   

Papel Competitivo dos Dados em Mercados Digitais

Dados são o novo óleo”. Clive Humby, 2006

A aprendizagem dos vendedores sobre como agem os consumidores é decorrência do tempo e das transações realizadas nesse período em qualquer negócio. Quanto mais transações, mais se aprende sobre os consumidores. Tocar um negócio é intensivo em experiência. 

Em mercados digitais, esse aprendizado é particularmente intenso e se faz com a intermediação da plataforma que dispõe de ferramentas que continuamente analisam tudo o que está sendo feito (ou clicado) pelos usuários. Mais do que nunca, a geração de dados sobre os usuários é resultado do próprio “processo produtivo” das plataformas que vai “revelando” continuamente como se comportam.

Os dados são gerados inclusive daqueles que não concretizaram as transações, algo que nos mercados físicos os vendedores apresentam capacidade de observação bem mais reduzida sobre os comportamentos dos usuários. Quem já fez uma busca de um destino em site de viagem, por exemplo, mesmo sem ter comprado já teve a experiencia de, logo depois, receber várias ofertas exatamente para este destino.  É como uma “câmera espiã” contínua funcionando no “chão de fábrica” dos mercados digitais. O fato é que a capacidade de as plataformas processarem e avaliarem os dados dos usuários é multiplicada várias vezes nos mercados digitais. Conforme o CADE (2021), os dados constituem um insumo tão essencial nos mercados digitais que pode se falar de “economias de escala dinâmicas” derivadas disso.

E quanto mais usuários uma plataforma tiver, mais ela terá acesso a dados. Como é difícil para entrantes replicar a quantidade de dados e aprendizado das plataformas incumbentes, há dificuldade para os primeiros em entender tão bem o comportamento dos usuários quanto os segundos, o que é mais um indutor à concentração de mercados.

Cientes desta vantagem competitiva dos dados, os incumbentes muitas vezes buscam ampliá-la, coletando também informações dos usuários de seus concorrentes que acessam sua plataforma ao mesmo tempo que dificultam o acesso aos seus próprios dados.

Uma consequência fundamental dessa enorme capacidade de conhecer o usuário nas plataformas digitais é poder direcionar propaganda para os usuários mais predispostos a serem influenciados. Ou seja, os gastos de marketing são particularmente eficazes no mundo digital, tendendo a atingir mais diretamente o público-alvo, o que resulta em mais vendas por dólar investido em propaganda.

Para terem capacidade de gerar valor, no entanto, os dados devem ser intensamente trabalhados. Como Clive Humby[12] ressaltou: “isso (o óleo) tem valor, mas se não for refinado, não poderá ser efetivamente utilizado. Ele tem que ser transformado em gás, plástico, químicos etc  para criar algo valioso que direciona a atividade lucrativa; logo os dados devem ser desagregados, analisados para terem valor”  

Petit e Teece (2021) [13] destacam que dados podem ser tidos como o novo lego: “o problema que os dados colocam para os negócios é muito prático. Tem a ver com analisar, organizar, combinar e utilizar os dados para criar novos produtos, modelos de negócios e oportunidades comerciais. Uma miríade de combinações é possível. Para levar a metáfora adiante, em um mundo de informação digitalizada, as firmas digitais são desafiadas a construir milhões de peças de legos, só que sem as instruções. A vantagem competitiva é criada pela capacidade de criativamente combinar ciência de dados, tecnologia e negócios. Não se pode concluir que o controle passivo sobre grandes bancos de dados permite à firma viver uma vida tranquila. Ao contrário, a “orquestração” dos dados é um elemento crítico e requer fortes capacidades dinâmicas”.

Isso implica que nos mercados digitais a capacidade de acessar, processar e utilizar uma enorme massa de dados (montar os milhões de legos) é parte indistinguível do processo concorrencial.

Assim, uma regulação de portabilidade de dados deve ser muito cuidadosa. De um lado, os “dados” que, regulatoriamente, devem ser “portados” não podem ser aqueles já trabalhados sob pena de expropriar a empresa justamente naquilo que define o seu esforço na “competição nos méritos”, destruindo os incentivos à concorrência que se deseja gerar. Assim, cabe limitar a regulação de portabilidade aos dados mais brutos, àquele diamante sem lapidação, não estendendo aos dados mais trabalhados.

De outro lado, esta portabilidade dos dados mais brutos de cada usuário de uma plataforma para outra equivale a apenas uma parte ínfima das milhões de peças de lego com as quais a primeira plataforma está construindo a sua forma de operação. O impacto real na capacidade de competir da plataforma para a qual ocorre a migração dos dados do usuário pode ser muito pequena para justificar a regulação.

A OCDE (2022) recomenda uma regra para avaliar o papel dos dados na concorrência, o que pode ser pensado como uma forma de evitar uma regulação excessiva. É importante considerar para cada mercado se

  1. o conjunto de dados é único ou obtenível de outras fontes;
  2. o conjunto de dados é replicável facilmente ou não;
  3. há economias de escala e escopo associadas à coleta, uso e armazenamento destes dados;
  4. há algum tipo de “lock-in” que impede que os dados sejam interoperáveis.

Modelo de Negócio Baseado em Propaganda

“quando propaganda está envolvida, você, o usuário, é o produto” Fundadores do Whats app

O RCA (2020) reporta que Google e Facebook representam 99% do crescimento anual do mercado de propaganda digital americano, dando uma dimensão da importância das Big Techs no segmento. Isso está associado à “produtividade” da propaganda propiciada pela coleta de dados dos usuários das Big Techs apontada acima.

Quando o modelo de negócio é muito baseado em propaganda, os preços são muito baixos ou mesmo zero, o que remove uma importante forma de competir, desviando clientela para entrantes via preços mais baixos. Conforme a OCDE (2022)[14], “sete das dez maiores companhias globais trabalham com produtos e serviços a preço zero nos mercados digitais”.

Como o serviço não tem preço, as ferramentas de delimitação de mercado clássicas do antitruste como o efeito de “um aumento pequeno, mas significativo e não transitório” de preços não apresenta qualquer serventia.

Concorrência Baseada em Inovações

Schumpeter (1950) criticava a microeconomia convencional que via como principal virtude da concorrência a redução de preços. Conforme o autor, a competição por meio da “destruição criativa” seria muito mais importante para a economia do que por meio da “redução de preços”:

na realidade capitalista, que é diferente daquela mostrada nos livros textos, não é a competição de preços que conta, mas a competição que vem do novo produto, da nova tecnologia, da nova fonte de oferta, do novo tipo de organização…..aquela que comanda uma vantagem decisiva de custo ou qualidade, a qual afeta não as margens dos lucros e produtos das firmas existentes mas os seus fundamentos e a sua própria existência. Este tipo de competição é tão mais efetiva que a outra, que seria como se comparássemos um bombardeio a um arrombamento de uma porta”.

Mais do que nunca, a concorrência nos mercados digitais se aproxima de Schumpeter, com o foco em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), inovação e qualidade do produto. Petit e Teece (2021) defendem, inclusive, uma mudança no paradigma de análise das agências de concorrência: “a concorrência estática domina os modelos analíticos empregados na política de concorrência….(i) faz uso extensivo de modelos de equilíbrio enquanto as tecnologias digitais apresentam propriedades de desequilíbrio; (ii) conta essencialmente com a expertise de economia industrial e apenas marginalmente utiliza “insights” da literatura de negócios e gestão de tecnologia; e (iii) frequentemente elimina incerteza de maneira a formular regras simples. Estamos, portanto, ainda longe de uma mudança de paradigma coerente para alguns funcionários de agências e instituições de concorrência”.

Uma diferença analítica fundamental defendida por estes autores quando a concorrência é Schumpeteriana e muito baseada em inovações faz conexão aos questionamentos já trazidos em seção anterior sobre a “vantagem da firma pioneira”. Enquanto as agências antitruste consideram a incumbência como uma vantagem competitiva em si com o conhecimento do mercado e do negócio e a lealdade dos consumidores à marca, a literatura sobre gestão de tecnologia considera a incumbência muitas vezes como uma desvantagem. Incumbentes estariam relativamente mais presos à “sabedoria da gestão convencional”, aos valores estabelecidos nas redes ou às trajetórias tecnológicas existentes, o que prejudicaria sua propensão a inovar.

A ideia de Schumpeter de “destruição criativa” já embutiria esta diferença entre os dois paradigmas. O conceito é formado de duas palavras, uma positiva “criativa” e outra negativa “destruição”. A parte “positiva” diz respeito ao fato de que empreendedores, usualmente entrantes, criam novos produtos ou novas formas de produzi-los, incrementando o bem-estar.

Tais novidades podem ser tão superiores aos produtos existentes que os consumidores substituem os antigos pelos novos. E daí vem a “parte negativa”: os negócios existentes que têm substituídos os seus produtos podem ser “destruídos”. Na verdade, dado o “efeito substituição” da inovação[15], os entrantes tendem a inovar e “destruir criativamente” mais do que os incumbentes. Isso mitigaria a preocupação concorrencial usual das agências antitruste nos mercados com muita inovação em geral, e nos mercados virtuais em particular.

Assim, a incumbência nos mercados digitais, onde a concorrência é regida pela inovação, pode ser simultaneamente uma vantagem e um fardo.

Verticalização

Os mercados virtuais são verticalizados e as preocupações concorrenciais usuais que ocorrem quando pelo menos um dos elos apresenta características monopolistas e pode discriminar terceiros em outros elos são aplicáveis.

Sendo verticalizadas, as plataformas teriam um “papel duplo” de fornecedores e concorrentes de serviços com outras plataformas. A questão competitiva chave dos mercados digitais seria a exploração do “poder de controle de acesso”[16] pelas plataformas dominantes na mesma linha da chamada “facilidade essencial”.

O RCA (2020) aponta para a necessidade de medidas de quebra vertical de Big Techs, tal como foi utilizado nos casos históricos da Standard Oil e AT&T e que as agências desejaram aplicar na Microsoft. Havendo esta quebra, muitas relações econômicas que hoje ocorrem dentro da Big Tech passariam a ser regidas apenas pelo mercado. Conforme Petit e Teece (2021), isso faria perder importantes economias de coordenação nos mercados digitais: “Criar e orquestrar ativos digitais de forma a alcançar um valor aos clientes finais envolve atingir uma convergência de expectativas dentro da gestão do ecossistema de um tipo que o sistema de preços não é capaz de atingir por ele mesmo”.

As economias de escopo nos dados em especial podem ser perdidas. Não há algo como os dados que vão servir para uma linha de negócio “A” e outros dados separados que vão servir para a linha de negócio “B”. Dados provenientes de “A” servem para “A”, “B” e “C”. Como colocado por Petit e Teece (2020) “os dados vêm de várias fontes diferentes e podem ser utilizados de várias formas diferentes, é frequentemente impossível saber ex-ante de quais fontes e de quais usos serão gerados mais valor”.  

Vieses Comportamentais em Mercados Digitais

Como destacado no RCA (2020), osvieses comportamentais dos consumidores seriam particularmente fortes nos mercados virtuais como i) o viés de enquadramento (framing bias), quando a decisão de compra é influenciada pela forma que as diferentes opções são apresentadas; ii) o viés de saliência (salience bias) com decisões focando no item mais proeminente e iii) o viés de default, com baixa tendência a alterar a escolha para ofertas inequivocamente melhores.

Estes vieses facilitariam a estratégia das Big Techs de implementar o self-preferencing. Quando a Apple, por exemplo, coloca nos iphones, os seus próprios aplicativos como “default”, está usando este tipo de viés para induzir os usuários a utilizá-los em lugar de aplicativos concorrentes em um típico self-preferencing.

Para se ter uma ideia das dificuldades que seriam impostas à regulação se, porventura, buscasse, eliminar o reforço dos vieses comportamentais pelas grandes plataformas, imagine-se que o regulador proíba que a Apple ou o Google coloquem seus próprios aplicativos como default nos smartphones, tal como fazem hoje. Assim, a plataforma poderia colocar o aplicativo de um terceiro, mas não o seu como default? Isso não geraria enorme desincentivo à inovação nos aplicativos da Big Tech?

O consumidor não perderia em termos de funcionamento com os aplicativos próprios da Big Tech melhor calibrados para o aparelho ou sistema operacional respectivo?

Alternativamente se for proibido colocar aplicativos próprios como default, aumentam-se os custos de uso, obrigando ao consumidor correr atrás de todos os aplicativos que deseja em lugar de ter a comodidade de ter pelo menos os principais já instalados no smartphone.

Outra opção seria obrigar a Big Tech colocar todos os aplicativos existentes para uma dada função (por exemplo, maps) no celular, de forma a não haver discriminação. A questão é que se isso for imposto para todos os aplicativos com concorrentes, sobrecarregaria o sistema? E ainda haveria intermináveis discussões regulatórias quando a Big Tech entender que algum aplicativo de terceiros puder prejudicar o funcionamento do aparelho do sistema operacional ou de outras funções. Enfim, mitigar os vieses comportamentais pela via regulatória está longe de ser trivial.

Conclusões

As características econômicas das plataformas digitais apresentam várias peculiaridades que, de fato, geram uma tendência à concentração do mercado, o que suscita preocupações concorrenciais. Estas mesmas características, ao mesmo tempo, indicam não ser eficiente uma oferta com muitos agentes.

Nesse ponto há paralelos a se fazer com os mercados de infraestrutura com monopólios naturais e com integração vertical. E muito da discussão regulatória se dá em relação a como não perder economias de escala e escopo, mas garantir acesso às plataformas que tenham se tornado insumos essenciais para os serviços. 

Em particular, a relação entre vigor concorrencial e concentração de mercado não é clara, sendo medidas como o HHI ou o C4 de pouca serventia.

Economistas da área de concorrência e regulação são mais preocupados com a possibilidade de que uma intervenção excessivamente tardia possa tornar o poder de mercado dos incumbentes perene, sem chances de contestação.
Haveria, ademais, similaridade da necessidade de acesso dos concorrentes aos serviços principais das Big Techs com o que ocorre com monopólios naturais verticalmente integrados na infraestrutura, o que pressupõe uma lógica típica de facilidade essencial.

Já economistas da tecnologia com um viés mais Schumpeteriano acreditam que sempre há um entrante disruptivo à espreita que, com muito capital humano, pode achar formas mais inovadoras de “montar os legos” dos dados dos usuários e do mercado e superar boa parte da aparente inércia da incumbência. Esta inexpugnável economia de escala e escopo no uso de dados seria, na verdade, uma grande ilusão, sendo que inteligência artificial e machine learning seriam os novos veículos do processo de destruição criativa Schumpeteriana que estão longe de serem monopólios dos incumbentes apenas pela quantidade maior de dados que dispõem.

Ademais, os economistas da tecnologia não acreditam tanto que o acesso ao serviço principal das Big Techs seja realmente “essencial”, mas apenas uma forma mais cômoda e menos custosa de entrar. Até porque seria quase uma contradição um entrante “disruptivo raiz” depender do negócio que está a ser “criativamente destruído”.

As características econômicas distintivas dos mercados digitais jogam alguma luz sobre por que têm surgido tantas questões concorrenciais no setor. Em outros artigos discutiremos um pouco mais das condutas das plataformas digitais que vêm sendo analisadas pelas agencias antitruste mundo afora e as iniciativas de regulá-las.        


[1] Investigation of Competition in Digital Markets. competition_in_digital_markets.pdf (house.gov)

[2] Wu,T.: “The Curse of Bigness”. Antitrust in the New Gilded Age. Columbia Global Reports.

[3] H.R.3816 – 117th Congress (2021-2022): American Choice and Innovation Online Act | Congress.gov | Library of Congress

[4] Ver RCA (2020).

[5] O ganhador leva a grande parte.

[6] O ganhador leva tudo.

[7] Aqui o “preço” pode ser entendido como vantagens e promoções que são dadas pelo site a um ou outro lado do mercado.

[8] Economias de escala ocorrem quando os custos médios caem quando o produto aumenta, Custos fixos elevados podem ter este efeito ao serem mais diluídos com o aumento do produto. 

[9] Economias de escopo ocorrem quando é mais barato produzir dois produtos juntos do que separados. Custos comuns entre os dois produtos, muitas vezes fixos, podem ser a fonte das economias de escopo.

[10] MERCADO DE PLATAFORMAS DIGITAIS – CADERNOS DO CADE https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf. Agosto de 2021

[11] https://judiciary.house.gov/uploadedfiles/submission_from_randalpicker.pdf.

[12] Ver nesta interessante referência sobre o assunto de Amol Mavoduru Is Data Really the New Oil in the 21st Century? | Towards Data Science.

[13] Petit,N. e Teece,D.: “Innovating Big Tech Firms and Competition Policy: favoring dynamic over static competition”. Industrial and Corporate Change, Vol. 30, Issue 5, October 2021.

[14] OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age 2022. OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age

[15] No caso das chamadas “inovações drásticas”, o entrante se transforma em monopolista (Reinganum, J.: Uncertain Innovation and Persistence of Monopoly.American Economic Review 73 (4), 1983).

[16] Gatekeeper power.

A robotização do Poder Judiciário brasileiro (Justiça 4.0) e o par eficiência e celeridade: o Juiz de Lata e os perigos da algoritmização da função de julgar

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O Poder Judiciário brasileiro contava em 31.07.2022 com 75.855.539 milhões de processos em tramitação[1], segundo números do Relatório Justiça em Números de 2022 (Ano-Base 2021).[2] A busca por uma solução que contemple o par “eficiência” e “celeridade” no julgamento das lides urge e, nessa angústia, muitos apostam todas as suas fichas na algoritmização do Poder Judiciário.

Não parece haver dúvidas de que essa algoritmização faz parte da inclusão do Poder Judiciário na (nova) Sociedade da Informação e é fato que já vem auxiliando para a “celeridade” da prestação jurisdicional, na medida em que os algoritmos, treinados para determinados fins, fazem o trabalho de modo mais ágil que o ser humano.

No entanto, algoritmização do Poder Judiciário entregará a eficiência e a verdadeira prestação jurisdicional? Esse é o questionamento que esse artigo chama à atenção, além do perigo da algoritmização de toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário.

Para responder a esse questionamento, dividimos o artigo em três partes: (i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário; (ii) Os algoritmos; (iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário.

(i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário

A algoritmização do Poder Judiciário caminha a passos largos. Programa criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Justiça 4.0 – anuncia que “[o] Programa Justiça 4.0 torna sistema judiciário brasileiro da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias de inteligência artificial”, “impulsiona a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis”, além de “promover soluções digitais colaborativas que automatizam as atividades dos tribunais, otimizam o trabalho dos magistrados, servidores e advogados e garantem, assim, mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos”, atuando em 4 eixos:

  • Inovação e Tecnologia;
  • Prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos;
  • Gestão de informação e políticas judiciárias; e
  • Fortalecimento de capacidades institucionais do CNJ.[3]

O sítio eletrônico do CNJ também informa que há outras ações em andamento como: (i) Plataforma Digital do Poder Judiciário; (ii) Plataforma Sinapses/Inteligência Artificial; (iii) Plataforma Codex; (iv) Balcão Virtual; (v) Núcleos de Justiça 4.0; (vi) Juízo 100% Digital; (vii) Painel das Resoluções; e (viii) Domicílio Judicial Eletrônico.

O Segundo Relatório do CNJ elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) tratou sobre as “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial”[4] quando em 2020, já contava com 64 projetos de Inteligência Artificial em funcionamento ou em processo de implantação em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ, sendo entendidas, pelo próprio CNJ, como um dos instrumentos mais importantes de gestão do Poder Judiciário, uma vez que implica em racionalizar recursos, mão de obra e atividades, diante de uma demanda cada vez mais crescente.[5]

Artigo escrito pelo Ministro Luis Felipe Salomão[6], Coordenador do Projeto, classifica os programas de Inteligência Artificial aplicados no Poder Judiciário em quatro grupos:

  • Primeiro grupo: Auxílio nas atividades-meio, relacionadas à administração da Justiça e melhor gestão de recursos financeiros e de pessoal. Exemplos: Chatbot Digep (TJRS), Judi Chatbot (TJSP) e Amon (TJDFT);
  • Segundo Grupo: Auxílio nas atividades-fim, sobretudo, relacionados aos fluxos de movimentação de processo e das atividades executivas e pré-determinadas em auxílio aos juízes, como apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento de processos similares, classificação de petição inicial, transcrição de audiências etc. Exemplos: Athos (STJ), Júlia (TRF3ª Região), Tia (TJAP), Hércules (TJAL), Toth (TJDFT), Berna (TJGO), Larry (TJPR) etc.
  • Terceiro Grupo: em menor quantidade, possui modelos computacionais que dão suporte a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias. Exemplos: Victor no STF, Alei (TRF 1ª Região), Argos (TJES), Midas (TJPB), Jurimetria com Inteligência Artificial (apontam tendências de julgamentos);
  • Quarto Grupo: Programas que auxiliam na resolução de conflitos judiciais. Exemplo: Icia (TRF 4ª Região) e o Concilia (TRT 12ª Região). 

Recentemente, também foi noticiada a ocorrência da primeira audiência via metaverso na Justiça Federal na Paraíba,[7] o que confirma que o caminho em direção a algoritmização do Poder Judiciário brasileiro anda de vento em popa.  

 Essa é a fotografia atual da algoritmização do Poder Judiciário.

(ii) Os algoritmos

Os algoritmos estão por toda parte e podem ser usados com boas ou más intenções. Para se permitir indiscriminadamente a utilização de algoritmos no Poder Judiciário é fundamental entender como são construídos, por quem são construídos e quais os interesses, ideias e ideais das empresas que os constroem.

A origem da palavra algoritmo remete a Al Khowarizmi, famoso matemático árabe do século IX.[8]  Mas, o que são os algoritmos? Como são desenvolvidos? São opacos? Como são formadas as bases de informações no input para produzirem o resultado output?

Um algoritmo é, pois, uma sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo, sendo necessários que os passos sejam finitos e operados sistematicamente. Um algoritmo, portanto, conta com a entrada (input) e a saída (output) de informações mediadas pelas instruções. Na prática, “são apresentados, corriqueiramente, como fornecedores de insights de como somos como pessoas e são capazes de prever como nos comportaremos no futuro.”[9]

Segundo Leonardo Marques Vieira, “[o]s algoritmos são modelos matemáticos (softwares) ordenados por uma determinada finalidade, buscando padrões de números.”[10] Registre-se, pois, que os “algoritmos são falíveis e limitados”[11] e “as conclusões que tiram a nosso respeito podem ser discriminatórias”[12] mas, não obstante isso, já dominam todas as formas do comportamento humano na sociedade do controle.

David Sumpter parafraseando Cathy O’Neil diz que “os usos indevidos de algoritmos em tudo, desde a avaliação de professores e propagandas on-line de cursos universitários a fornecimento de crédito privado e previsões de reincidências criminais” e que “[s]uas conclusões eram assustadoras, eis que os algoritmos estavam nos julgando de maneira arbitrária, frequentemente baseados em pressuposições dúbias e dados imprecisos”.

            No estágio atual da transição paradigmática para a sociedade do controle, das redes, da tecnologia da informação, os algoritmos provocam ao menos dois grandes sentimentos:

  • o primeiro, o de que há uma dominação, uma submissão dos resultados que produzem condicionando as ações humanas, confundindo o fato de terem em seu core a matemática como ciência exata, eis que buscam transferir para os resultados que produzem a mesma exatidão da ciência matemática, o que não é fato;
  • o segundo, a de uma grande insegurança dos resultados “reais” com a má utilização dos algoritmos para o alcance desses resultados, como o que ficou amplamente verificado com a utilização da Cambridge Analytica por Donald Trump para ganhar as eleições norte-americanas em 2017.

            No que concerne as suas características, ao menos duas já foram identificadas:

(i) a primeira, a de que são opacos, verdadeiras “caixas pretas”, onde não há possibilidade dos juízes ou qualquer um dos jurisdicionados entender quais informações foram introduzidas no (Input) e nem como o algoritmo chegou a determinado resultado (Output), o que impede o conhecimento do funcionamento interno dos algoritmos, daí “[a]s pessoas quererem saber o que está acontecendo dentro das caixas-pretas que são usadas para nos avaliar e influenciar.”[13]

(ii) o segundo, o de que o modo como os algoritmos são “ensinados” partem de duas perspectivas bastante preocupantes do ponto de vista da retratação da “realidade fática”, ou seja, não só são projetados por meio das informações que o próprio homem ensina à máquina, como captam informações e vieses de outros algoritmos semelhantes por meio de machine learnings ou deep learnings.

Sobre a opacidade dos algoritmos, Sumpter aduz que o termo “caixa-preta” foi utilizado em duas oportunidades, tanto por Frank Pasquale, no título do seu livro “The Black Box Society”, quanto pela ProPublica, em sua série de matérias e vídeos curtos sobre algoritmos chamada “Breaking the Black Box”.” [14]

É fato que na sociedade da informação, “[k]nowledge is power.”[15] Frank Pasquale anuncia que “Deconstructing the black boxes of Big Data isn’t easy”[16] e que há três motivos, ao menos, para se manter as caixas pretas fechadas: sigilo real, sigilo legal e ofuscação, ex vi:

O verdadeiro sigilo estabelece uma barreira entre o conteúdo oculto e o acesso não autorizado a ele. Usamos sigilo real diariamente quando trancamos nossas portas ou protegemos nosso e-mail com senhas. O sigilo legal obriga aqueles que têm acesso a certas informações a mantê-las em segredo; um funcionário do banco é obrigado tanto por autoridade estatutária quanto por termos de contrato a não revelar saldos de clientes a seus amigos. A ofuscação envolve tentativas deliberadas de ocultação quando o sigilo foi comprometido. [17]

Posto isso, considerando que “[n]enhum modelo consegue incluir toda e qualquer complexidade do mundo real ou as nuances da comunicação humana e que “inevitavelmente alguma informação importante fica de fora”[18], acende-se um gravíssimo alerta para a algoritmização de toda e qualquer função no Poder Judiciário.

(iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário

A partir de todas essas considerações, surgem alguns questionamentos importantes:

  • o resultado produzido pelo algoritmo é verdadeiro (corresponde a toda a realidade compreendida de modo holístico ou pode ser discriminatório?
  • a sentença feita por um juiz humano teria o mesmo resultado da que for feita por um juiz robô ou se se pode confiar no resultado dos algoritmos sem conhecer o processo de formação de sua base de dados, sem conhecer o processo inovativo que o conduz?
  • o modelo de personalidade Big Five utilizado pelas Big Techs permite a “[u]m computador nos entender melhor que um humano?[19]

Surge, então, uma reflexão, um balanceamento dos interesses em conflito, entre a “celeridade” que os programas tecnológicos constituídos por algoritmos podem proporcionar ao Poder Judiciário em termos de rapidez, organização de dados, diminuição da mão-de-obra humana, barateamento de recursos, dentre inúmeros outros e, de outro lado, o perigo para a robotização de todas as funções do Poder Judiciário e, sobretudo, a função de julgar (Terceiro Grupo de programas) que já estão sendo usados no Brasil.

Desse modo, por mais que se diga que a decisão elaborada por um “algoritmo, programa ou robô” ainda prescinda da intervenção humana, dada a quantidade de processos que assolam o Poder Judiciário, a pequena quantidade de servidores para dar conta de tão grande demanda, a pressão pelo atingimento das metas de julgamento, dentre inúmeros outros fatores, chegamos a duas importantes conclusões:

  • a primeira, a de que as atividades-fim de elaboração de sentenças, acórdãos e decisões interlocutórias jamais deveriam ter o suporte de um robô para a sua elaboração;
  • a segunda, a de o core da função do Poder Judiciário estar sendo, paulatinamente, transferida para programas algorítmicos formulados por empresas de tecnologia com base em suas crenças, ideais e interesses e tendem a não produzir a eficiência tão almejada para a verdadeira prestação jurisdicional, afinal, o algoritmo não está no mundo, não pode ser-em-si e nem ser-para-si e só a espécie humana é Dasein;
  • a terceira, a de que o Juiz de Lata não tem condições de analisar as peculiaridades de cada caso concreto e, por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, feitos de átomos ou de bits), existem vidas, existem problemas reais que estão no mundo, existe a ânsia para que o Poder Judiciário cumpra o seu verdadeiro papel que é a função de julgar.

 Posto isso, estejamos ainda mais atentos para que a humanidade e o Poder Judiciário não percam o que tanto o homem de lata buscou – um coração que possa compreender de modo holístico o que por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, átomos ou bits) porque atrás desses existem vidas e o sentimento de Justiça que não pode ser alcançado por um juiz de lata, sem coração.


[1] Disponível em Estatísticas do Poder Judiciário (cnj.jus.br) em 07/10/2022.

[2] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf em 05/10/2022. (p. 30)

[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

[4] Disponível em https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf em 05/10/2022.

[5] Disponível em  https://www.cnj.jus.br/pesquisa-revela-que-47-tribunais-ja-investem-em-inteligencia-artificial/  em 05/10/2022.

[6] Disponívsel em https://www.conjur.com.br/2022-mai-11/salomao-tauk-estamos-perto-juiz-robo em 05/10/2022.

[7] Disponível em Justiça Federal na Paraíba realiza primeira audiência real do Brasil no metaverso – Portal CNJ em 05/10/2022.

[8] Disponível em https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/#:~:text=Um%20algoritmo%20%C3%A9%20uma%20sequ%C3%AAncia,matem%C3%A1tico%20%C3%A1rabe%20do%20s%C3%A9culo%20IX disponível em 28/07/2022.

[9] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 63.

[10] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Op. Cit.

[11] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Brasilian Technology Symposium, 2019. Disponível em https://www.lcv.fee.unicamp.br/images/BTSym-19/Papers/090.pdf  em 11/08/2022.

[12] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Tradução: Anna Maria Sotero e Marcello Neto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019, p. 23.

[13] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 27.

[14] Idem.

[15] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. First Harvard University Press paperback edition, 2016, Sixth Printing, p.3.

[16] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. Idem, p. 6.

[17] Tradução livre: Real secrecy establishes a barrier between hidden contente and unauthorized access to it. We use real secrecy daily when we lock our doors or protect our e-mail with passwords. Legal secrecy obliges those privy to certain information to keep it secret; a bank Employee is obliged both by staturory authority and by terms of employment not to reveal costumers’ balances to his buddies. Obfuscation involves deliberate attempts at concelament when secrecy has been comprommised.[17]

[18] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020, p. 33.

[19] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 59.