Um conselho ao Conselho Federal de Medicina
Vanessa Vilela Berbel
Depois de sua desastrosa atuação durante a pandemia do Covid-19, o Conselho Federal de Medicina (CFM) investe, agora, nas pautas conservadoras, causando desconforto inclusive entre os membros da classe representada.
A Comissão Parlamentar de Inquérito do Covid-19 afirmou que a postura do CFM quanto à época era “temerária, criminosa e antiética”. Durante o período pandêmico, o CFM atuou para afastar qualquer condenação ética a médicos e médicas que prescreveram cloroquina e hidroxicloroquina, atuando inclusive para legitimar a prática, como se viu do Parecer nº 04/2020, no qual o Conselho estabeleceu critérios e condições para a prescrição dos medicamentos em pacientes com diagnóstico confirmado da doença. Essas atitudes, no mínimo irresponsáveis, levaram ao pedido de indiciamento do então presidente da entidade, Mauro Luiz de Britto Ribeiro.
Incansável em levar adiante sua pauta ideológica, o Conselho Federal de Medicina também colocou em sua página na internet uma enquete para aferir a opinião de médicos sobre a vacinação contra a Covid-19 em crianças, valendo-se de um relatório que pareceu mais desenhado para lançar dúvidas sobre a imunização e estimular a recusa paterna, do que para a coleta de opinião.
Não creio que a atuação do Conselho Federal de Medicina quanto aos direitos das mulheres nos últimos anos possa ter adjetivação menos severa do que a conferida pela CPI da Covid.
A desastrosa atuação do órgão nos últimos eventos vem gerando polêmica diária nos noticiários e suas investidas conservadoras não parecem recuar, fato que o tornou um dos principais atores na “guerra santa” travada pelo chamado conservadorismo de extrema direita contra a garantia e proteção das liberdades femininas.
Vale ressaltar que o Conselho não é um sindicato, mas sim uma autarquia federal que tem como papel regular a aplicação do Código de Ética Médica e os registros de medicina. Ele tem uma natureza híbrida. É, ao mesmo tempo, uma entidade que zela por interesses de classe e uma autarquia com poderes normativos.
Contudo, em sua atividade regulatória, o CFM não tem como missão preservar a autonomia irrestrita do médico, mas sim balizá-la pela ciência e as boas práticas. Essa é a função da entidade: criar as molduras nas quais deve se inserir a autonomia profissional, forjadas na cientificidade e não na polarização política e ideológica.
A isenção ideológica que se deve ter na pauta regulatória não se evidencia em algumas das atividades recentes do CFM, cuja expressiva parcela de membros é filiada a partidos políticos, conforme levantamento realizado em 08 de fevereiro de 2021 por Leonardo Martins, do Intercept[1].
Dos membros analisados pelo Intercept, 10 continuam ativos no Conselho e são filiados a partidos políticos majoritariamente de direita ou centro-direita, como PSL, DEM, Solidariedade, Podemos e Novo. Dentre os membros filiados a partidos políticos ainda ativos no CFM, tem-se:
Donizetti Dimer Giamberardino Filho – conselheiro federal pelo estado do Paraná e 1º vice-presidente – PV
Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti – conselheiro federal pelo estado de Alagoas e 3º vice-presidente – PSL
José Hiran da Silva Gallo – conselheiro federal pelo estado de Rondônia e tesoureiro – MDB
Salomão Rodrigues Filho – conselheiro federal pelo estado de Goiás e 2º tesoureiro – DEM
Florentino de Araújo Cardoso Filho – conselheiro federal pelo estado do Ceará – NOVO
Maria Teresa Renó Gonçalves – conselheira federal pelo estado do Amapá – Democracia Cristã
Júlio Cesar Vieira Braga – conselheiro federal pelo estado da Bahia – NOVO
Jeancarlo Fernandes Cavalcante – conselheiro federal pelo estado do Rio Grande do Norte – Solidariedade
Ricardo Scandian de Melo – conselheiro federal pelo estado de Sergipe – NOVO
Estevam Rivello Alves – conselheiro federal pelo estado do Tocatins – Podemos
Atualmente, dos 28 Conselheiros do CFM, apenas 08 são mulheres, ou seja, menos de 30%. Aparentemente, nenhum negro, nenhum representante trans ou membro da comunidade LGBTQIA+. O grupo que hoje titulariza as cadeiras da entidade é majoritariamente branco e hétero, pertencente a uma classe econômica privilegiada.
Sem falar, ainda, de membros notoriamente polêmicos, como o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, tido como integrante da ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro, que acumulava o cargo de conselheiro do CFM e de secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.
Não à toa, foi ele, Raphael, o relator da Resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, o Cremerj, de número 296/2019, que obrigava a notificação dos estupros atendidos por médicos aos órgãos policiais, dificultando o acesso de mulher que optam por não denunciar a agressão naquele momento. Vale lembrar que denunciar um estupro não é tão simples quanto parece; em muitos casos a vítima não possui condições de abrigamento, não conta com serviços públicos ou rede de apoio para que possa estar segura de eventuais investidas do agressor, muitas vezes seu pai, irmão ou membro familiar.
A posição ideológica de membros do Conselho filiados a partidos políticos ou declaradamente alinhados à pauta conservadora, acena como explicação plausível para algumas das posições retrógradas adotadas pela entidade no último biênio. Relembro alguns dos episódios mais marcantes de 2023-2024.
Em novembro de 2023, o CFM realizou o Simpósio “Violência Obstétrica”, no auditório das sua sede em Belo Horizonte, durante o qual, dentre outras questões polêmicas, condenou o uso termo por entender que, nas palavras do coordenador Victor Hugo, “estigmatiza procedimentos operatórios, discriminando a obstetrícia praticada por médicos”.
Na mesma linha, a coordenadora jurídica do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Vanessa Lima Andrade, afirmou que a expressão “violência obstétrica” é inadequada pois criminaliza o ato obstétrico, o que se contrapõe ao princípio jurídico da presunção de inocência. As falas, travestidas da discussão de nomenclatura, objetivam, em verdade, reforçar a a postura histórica do CFM sobre o tema, que equipara a violência obstétrica à violência contra o obstetra. Em síntese, a mulher-paciente, de vítima, se torna a agressora.
Não se trata de negar o saber do profissional da medicina para prescrever o correto tratamento e método a ser empregado no parto. O que se questiona aqui é a postura do CFM de usar o tema da violência obstétrica de forma enviesada, como um mote para a defesa irrestrita da autonomia do médico e, até, para o endosso de outras pautas conservadoras.
O tema da violência obstétrica já havia sido empregado pelo CFM de forma enviesada para a defesa do chamado “estatuto do embrião humano” em 2018, quando da edição do Parecer CFM nº 32/2018, referente ao Processo-consulta CFM nº 22/2018, no qual o órgão respondeu a uma consulta originária do CRM-DF sobre a suposta “proliferação” de leis sobre “violência obstétrica”.
Sobre o tema, Sérgio Rego, médico e pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) fez minuciosa analise do Parecer em artigo publicado em 28/12/2018 no site da Fiocruz. Longe do objetivo de discutir a atenção à parturiente, o documento surpreendeu, nas palavras de Rego, pelo “descompasso entre o que está sendo defendido neste Parecer e o que esperamos de uma instituição tão relevante como é o CFM, que se supõe esteja em sintonia com o seu tempo e as necessidades sociais representadas pelas mudanças contemporâneas”.[2]
Em 2024, novas polêmicas envolvem o CFM e os direitos das mulheres. Em abril, o CFM emitiu uma resolução que veta o uso de assistolia fetal em abortos resultantes de estupro após a 22ª semana de gravidez. A medida foi alvo de uma ação do PSOL no Supremo Tribunal Federal e foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes.
Há pouco mais de um mês, o CFM volta a se envolver em polêmicas. Desta vez, José Hiran da Silva Gallo, presidente do Conselho de Federal de Medicina (CFM), após encontro com o Ministro Alexandre de Moraes, na saída do Supremo Tribunal Federal falou a jornalistas: “O procedimento da assistolia fetal é cruel para o feto. Nós viemos explicar para ele [Moraes] como é essa técnica. Essa técnica é feticídio”.
José Hiran já havia se envolvido em polêmica ao afirmar que a “autonomia da mulher” deve ser limitada quando se fala em aborto legal após a 22ª semana. “A autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós, de proteger”, foram as palavras do Presidente do CFM, como relembrou matéria da CartaCapital.[3]
O médico Arruda Bastos, coordenador da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), critica a série de posições do presidente do CFM, protagonizando a oposição ao conservadorismo que ele denominou de “resgate do Conselho”.
Trazemos esse tema para relembrar os leituras da indispensável atenção à eleição dos Conselheiros do CFM, que acontecerá em agosto e terá a capacidade de renovar, por meio da eleição, seus quadros. É fundamental que o órgão reflita a diversidade cultural e ideológica da sociedade brasileira, formada por pessoas que vão muito além das classes sociais atualmente representadas.
Contudo, com as barreiras de entrada ainda existentes para que um jovem ou uma jovem negra ou trans possa ter acesso aos cursos de medicina deste país, aparentemente a ausência de alinhamento do Conselho com as políticas públicas necessárias à melhoria da saúde e direitos das mulheres e meninas parece ser uma realidade que perdurará.
[1] Leonardo Martins. https://www.intercept.com.br/2021/02/08/raphael-camara-secretario-de-pazuello-e-elo-entre-bolsonarismo-e-cfm/
[2] Rego, Sérgio. Violência obstétrica, 28/12/2018. In: https://agencia.fiocruz.br/violencia-obstetrica
[3] Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-podemos-aceitar-a-resposta-de-medicos-progressistas-ao-presidente-do-cfm/.
Vanessa Vilela Berbel. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2006), mestrado em Filosofia Teoria Geral Direito pela Universidade de São Paulo (2012) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2018). Atualmente é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, disciplina de Direito Civil. Atuou, durante os anos de 2022 a 2024, como servidora na Procuradoria Federal Especializada do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), colaborando com o enfrentamento às infrações à ordem econômica e com a proteção da defesa da concorrência. Coordenou, em nível nacional, a política pública de enfrentamento à violência contra a mulher, Ligue 180, ocupando cargo nível DAS 1.04 (2020 a 2022). Ex-professora adjunta do Instituto Federal do Paraná, Faculdade de Direito – Campus Palmas, tendo sido aprovada em primeiro lugar no concurso de provas e títulos. Possui experiência como advogada em escritório de expressão nacional e internacional. Autora de artigos, capítulos de livro e palestras. Suas pesquisas abordam os temas: desenvolvimento econômico, regulação, gênero e concorrência.