Artigos de opinião

A Nova Indústria Brasil: Os problemas passados justificam a estratégia da não-ação?

Cristina Ribas Vargas

Na data de 22 de janeiro de 2024 o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) entregou à Presidência da República o documento que pauta a nova política industrial brasileira, o NIB – Nova Indústria Brasil. Serão R$ 300 bilhões para o financiamento da industrialização, denominada de neoindustrialização, até 2026. A gestão dos R$ 300 bilhões ficará a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). O montante será disponibilizado via linhas específicas, não reembolsáveis ou reembolsáveis, e recursos por meio de mercado de capitais, dentro da estratégia de promover a indústria no país. Dentre os principais pontos do documento estão: Concessão de linhas de crédito para projetos de inovação sob condições facilitadas (TR + 2% a.a.), e decretos que determinam que compras públicas concedam margens ou preferências para produtos nacionais.

O documento apresenta seis missões cujo prazo para serem atingidas é 2033:

  1. Missão 1: Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética: a meta prevista para ser atingida é “aumentar a participação do setor agroindustrial no PIB agropecuário para 50% e alcançar 70% de mecanização dos estabelecimentos de agricultura familiar, com o suprimento de pelo menos 95% do mercado por máquinas e equipamentos de produção nacional, garantindo a sustentabilidade ambiental”. Um dos principais mecanismos de financiamento a ser utilizado nesta missão é o sistema de crédito não reembolsável.
  2. Missão 2 – Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde: Os principais instrumentos para viabilizar essa missão são: prioridades de financiamento à inovação com linhas de recursos não reembolsáveis, racionalização do custo regulatório referentes a compras governamentais, propriedade intelectual e infraestrutura.
  3. Missão 3 – Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades: a meta é reduzir o tempo de deslocamento de casa para o trabalho em 20%, e aumentar em 25 pontos percentuais o adensamento produtivo na cadeia de transporte público sustentável. Os nichos industriais previstos a serem desenvolvidos são: eletromobilidade, cadeia produtiva de bateria, construção civil digital e de baixo carbono, e indústria metroferroviária.
  4. Missão 4 – Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade: tem como missão aspiracional “Transformar digitalmente 90% das empresas industriais brasileiras, assegurando que a participação da produção nacional triplique nos segmentos de novas tecnologias.” Os principais nichos a serem desenvolvidos são indústria 4.0, produtos digitais e semicondutores.
  5. Missão 5 – Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras: tem como meta “promover a indústria verde, reduzindo em 30% a emissão de CO2 por valor adicionado da Indústria, ampliando em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes e aumentando o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano”. Os principais segmentos a serem incentivados são bioenergia, equipamentos para a geração de energia renovável, e cosméticos.
  6. Missão 6 – Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais: o objetivo é obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa. As áreas a serem desenvolvidas para esse fim são energia nuclear, sistema de comunicação e sensoriamento, sistema de propulsão, veículos autônomos e remotamente controlados.

Em todas as missões objetivadas listadas acima são instrumentos para sua viabilização: financiamentos não reembolsáveis, alterações em instrumentos regulatórios, procedimentos de contratações públicas e direitos de propriedade intelectual.

O documento vem na esteira de um sentimento de salvaguarda da democracia, em que o setor produtivo privado e o governo brasileiro o apresentam como o resultado de um diálogo fortalecido entre as partes. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) elogiou a nova política industrial como sendo o centro estratégico para o desenvolvimento do país.  Na mesma linha, para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o lançamento da nova política industrial é a demonstração de que o governo federal reconhece a importância da indústria de transformação para colocar a economia brasileira entre as maiores do mundo. Para a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs)os objetivos previstos no programa estão corretos e em sintonia com o trabalho realizado pelo Grupo de Política Industrial da entidade”.

Os críticos logo apontaram os déficits públicos, a incapacidade do governo de escolher os segmentos econômicos corretos a serem incentivados, e a corrupção a que estará sujeita o país na execução desses projetos. Termos como “politização da indústria’, favorecimentos aos amigos do rei, investimentos em um “parque industrial ultrapassado” já podem ser ouvidos nos meios de comunicação. Há que se reconhecer dois pontos: as metas são ambiciosas para serem atingidas em dez anos. Investimentos em inovação, pesquisa e desenvolvimento podem levar várias décadas até serem alcançados, mesmo em países em estágio de desenvolvimento mais avançados do que o Brasil. Além disso, os instrumentos a serem utilizados para alavancar esse novo processo de industrialização carecem de maior segurança jurídica-institucional. Quando falamos de crédito não reembolsável, é preciso considerar que há instituições públicas que ainda discutem internamente as regras de cobrança de créditos concedidos há mais de três décadas, por exemplo, ou ainda, quanto às contratações públicas, quais dispositivos da Lei de licitações poderão estar em conflito com a proposta de contratações preferenciais. São aspectos que dizem respeito aos procedimentos de execução diária da administração pública, e cuja implementação demora algum tempo até que possam ser operacionalizados.

Contudo, apesar de todas as críticas mencionadas acima, é preciso reconhecer que a neoindustrialização deriva do esgotamento do modelo neoliberal em conduzir a economia brasileira a maiores patamares de participações na indústria global. Enquanto anos 1980 o Brasil representava em torno de 3% de participação na formação do valor adicionado global, na década de 2010 essa contribuição caiu para pouco mais de 1%. Os investimentos feitos pelo Estado são necessários, desde que resultem em entregas de qualidade à sociedade, e estejam de fato vinculados a geração de empregos, inovação e aumento de produtividade. A não-ação não é uma estratégia de desenvolvimento nacional aceitável. Para que isso que ocorra, é necessário cada vez mais uma fiscalização ativa da população. É imperioso que as metas e detalhamento dos projetos de industrialização estejam ao alcance e conhecimento de todos, para que seu cumprimento seja acompanhado durante seu período de execução, e não percamos a metroferrovia da história.

https://jornalggn.com.br/analise/o-brasil-e-o-desafio-da-reindustrializacao-por-andre-cunha-e-alessandro-miebach/

https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/brasil-ganha-nova-politica-industrial-com-metas-e-acoes-para-o-desenvolvimento-ate-2033

https://www.portaldaindustria.com.br/cni/

https://www.fiergs.org.br/

https://www.fiesp.com.br/

Novo arcabouço legal para as avaliações de interesse público em medidas de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

A avaliação de interesse público é um mecanismo presente em diversos países, incluindo Brasil, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido, que permite que uma medida antidumping ou compensatória seja suspensa se for verificado que os efeitos da medida na economia são mais prejudiciais do que os benefícios gerados com sua aplicação.

No Brasil, a avaliação de interesse público é um processo administrativo conduzido pelo Departamento de Defesa Comercial (DECOM), da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). O instrumento tornou-se muito popular nos últimos anos. Atualmente, os seguintes direitos antidumping encontram-se suspensos por questões de interesse público: direito antidumping aplicado às importações de aço GNO da China, Coreia do Sul, Taipé Chinês e Alemanha; direito antidumping aplicado às importações de fios texturizados de poliéster da China e da Índia; e direito antidumping aplicado às importações de vidros para eletrodomésticos da linha fria da China.

Em 17 de novembro de 2023, foi publicada a Portaria Secex nº 282, que trouxe novos parâmetros e procedimentos para as avaliações de interesse público no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2024. As alterações são significativas.

O novo arcabouço legislativo limitou o âmbito de aplicação das avaliações de interesse público ao estabelecer que apenas poderá ocorrer a suspensão de medida antidumping ou compensatória, por razões de interesse público nas seguintes situações: (i) se for demonstrado que os efeitos negativos da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos pertencentes à cadeia de produção, distribuição, venda e consumo serão maiores do que os efeitos positivos da medida; ou (ii) se tiver ocorrido a interrupção significativa (total ou parcial) da fabricação e do fornecimento do produto doméstico similar.

Da mesma forma, a Portaria Secex nº 282 limitou o rol de partes que podem solicitar ou participar da avaliação de interesse público. De acordo com o novo arcabouço legislativo, poderão requerer o início de avaliações de interesse público apenas (i) as partes nacionais que foram consideradas como interessadas no último procedimento de defesa comercial; (ii) os setores industriais nacionais usuários do produto sujeito à medida de defesa comercial; (iii) os fornecedores de matérias-primas e insumos para a sua fabricação; e (iv) os usuários nacionais cujos interesses sejam adversamente afetados pela medida. Anteriormente, não havia limitação expressa à participação de empresas e associações de classe estrangeiras.

Uma outra alteração importante consiste no fato de que as avaliações de interesse público passam a ser realizadas a posteriori, isto é, após a publicação da medida de defesa comercial, por solicitação formal das partes interessadas ou por interesse do governo brasileiro. O prazo para o protocolo da petição é de 45 dias após aplicação, prorrogação ou alteração da medida de defesa comercial. Nas situações de interrupção (total ou parcial) da fabricação e do fornecimento por produtora nacional do produto similar, foi estabelecido um novo procedimento expedito, ainda mais simplificado, que poderá ocorrer a qualquer momento durante a vigência da medida de defesa comercial. Note-se que, segundo o regulamento anterior, a investigação de defesa comercial e a análise de interesse público eram concomitantes.

A Portaria Secex nº 282 também reduziu os prazos da avaliação de interesse público para 3 ou 4 meses, tornado esse processo muito mais célere. Na regulação anterior, em regra, uma avaliação durava o mesmo tempo que um processo de defesa comercial, de 12 a 18 meses.

Adicionalmente, foi criada uma nova etapa na qual é realizado o juízo de admissibilidade da petição que requer a abertura da avaliação de interesse público. Ao término do período para apresentação de informações, haverá juízo de sua admissibilidade, que só será positivo caso os dados apresentados pela empresa ou entidade que solicitar a abertura da avaliação de interesse público sejam efetivamente demonstrados ou comprovados. Isso significa que a nova legislação aumentou o rigor em relação às informações apresentadas pelas partes para comprovar o impacto econômico-social da medida de defesa comercial.

Em resumo, observa-se que o novo arcabouço legal busca garantir que a suspensão das medidas de defesa comercial por interesse público ocorra de forma excepcional e equilibrada. Nada mais justo. Afinal, uma investigação para a aplicação de direito antidumping ou de medida compensatória é um processo extremamente complexo e técnico, que dura de 12 a 18 meses a partir de sua abertura (sem contar o período de coleta de dados, preparação e análise da petição), no qual as partes interessadas podem exaustivamente exercer o direito ao contraditório e apresentar documentos comprobatórios e evidências.

Observa-se, ainda, que a nova regulação sobre avaliações de interesse público tenta diminuir o ônus das partes interessadas ao instituir uma análise ex post. Nesse sentido, só haverá dispêndio de recursos em uma avaliação de interesse público ser houver efetivamente a aplicação da medida de defesa comercial e o se juízo de admissibilidade da avaliação de interesse público for positivo. Sem uma avaliação de admissibilidade, muitas avaliações de interesse público não possuíam sequer mérito preliminar o uso pouco racional de recursos humanos, haja vista que as medidas de defesa comercial poderiam sequer ser aplicadas. Com as alterações adotadas, as partes poderão concentrar melhor seus esforços em cada processo. Essa situação mostrou-se ainda mais danosa no passado, quando as avaliações de interesse público eram obrigatórias em todas as investigações antidumping e de subsídios.

Embora as alterações propostas tenham sido bem fundamentadas e resultem no aprimoramento da avaliação de interesse público, resta saber se, na prática, será possível ter uma análise mais adequada dos possíveis efeitos negativos e positivos da medida de defesa comercial na economia.


Fernanda Manzano Sayeg. Doutora e Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (2014 e 2009). Especialista em Direito do Comércio Internacional pela Faculdade de Direito pela Universidade de Buenos Aires (2006). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (2003).


Requisitar dados não é suficiente para a proteção da privacidade. É preciso tratar a assimetria de informação.

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A disruptura digital pelo qual passa o mundo não tem sido sem dor. As “maravilhas” da tecnologia materializadas nos smartphones cobram o seu preço e esse preço é o ataque frontal a privacidade e a liberdade do ser humano.

Estas pequenas “maravilhas” transferem dados pessoais a cada acesso ou transação para as Big techs, que, a partir de infinitos acessos e/ou transações realizadas por cada detentor de smartphone, são capazes de construir bases de dados gigantescas com informações pessoais as mais variadas possíveis e em um nível de detalhe tão pequeno quanto se possa imaginar.

O passo seguinte é a utilização destas informações pela empresa para fazer negócios sem o consentimento do ser humano, na medida em que captam, armazenam, classificam, precificam e alienam os comportamentos, pensamentos e sentimentos de cada ser humano sob o manto de um “capitalismo de vigilância”, cujos reais interessados nesse grande mercado de predição de comportamentos futuros são as empresas de marketing e publicidade e o real valor desse modelo de negócios não são mais os usuários e sim os seus comportamentos, pensamentos e sentimentos.

Segundo Shoshana Zuboff:

“o capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como “inteligência de máquina” e manufaturado em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde. Por fim, esses produtos de predições são comercializados num novo tipo de mercado para predições comportamentais que chamo de mercados de comportamentos futuros. Os capitalistas de vigilância têm acumulado uma riqueza enorme a partir dessas operações comerciais, uma vez que muitas companhias estão ávidas para apostar no nosso comportamento futuro.” [1]

Prossegue a Autora Shoshana Zuboff aduzindo que,

“[p]or enquanto, digamos que os usuários não são produtos, e sim que são  as fontes de suprimento de matéria-prima.” [2]

 No entanto, o que é ainda mais grave é a utilização destas informações para atuar em um nível abaixo da consciência humana, fazendo com que o ser humano seja induzido/manipulado digitalmente a consumir não o que deseja, mas sim aquilo que a empresa deseja. Neste ponto, vale citar Byung-Chul Han que, parafraseando Walter Benjamin, aduz ao inconsciente óptico a seguinte estrutura:

“Os pensamentos de Benjamin sobre o inconsciente óptico podem ser transpostos ao regime da informação. Big Data e inteligência artificial constituem uma lupa digital que explora o inconsciente, oculto ao próprio agente, atrás do espaço da ação consciente. Em analogia ao consciente óptico, podemos chamá-lo de inconsciente digital. O Big Data e a Inteligência Artificial levam o regime de informação a um lugar em que é capaz de influenciar nosso comportamento em um nível que fica embaixo do liminar da consciência.”[3]

A proteção de dados no Brasil se encontra tratada na Lei Geral de Propriedade de Dados (LGPD)[4], diploma legal que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (art. 1º) e que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio e com sede e foro no Distrito Federal (art. 55-A).

E um dos requisitos para o tratamento dos dados previstos na LGPD para fazer a proteção de dados individuais está previsto no caput do art. 9º, que pugna que [o] titular tem direito ao acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva acerca de, entre outras características previstas em regulamentação para o atendimento do princípio do livre acesso.

A garantia de acesso aos dados pelo usuário é uma condição necessária, mas não suficiente para que o tratamento de dados individuais atinja o objetivo da privacidade, principalmente porque há uma abissal assimetria de informação[5] entre a big tech e o usuário, assimetria que é potencializada pelo fato de que transparência dos dados para o usuário não pode ultrapassar a proteção dos segredos de empresa e industriais, conforme postula o art 6º, inciso VI[6], da mesma lei.

Acertadamente, a LGPD atribui à ANPD a competência para articular-se com as autoridades reguladoras públicas para exercer suas competências em setores específicos de atividades econômicas e governamentais sujeitas à regulação (art. 55-J, inciso XXIII) e a competência para que [a] ANPD e os órgãos e entidades públicos responsáveis pela regulação de setores específicos da atividade econômica e governamental coordenem as suas atividades, nas correspondentes esferas de atuação, com vistas a assegurar o cumprimento de suas atribuições com a maior eficiência e promover o adequado funcionamento dos setores regulados, conforme legislação específica, e o tratamento de dados pessoais, na forma desta Lei (art. 55-J, § 3º).        

A atuação conjunta da ANPD e das agências reguladoras permite chamar à atenção para o real problema que envolve a proteção de dados, que é a assimetria de informação existente entre as empresas (Big techs) que captam os dados, os usuários, as agências reguladoras setoriais e a ANPD, conforme mostra a figura 1.

Figura 1. O problema do agente-principal na proteção de dados

No modelo exposto na figura 1, verifica-se que embora o usuário detenha a propriedade do dado, quem o utiliza e desenvolve políticas comerciais sem que o usuário tenha como identificá-las é a empresa. Da mesma forma, ainda que a agência reguladora, em parceria com a ANPD, detenha alguns instrumentos para a obtenção dos dados e dos sistemas de mineração de dados, o core da informação obtida é o segredo do negócio da empresa e ela tem incentivos econômicos para não revelar a nenhum agente, sobretudo ao Estado.

Conforme expresso anteriormente, a LGPD garante ao usuário o acesso a todas as suas informações, bastando, apenas, que o usuário as solicite à empresa. No entanto, o dado é só o insumo e tem pouca serventia se não vier acompanhado das informações geradas por ele e, sobretudo, de como a empresa utilização essa informação no mercado de predição de comportamentos futuros, com altíssimo lucro.

Portanto, é exatamente o que e como as Big techs utilizam os dados dos usuários que é o “X” da questão da proteção de dados. Solicitar dados, algoritmos e outras coisas que o valham não soluciona o problema da privacidade dos usuários, pois o abuso do direito de privacidade por parte das empresas não está no dado, mas na informação gerada por este dado, e se essas empresas não estão dispostas a informá-las, a razão é que ela detém muito mais informações a respeito do seu negócio que o regulador.

O caminho para fazer com que as Big techs respeitem o direito de privacidade do usuário passa por fazer com que o retorno financeiro da empresa em respeitar o direito seja superior ao retorno financeiro de não respeitá-lo. Um caminho possível é gerar incentivos sobre o gerador do benefício para a empresa[7], que é o usuário.

A obrigação de apresentar dados não é suficiente para fazer com que a empresa pare de avançar sobre a privacidade dos usuários, pois repassar os dados para o usuário não altera o retorno esperado da empresa.

No entanto, é preciso que o usuário seja beneficiado pela agência reguladora (Estado) através de um mecanismo em que a big tech seja obrigada a revelar informações que não desejaria para o regulador. Esse é o árduo trabalho que deverá ser enfrentado pela regulação econômica envolvendo as agências reguladoras e a ANPD.


[1] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca, p. 23.

[2] [2] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca.

[3] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Editora Vozes. 2022, p.23.

[4] L13709 (planalto.gov.br)

[5] VARIAN, HALL. Intermediate Microeconomics: A Modern Approach. Fifth Edition. W. W. Norton. 1999.

[6] Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:

VI – transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial;

[7] Um exemplo importante a se considerar diz respeito a nota legal. Neste caso, ao colocar o CPF nas suas compras o consumidor fica automaticamente habilitado a participar de sorteio realizado pela Secretaria de Estado de Fazenda, onde são oferecidos descontos no pagamento de impostos (ex. IPVA), entre outras coisas. Ao solicitar que o consumidor solicite a inserção do seu cpf na nota fiscal, o estabelecimento comercial fica automaticamente obrigado a emitir a nota fiscal e, com isso, fica obrigado a recolher os impostos devidos. A obrigação de emitir nota fiscal por si só não é suficiente para fazer com que o comerciante de fato a emita, mas a oferta de benefício para o consumidor obriga a emissão da nota fiscal por parte do comerciante.

A Importância da Utilização de Evidências do Mundo Real na Tomada de Decisão em Saúde no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

O crescente interesse na utilização das evidências do mundo real reflete uma mudança no paradigma da pesquisa clínica, que reconhece a necessidade de dados obtidos fora dos ensaios clínicos randomizados para informar de maneira mais abrangente as decisões em saúde. No contexto brasileiro, em que as políticas de saúde são moldadas por uma diversidade de fatores, incluindo características da população, limitações de recursos e vieses ideológicos, a utilização das evidências do mundo real pode ser um divisor de águas para uma tomada de decisão mais contextualizada e eficaz.

As evidências do mundo real (RWE, na sigla em inglês) derivam da análise de dados do mundo real, compreendendo informações obtidas durante a prática clínica rotineira, em contraste com os tradicionais ensaios clínicos randomizados. AS RWE incluem dados de estudos observacionais retrospectivos ou prospectivos, bem como registros observacionais. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, nos quais a seleção de tratamentos é rigidamente controlada, os estudos de mundo real refletem as escolhas reais de pacientes e médicos, proporcionando uma visão mais alinhada com a prática clínica diária.

Embora as evidências do mundo real proporcionem uma visão inestimável da eficácia e segurança dos tratamentos em ambientes do mundo real, não se deve ignorar os desafios inerentes a essa abordagem. Questões relacionadas à incerteza sobre a validade interna, registro impreciso de eventos de saúde e a possibilidade de viés na literatura são preocupações legítimas que exigem abordagens proativas para garantir a credibilidade e utilidade desses dados.

A validade interna de estudos baseados em evidências do mundo real muitas vezes é questionada devido à falta de controle estrito sobre variáveis que podem confundir a análise. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, em que as condições são altamente reguladas, os estudos de mundo real enfrentam o desafio de capturar uma ampla gama de fatores que influenciam as decisões de tratamento na prática clínica. Essa variabilidade pode introduzir incertezas nos resultados, levando a dúvidas sobre a robustez e confiabilidade dos dados.

Ao abordar essa incerteza, os pesquisadores devem empregar métodos estatísticos avançados, como ajustes de propensão e modelagem de causalidade, para minimizar o impacto de variáveis de confusão. Além disso, a transparência na divulgação das limitações e do escopo dos estudos é crucial para que os decisores entendam a extensão da incerteza associada aos resultados apresentados.

Outro desafio enfrentado nas evidências do mundo real reside no registro impreciso de eventos de saúde. Diferentemente dos ensaios clínicos randomizados, nos quais os eventos adversos são monitorados de perto em um ambiente controlado, os estudos de mundo real dependem muitas vezes de registros médicos e sistemas de saúde, que podem não capturar completamente todos os eventos relevantes. Esta lacuna pode levar a uma subestimação ou superestimação da segurança dos tratamentos.

Para abordar essa preocupação, é fundamental implementar estratégias que melhorem a qualidade dos dados de saúde utilizados nos estudos de mundo real. Isso pode envolver a integração de sistemas de informação, aprimoramento da padronização nos registros médicos e, quando possível, a validação cruzada de eventos de saúde por meio de diferentes fontes de dados. Além disso, os pesquisadores devem ser transparentes sobre as limitações nos dados de eventos de saúde e destacar as medidas tomadas para mitigar essas limitações.

Além disso, a possibilidade de viés na literatura é uma inquietação legítima, especialmente considerando preocupações sobre “data dredging” (realização de múltiplas análises até encontrar um resultado desejado) e a preferência das revistas por publicar resultados positivos. Esse viés pode distorcer a percepção dos tratamentos e influenciar indevidamente a tomada de decisões em saúde.

Para mitigar essa preocupação, um passo significativo na promoção da confiança nas evidências derivadas de estudos de mundo real é a implementação de boas práticas procedimentais como, por exemplo:

  1. a pré-especificação clara de hipóteses, protocolo e plano de análise, seguido pela publicação desses documentos antes da condução do estudo para reduzir o viés de publicação;
  2. a diferenciação entre estudos exploratórios e estudos de avaliação de hipóteses de eficácia (HETE) para uma compreensão clara dos objetivos do estudo;
  3. a publicação dos resultados do estudo com uma declaração contendo informações detalhadas sobre conformidade ou desvio do plano de análise original oferece uma visão honesta e completa do estudo, melhorando a confiabilidade e transparência;
  4. a criação de oportunidades para a replicação do estudo por outros pesquisadores sempre que possível, promovendo a transparência e confiabilidade;
  5. a realização de estudos HETE em fontes e populações diferentes daquelas usadas para gerar as hipóteses, quando viável;
  6. a produção de respostas a críticas metodológicas pelos autores do estudo original, promovendo a discussão pública e o aprimoramento contínuo do estudo;
  7. o envolvimento de partes interessadas (stakeholders) que sejam essenciais para o design, a condução e a disseminação do estudo, para garantir relevância e aplicabilidade.

Ao abordar proativamente essas preocupações, é possível otimizar a utilização das evidências do mundo real para aprimorar a tomada de decisões em saúde no Brasil. Os desafios não devem ser vistos como obstáculos intransponíveis, mas como áreas que demandam constante aprimoramento e inovação. A transparência, a colaboração entre stakeholders e o compromisso com práticas metodológicas robustas são os pilares para transformar os desafios em oportunidades.

À medida que o Brasil busca aprimorar suas políticas de saúde, a incorporação de evidências do mundo real na tomada de decisões emerge como uma estratégia vital. Ao seguir boas práticas procedimentais, é possível promover não apenas a transparência, mas também a confiança necessária para utilizar plenamente essas evidências. Essa abordagem, combinada com a consideração das nuances locais, promete uma tomada de decisão em saúde mais informada e alinhada com as necessidades específicas da população brasileira.

O caminho para a integração bem-sucedida das evidências de mundo real  às políticas de saúde do Brasil exige um esforço colaborativo de pesquisadores, decisores políticos e outros stakeholders para impulsionar uma mudança positiva em direção a práticas mais eficazes e contextualizadas.

Ao reconhecer e enfrentar os desafios inerentes às evidências do mundo real, o Brasil pode construir uma base sólida para decisões em saúde mais informadas, eficazes e alinhadas com a realidade dos cuidados médicos diários. A busca pela excelência na utilização de evidências de mundo real é uma jornada contínua, mas os benefícios potenciais para a saúde da população brasileira são inestimáveis.

Barriga de Aluguel (Surrogacy) e o Mercado de Reprodução Assistida: chegou a hora de regular?

Vanessa Vilela Berbel 

Kim Jong-Un chorou em discurso no qual pedia para  as norte-coreanas terem mais bebês. Para o líder político, dar à luz a filhos é motivo de patriotismo, mas, para as norte-coreanas, que ocupam cerca de 20% do efetivo das forças armadas do país e vem sendo integradas massivamente ao mercado de trabalho, os arquétipos de mulheres figurados em doramas contrabandeados da  vizinha Corea do Sul parecem muito mais atraentes. Do mesmo modo, o país fronteiriço, democrático e capitalista, também não é o exemplo mais encorajador de mudança da taxa de natalidade, apresentando a mais baixa delas: 0,78% por sul-coreana, em 2022.  

Na China, por outro lado, o que causou bulício nas notícias de 2023 foram os rumores  de que Fu Xiaotian, apresentadora de televisão e suposto par romântico do ex-Ministro das Relações Exteriores, Quin Gang, teria contratado uma barriga de aluguel nos Estados Unidos da América, prática proibida em seu país. Depois disso, Quin Gang foi exonerado, seus registros apagados dos canais de comunicação do governo chinês e, até o momento, não se tem notícias de seu paradeiro. 

O que se nota de tudo isso é que muitas mulheres não querem mais carregar sozinhas as externalidades negativas do trabalho gestacional, pelo que a terceirização acende como alternativa para algumas delas. Não só, assim também agem casais homoafetivos do sexo masculino, pessoas solteiras e mulheres que, ainda que almejassem gestar, por razões médicas não lograram êxito. Apesar de parecer que apenas Kim Kardashian e Paris Hilton são optantes da barriga de aluguel, há uma grande quantidade de pessoas comuns do povo que oneram seus rendimentos, fazem dívidas bancárias e se submetem aos mais rígidos protocolos de saúde para alcançar a maternidade. Abomináveis?  

Abrimos o ano de 2024 com essa polêmica! Papa Francisco, líder da Igreja Católica Apostólica Romana, em 08 de janeiro, causou rebuliço nas redes sociais ao ser veiculado seu discurso sobre o “estado do mundo”, em que descreveu a “barriga de aluguel” como “deplorável”, justificando sua posição pelo fato de que ‘uma criança deveria ser um presente e nunca a base de um contrato comercial’, que decorreria “da exploração das necessidades materiais da mãe”.  

O discurso do líder religioso vai ao encontro das posições de muitas outras feministas, como Silvia Frederici, que denuncia há anos a venda sexual do corpo feminino como uma situação econômica histórica.  

Enfim, se de um lado algumas não querem ou não podem fazer a tarefa, de outro há mulheres dispostas a realizar, mas, muitas vezes, mediante retribuição. Se não devemos esperar do padeiro e do açougueiro nosso almoço, ainda devemos aguardar dessas mulheres gestos de benevolência e caridade? sob quais condições a prática pode ser permitida ou proibida? 

Apesar dos reclames de muitos para seu banimento, fato é que a  infertilidade está a emergir como um problema grave nos âmbitos sociais, econômicos e culturais. Como resultado, a barriga de aluguel aumentou em todo o mundo e vem sendo compreendida como alternativa para muitos. O mercado de barrigas de aluguel, que em 2022 correspondeu a mais de US$ 14 bilhões, poderá, até 2032, ultrapassar US$ 129 bilhões, de acordo com um novo relatório de pesquisa da Global Market Insights Inc. 

Apesar deste mercado ser um fato que ninguém poderá negar, ainda é, na maioria dos países, simplesmente não regulado. 

Não existe regulamentação internacional sobre a barriga de aluguel e as legislações variam  consideravelmente ao redor do globo entre países que: (i) proíbem absolutamente o ato; (ii) autorizam se houver gratuidade e/ou vinculo afetivo/parental entre os envolvidos; (iii) simplesmente não regulam o procedimento, sendo, nestes casos, tratado como um contrato privado que poderá ou não envolver contraprestação.  

Ainda assim, países conhecidos por não reprimirem o procedimento vem anunciando seu banimento ou drásticas restrições em suas diretrizes. A Geórgia, país para o qual grande parte da demanda da Ucrânia migrou, anunciou, em setembro de 2023, a intenção de aprovar lei que vetará a surrogacy para estrangeiros, havendo expressa advertência no site da embaixada do país aos problemas jurídicos que poderão ser causados aos eventuais contratantes1.  

Os Estados Unidos da América, conhecidos também por serem destinos daqueles que podem arcar com os altos custos do procedimento, possuem legislações esparsas  e diversas em cada estado federado2. Há, inegavelmente, insegurança jurídica neste mercado que insiste em existir, causando prejuízos não apenas econômicos.  

No Brasil,  conforme Resolução Federal de Medicina nº 2.320/2022, é permitida apenas gestação por substituição no regime altruísta  (sem contraprestação), desde que exista condição que impeça ou contraindique a gestação e, ainda, que a cedente temporária do útero (i) tenha ao menos um filho vivo; (ii) pertença à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos) ou, na impossibilidade de atender ao quesito anterior, seja autorizado pelo Conselho Regional de Medicina (CRM). 

Apesar das condições dispostas pela Resolução do Conselho de Medicina, vale lembrar que estamos falando de um instrumento infralegal, de duvidoso caráter constitucional; tanto é assim que, se pegarmos as disposições subsequentes deste instrumento, há previsão de autorização para a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, em absoluto desacordo com a jurisprudência dominante sobre o tema. 

A pergunta que coloco aos leitores é: quem ganha com a ausência de regulamentação deste mercado? Ignorá-lo e deixa-lo à livre estipulação das partes, a maioria delas desprovidas de conhecimento jurídico suficiente para sopesar os riscos, é de fato a melhor maneira do Estado gerenciar suas contingências? Parece-me que a resposta é negativa e que urgem pesquisas para uma melhor compreensão do tema e regulação das práticas.  


Referências  

Brandão P, Garrido N. Commercial Surrogacy: An Overview. Rev Bras Ginecol Obstet [Internet]. 2022Dec;44(12):1141–58. Available from: https://doi.org/10.1055/s-0042-1759774 

Global Market Insights Inc. Surrogacy Market – By Type (Gestational Surrogacy, Traditional Surrogacy), By Technology (Intrauterine Insemination (IUI), In-vitro Fertilization (IVF)), By Age Group, By Service Provider & Forecast, 2023-2032. Disponível em: https://www.gminsights.com/pressrelease/surrogacy-market 

Turconi PL. Assisted Regulation: Argentine Courts Address Regulatory Gaps on Surrogacy. Health Hum Rights. 2023 Dec;25(2):15-28. PMID: 38145139; PMCID: PMC10733767. 

O Mercado Financeiro: Uma Visão Abrangente 

Leandro Oliveira Leite

O ano de 2023 testemunhou uma série de transformações notáveis no cenário financeiro brasileiro, impulsionadas pela evolução tecnológica do próprio mercado e pelas ações regulatórias. Além disso, diversos eventos e estudos apresentados por entidades de destaque, como o Banco Central (BC), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e associações de classe, oferecem uma visão abrangente das mudanças e desafios que moldaram o setor.  

Desde 1º de dezembro de 2023, em uma oportunidade de o país colocar em pauta assuntos que considera prioritários, o Brasil passou a presidir o G20, fórum de cooperação econômica internacional que reúne dezenove das principais economias do mundo, além da União Europeia e alguns convidados eventuais. A presidência do G20 representa uma plataforma única para o Brasil influenciar e contribuir para decisões econômicas globais, refletindo o comprometimento com a sustentabilidade socioambiental e a estabilidade financeira. Nesse ínterim, o BC tem destacado o seu compromisso em sempre estar inovando e manter a inflação controlada para impulsionar o crescimento econômico sustentável e melhorar a qualidade de vida do cidadão. 

O Papel do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) na Evolução Financeira 

Primeiramente, no âmago dessa evolução está o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), uma criação do BC. Esta infraestrutura vital possibilita uma variedade de operações financeiras, desde transações cotidianas, como o Pix, até operações mais complexas, como investimentos e comércio exterior. A reestruturação do SPB, realizada duas décadas atrás, foi revolucionária para o sistema financeiro brasileiro, introduzindo segurança e eficiência às operações, reduzindo riscos sistêmicos e tornando-se um modelo referencial internacional. 

A transferência eletrônica instantânea, notadamente através do Pix, trouxe mudanças perceptíveis para os usuários. Além disso, a reestruturação impulsionou a competitividade no mercado financeiro, reduzindo concentrações no Sistema Financeiro Nacional (SFN) e ampliando a concorrência. Inovações como o Open Finance e Drex refletem a busca contínua por segurança, eficiência e novas possibilidades no mercado financeiro brasileiro. 

Maior número de pessoas bancarizadas 

Durante a pandemia do Covid-19, ampliou-se o número de cidadãos com relacionamento com o SFN, tanto pela concessão de auxílio emergencial quanto pela expansão das instituições financeiras ditas digitais.  

Segundo o BC, após o fim do pagamento do Auxílio, o Brasil viu crescer o número de tomadores de crédito e o percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, principalmente em decorrência do maior comprometimento de renda com dívidas e da maior inadimplência por parte dos brasileiros.  

O BC atualizou os números sobre o endividamento de risco no Brasil, conforme divulgado na nova edição da “Série Cidadania Financeira”. Em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento de 20 milhões desde março de 2021.  

Bancarização Aumentada e Desafios Pós-Covid-19 

O período da pandemia de Covid-19 trouxe uma maior bancarização, com mais cidadãos se envolvendo com o SFN, impulsionados tanto pelo Auxílio Emergencial quanto pela ascensão das instituições financeiras digitais. No entanto, após o término do Auxílio, observou-se um aumento no número de tomadores de crédito e no percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, atribuído ao maior comprometimento de renda e à inadimplência. 

De acordo com o BC, em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento notável de 20 milhões desde março de 2021. O endividamento de risco, caracterizado por critérios como inadimplência e comprometimento mensal de renda acima de 50%, cresceu, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, entre a população feminina, idosos e pessoas de menor renda. 

A “Série Cidadania Financeira” do BC, iniciada em 2020, é uma parte crucial dos esforços para promover o gerenciamento adequado de recursos financeiros pelos cidadãos, abordando temas como inclusão financeira, educação financeira e proteção do consumidor de serviços financeiros. 

Inovações do Banco Central e Empoderamento Financeiro 

O Banco Central introduziu mudanças significativas, incluindo uma versão unificada do Relatório de Empréstimos e Financiamentos (SCR). Essa atualização simplifica a apresentação de informações, tornando-as mais acessíveis para os cidadãos, e está disponível gratuitamente no site do BC. 

Outra contribuição notável à sociedade é o Sistema de Valores a Receber, permitindo que cidadãos e empresas verifiquem se têm dinheiro esquecido em bancos e instituições fiscalizadas pelo BC. Além disso, o Registrato, parte integrante desse movimento, agora requer acesso exclusivamente por meio da conta gov.br, fortalecendo a segurança das informações pessoais. 

Cade e a Análise Profunda do Mercado Bancário e de Seguros 

No âmbito da concorrência, o Cade lançou a vigésima edição da série “Cadernos do Cade”1, focando no estudo dos mercados de serviços bancários e seguros. Esse estudo, dividido em quatro seções, analisa detalhadamente diversos segmentos, incluindo concessão de crédito, gestão de recursos, câmbio, distribuição de títulos, seguros, entre outros. Reconhecendo a importância econômica desses mercados, o estudo destaca o papel crucial dos bancos e seguradoras para a economia do país, fornecendo condições para investimentos, consumo e poupança. O avanço da economia digital, com o surgimento de fintechs e insurtechs, tem gerado desafios que exigem uma abordagem conjunta das autoridades regulatórias e de defesa da concorrência. 

O ambiente de inovação desafia as autoridades regulatórias e de defesa da concorrência, evidenciando a necessidade de cooperação entre entidades como Banco Central do Brasil e Cade. A série “Cadernos do Cade” tem o objetivo de consolidar, sistematizar e divulgar a jurisprudência do Cade em mercados específicos, contribuindo para o conhecimento técnico e acadêmico em temas relacionados à defesa da concorrência. O estudo também destaca a importância dos seguros e a variedade de serviços prestados por bancos e seguradoras, com foco na concentração nesses setores e nas análises de atos de concentração e condutas anticompetitivas. 

Competição e Inovação na Economia Digital 

A Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (ABIPAG) desempenha um papel ativo na promoção da competição e inovação. O evento “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital” destaca os esforços do setor para abordar tanto os aspectos regulatórios quanto os concorrenciais. Medidas governamentais, notadamente do BCB e Cade, ao encerrar relações de exclusividade, abriu espaço para a entrada de novos participantes, fomentando a competição, incentivaram o setor de meios eletrônicos de pagamento, proporcionando maior diversidade de modelos de negócios e atendendo às necessidades dos usuários finais. 

Presidência do G20 e Compromissos Globais 

Por fim, é importante destaca que o Brasil organizará mais de cem reuniões e conferências que culminarão na 19ª Cúpula em novembro de 2024. A Trilha de Finanças, liderada pelo BC, desempenhará um papel crucial, abordando temas macroeconômicos estratégicos em colaboração com o Ministério da Fazenda. O G20 está organizado em duas trilhas, a de financeira2 e a de Sherpas3, cada uma com grupos técnicos temáticos. 

Durante as reuniões do G20, o BC abordará também questões de inovação e avanços nos sistemas de pagamentos rápidos, mas o principal papel do Brasil no G20, desde sua participação em 2008 e, nos planos do Banco Central para 2024, estará focando na luta contra a pobreza e desigualdade como centrais para a estabilidade financeira.  

Assim, a parceria entre o Ministério da Fazenda e o BC no G20 visa melhorar a coordenação entre as trilhas financeira e de Sherpas. O compromisso com a sustentabilidade socioambiental é destacado, com o BC sendo reconhecido por implementar medidas alinhadas à agenda global de sustentabilidade. 

A agenda do BC no G20 terá oportunidade de abordar os impactos das inovações digitais no sistema financeiro, priorizando discussões sobre a tokenização de ativos, solução de finanças descentralizada (DeFi) e Inteligência Artificial (IA). Segundo o BC, será destacada a importância de compreender tanto os benefícios quanto os riscos das inovações digitais. 

Perspectivas e Desafios Futuros 

A evolução notável do mercado financeiro brasileiro em 2023 reflete não apenas avanços tecnológicos, mas também uma adaptação a um ambiente dinâmico e competitivo. A convergência contínua de tecnologias, como Pix, Drex e Open Finance, continuará a moldar o setor, posicionando o Brasil na vanguarda dos sistemas de pagamento. No entanto, desafios persistem, especialmente na gestão das complexidades da economia digital e na garantia de uma concorrência saudável para o benefício dos consumidores. 

O diálogo contínuo entre entidades reguladoras, instituições financeiras e outros stakeholders será crucial para enfrentar esses desafios e promover uma evolução positiva e sustentável no mercado financeiro brasileiro. A cooperação entre o Banco Central do Brasil, Cade e outros órgãos demonstra a importância da abordagem conjunta para garantir a estabilidade e a inovação nesse setor vital para a economia nacional. 

Os desafios da precificação de terapias avançadas no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A indústria farmacêutica enfrenta um desafio complexo ao precificar terapias avançadas. A busca pela inovação e o desenvolvimento de tratamentos de ponta demandam altos investimentos em pesquisa, ensaios clínicos e produção, custos muito significativos que são considerados ao determinar o preço final do produto.

Além disso, a indústria busca refletir o valor terapêutico inovador das terapias avançadas ao estabelecer preços. Isso inclui considerações sobre as evidências de eficácia e os benefícios clínicos dessas terapias, bem como a segurança e o impacto que a terapia tem na qualidade de vida do paciente.

Nas estratégias de precificação, a indústria ainda leva em conta as políticas de reembolso e as barreiras de acesso ao mercado. Preços excessivamente altos podem limitar o acesso dos pacientes, enquanto preços muito baixos podem afetar a sustentabilidade financeira da empresa. Nesse sentido, o desenvolvimento de modelos alternativos de pagamento, como acordos de pagamento por desempenho ou modelos de pagamento baseados em resultados, além de parcerias com sistemas de saúde, tem sido uma estratégia para garantir o acesso e a viabilidade financeira.

Vale dizer que é preciso ainda considerar, nesse cálculo, questões éticas e sociais, especialmente porque o desenvolvimento de terapias avançadas tem estado associado a condições graves ou raras. Nesse aspecto, a forma como a terapia é comercializada e comunicada ao público, aos médicos e aos pagadores de saúde desempenha um papel na percepção do valor do produto, o que pode impactar as estratégias de precificação.

Por fim, à medida que a disseminação de terapias avançadas torna esse tipo de produto o “novo normal”, é fundamental considerar a concorrência nesse mercado como um fator decisivo na precificação. Quanto maior a quantidade de alternativas para tratamento de questões diversas por meio de terapias avançadas, maior a pressão para redução de preços desses produtos.

Por outro lado, as operadoras de planos de saúde se deparam com a necessidade de equilibrar a acessibilidade aos tratamentos com a sustentabilidade financeira do plano. Em um ambiente no qual as terapias avançadas frequentemente apresentam preços elevados, as operadoras buscam negociar valores mais baixos para garantir que esses tratamentos sejam acessíveis aos beneficiários do plano. O debate se foca não apenas na eficácia clínica, mas também na relação custo-benefício dessas terapias para a saúde financeira de longo prazo do plano.

Essa perspectiva decorre do fato de que as operadoras de planos de saúde estão preocupadas com a sustentabilidade financeira a longo prazo. Elas buscam controlar os custos médicos para garantir que os prêmios sejam acessíveis e não se tornem proibitivos para os participantes dos planos. Nesse sentido, para cobrir determinada terapia, as operadoras de planos de saúde buscam evidências robustas de eficácia e custo-efetividade. Elas avaliam se os benefícios clínicos justificam os custos associados à terapia.

Com base nessa análise, as operadoras consideram como a terapia trará valor tangível para os participantes dos planos. Isso inclui avaliar se a terapia resolverá condições significativas, reduzirá a necessidade de tratamentos futuros e melhorará a qualidade de vida. Elas também avaliam o impacto financeiro da inclusão de uma terapia no pool de riscos do plano de saúde. Uma terapia muito cara pode afetar a distribuição dos custos entre os membros do plano.[1]

Nessa perspectiva, os altos valores atribuídos às terapias avançadas já autorizadas a serem comercializadas no Brasil serviram como incentivo ao debate sobre a necessidade de buscar acordos de compartilhamento de riscos entre as operadoras de planos de saúde e as empresas farmacêuticas, nos quais o custo da terapia está vinculado ao desempenho e aos resultados dos pacientes.

Os conflitos entre as perspectivas da indústria farmacêutica e das operadoras de planos de saúde surgem de suas prioridades e objetivos distintos. Enquanto a indústria enfatiza a inovação, os custos de pesquisa e a justificativa do valor com base em benefícios clínicos, as operadoras focam na acessibilidade, na eficácia comprovada e no controle de custos.

Esses pontos de conflito incluem a divergência entre custos elevados e acessibilidade, o debate sobre evidências de eficácia versus critérios de cobertura, além da negociação de preços. Enquanto a indústria busca lucratividade e aceitação no mercado, as operadoras buscam limitar custos médicos e proteger seus beneficiários contra encargos financeiros excessivos. A busca por um terreno comum entre essas perspectivas muitas vezes representa um desafio, requerendo um equilíbrio delicado entre inovação, acessibilidade e sustentabilidade financeira.

Esse embate precisa ser mediado pelos reguladores. O regramento atual de precificação de medicamentos no Brasil grita por atualização. Esse debate precisa avançar rapidamente, não apenas para estabelecer parâmetros efetivos de precificação de terapias avançadas, mas também para permitir nova racionalidade para todo o mercado de medicamentos.

Aliado a essas mudanças, é urgente rever critérios para que a incorporação das terapias avançadas no sistema de saúde suplementar no Brasil ocorra dentro de condições que viabilizem o acesso, preservem a estabilidade econômico-financeira das operadoras e garantam a segurança dos beneficiários. Parece ser o catalisador ideal para um debate de aprimoramento das interfaces entre os sistemas público e privado, seja para a coleta de informações sobre desfechos (essencial para assegurar a eficácia dos tratamentos), seja para a negociação das condições de pagamento pelos tratamentos, que podem ser mais benéficas para os dois sistemas se forem consideradas conjuntamente as populações por eles atendidas.

Do lado da indústria farmacêutica, a regulação deve ser incentivadora de inovação, protetora de direitos de patente, promotora da concorrência e fiscalizadora de boas práticas. É preciso eliminar, definitivamente, o viés que faz a regulação nacional tratar com desconfiança o setor produtivo.


[1] Vale dizer que no Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, as operadoras estão submetidas a uma regulamentação que as obriga a oferecer cobertura a tratamentos incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde, conforme normatizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que diminui consideravelmente seu poder de negociação frente à indústria farmacêutica. Também é preciso considerar, no caso brasileiro, os parâmetros de precificação definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), colegiado responsável pelo estabelecimento dos preços-teto de comercialização de medicamentos no Brasil, o que inclui a precificação de terapias avançadas.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


A gradativa consolidação de uma Corte Digital no STJ – Parte II

Gabriela Pimenta R. Lima

No artigo anterior tratei brevemente sobre a evolução do Plenário Virtual (PV) do STF, que desde a sua criação, em 2007, passou por dois momentos marcantes de crescimento, o primeiro com a Emenda Regimental 51/2016, que incluiu os agravos internos e os embargos de declaração nas competências do PV, e o segundo com a Emenda Regimental 53/2020, que na época da pandemia causada pelo Covid-19, ampliou ainda mais a competência do PV, permitindo que todos os processos de competência da Corte fossem submetidos a julgamento em listas, no ambiente presencial ou no eletrônico, equiparando o plenário virtual ao físico.

Também falei sobre a importância que o PV adquiriu no modelo decisório do STF nos últimos 16 anos, mostrando-se como mecanismo importante e necessário para a redução do acervo de processos, que hoje ultrapassa 24 mil processos, contra 129.623, em 2007, segundo dados do programa “Corte Aberta”[1] do STF.

Em que pese os avançado do PV, abordei algumas críticas feitas a nova sistemática, principalmente, no tocante às violações ao devido processo legal, ao contraditório e ao direito de defesa, bem como do art. 7º, X, XI e XII, do Estatuto da OAB, que prevê garantias quanto ao uso da palavra, indispensável ao exercício do direito de defesa.

No artigo de hoje, vamos tratar dos julgamentos virtuais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, previsto pela ER 27/2016 que incluiu dispositivos no Regimento Interno para disciplinar o julgamento virtual de embargos de declaração, agravos internos e agravos regimentais.

À época, o STJ não possuía amparo tecnológico para julgar em ambiente virtual os processos com sustentação oral, razão pela qual o então presidente, ministro Humberto Martins, resolveu que, transitoriamente, os pedidos de sustentação em agravos implicariam a retirada da pauta virtual dos respectivos processos.

Posteriormente, em 2020, com a decretação da pandemia, o STJ editou a Resolução STJ/GP n. 9/2020 para disciplinar a realização das sessões presenciais da Corte Especial, das Seções e das Turmas, ordinárias e extraordinárias por videoconferência. E com a ER 41/2022, o STJ, dessa vez com amparo tecnológico, permitiu que as sustentações orais fossem encaminhadas por meio eletrônico, após a publicação da pauta e em até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.

Decretado o fim da pandemia, em maio de 2023, o STJ, assim como todos os tribunais do país, continuou realizando alguns julgamentos de forma virtual, principalmente, em razão da celeridade que essa modalidade de julgamento possibilita.

Entre 1º de janeiro e 28 de junho de 2023, foram julgados 221.185 processos (306.213 se considerar o julgamento dos agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração) e no âmbito da Presidência do STJ foram proferidas 109.228 decisões e despachos entre os meses de janeiro e junho de 2023[2].

Em 30 de junho de 2023, durante a sessão da Corte Especial que marcou o encerramento do semestre forense, a atual Presidente da Corte Superior, ministra Maria Thereza de Assis Moura, mostra-se preocupada com a crescente demanda processual. Ela comentou que o STJ, nos últimos anos, vem investindo na ampliação de sua capacidade produtiva, “por meio de iniciativas que visaram adequar recursos humanos e financeiros, modernizar estruturas e incrementar sobremaneira o uso da tecnologia para racionalizar e agilizar diversas etapas do processo de julgamento”[3] [3].

A tecnologia aplicada aos julgamentos virtuais se mostra como uma forma eficaz de ajudar o Tribunal a diminuir seu acervo, no entanto, alguns pontos precisam ser revistos.

Os relatórios e votos não são disponibilizados no início do julgamento às partes, nem a seus advogados, o que obviamente afeta o exercício do direito da ampla defesa e do contraditório, ante a impossibilidade de esclarecimentos de fatos ou do levantamento de questões de ordem, que são prerrogativas legais de todo e qualquer julgamento presencial/videoconferência ou virtual. Diferentemente do que ocorre no STF, que disponibiliza o relatório e o voto assim que o julgamento virtual é iniciado, na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Extraoficialmente, ministros do STJ comentaram que futuramente o sistema vai permitir o acompanhamento em tempo real de todos os julgamentos.

É imprescindível que a sistemática seja aperfeiçoada para que se cumpra a exigência de que as partes tenham conhecimento de forma clara e expressa do posicionamento de cada membro do colegiado, sob pena de violação ao art. 93, IX, da CF, que estabelece a obrigatoriedade da publicidade e fundamentação de todas as decisões, sob pena de nulidade, ressaltando-se que a limitação da presença dos advogados nas sessões de julgamento deve ser feita mediante lei, e não por meio de regimento interno.

Essa situação viola o princípio da colegialidade e o princípio da transparência, pois nos julgamentos virtuais do STJ, não é possível saber se houve debate entre os Ministros e nem como cada Ministro votou. Concluído o julgamento, o resultado é lançado no andamento processual e as partes e advogados apenas têm acesso à decisão quando da publicação do acórdão. Nesse ponto, o STF adota uma sistemática mais transparente, pois além de disponibilizar o relatório e o voto do relator quando iniciado o julgamento virtual, os votos dos demais Ministros também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo.

Também há o problema das sustentações orais gravadas. Apesar de a Corte possibilitar o envio da gravação para ser juntada ao sistema, não é possível apresentar eventuais esclarecimentos fático-jurídicos, que podem ser essenciais ao deslinde do caso, e as partes não sabem se o vídeo de fato foi assistido pelos julgadores. No STF ocorre o mesmo problema, não é possível confirmar se os Ministros assistiram a sustentação, mas, ao menos os vídeos das sustentações também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Então, a simples previsão do art. 184-B, §1º, do RISTJ, que permite o envio da gravação da sustentação, não garante o mais importante, que os julgadores assistam e que haja um diálogo entre julgadores e advogados.

O uso da palavra constitui a principal prerrogativa da advocacia desde a sua origem, tornando-se o advogado indispensável à administração da justiça, conforme previsão do art. 133 da CF. As garantias de (i) “usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal, judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam na decisão”; (ii) “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento”; e (iii) “falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo”, expressamente estabelecidas pelo Estatuto da OAB (artigo 7º, X, XI e XII), significam não apenas prerrogativas profissionais, mas são indispensáveis ao exercício do direito de defesa, como bem pontua Aury Lopes Jr.[4].

Vale ressaltar que o próprio RISTJ, em seu art. 184-D, II, garantia de oposição ao julgamento virtual, prevendo que “as partes, por meio de advogado devidamente constituído, bem como o Ministério Público e os defensores públicos poderão apresentar memoriais e, de forma fundamentada, manifestar oposição ao julgamento virtual ou solicitar sustentação oral, observado o disposto no art. 159″, no entanto, tal dispositivo foi revogado pela ER 41/2022, que regulamentou as sustentações orais em agravo interno/regimental.

A sistemática do julgamento virtual está em sintonia com os tempos atuais, e deve sim ser utilizada, o problema, porém, é a forma como o julgamento virtual vem sendo realizado pelo STJ. A advocacia espera que em breve o Tribunal da Cidadania possa aprimorar o formato de seus julgamentos virtuais para que o STJ também se desenvolva como uma “Corte Digital”.


[1] O programa Corte Aberta, instituído pela Resolução 774/2022, foi idealizado para tornar o STF cada vez mais transparente e próximo da sociedade. O objetivo da iniciativa é garantir que os dados da Corte sejam disponibilizados a todos os cidadãos de maneira mais acessível, precisa, confiável e íntegra – observando-se os pilares da proteção de dados pessoais e da segurança cibernética. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Corte Aberta [recurso eletrônico] / Supremo Tribunal Federal. Brasília: STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/. Acesso em: 01 nov. 2023.

[2] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[3] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[4] LOPES Jr, Aury. RITTER, Ruiz. O silêncio da advocacia nos tribunais só aumenta a injustiça. CONJUR, 2023. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2023-fev-24/limite-penal-silencio-advocacia-tribunais-aumenta-injustica/. Acesso em: 05 nov. 2023. Acesso em: 05 nov. 2023.


Gabriela Pimenta R. Lima. Advogada desde 2012, graduada pelo UniCEUB. Especialista em Direito Tributário pelo IBET (2014) e Pós graduada em Direito Tributário pelo IDP (2014), matéria na qual se especializou e atuou por quase 10 anos. Desde sua formação também atua no STF e no STJ. Em 2021, concluiu o Mestrado em Direito Constitucional pelo IDP, e na mesma época passou a se dedicar exclusivamente a processos em trâmite perante as Cortes Superiores. Está concluindo LLM de recursos nos Tribunais Superiores pelo IDP. É membro da Associação Brasiliense de Processo Civil (ABPC) e da Comissão de Tribunais Superiores da OAB/DF.


Deveríamos repensar na definição de humano?

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em nossa sociedade as pessoas e objetos são conhecidos por seus nomes, características e adjetivos a eles relacionados. Cada coisa, expressão ou palavra tem o seu ou os seus significados, e tendemos a conviver com muitos deles sem, ao menos, refletir sobre eles ou questioná-los.

Dentro deste contexto, após algumas pesquisas corriqueiras, chamou-nos a atenção um dos significados dado à palavra “humano”. De acordo com o Dicionário Online de Português[1], “humano” significa “[Q] que é piedoso, indulgente, compreensivo; bondoso, caridoso: mostrou-se humano diante das dificuldades alheias”. Como sinônimo de “humano”, o dicionário traz, ainda, as palavras generoso, benevolente e benigno e como antônimos as palavras desumano, bárbaro, cruel, desalmado, desapiedado, inumano, atroz, duro e brutal. Já o conhecido Dicionário Michaelis traz como um dos significados de “humano” “[Q] que denota compaixão (…)”[2].

Ler as definições descritas acima, assim como outras semelhantes trazidas por dicionários importantes[3], nos fez refletir não apenas sobre os episódios recorrentes, que ocupam as páginas dos jornais e meios de comunicação do mundo inteiro, mas também sobre aqueles que tanto se falou e que nada mais se tem a dizer, ou porque normalizados ou porque desgastadas estão todas as tentativas de solucioná-los. Ressalte-se que não se está aqui a questionar qualquer religião, gênero, raça, orientação sexual, nada disso, mas, sim, a convidar os leitores a uma reflexão sobre os conceitos aceitos pela sociedade sem qualquer questionamento.

Os jornais e os meios de comunicação reportam, repostam, comentam, reiteradamente, notícias retratando violência e guerras. A violência reiterada e desmedida contra pessoas idosas, pretos, mulheres, crianças, comunidade LGBTQIAPN+, violência esta que não tem classe social. Veicula-se, também, a violência decorrente da corrupção, que tira da criança e dos menos privilegiados o prato de comida ou o acesso à educação. Fala-se, sem trégua, das atrocidades trazidas pelas guerras, que destroem famílias e mutilam pessoas.

Não é novidade de que nestas guerras, tem-se o abuso de crianças e mulheres, o desrespeito pela vida e pelos direitos humanos, o uso de força brutal, com invasões e bombardeios de cidades e vilarejos inteiros, tirando da população, vítima de governos desumanos, o mínimo necessário à sobrevivência e à dignidade que lhe sobrou. Há quem aplauda todas essas condutas, há quem apoie cegamente a postura desses governantes, em nome de um território, de dinheiro, de poder, ou, ainda, pelas mais impensáveis razões. É o humano matando o humano, apoiando a matança, a corrupção, os preconceitos, a violência.

Em uma sociedade marcada pela presença de pessoas ávidas por dinheiro e poder, e pelo machismo estrutural, pelo racismo e outros preconceitos, que são conceitos e problemas frutos de condutas humanas, sem que tenhamos uma resposta social suficientemente rápida para os devidos enfrentamentos, temos a ideia de que a impunidade, ao final, é o que prevalece.

O “humano”, então, que é definido como um ser do qual se denota compaixão, piedade, indulgência, compreensão, bondade, caridade, reveste-se justamente dos antônimos desta definição, pois veste facilmente a roupagem do bárbaro, do cruel, do desalmado, do desapiedado, do inumano, do atrozdurobrutal, porque já não se importa mais com aquele que, ao seu ver, não teria o direito de pensar ou agir diferente. Porque, ao seu ver, a partir do momento em que o seu semelhante não pensa como ele, não possui a mesma opinião ou não segue a mesma religião ou, ainda, por não ter a mesma cor da pele ou orientação sexual, sua vida e existência deixam de ter valor, dando, então, margem aos mais absurdos e cruéis abusos, baseados em justificativas absolutamente infundadas e descabidas.

Levando-se em consideração este cenário, visto e vivenciado reiteradamente por todo o mundo, cumpre-nos questionar se, de fato, estariam corretas essas definições de “humano”, absorvidas culturalmente. É certo que todo humano pode ser bom, benigno, benevolente, mas que nem todo humano, de fato, o é, e o mesmo pode ser afirmado com relação a todos os outros sinônimos acima destacados. Neste caso, não seria, então, mais prudente afirmarmos serem, essas definições e sinônimos, adjetivos que podem ser atribuídos aos humanos, e não características a eles inerentes?

A vida muda, é dinâmica, assim como a sociedade, e as leis acompanham essas mudanças, de modo a suprir as necessidades sociais. Talvez fosse o caso de revisarmos esses antigos conceitos, aceitos como verdadeiros, mas que, atualmente, não mais refletem a realidade na qual vivemos. Infelizmente!


[1] https://www.dicio.com.br/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[2] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[3] Dicionário Oxford: human – kind behaviour, considered to be natural to humans (humano – comportamento gentil, considerado natural para os humanos – tradução livre. (https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/us/definition/english/human_1?q=human Acesso em 07.12.2023).

Dicionário Real Academia Española: humano – comprensivo, sensible a los infortunios ajenos (humano – compreensivo, sensível aos infortúnios alheios – tradução livre). Sinônimos: humanitario, solidário, caritativo, compassivo, bienhechor, filantrópico, altruista (humanitário, solidário, caridoso, compassivo, benfeitor, filantrópico, altruísta – tradução livre). Antônimo: cruel. (https://dle.rae.es/humano?m=form&m=form&wq=humano Acesso em 07.12.2023).


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Don’t Cry For Me, Argentina!

Adriana da Costa Fernandes

Frase icônica de uma das mulheres mais fantásticas da história mundial, María Eva Duarte de Perón ou, simplesmente, Evita Perón (Los Toldos, 7 de Maio de 1919 — Buenos Aires, 26 de Julho de 1952). Política, ativista, atriz, filantropa Argentina e Primeira-dama desde junho de 1946 até sua morte, em julho de 1952, enquanto esposa do, então, Presidente Juan Domingo Perón.

Amada, querida por sua gente, inesquecível e nobre, Evita deixou um forte legado, apesar do momento nada fácil nacional, de um governo marcado por sua política tida como populista e autoritária.

Atualmente, em tempos em que se discute mundialmente a participação feminina, após décadas de ostracismo, silêncio proposital, maus tratos e, para ser singela, absurdas grosserias patriarcais, foi que têm sido erguidas importantes ideais Constitucionalistas Feministas, enraizados, em primeiro plano, por mulheres altamente potentes proeminentes do Canadá. E lançados ao vento com o sabor suave, mas marcante do Maple, por meio de suas folhas aos demais Continentes,  fazendo ecoar seus sons e vozes em Tribunais Superiores, Universidades, ONGs e no Academicismo, e elevando a urgência do surgimento do legado desta atual geração que pensa e muito realiza.

Abordando um de meus temas favoritos no Direito, a Hermenêutica Constitucional, uma destas lideranças especiais feministas, a Professora Doutora Daphne Barak-Erez, Professora de Direito da Universidade de Tel-Aviv e laureada com diversos prêmios de excelência, inclusive, na área de Direitos Humanos, inicia seu artigo “Her-meneutics – Feminism and Interpretation[i] de forma brilhante, abordando os estereótipos e abordagens discriminatórias que, ao longo do tempo, deixaram marcas legais e constitucionais no sistema. Ela ressalta a importância da interpretação feminista como ferramenta efetiva interpretativa a ser ambiciosamente apresentada e oferecida de forma a atingir uma nova perspectiva de conhecimento humano, até mesmo, ao certo, na esfera legal.

No artigo, a Professora cita, ainda, casos emblemáticos da história da Suprema Corte Americana, abordando a questão da proteção igualitária, ao mencionar o caso de Mira Bradwell, cujo acesso foi negado à Illinois Bar[ii] e sobre a contribuição da interpretação igualitária da transformação das normas jurídicas existentes, ao citar o caso das Irmãs Tzlofhad no The Biblical Book Numbers sobre direitos de herança negados porque o pai não possuía um herdeiro masculino. O caso, então, foi acatado e as regras Bíblicas foram alteradas.[iii]

Do ponto alto do texto, e do relevante ao debate, é o esclarecimento acerca das muitas faces do próprio feminismo, afinal, assim é relativamente às muitas faces da vida. Assim, portanto, das muitas teorias e direções, a Professora menciona 4 (quatro): (i) Feminismo e Interpretação Liberal; (ii) Feminismo e Interpretação Cultural; (iii) Feminismo e Interpretação Radical; (iv) Feminismo e Interpretação proveniente da Diversidade.

E ainda que não se pretenda aqui especificar e debater cada uma das teorias referidas, o essencial é, inconteste, a demonstração quanto a singularidade de visões e sobre a diversidade de pensamentos a serem atingidos, bem como do quanto uma gama de Pensadoras, muito bem formadas e preparadas, pode contribuir firme e abertamente para a contemporaneidade jurídica e social.

A questão central posta, de fato, é a dita “THE WOMAN QUESTION” e a interpretação feminina, um método legal de Katherine Bartlett[iv], baseado em jurisprudência feminista geral e que avalia os impactos de regras e princípios sobre a mulher. Do que se fala, portanto, é do que defendo, de efetividade decisional e de uma das formas de atingi-la.

A Professora conclui o artigo mencionando o quanto, apenas acerca de critérios hermenêuticos, a interpretação deve ser uma base importante do sistema legal, isto sob a ótica feminista igualitária e, ao certo, em esfera constitucional. Note-se, quiçá tendo sido mencionados aspectos negociais, políticos e estratégicos no escrito.

Isto por entender que resta demostrado o potencial interpretativo das diferentes perspectivas e orientações, bem como evitado o tratamento desproporcional sobre a mulher, o que, ainda se verifica fortemente, mesmo em Países ditos democráticos.

Prova disto, indo além dos recentes movimentos nacionais conhecidos, e em contramão a toda esta conscientização e movimento que cresce e toma corpo de forma global, contando, inclusive, com a participação de relevantes e respeitáveis vozes masculinas dotada de sensibilidade para compreender o quanto a presença feminina é fundamental para o equilíbrio do mundo contemporâneo, seja por nossas qualidades, capacidades inquestionáveis, habilitação multitarefas natural, seja por diversos pontos que os estudiosos das ciências cognitivas e comportamentais, como a psicologia, a antropologia e a sociologia já estudaram, com preocupação e alguma tristeza, o mundo assiste, um tanto atônito, a Argentina seguir noutra direção, em vários pontos e propósitos.

Evita se estivesse viva e lúcida, velhinha (com 104 anos), provavelmente estaria corroída e entristecida com a Nação que tanto acalentou seguindo rumo a uma experiência desastrosa recentemente vivenciada e já conhecida por outros Países.

A começar por uma Primeira-dama alijada e que em verdade não será ou nada será, posta de lado em prol da irmã. Quando no momento da posse, um posto de referência e zelo virou instantaneamente Cargo Político e sinal de dependência emocional. Bem como, onde a ética e a razão foram esquecidas propositalmente, em negacionismo claro ao princípio do não nepotismo.

O que mais virá?

Esoterismo, misticismo, falar com cachorros, jogos de palco para agradar ao eleitorado. Cenários, roteiros, palavrões, choques e scripts populistas similares ao que o Brasil já viu, vivenciou e conhece exatamente o resultado.

Dados econômicos insuficientes alardeados e atores de histórico pregresso questionável.

Um cenário econômico regional que aparentemente ia bem, sob uma liderança Brasileira aparentemente forte internacionalmente e que agora tende a enfrentar dois complexos antagonistas, os quais sabe se lá que cenas e galhofas empreenderão juntos em cenário negocial continental.

Ainda bem que são Países que não dividem fronteira. Um alento ao menos.

Aguardemos cenas dos próximos capítulos relativamente à diplomacia regional e internacional.

A saber como os mais distantes reagirão.

Disto tudo, a única questão a ressaltar é que mesmo que a Argentina tenha seguido, a priori, numa suposta contramaré feminista acerca de sua Primeira-dama, o simulacro provavelmente significa uma jogada de forças interna muito pensada, pois a figura-irmã que seguirá firme ao lado da Presidência, já demonstrou, na história pregressa, uma forte influência.

Questionar vale a pena: o que pensa, como, de que forma se posiciona esta persona?

Ponderar é preciso: em momento de mulheres fortes em diversos espaços de Poder internacionalmente, existe outra mulher nas Nações  Latinas apta a contrapor seus pensamentos e forma de diálogo?

Ela estará presente nas reuniões. E as demais? Fazem figura à sua presença?

Ode à nossa Primeira-dama, mas o fato é que a estratégia sobre nossa Intelectual será intensiva. Portanto, qual será a contraposição brasileira adotada face este movimento no tabuleiro regional?

Pensar é essencial: o mundo B.A.N.I., altamente frágil, ansioso, não linear e incompreensível aparentemente vem se mostrando cada vez mais firmado sob placas tectônicas, portanto, nenhum movimento é mais isolado, mas, de fato, exigindo profunda análise técnica, econômica, política, tática, social, em limites locais, regionais e continentais.

Trata-se da rede matricial, multinível das ciências e das relações contemporâneas interfaceadas e contrapostas constantemente.

Assim, nos cumpre acompanhar de perto o que se passa logo ali perto na vizinha Hermanita e torcer para, ao contrário do que se passou por aqui em terras canarinhas, avaliar e auxiliar para que os alfajores não estraguem tanto quanto aconteceu com os brigadeiros daqui.

E rezar, para que o Deus de lá seja diferente, mais sábio, mais sensato, mais lúcido do que o de cá.

Saludos.


[i] BARAK-EREZ, Daphne; Her-meneutics  Feminism and Interpretation; Feminist Constitutionalism, Global Perspectives; Cambridge University Press; 2012; Página 85; tradução de texto livre pela autora do presente artigo;

[ii] Bradwell v. Illinois, 83 U.S. 130 (1873);

[iii] Book of Numbers 27:1-11;

[iv] Katherine T. Bartlett, Feminist Legal Methods, 103, Harv. L. Rev. 829, 837-49 (1990), inspirada em Jurisprudência Feminista e baseada em Berkeley, Womem’s L. J. 64 (1985) e Simone de Beauvoir, o Segundo Sexo (1949).


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com atuação em 3 eixos: Direito Público; Infraestrutura e Tecnologia (em especial Telecom, TI, Digital, Energia Elétrica e Ferrovias) e Cível Estratégico (foco em Consumidor e Contratos). Mestranda em Direito Constitucional pela UNINTER PR sob a tutela da Profa. Dra. Estefânia Barboza e com tese sobre PRAGMATISMO CONSTISTUCIONAL HUMANISTA na Era Digital, unindo Direito Constitucional, Digital, Filosofia e Ciência Política. Pesquisadora vinculada ao NEC CEUB DF sob a mentoria da Profa. Dra. Christine Peter da Silva e ao IDP – Observatório Constitucional do Professor André Rufino do Vale. Aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal – ESMA DF. Pós-graduada (MBA) em Marketing pela FGV RJ, especializada em Relações Governamentais e Institucionais (RELGOV) pela CNI / Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com Extensão em Energia Elétrica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e detentora de diversas titulações em instituições de renome Nacional e Internacional. Consultora e Parecerista. Com experiência em empresas renomadas, de portes expressivos e atuação em mercados relevantes e agências governamentais. Atualmente com escritório próprio e atuação voltada para Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e CARF.