A importância da política antitruste em processos de reconstrução econômica

Cristina Ribas Vargas

Em meio ao rastro de devastação deixado pela enchente de 2024 no estado do Rio Grande do Sul, classificada como um evento climático extremo, que superou a traumática marca histórica da enchente de 1941, um pensamento permaneceu presente nos corações e mentes de gaúchos e brasileiros de outros estados que se irmanaram em uma tocante rede de solidariedade: reconstrução. O evento climático, cujos danos têm sido comparados àqueles provocados pelo furacão Katrina que atingiu Nova Orleans em 2005, deixou o estado gaúcho com mais de meio milhão de habitantes desalojados, o que significa que aproximadamente uma a cada vinte pessoas teve que sair de sua casa. Em meio a esse turbilhão o pensamento focado no processo de reconstrução ladrilha o caminho da esperança.

O processo de destruição criadora é dinâmico e implica no surgimento de uma nova estrutura econômica enquanto a anterior não desapareceu totalmente. O empresário inovador é o agente responsável por sucessivas ondas de inovações tecnológicas que resultam em aumentos de produtividade do capital e do trabalho, e uma importante condição para que estes ciclos de desenvolvimento ocorram é a disponibilidade do crédito acessível.  Quando essas condições não provêm da paz e da ação humana intencional, por vezes nasce da guerra ou mesmo de catástrofes naturais, ironicamente aproximando a teoria econômica da teoria da seleção natural de Charles Darwin, como inicialmente pretendido por Schumpeter.

A reconstrução do Japão após a II Guerra Mundial, por exemplo, passou por um processo de transformação em que tanto a política industrial quanto a reforma agrária foram induzidas a partir das políticas públicas pautadas na reconstrução. Reformas radicais foram promovidas, destacando-se a dissolução dos zaibatsu, grandes trustes verticalizados, cuja estrutura contemplava a instituição bancária responsável pelo financiamento das empresas do grupo; associado a uma reforma agrária que estruturou o campesinato em proprietários de pequenos lotes de terra produzindo alimentos que auxiliaram a manter positivo o saldo de uma balança comercial fortemente pressionada pela carência de recursos naturais e matérias primas como petróleo, carvão e minérios. O projeto sincrônico possibilitou que os investimentos fossem direcionados às indústrias química, elétrica e de bens de capital. Consequentemente o país pôde compensar o atraso técnico provocado pela guerra e ingressar em uma onda de progresso e crescimento. Os capitais foram disponibilizados pelo Estado Japonês, através de crédito ou incentivos fiscais, por grupos econômicos japoneses e por capitais norte-americanos, disponibilizados visando apoio frente as guerras da Coreia e do Vietnã.

Nesse sentido, Possas(1995) ressalta a necessidade de uma análise dinâmica do ambiente concorrencial, cuja conformação institucional pode produzir resultados positivos sobre o funcionamento dos mercados. Para Possas o arcabouço teórico que usualmente sustenta a política antitruste peca por adotar uma noção estática de concorrência.

“o estabelecimento de condicionantes institucionais sobre as formas como as empresas competem pode ter efeitos positivos sobre o funcionamento dos mercados, desde que sua construção não seja exclusivamente orientada por uma análise estática” (1995:5)

Uma análise dinâmica com fundamentos neo-schumpeterianos poderia fornecer instrumentos para essa análise, ao considerar a existência de rivalidade entre capitais, bem como, a introdução e a difusão de inovações. Nesse enfoque concorrência é “um processo de interação entre unidades econômicas voltadas à apropriação de lucros e à valorização dos ativos de capital.” Além disso, o elemento ativo de análise não é o mercado, mas a própria empresa. O mercado é o locus onde a empresa toma decisões e apropria ganhos.

“Nesse enfoque dinâmico a estrutura dos mercados é um dado relevante, mas não único nem imutável. Tanto pode condicionar, com maior ou menor intensidade, as condutas competitivas e as estratégias empresariais, como pode ser por estas modificada, de forma deliberada e possivelmente radical.” (1995:18)

A estrutura de mercado é endógena ao processo competitivo, e se conforma pela interação dinâmica no tempo entre estratégia empresarial e a própria estrutura de mercado. Como consequência a concorrência e a competitividade não nascem espontaneamente do mercado. Precisam ser incentivadas pela combinação da política econômica industrial e pela legislação antitruste. Observe-se que não se trata de enfraquecer empresas ou reduzir seu tamanho a fim de fortalecer a concorrência, pois é a eficiência técnica, produtiva e organizacional que assegura o ambiente competitivo.

No pós-guerra europeu foram políticas econômicas estruturadas e bem coordenadas que possibilitaram a prestação de serviços públicos, crescimento econômico e aumentos de produtividade nunca antes alcançados, e posteriormente repartidos e acessados por todas as classes sociais. Exemplos de caminhos para a reconstrução não nos faltam. Mas a integração em torno de um objetivo comum ainda é um desafio para o estado gaúcho e a economia brasileira.

Referências

KEYNES, J.M. A Grande crise e outros textos, Relógio D’Água editores, 2009.

POSSAS, Mario Luiz, FAGUNDES, Jorge, PONDÉ, João Luiz. Política antitruste: um enfoque Schumpeteriano, 1995. Disponível em https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/15265/1/MLPossas%3bJLSSFagundes%3bJLSPSouza.pdf.

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/13/enchente-afeta-1-a-cada-20-rs.htm#:~:text=538.245%20est%C3%A3o%20desalojadas%20no%20Rio,o%20%C3%BAltimo%20Censo%20do%20IBGE.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/quase-90-das-cidades-do-rs-foram-atingidas-pelas-fortes-chuvas

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/05/12/destruida-por-inundacoes-do-furacao-katrina-nova-orleans-traz-licoes-de-reconstrucao-para-o-rs.ghtml

Tendências e Desafios na Saúde Suplementar Brasileira: Análise Econômico-Financeira e Implicações Concorrenciais

Marcio de Oliveira Junior e Paulo Roque Khouri

Introdução

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) divulgou o Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar[1] no dia 18 de abril de 2024. Nele, verifica-se que o prejuízo operacional acumulado das Operadoras de Plano de Saúde (OPS) foi de R$ 18 bilhões de 2021 a 2023. O prejuízo operacional diminuiu em 2023, mas, segundo a ANS, as OPS tiveram um prejuízo operacional de R$ 5,92 bilhões na modalidade médico-hospitalar.

Esse prejuízo operacional preocupa e deverá ser enfrentado por meio de estratégias das OPS para aumentar suas receitas e diminuir seus custos, por exemplo, por meio da verticalização. Embora legítima, a verticalização pode ter impactos anticoncorrenciais. Por isso, é preciso que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a autoridade de concorrência brasileira, esteja atento para os impactos dessa estratégia. É preciso também que os provedores de serviços para as OPS colaborem com o Cade quando a autoridade de concorrência brasileira analisar os atos de concentração relativos a essas verticalizações.

A fim de fundamentar a perspectiva apresentada, será feita a seguir uma análise dos resultados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar. Essa análise será seguida pela discussão sobre a verticalização como estratégia a ser adotada pelas OPS para reverter o prejuízo operacional e sobre os possíveis impactos concorrenciais e sobre os consumidores associados.

Principais Resultados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar

Em primeiro lugar, o prejuízo operacional não significa que as OPS tenham tido resultado final negativo, pois as receitas financeiras são importantes para as OPS pela própria natureza do seu negócio, ou seja, elas recebem a contraprestação dos beneficiários (mensalidades) e há um intervalo de tempo até que as despesas assistenciais sejam pagas. Na modalidade médico-hospitalar, as receitas financeiras das OPS foram de R$ 11,15 bilhões em 2023, segundo a ANS, o que possibilitou a elas terem um resultado positivo em 2023.

No entanto, o resultado operacional é importante para a sustentabilidade das OPS, principalmente porque a taxa de juros tende a cair e, por isso, as receitas financeiras tendem a diminuir. A sustentabilidade das OPS é importante para o setor de saúde no Brasil. Corrobora essa afirmação o fato de, na modalidade médico-hospitalar, as despesas assistenciais (eventos indenizáveis) terem sido de R$ 239 bilhões em 2023, segundo a ANS. Para se ter uma ordem de grandeza, esse valor é maior do que a dotação orçamentária de R$ 232 bilhões planejada para o Ministério da Saúde para 2024[2].

Os dados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar da ANS permitem verificar que, na modalidade médico-hospitalar, 47,2% das OPS tiveram resultado operacional negativo em 2023. Adicionalmente, na mesma modalidade, a maior parte do prejuízo operacional em 2023 ficou concentrado em algumas OPS, como, por exemplo, Bradesco Saúde (-R$ 1,43 bilhão), Sul America (-R$ 454 milhões) e Amil (-R$ 2,80 bilhões)[3].

Como a receita financeira tende a cair devido à redução da taxa de juros, as OPS devem ajustar suas estratégias para reverter os prejuízos operacionais. Para isso, elas terão que alterar suas políticas em relação à contraprestação (mensalidades) e às despesas assistenciais.

Receitas com Contraprestação

Em relação às mensalidades, para a modalidade médico-hospitalar, segundo a ANS, a contraprestação per capita das grandes OPS no último trimestre de 2022 foi de R$ 337,37, valor que passou para R$ 387,44 no último trimestre de 2023, um reajuste de 14,84% em termos nominais. Como a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de 4,62%, houve um reajuste real de 9,77%. Em termos reais, vê-se no Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar que o valor per capita do quarto trimestre de 2023 é inferior ao do segundo semestre de 2020: R$ 425,26, quando ajustado pelo IPCA. Tomando-se esse valor como teto, as OPS teriam pouca margem para aumentar a mensalidade per capita em termos reais (cerca de 10%).

Despesas com Custo Assistencial

Em relação às despesas, matéria publicada no Valor Econômico em 15 de abril de 2024[4] traz uma série de possíveis estratégias das OPS para reduzir o custo assistencial. De acordo com a matéria do Valor, as OPS já começaram a desenhar e a comercializar planos de saúde mais restritos, ou seja, com rede referenciada menos ampla e com coparticipação e reembolso cobrindo uma parte limitada dos procedimentos médicos.

A mudança de estratégia em relação às despesas também pode ser notada pelo “Percentual de Eventos por Forma de Pagamento” que consta no Painel da ANS. Os pagamentos por procedimentos na modalidade médico-hospitalar (“fee-for-service”) passaram de 83,7% do total em 2019 para 64,8% em 2023 (não há grandes diferenças quando se considera o porte das OPS). Já os pagamentos por pacotes passaram de 3,8% do total em 2019 para 12% em 2023. O Rateio de Custo de Recursos Próprios passou de 6,9% do total em 2019 para 13,2% em 2023. Esses resultados mostram que as operadoras de saúde têm migrado seus modelos de pagamento para opções que permitem maior controle de custos e previsibilidade, como o pagamento por pacotes, em que se contrata um conjunto de procedimentos a um valor preestabelecido, e a internalização de serviços.

Verticalização e Impactos sobre a Concorrência

Uma das estratégias das OPS mencionada na matéria do Valor Econômico é a verticalização, que significa a integração entre agentes que atuam em diferentes etapas da cadeia de produção de serviços de saúde. De acordo com o documento Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Complementar: Condutas[5], de 2021, “esse movimento tem se dado pela aquisição de administradoras de benefícios; serviços de medicina diagnóstica, o que inclui laboratórios; clínicas; centros médicos ambulatoriais e hospitais por operadoras de planos de saúde”.

Segundo o documento do Cade, a verticalização pode trazer algumas eficiências, como a “redução de custos de transação, melhor coordenação de serviços dentro da empresa, economias de escopo e o alinhamento de incentivos entre os elos da cadeia vertical, diminuindo os problemas decorrentes de assimetria de informação”. Entretanto, ainda de acordo com o documento do Cade, “considerando as características do mercado de saúde suplementar abordadas anteriormente – assimetria de informação, barreiras à entrada, tendência à concentração –, que facilitam o efetivo exercício do poder de mercado por uma empresa dominante, não se pode desconsiderar a possibilidade de efeitos concorrenciais negativos derivados de uma integração vertical nesse mercado”[6].

As eventuais verticalizações, cumpridos os limites de faturamento do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529, de 2011) e da Portaria Interministerial nº 994, de 2012, devem ser notificadas ao Cade, que analisará potenciais eficiências e efeitos negativos da verticalização, considerando os impactos sobre os mercados relevantes envolvidos em cada transação.

Um desses efeitos negativos da integração vertical entre OPS e, principalmente, hospitais, é a possível alavancagem de poder de barganha das operadoras em relação aos agentes com os quais contratam, como médicos, laboratórios, clínicas, centros médicos ambulatoriais e hospitais.

O atual modelo de remuneração entre hospitais e planos de saúde ocorre principalmente pela maneira conhecida como “fee-for-service”, ou seja, hospitais, clínicas, laboratórios e médicos atendem um determinado paciente de acordo com suas necessidades e repassam para a operadora uma fatura detalhada de todos os recursos humanos e materiais utilizados durante a assistência. A remuneração desses prestadores de serviços segue tabelas que predefinem valores para cada procedimento ou material[7]. Esses valores pré-definidos são objeto de barganha entre as OPS e os prestadores de serviços.

Nessa barganha, o objetivo da OPS é fazer com que os preços constantes nas tabelas, pagos aos provedores de serviços, se aproximem o máximo possível daquilo que os economistas chamam de seu custo marginal. Já os prestadores, como hospitais e clínicas, tentarão cobrar um preço acima do custo marginal. Desse modo, quanto maior o poder de barganha dos agentes envolvidos nessa negociação, maior a parte do excedente gerado na transação que eles conseguirão apropriar. É por isso que as OPS têm incentivo para aumentar seu poder de barganha por meio da verticalização.

Para refletir como o processo de barganha entre OPS e prestadores de serviços ocorre, Kate Ho e Robin Lee usam um modelo chamado “Nash-in-Nash with Threat of Replacement”[8]. Nesse modelo, para aproximar o preço que paga aos prestadores de serviços de seus custos marginais e assim aumentar sua participação no excedente, uma OPS pode ameaçar retirá-los de sua rede referenciada e substituí-los por outros. Quanto mais crível for a ameaça de retirada da rede referenciada, maiores o poder de barganha da OPS e sua participação no excedente[9].

A credibilidade da ameaça de descredenciamento, que influencia o poder de barganha, depende da existência de prestadores de serviços substitutos dentro do mesmo mercado relevante onde atua o referenciado “ameaçado”, que está barganhando com a OPS. A verticalização dá à OPS esse substituto e, por isso, torna mais crível a ameaça de descredenciamento, aumentando seu poder de barganha.

Um exemplo hipotético ajuda a entender esse ponto: imagine que haja dois hospitais infantis A e B em um determinado mercado relevante em que uma OPS tenha posição dominante. Para levá-los a aceitar preços menores, a OPS com quem eles negociam ameaça descredenciá-los. A ameaça não seria crível, pois, dada a regulação, a OPS teria dificuldade para proceder ao descredenciamento por não haver um hospital infantil substituto naquele mesmo mercado relevante. Portanto, sua ameaça de descredenciar esses hospitais infantis é pouco crível. Consequentemente, a OPS não terá poder de barganha suficiente para aproximar o preço pago a esses hospitais de seus custos marginais e assim se apropriar de uma maior parte do excedente gerado nessas transações com os hospitais infantis.

Suponha agora que a OPS em questão adquira o hospital infantil B. Com isso, sua ameaça de descredenciar A fica crível, pois ela pode substituí-lo por B, que, após a verticalização, faz parte do seu grupo econômico. Nesse caso, A teria que aceitar preços menores para continuar na rede referenciada da OPS em questão. A OPS se apropriaria então de uma parte maior do excedente gerado na transação com o hospital A. Não é sem razão que, na matéria do Valor Econômico citada acima, menciona-se que uma das prioridades de uma OPS é “aumentar a verticalização, em especial, em praças como São Paulo e Rio, onde a rede própria de hospitais é menor”.

Por isso, verticalizações que alavanquem o poder de barganha das OPS devem ser objeto de atenção do Cade, pois há probabilidade de que, diante da menor remuneração aos prestadores de serviços decorrente do maior poder de barganha das OPS, os membros das redes referenciadas reajam reduzindo a qualidade dos seus serviços, com prejuízos para os consumidores[10] (trataremos dessa consequência negativa para os consumidores de forma mais detalhada a seguir).

As OPS poderiam argumentar que a alavancagem do poder de barganha pode se traduzir em redução de custos e que, por isso, seria uma eficiência da verticalização. Esse argumento, todavia, deve ser relativizado porque o exercício do poder de monopsônio[11] pode ser tão nocivo para a concorrência quanto o do poder de monopólio, sendo que uma eficiência não pode resultar de efeitos anticompetitivos. Foi o que decidiu a “The United States Court of Appeals for the District of Columbia Circuit” quando analisou um recurso do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) que decorreu de um argumento de duas OPS (Anthem e Cigna) que eram partes em ato de concentração e que argumentaram que a aquisição da Cigna pela Anthem levaria a uma redução dos valores pagos a provedores de serviços, como médicos e hospitais[12].

Verticalização, autonomia médica e consumidor.

Há, de fato, um aumento da inflação médica que pressiona os custos operacionais. Essa inflação decorre da flexibilização do rol de procedimentos de cobertura obrigatória e da inflação dos medicamentos, sobretudo de medicamentos de alto custo[13].

Entretanto, mesmo no modelo atual de produtos e serviços autorizados pela Lei nº 9.656, de 1998, os planos de saúde poderiam reduzir esse prejuízo operacional no médio prazo ampliando o número de consumidores com acesso aos seus serviços. Aumentando a escala, aumenta o mutualismo e todos ganham: operadoras, prestadores e consumidores. Em exposição sobre os problemas no setor, o Presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados, ANAHP, Antônio Britto, apontou a seguinte constatação: “temos que sair do patamar dos 50 milhões de usuários, estamos há muito tempo rodeando esse número. O que nos impede de termos 70 milhões se a maioria dos brasileiros quer ter um plano? Precisamos pensar nisso e agir”[14].

Não resta dúvida que o setor, incluindo aqui a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), reguladora desse sistema, precisa pensar em oferecer ao mercado produtos e serviços mais flexíveis para atingir novos consumidores que desejam a contratação de um plano de saúde, mas que não conseguem fazê-lo devido à insuficiência de renda. Portanto, é necessário fazer ajustes na Lei dos Planos de Saúde; projetos nesse sentido estão em tramitação no Congresso há mais de dez anos. O atual modelo da oferta de planos de saúde previsto na Lei nº 9.656, de 1998, é muito rígido e acaba funcionando como uma grande barreira a entrada para consumidores que gostariam de ter acesso a serviços simples, como a marcação de consultas, um item importante para tratamento e prevenção dos problemas de saúde.

Entretanto, enquanto esse modelo rígido de oferta de planos de saúde imposto pela Lei nº 9.656, de 1998, vai sobrevivendo por aparelhos, com alto índice de judicialização, os fornecedores desse mercado, ao invés de esforçarem para buscar um novo marco legal, acabam por buscar aumentar seu poder de barganha, o que ocorre com a verticalização, espremendo a margem de ganho de agentes como as pequenas clínicas e os médicos profissionais liberais, os elos mais fracos da cadeia de produção dos serviços de saúde.

Do ponto de vista econômico, a verticalização da saúde e a busca por menores custos por parte das OPS, que, legitimamente, se preocupam a sustentabilidade do seu negócio podem deixar em segundo plano a qualidade dos serviços e o próprio interesse dos consumidores. Sob o olhar do ordenamento jurídico, entretanto, sobretudo em consonância com o que determina Lei nº 12.529, de 2011, algumas perguntas não estão sendo respondidas com a verticalização: i- como os consumidores, nos termos do artigo 88, II, da Lei 12529/2011, receberão parte relevante dos benefícios decorrentes da verticalização? e ii- nos termos do mesmo dispositivo, haverá queda na qualidade dos serviços ofertados aos consumidores?

Para que os consumidores se beneficiassem da verticalização, impõe-se não apenas, a médio prazo, uma redução no valor dos planos, como uma melhoria na qualidade dos serviços. Nessa última questão reside o grande problema da verticalização: o respeito à autonomia do médico e/ou do prestador, que, uma vez comprometida, pode sacrificar a qualidade dos serviços prestados. Com a verticalização, são criadas redes próprias de atendimento e pode haver um gradual esvaziamento dos hospitais credenciados, que não pertencem a um mesmo grupo econômico verticalizado, com o objetivo de garantir maior controle dos custos pelas OPS. Mas, nesse cenário, a autonomia dos prestadores de serviços, como hospitais e médicos, pode ser comprometida. Neste particular, na ânsia por redução de custos, reflexamente, reside um risco sério de afetação da qualidade do serviço, afetando diretamente o melhor interesse dos consumidores.

Conclusão

Há no Brasil aproximadamente 51 milhões de beneficiários de planos de assistência médica ofertados por Operadoras de Planos de Saúde[15], o que mostra sua importância para a assistência à saúde no Brasil e a necessidade de manter a higidez econômico-financeira das OPS.

Em nome dessa higidez, é esperado que as OPS adotem estratégias de redução de custos e que haja um movimento de verticalização, que exigirá atuação do Cade para garantir que a concorrência seja preservada, pois a manutenção da higidez econômico-financeira das OPS não significa isenção concorrencial para as estratégias que tenham como objetivo reverter perdas operacionais. Vale mencionar, nesse sentido, que segundo o documento Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Complementar: Condutas, o mercado de saúde suplementar “possui certas características que impedem que o mecanismo de preços ajuste oferta e demanda, tais como falhas de mercado e externalidades, e outras que podem comprometer a livre concorrência entre os agentes: custos crescentes, barreiras à entrada, tendência à concentração e à integração vertical”. Por essas razões, o próprio documento do Cade reconhece que, mesmo que o setor de saúde suplementar fique ao encargo da iniciativa privada, ele deve ficar sob a supervisão do Estado, seja da agência reguladora ou do órgão de defesa da concorrência (ANS e Cade, respectivamente), que devem prezar pela livre concorrência e pela defesa do bem-estar dos consumidores.


[1] Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjM4YTYyMDEtMmRjMS00NWFhLWFkMTEtMDk0YmMzZTk2YzZkIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9 . Acesso em 20 de abril de 2024.

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/Anexo/L14822-anexos.pdf . Acesso em 11 de maio de 2024.

[3] No Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar da ANS, Bradesco Saúde e Sul America são classificadas na modalidade Seguradora Especializada em Saúde e a Amil na modalidade Medicina de Grupo. Também chama a atenção o prejuízo operacional de R$ 1,06 bilhão da Unimed-Rio, classificada na modalidade Cooperativa Médica.

[4] Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/04/15/com-custos-crescentes-os-planos-de-saude-devem-ficar-cada-vez-mais-limitados.ghtml . Acesso em 21 de abril de 2024.

[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/Caderno-Saude-Suplementar_Condutas_Atualizado-VFinal.pdf. Acesso em 21 de abril de 2024.

[6] Cade (2021), apud Leandro, Tainá. Defesa da concorrência e saúde suplementar: a integração vertical entre planos de saúde e hospitais e seus efeitos no mercado. Dissertação (Mestrado em Economia). Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

[7] Revista Visão Saúde, jan/mar-2017.

[8] Ho, Kate e Lee, Robin. Equilibrium Provider Networks: Bargaining and Exclusion in Health Care Markets. Chicago: Becker Friedman Institute for Research in Economics, Setembro de 2017 (Working Paper Series nº 2017-13).

[9] Há normas que regulam a substituição de prestadores de serviços. O art. 17 da Lei nº 9.656, de 1998, autoriza a substituição desde que por outro prestador equivalente. Para o caso de redimensionamento da rede hospitalar de uma OPS, o § 4º do art. 17 prevê a necessidade de autorização da ANS.

A substituição de prestadores de serviços não hospitalares é regulada pela Resolução Normativa (RN) nº 365, de 2014 da ANS. Por suposto, a substituição de um prestador de serviços deve ser feita por outro equivalente, que pode ser algum prestador já pertencente à rede da OPS, desde que comprovada a capacidade de atendimento. O art. 6º da RN estabelece as condições de equivalência. É interessante observar que, em relação ao critério geográfico, o inciso III do art. 6º fala em localização no mesmo município ou, em caso de indisponibilidade ou inexistência, localização em municípios limítrofes ou na mesma Região de Saúde. Esse dispositivo dá poder de barganha às OPS, pois aumenta suas opções externas quando negocia preços com os prestadores de serviços.

A substituição de entidades hospitalares e o redimensionamento da rede por redução são regulados pela Instrução Normativa nº 46, de 2014 da ANS. Segundo o inciso II do art. 2º, a substituição é a “troca de uma unidade hospitalar por outra equivalente que não se encontra na rede do produto”. Já de acordo com o inciso III do mesmo artigo, o redimensionamento por redução é a “supressão de um estabelecimento hospitalar da rede do produto, cabendo às unidades restantes a absorção da demanda”. A rede de hospitais pode ser própria ou contratualizada, de modo que, assim como no caso de prestadores de serviços não hospitalares, não há vedação para que um hospital contratado seja substituído por outro do grupo da OPS. Também não há vedação para o descredenciamento do hospital contratado e o consequente redimensionamento da rede, desde que o hospital do grupo da OPS tenha capacidade para absorver a demanda. Portanto, dada a regulação, a verticalização leva ao aumento do poder de barganha das OPS, pois, ao terem hospitais no mesmo grupo, elas terão opções externas adicionais para substituir ou redimensionar suas redes de hospitais. Esse raciocínio e essa conclusão também se aplicam aos prestadores de serviços de cuidados à saúde não hospitalares.

[10] As OPS poderiam argumentar que, como há concorrência entre elas, no caso de perda de qualidade da rede referenciada de uma OPS, os consumidores (beneficiários) poderiam desviar sua demanda para OPS concorrentes. No entanto, é sabido que há grande assimetria de informação na área de saúde. Por isso, os consumidores têm dificuldade de perceber as diferenças de qualidade entre hospitais e clínicas, por exemplo. Desse modo, na média, os consumidores não se aterão tanto ao descredenciamento de determinados provedores de serviços médico-hospitalares. Assim sendo, não se deve esperar que os consumidores migrem imediatamente para OPS concorrentes em função da substituição, por exemplo, de hospitais e clínicas referenciados, mesmo que os substitutos tenham qualidade inferior à dos que foram substituídos.

[11] De acordo com o dicionário da revista Concurrences, “Monopsony power describes the situation in which the supply side of a market is perfectly competitive, represented by an upward-sloping supply curve, and in which a sole buyer is present. The buyer will exercise its market power by withholding purchases (i.e., buying less) to decrease the purchasing price it pays for a good/service below the level that would emerge in a competitive market. The price is set by the buyer fixing a purchasing price it is willing to pay for the input, in a take-it or leave-it offer, or by refusing to negotiate on price. In such a setting, the monopsonist becomes a price-maker. This approach to buyer (monopsony) power is essentially the reverse or mirror image of monopoly power”. Disponível em: https://www.concurrences.com/en/dictionary/buyer-power#:~:text=Monopsony%20power%20describes%20the%20situation,a%20sole%20buyer%20is%20present. Acesso em 21 de abril de 2024.

[12] Ver Rose, Nancy e Sallet, Jonathan (2020). The Dichotomous Treatment of Efficiencies in Horizontal Mergers: Too Much? Too Little? Getting it Right. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3639184. Acesso em 21 de abril de 2024.

[13]. https://www.estadao.com.br/brasil/estadao-podcasts/a-crise-dos-planos-de-saude-e-como-isso-afeta-os-beneficiarios/

[14] https://www.jota.info/casa-jota/apos-crise-saude-suplementar-mira-em-ampliar-populacao-coberta-por-planos-22022024?non-beta=1 Veja esse exemplo do que poderia ser ampliado citado pelo próprio Presidente da ANAHP: O Consumidor poderia aderir a um plano ambulatorial com cobertura apenas para consultas e exames, por exemplo. “Quando você olha para os usuários do SUS, o principal gargalo está nas consultas e nos exames. Uma mamografia, por exemplo, pode demorar muitos meses para ser marcada. Poderíamos entrar nesse espaço, mas a comunicação de venda tem que ser muito bem-feita para que a pessoa saiba que esse plano não cobre tudo.’

[15] Disponível em: https://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/sala-de-situacao.html . Acesso em 21 de abril de 2024.


Marcio de Oliveira Junior é Doutor em Economia, professor do Mestrado em Administração Pública do IDP e Consultor Sênior da Charles River Associates (www.crai.com).

Paulo Roque Khouri é Doutor em Direito, professor do IDP e Sócio do Roque Khouri & Pinheiro Advogados (https://khouriadvocacia.com.br).


Direito tributário não acompanha novos modelos de negócios

Fernando de Magalhães Furlan

O mundo dos negócios, como deve ser, é extremamente dinâmico e busca sempre inovadoras soluções.

Marketing multinível

O marketing multinível (MM), ou marketing de rede, é um desses novos modelos de vendas em que um distribuidor/revendedor recebe uma participação nos lucros obtidos por ele e por sua rede de distribuidores/revendedores a jusante. Assim, os ganhos podem vir de vendas diretas e/ou do recrutamento de novos distribuidores/revendedores.

O modelo de marketing multinível foi criado em 1941, por Carl Rehnborg, nos Estados Unidos da América e hoje está amplamente difundido no mundo e no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD)[1], em 2022, foram comercializados produtos e serviços por venda direta no país, que geraram um volume de negócios de R$ 45 bilhões. A força de vendas no Brasil tem cerca de 3,5 milhões de empreendedores, que atuam como revendedores diretos das empresas, seja em modelo de marketing multinível ou mononível[2].

As ações de marketing de uma empresa são de inúmeros tipos, como, por exemplo, a promoção de vendas. Ladeira e Santini nos ensinam que uma promoção de venda é:

Uma técnica de marketing que (…) pode ser entendida como um agregado de técnicas que almeja aumentar a performance em vendas pela geração de incentivos adicionais no consumo, usando uma perspectiva de curto prazo e imediata, dentro de um período predeterminado, promovendo maior velocidade e maior volume na compra de bens, afetando diretamente diferentes públicos[3].

E acrescentam:

Observando esse conceito, podemos identificar sete etapas importantes no mecanismo de execução de uma técnica de promoção de vendas: (a) incentivos adicionais, (b) perspectiva de curto prazo, (c) imediatismo, (d) período predeterminado, (e) maior velocidade, (f) maior volume, (g) diferentes públicos e (h) aumento da performance[4].

A promoção de vendas está inserida dentro das estratégias de merchandising, que dizem respeito às ações de curto e longo prazo, que têm como objetivo estabelecer uma identidade entre a marca e os consumidores[5].

Estímulos de curto prazo das estratégias de merchandising podem ser potencializados pelo uso de promoções. As promoções de vendas agem em um período de curto prazo, estimulando os clientes a consumirem imediatamente e sinalizam, dentro das estratégias de merchandising, que algo pode ser consumido rapidamente, com uma vantagem no ato da compra. Essa vantagem pode ser um desconto; o direito a cupom para concorrer a um bem de valor no final da promoção; um brinde etc.

Aqui, portanto, é necessário fazer uma distinção entre a promoção de vendas, definida pela doutrina e no contexto de uma ação de merchandising, ou seja, de curto prazo, temporária, com período predeterminado; e a promoção de vendas enquanto esforço contínuo de fomento às vendas, perene, constante, que envolve muito mais do que uma breve exposição/demonstração de produtos em pontos de venda, mas um conjunto de ações contínuas, que objetiva não somente o incremento das vendas, mas a boa e adequada informação ao distribuidor e ao consumidor, a boa gestão empresarial, dentre outros.

Universidades Corporativas Abertas (UCs)

O conceito de Universidade Corporativa (UC)[6], ferramenta de desenvolvimento profissional, responsável por criar e reproduzir conhecimento nas organizações e outros ambientes corporativos e profissionais. O principal objetivo de uma universidade corporativa é aprimorar os profissionais para promover o crescimento deles, dos negócios e da organização. A empresa aplica uma série de treinamentos e técnicas para desenvolver habilidades e comportamentos dos colaboradores.

Alguns projetos de universidade corporativa atingem tamanho sucesso que acabam se transformando em verdadeiras escolas de negócios, abertas ao público interessado em geral.

Para Ribeiro[7], o apoio que a área de treinamento ou UC pode prestar aos profissionais envolvidos é relevante. Palestras sobre cenários e perspectivas dos negócios e da economia; cursos sobre desenvolvimento de novos produtos, embalagens e canais de distribuição; treinamento em técnicas de gestão de centros de distribuição, gestão da cadeia de suprimentos (supply chain management) e varejo, marketing e logística são alguns exemplos com resultados diretos na performance dos profissionais e das empresas.

Fomento ao empreendedorismo

De acordo com Oliveira[8], há alguns fatores externos e, portanto, geralmente não controláveis, que podem apresentar determinado nível de influência – forte ou fraca, positiva ou negativa, de longa, média ou curta duração – no processo de desenvolvimento do empreendedorismo.

Entre eles estão os incentivos que facilitam o empreendedorismo, pois o empreendedor fica livre de uma série de problemas provocados pelos governos (burocracia, tributos elevados etc.). Infelizmente, esses incentivos são temporários e, algumas vezes, direcionados a determinados produtos e serviços, gerando uma série de dúvidas quanto ao futuro do empreendimento.

Desde logo é importante lembrar que a Livre Iniciativa, que nada mais é do que o empreendedorismo, ou a disposição de implementar novos negócios, é fundamento da República, consoante o artigo 1º da Constituição Federal, além de fundamento da Ordem Econômica, de acordo com o artigo 170, caput.

Além disso, o artigo 170, inciso IX estipula como princípio geral da atividade econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.

Liberdade econômica

A chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado aos empreendedores nacionais.

Nela, especificamente em seu artigo 2º, estão listados princípios que a norteiam: (i) a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; (ii) a boa-fé do particular perante o poder público; (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e (iv) o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

Adiante, em seu artigo 3º, a lei dispõe sobre os direitos de liberdade econômica, isto é, direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do país (…), dos quais destacamos:

(…)

III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;

(…)

V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;

VI – desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos estabelecidos em regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos;

O artigo 4º trata das Garantias de Livre Iniciativa, estabelecendo ser dever da Administração Pública, entre outros, (…) evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: (…) IV – redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; V – aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; e (…) VII – introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas.

Por fim, o inciso IV, do artigo 3º da Lei, que estipula ser direito das empresas “desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado (…)”.

Decisões administrativas do Poder Executivo, suas interpretações, regulamentos e normativas devem estar atualizados e conseguir acompanhar o desenvolvimento tecnológico, fórmulas inovadoras, técnicas de última geração em performance, gestão/administração de negócios, enfim, uma miríade de ferramentas de desenvolvimento e atualização profissionais.

Afinal, como nos ensinam Anderle e Melo[9], “as mudanças do mercado e as exigências do mundo contemporâneo requerem modelos de negócios cada vez mais inovadores (…)”. Como reflexo jurídico dessa nova economia, os contribuintes diversificaram rapidamente as suas formas de organização produtivas e empresariais. Essas novas concepções de organização desenvolvidas pelas sociedades empresariais oferecem um desafio perene ao Direito e aos seus intérpretes para que ele possa se adaptar a esses novos métodos de estruturação.

Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal indica predileção pela liberdade de organização (CF/88, art. 170, caput), permitindo que o empreendedor tenha autonomia para decidir, explorar sua atividade de forma efetiva e, consequentemente, se subordinar aos regimes jurídicos que recaem sobre essa opção, instaura-se no cenário jurisprudencial incertezas sobre a licitude dos meios adotados para a reorganização operacional e societária das empresas, em especial pela oposição dos legítimos interesses de economia fiscal dos contribuintes, de um lado, e dos interesses arrecadatórios da Fazenda Pública, de outro.


[1] Disponível em: https://www.abevd.org.br/dados-e-informacoes/. Acesso em: 23/01/2024.

[2] No marketing mononível os ganhos estão relacionados, exclusivamente, à venda dos produtos oferecidos.

[3] LADEIRA, Wagner et SANTINI, Fernando. Merchandising e promoção de vendas: como os conceitos modernos estão sendo aplicados no varejo físico e na Internet. São Paulo: Atlas, 2018, p. 85.

[4] Idem.

[5] Ibidem, p. 3.

[6] UC ou Universidade corporativa é uma instituição empresarial que faz parte da estratégia da área de Treinamento & Desenvolvimento das organizações. Ela converge a agenda de treinamentos e a formação contínua de todos os colaboradores aos interesses e objetivos estratégicos da empresa.

[7] RIBEIRO, Antonio de Lima. Gestão de Treinamento de pessoas. 1ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 17.

[8] OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Empreendedorismo: vocação, capacitação e atuação direcionadas para o plano de negócios. São Paulo: Atlas, 2014, p.

[9] ANDERLE, Ricardo et al. Planejamento tributário na segregação de atividades. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2023/06/Ricardo-Anderle-e-Naiara-Melo.pdf. Acesso em: 29/01/2024.


FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN. Antigo Secretario-Executivo do Ministério do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administração do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


Inflação global em 2024: desafios e perspectivas para o Brasil

Leandro Oliveira Leite

O Comitê Federal de Mercado Aberto dos EUA (FOMC, na sigla em inglês)[1], do Federal Reserve, está programado para realizar sua próxima reunião de política monetária neste 1º de maio de 2024. O mercado aguarda ansioso, que acontece justamente no dia de folga do Ibovespa. Pode acontecer que o FOMC aumente a taxa de juros pela quinta vez em 2024, em um esforço para combater a alta inflação. Essa decisão terá implicações significativas para a economia global, incluindo o Brasil.

No cenário atual, a inflação global permanece elevada, impulsionada por diversos fatores, incluindo:

  • Aumento dos preços das commodities devido à guerra na Ucrânia e às sanções à Rússia;
  • Desafios nas cadeias de suprimentos globais;
  • Demanda reprimida por bens e serviços.

O FOMC já elevou a taxa de juros em 0,25% em cada uma das suas últimas quatro reuniões, levando a taxa dos fundos federais para uma faixa entre 0,75% e 1%. Um aumento da taxa de juros nos EUA pode levar a um aumento das taxas de juros no Brasil. Isso porque os investidores tendem a buscar ativos em países com taxas de juros mais altas, o que pode levar à valorização do dólar americano e à depreciação do real brasileiro.

Uma depreciação do Real pode encarecer as importações, o que pode contribuir para a inflação doméstica. Além disso, um aumento das taxas de juros pode desacelerar o crescimento econômico, pois torna o crédito mais caro para empresas e consumidores.

As perspectivas indicam que deve continuar aumentando a taxa de juros nos próximos meses, até que a inflação esteja sob controle. O cenário global permanece incerto, com riscos como a guerra na Ucrânia e a desaceleração da economia chinesa.

A decisão do FOMC terá um impacto significativo no mercado financeiro global, incluindo o mercado de ações, o mercado de títulos e o mercado de câmbio. É importante acompanhar os comunicados do FOMC e as análises de especialistas para entender as implicações das decisões de política monetária para a economia global e brasileira. A resposta do Banco Central do Brasil (BCB) dependerá da evolução da inflação doméstica e das condições da economia brasileira.

A próxima reunião de juros nos EUA será um evento crucial para a economia global. A decisão do comitê sobre a taxa de juros terá um impacto significativo no Brasil, afetando a inflação, o crescimento econômico e o mercado financeiro. É importante acompanhar os desenvolvimentos de perto e tomar decisões informadas com base em análises confiáveis.

O Fórum Econômico Mundial (FEM) já havia lançado um relatório[2] alertando para a persistência da pressão inflacionária na economia global em 2024. Apesar das projeções de moderação gradual, a inflação ainda deve representar um desafio significativo para muitos países, incluindo o Brasil.

A inflação global se configura como um dos principais desafios da economia mundial em 2024, e seus efeitos se fazem sentir de forma significativa no Brasil. O Relatório de Riscos Globais 2023 do Fórum Econômico Mundial (WEF) também aponta a inflação como um dos principais riscos globais para o presente ano e além. Diversos fatores contribuem para o aumento da inflação global, como:

  • Aumento dos preços das commodities: A guerra na Ucrânia, as sanções à Rússia e os gargalos nas cadeias de suprimentos globais pressionam os preços de commodities essenciais como energia, alimentos e metais;
  • Problemas na cadeia de suprimentos: A pandemia de COVID-19 causou interrupções nas cadeias de suprimentos globais, elevando custos e pressionando preços;
  • Flexibilização monetária: Políticas monetárias expansionistas, com baixas taxas de juros e programas de compra de ativos, podem ter contribuído para o aumento da inflação em alguns países.

O Brasil, como parte da economia global, não está imune aos efeitos da inflação internacional. Para mitigar os impactos da inflação global e garantir a estabilidade da economia brasileira, o BC e o governo federal têm adotado algumas medidas, como investir na modernização da infraestrutura, na otimização da logística e na diversificação das fontes de fornecimento para reduzir os gargalos nas cadeias de suprimentos e aliviar as pressões inflacionárias. Adicionalmente, o governo tem implementado políticas de apoio social para ajudar os grupos mais vulneráveis a lidar com os impactos da inflação, como programas de transferência de renda ou subsídios para alimentos e energia.

Segundo o relatório, as perspectivas para a inflação global em 2024 são de moderação gradual, com projeções de recuo para 4,8%, em comparação aos 5,9% de 2023 e 9,2% de 2022. No entanto, o ritmo da desaceleração e os níveis finais da inflação podem variar consideravelmente entre as diferentes regiões.

Já o recente Relatório Integrado do Banco Central do Brasil (RIG) 2023, publicado em dezembro de 2023, oferece uma análise abrangente da conjuntura econômica global e brasileira, com foco especial na questão da inflação.

A inflação global afetou o Brasil através do aumento dos preços das importações e do encarecimento do crédito externo. A inflação doméstica também foi pressionada por fatores internos, como:

  • Aumento dos custos de produção, incluindo energia e alimentos.
  • Desaceleração da atividade econômica, que reduziu a oferta de bens e serviços.
  • Expectativas inflacionárias elevadas, que podem alimentar um ciclo autorrealizável da inflação.

Os Relatórios de Riscos Globais do FEM e de Integrado do Banco Central do Brasil (RIG) 2023 oferecem uma visão abrangente da conjuntura econômica global e brasileira, com foco especial na questão da inflação. Tais relatórios destacam os desafios e as perspectivas para a economia brasileira em 2024 e reiteram o compromisso do BC com a estabilidade da economia e o crescimento sustentável.

No Brasil, as projeções do FMI indicam que a economia brasileira deve crescer 2,2% em 2024, alcançando a 8ª posição entre as maiores economias do mundo, bem como, as expectativas para a inflação no país são de 3,90% em 2024 e 3,50% em 2025, respectivamente.

Apesar das perspectivas positivas, o cenário global incerto e as vulnerabilidades domésticas requerem cautela e atenção contínua. O BC e o governo federal precisarão monitorar de perto a evolução da inflação e tomar medidas adicionais, caso necessário, para garantir a estabilidade da economia brasileira. A inflação global é um desafio complexo com múltiplas causas e exige soluções abrangentes que combinem políticas monetárias e fiscais.


[1] Esse comitê, vinculado ao Federal Reserve, exerce uma função vital na economia dos Estados Unidos por meio de suas decisões sobre as taxas de juros básicas.

[2] https://www.weforum.org/reports/global-risks-report-2023/


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Você sabe o que é um Trustee?

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O Manual para Uso de Trustee*, elaborado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, assim define:

“Trustees são terceiros independentes (podendo ser firmas de consultoria e auditoria, consultores independentes, escritórios de advocacia, entre outros) contratados pelos administrados sujeitos a remédios antitruste (genericamente referidos como Compromissárias), a pedido das autoridades concorrenciais, para auxiliá-las no cumprimento ou monitoramento de decisões adotadas, seja pela falta de recursos disponíveis ou pela necessidade de expertise específica para execução de alguma tarefa ou adoção de medida necessária para implementação de remédios mais complexos. Ou seja, os Trustees são designados para executar procedimentos, sob ordens do Cade, nos processos de fiscalização do cumprimento das decisões, compromissos e acordos aprovados.”[1]

A atuação do Trustee tem ganhado relevância, já que ele é a figura que auxilia o CADE no cumprimento e no acompanhamento de suas decisões, principalmente nos casos em que, em razão do volume de dados e informações, ou em razão da expertise, a autoridade possui uma limitação ou inexistência de recursos necessários para tal. Ele age no interesse do CADE, apesar de ser ele contratado e remunerado pela Compromissária[2], ou seja, a parte que celebra com o CADE um Termo de Cessação de Conduta (TCC[3]) ou um Acordo em Controle de Concentração (ACC[4]).

A atividade por ele desenvolvida encontra respaldo na legislação vigente, mais especificamente nos artigos 9º, 10, 13, 52, 85 e 91, da Lei nº 12.529/2011, no Regimento Interno do CADE e na Resolução CADE nº 35/2024. Em referidos dispositivos, encontramos informações acerca da função da Superintendência-Geral do CADE (SG) fiscalizar o cumprimento das decisões, compromissos e acordos aprovados pelo Tribunal do CADE, razão pela qual será ela a responsável pela seleção e contatos com o Trustee.

Conforme esclarece o CADE em seu Manual, “ainda que haja previsão, no ACC ou no TCC, de necessidade de uso de Trustee ou similar, as obrigações impostas às Compromissárias não são suspensas até que o Trustee ou similar seja nomeado, sendo as Compromissárias, em última linha, responsável por essas obrigações e por sua implementação”[5]. Neste sentido, e dentro de um prazo determinado pela autoridade[6], a Compromissária deverá apresentar, ao menos, 3 indicações para exercer essa função.

Após a aprovação[7] do Trustee pelo Tribunal, este reportará seu trabalho ao CADE por meio de relatórios periódicos e pareceres, conforme definidos na decisão, ou relatórios extraordinários, sempre que for o caso, onde deverão constar tanto as informações relacionadas ao cumprimento dos compromissos assumidos pela Compromissária, seu eventual descumprimento e/ou denuncia de terceiros relacionada ao objeto da fiscalização. Ademais, além de ter o dever de confidencialidade com relação às informações recebidas no desenvolvimento de sua atividade, deverá prestar informações claras, verídicas e coerentes, nos prazos estipulados pela autoridade e, em não o fazendo, poderá estar sujeito às penalidades dispostas nos artigos 40 e 43 da Lei nº 12.529/2011, que preveem o pagamento de multas com valores que variam de acordo com cada situação. 

Em contrapartida, a Compromissária, além do dever de pagar pelos serviços prestados pelo Trustee, tem ainda o dever de dar condições para que ele desempenhe este trabalho, fornecendo informações verídicas, assistência, documentos e o que mais for necessário, tempestivamente, sendo esta cooperação limitada ao escopo da atuação do Trustee, conforme definido em TCC ou ACC. O não atendimento pode levar ao descumprimento parcial da decisão, compromisso ou acordo, além das demais sanções previstas na Lei nº 12.529/2011.

O prazo de vigência das obrigações do Trustee será estabelecido no ACC ou TCC. Após o seu último reporte, a SG realizará a análise e, entendendo que a Compromissária “cumpriu as obrigações relacionadas à implementação do remédio que estejam atreladas ao escopo de atuação do Trustee – e que, portanto, a atuação do Trustee não será mais necessária –, emitirá nota técnica entendendo pela conveniência de desoneração do Trustee”[8]. Em seguida, os autos são remetidos à Presidência para referendo pelo Tribunal.  Importante ressaltar que a decisão sobre o cumprimento ou descumprimento de decisão, compromisso ou acordo é exclusiva do CADE, sendo, desta forma, a manifestação do Trustee apenas de caráter sugestivo.

Por fim, com a publicação, no Diário Oficial da União, da ata da sessão de julgamento do Tribunal referendando o Despacho proferido pela Presidência, concordando com a Nota Técnica da Superintendência-Geral, o Trustee será considerado definitivamente exonerado de suas funções/obrigações.


[1] Item 2, página 6 – Manual Trustee.

[2] Apesar desta obrigação, a Compromissária não poderá interferir, de qualquer forma, no relacionamento entre Trustee e CADE.

[3] Neste caso, são adotados Trustees de monitoramento.

[4] Neste caso, podem ser adotados Trustees de monitoramento, de desinvestimento e “de operação” (hold separate manager ou operating Trustee).

[5] Item 3, página 14 – Manual Trustee.

[6] Para maiores informações, vide item “3.1.1. Prazo” do Manual Trustee.

[7] A aprovação passará por duas instâncias, SG e Tribunal, conforme Resolução CADE nº 35/2024. Para saber mais sobre os critérios/requisitos para a aprovação do Trustee (plano de trabalho, capacidade operacional, qualificação técnica), acesse o Manual Trustee do CADE.

[8] Item 10, página 35 – Manual Trustee,


[*] Fonte: Manual Trustee – Conselho de Defesa Econômica (CADE). Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/superintendencia-geral-do-cade-publica-manual-para-uso-de-trustee/Manualdetrusteefinal.pdf   .Acesso em 11.04.2024.

Geração ditadura – Envelhecida e confusa

Adriana da Costa Fernandes

No Brasil atual, assuntos encadeados, funcionando como elo de corrente, interligados de alguma forma e impactando outros, relevantes e essenciais. Tantas vezes apresentados de forma isolada, sem que alguém conecte o pertinente esclarecimento, com vistas à adoção da melhor tomada de decisão.

Um exemplo típico vem sendo a postura adotada pela dita Geração de Idosos que frequenta os Comícios da Ultradireita Brasileira e que vivenciou, mais que todos, os tempos de Ditadura Militar no país. A chamada Geração Ditadura, hoje considerada envelhecida e certamente confusa com tudo o que vem acontecendo no País. Chocada e perdida com a real chegada da Revolução Digital cumulada com a Biotecnologia, com o uso excessivo e massivo de Drogas, das simples às pesadas adotadas quase como usuais, com os casais de mesmo sexo circulando livremente na rua, com os nomes binários tidos como comuns e com tantas informações novas e rápidas que não tiveram tempo e costume de absorver na virada da 4ª Revolução Industrial que se acentuou da Pandemia da COVID-19 para cá.

Tirando alguns itens de excesso, o resto nada tem a ver com pautas efetivas de conservadorismo a serem atacadas frontalmente, mas pontos a serem simplesmente compreendidos como virada de tempo, como outrora ocorrera mudanças de comportamentos com a chegada do vapor e da luz elétrica. Quem teve, por exemplo, a oportunidade de assistir a Série “The Crown”, entenderá os diversos impactos e ajustes que o Palácio de Buckingham, na Inglaterra, foi obrigado a fazer na Corte, na época da chegada a Energia Elétrica. Inclusive extirpando a alta e interna corrupção das velas. Ou seja, a seu tempo, cada problema.

Na época da Ditadura Militar Nacional, o que ocorrera é que uma parte da população brasileira foi, de certa forma, blindada em consciência acerca do que se passava.

Deste grupo, uma parcela, mais humilde, total ou parcialmente, verdadeiramente desconhecia o que acontecia em essência, uma vez que saía de casa muito cedo, às vezes de madrugada, nas grandes Cidades e Centros Urbanos, encarando o pesado fluxo de transportes, rumo aos empregos e retornando somente ao fim do dia, refazendo a mesma saga, muitas vezes sem dispor de televisão e sem sequer tempo hábil de ouvir pelo rádio o noticiário do dia, mas apenas vivendo e, achando que os soldados ao redor, aparentavam, segurança. Reinava, até então, uma suposta pacífica aura nas ruas, até começar a correria dos protestos e das reações de quem se mantinha acordado e em luta por liberdade e consciência.

A outra parcela do grupo, em linha oposta, bem mais beneficiada economicamente e consciente do que ocorria, simplesmente não tinha a menor intenção de se envolver ou, estava, em antagonismo, completamente envolvida, protegendo a Ditadura.

Esta era grande parte da realidade dos Boomers de alta classe. Uns apenas silentes. Outros, Empresários e Socialites, que protegiam Militares e, portanto, seus bens e hábitos. Poucos deles, apenas, tiveram mesmo que lidar com seus filhos supostamente rebeldes, os últimos rescaldos daquela geração e os primeiros da Geração X, passando a questionar seus valores, atuando em jornalecos e diretórios acadêmicos, bebendo em bares, fumando abertamente e, assim, sendo torturados e sumindo assassinados, como Stuart e a própria mãe, Zuzu Angel.[i][ii]

O tempo passou. O que aconteceu de lá para cá a maioria sabe. E o Brasil envelheceu.

E, de acordo com os resultados do Censo Demográfico de 2022, o número de pessoas com 65 anos ou mais de idade aumentou 57,4% em 12 anos. Os brasileiros desta faixa etária chegaram a aproximadamente 22,2 milhões de pessoas (10,9%) em 2022 contra 14 milhões (7,4%) em 2010[iii]. E a maior faixa populacional está concentrada entre a faixa de 24 a 44 anos, sendo que desta, o exponencial está entre 24 a 29 anos de idade.

Em linha oposta, o total de crianças com até 14 anos de idade decresceu 12,6%, mudando de 45,9 milhões (24,1%) em 2010 para 40,1 milhões (19,8%) em 2022.

Ao se avaliar as proporções entre os grupos etários específicos e por Regiões, percebe-se que a Região Norte é a mais jovem entre as demais, contando com 25,2% de sua população com até 14 anos, seguida da Nordeste, com 21,1%.

Entretanto, é justamente no Sudeste e no Sul que estão presentes as estruturas mais envelhecidas nacionais, com 18% e 18,2% de jovens de 0 a 14 anos apenas, e de 12,2% e 12,1% de pessoas com 65 anos ou mais.

A Região Centro-Oeste ainda se encontra em uma faixa intermediária, sendo a sua distribuição etária próxima da média do país, até mesmo por sua alta rotatividade habitual em razão dos Concursos Públicos, o que pode, perfeitamente, ter influenciado a pesquisa. Assim, na Região, a mediana divide a população na proporção de 50% de mais jovens e 50% de mais velhos. Imagina-se, pois, os pioneiros, seus filhos e os que chegaram.

Perceba-se, assim, que no Brasil, de 2010 a 2022, a idade mediana aumentou de 29 para 35 anos, refletindo o envelhecimento da população. E que nas cinco grandes Regiões, houve crescimento: Norte (de 24 para 29 anos), Nordeste (de 27 para 33 anos), Sudeste (de 31 para 37 anos), Sul (de 31 para 36 anos) e Centro-Oeste (de 28 para 33 anos). O País envelhece como um todo.

Mas afinal, o que tudo isto tem a ver com Ditadura, Populismo e Polarização? Absolutamente tudo.

Se forem analisados os locais de maior envelhecimento e maior poder aquisitivo, observe-se que é justamente onde o Populismo é mais arraigado, o medo mais concentrado e o efetivo grau de debate aberto entre as famílias menor.

De fato, os Boomers não foram criados para empreender debates abertos, mas para acatar regras. Em especial, as mulheres, as quais hoje, encontrando o eco de suas vozes finalmente, pintam o rosto e se vestem de verde amarelo, uma vez nunca acostumadas a, sequer, questionarem seus próprios maridos, tantos já falecidos. Porém, onde estão estes filhos? Juntos, em maioria, normalmente os filhos de militares, a não ser os que adquiram visão amplificada.

Destaque-se que, de lá para cá, o Brasil vem ganhando terreno e avançando em vários aspectos afetos ao campo dos Direitos e Garantias Individuais, especialmente desde a promulgação da Constituição de 1988, porém, essa geração foi a que menos absorveu, aparentemente, os avanços obtidos. Até mesmo por sua característica geral mais refratária quanto à absorção de novas ideias e concepções, com exceção, ao certo, de quem tem o hábito de desafiar a si mesmo constantemente a ponderar, pensar e enfrentar desafios e de lidar constantemente com culturas diferenciadas, mais abertas e, de fato, mais democráticas.

Ainda que pareça, a pretensão aqui não é criticar, mas demonstrar o imenso grau de preocupação com o tema. Somos todos responsáveis.

Do que importa deste texto, em verdade, ao serem apresentados esses números é que se entenda a importância do incremento do diálogo e do esclarecimento dentro das famílias e das instituições voltadas para esta faixa etária, bem como da adoção de programas e políticas públicas, privadas e de PPs, que permitam que esses Srs. e Sras. real e finamente compreendam: (i), em TV aberta, simultaneamente com o Streaming, o que ocorreu no Brasil da época da Ditadura Militar; (ii) que seja realmente melhor esclarecido o que, de fato ocorreu no Governo anterior e as diferenças, ainda que nada seja perfeito; e (iii) que sejam promovidos debates abertos entre representes das várias gerações, tanto fisicamente quanto on-line para a pulverização dos saberes e dos conceitos jurídicos no bojo das instituições nacionais, por meio de personalidades de renome que tenham penetração adequada na faixa etária.

Esta camada precisa ouvir e ser ouvida do Legislativo, do Judiciário e do Executivo.

É tempo de conscientização e não de omissão. É tempo, em realidade, de esclarecimento de todas as camadas populacionais acerca do que realmente se passa, para que, aí sim, cada um, conscientemente, possa fazer suas próprias escolhas.

Em tempos de Eleições, ainda, é premente que se avalie, que palanque há de ter regras e regulamentação. Tempo. Pauta. Falar para uma massa pressupõe responsabilidade e responsabilização grave. Impõe observância e acompanhamento o que, nada tem a ver com censura. Ao contrário, manipular informações e mentir é que é efetivamente uma forma de censurar os Direitos do Cidadão, o que o Político e a Figura Pública têm por dever a observação.

As pessoas ouviram um dia falar de “Liberdade de Expressão” e exaltam o conceito sem entender exatamente o contexto e seu grau de aplicabilidade, sem considerar a forma deste exercício, sem utilizar a agressão, a ofensa e a ameaça. Acham que podem simplesmente se vestir com a bandeira oficial de uma nação, um símbolo de alto respeito e simbolismo, como tolinhos da corte perante quem os manipula clara e ardilosamente e bradando meia dúzia de estratagemas que sequer entendem bem.

Os Boomers estão vivendo a rebeldia infantil retardatária que não puderam viver quando jovens nos anos 40, 50 e alguns até nos 60 quando o mundo explodia em clímax e ardor.

Lamento, prezados Vovôs e Vovós, está na hora de sentar novamente e estudar. Não apenas a aprender a usar smartphones para mandar whatsapp de correntes que são repassadas com flores e fotos de boa noite e orações cheias de vírus uns para os outros, mas ler e estudar bons livros sobre política sim, já que os srs. ainda se sentem habilitados e fortes o suficiente para encarar uma passeata, rastejando suas perninhas cambaleantes e carregando cartazes com suas letrinhas já infantis, com dizeres que nada condizem com o real.

Aos filhos e familiares, o lembrete das regras valiosas do Estatuto da Pessoa Idosa Brasileiro, a saber, a Lei  Federal 10.741, de 2003, a Carta de São José sobre os Direitos das Pessoas Idosas da América Latina e do Caribe, o Pacto Nacional da Pessoa Idosa (PNDPI), a Carta de Princípios para as Pessoas Idosas da ONU, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos Como Ferramenta para Promover a Década do Envelhecimento Saudável e, ainda, os Plano de Ação Internacionais de Viena e de Madrid sobre Envelhecimento.

E na linha essencial de que Direitos pressupõem Deveres, adotemos como premissa, em coletivo, que Pais, Avós e Familiares mais velhos fizeram muito, ou até mesmo que não, mas que foram a base da nação outrora e que, não podem e não devem continuar sendo objeto de escárnio, de piada, de manipulação escrachada e, acima de tudo, de desconhecimento de um passado, de joguete de um presente tão sujo e da ausência de um projeto de futuro.

Aos verdadeiros Democratas, um conclave. É tempo de debate e união.

Chega.


[i] O Caso Stuart Angel: https://observatorio3setor.org.br/noticias/ela-lutou-ate-a-morte-pelo-filho-que-foi-torturado-e-morto-pela-ditadura-2/

[ii] O Caso Zuzu Angel: https://claudia.abril.com.br/noticias/justica-reconhece-que-zuzu-angel-foi-assassinada-pelo-estado?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=eda_claudia_audiencia_institucional&gad_source=5&gclid=EAIaIQobChMI9OOwrpPUhQMVv2JIAB2qVgavEAAYASAAEgL9nvD_BwE#google_vignette

[iii] Fonte: IBGE: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18318-piramide-etaria.html

Efeitos do Tratado de Westhalia na atual guerra do Oriente Médio entre Israel e Palestina

Carolina Mendonça Guimaraes de Alencar Meneses

Em 1648, foi firmado o Tratado de Westphalia que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, um conflito travado entre nações europeias, sobretudo por razões religiosas, o qual é frequentemente apontado como o marco zero do sistema internacional moderno, baseando-se na soberania estatal e na não intervenção nos assuntos internos dos estados. Segundo Mazzuoli (2023, p. 46), a Paz de Westphalia foi um “divisor de águas” que permitiu o desprendimento de regras fundamentais que passaram a presidir as relações entre os Estados europeus, reconhecendo princípios e normas que, teoricamente, definem as relações internacionais até os dias de hoje. Entretanto, o conflito atual entre Israel e Palestina revela a complexa interação e contradição desses princípios estabelecidos pelo Tratado de Westphalia com as dinâmicas de reivindicações territoriais e intervenções
externas que hoje são observadas não só na “Terra Santa” como também
em todo o Oriente Médio.

Veja-se que, influenciado pelo Tratado de Westphalia, o conceito de soberania estatal implica que cada estado tem autoridade exclusiva sobre seu território e as pessoas nele, sendo uma das características que compõe o Estado Moderno. Para Mazzuoli (2023, p. 46 apud Brierly, 1954, p. 7-8):

 

Esse tipo de Estado, desenvolvido a partir da reforma protestante e dos tratados de Westfália, deu origem à chamada doutrina da soberania (que já contava com sua formulação teórica desde 1576, no De Republica de Jean Bodin), segundo a qual a força capaz de agregar seres humanos em um dado território é a unidade do poder (summa potestas), sem a qual o Estado seria – na expressão de Bodin – como um “barco sem quilha”.

 

No contexto do conflito Israel-Palestina, ambos os lados reivindicam o direito à soberania sobre determinados territórios. Israel, estabelecido como um estado soberano em 1948, controla terras que os palestinos reivindicam para a formação de seu próprio Estado.

Assim, nota-se que a soberania estatal, nascida da Paz de Westphalia, se relaciona com as reivindicações territoriais de Israel e Palestina na medida em que trata-se de um dos objetos de disputa entre as duas nações frente às realidades de reivindicações nacionais e identitárias conflitantes. Paralelamente, entende-se que o conflito não se limita apenas às nações mencionadas. Segundo Seitenfus:

 

O discurso que defende o paradigma da soberania, inspirado nos primórdios de Vestefália, apresenta grande atualidade nos países do Sul. As pressões exercidas pelo exterior são apresentadas como neocoloniais, desrespeitosas do domínio reservado e da independência dos Estados.

 

Apesar do autor referir-se de forma ampla aos ditos “países do Sul” de forma análoga pode ser aplicado aos conflitos do Oriente que de forma reiterada e contínua, vem sendo influenciados por atores externos à sua política e cultura. A interferência de atores externos no conflito Israel-Palestina contradiz diretamente o princípio de não intervenção estabelecido pelo Tratado de Westphalia. Diversos países e organizações internacionais tê tomado partido, fornecendo apoio político, econômico e, em alguns casos, militar para Israel ou à Palestina. Um exemplo disso é o próprio Irã que tem apoiado de forma militar os ataques contra Israel. O Dr. Amit Chamoli (2024, p. 781) aponta que:


O Irã está apoiando completamente o Hamas, a prova disso é que comemorações foram feitas no Irã depois dos ataques realizados pelo Hamas. O apoio total do Irã ao Hamas tem aumentado a força do Hamas, fazendo-o capaz de atacar Israel. (…) O Irã tem providenciado suporte militar assim como assistência econômica para o Hamas no passado, para que em tempos de guerra, não haja falta. (…) Junto com o Irã, o Líbano (…) e muitos países mulçulmanos são vistos se unindo.

 

A intervenção tem inflamado o conflito, o que pode, a longo termo, dificultar esforços de paz e dificultar o descobrimento de soluçõe baseadas no respeito mútuo pela soberania e pela autodeterminação dos povos.

Sobre a retromencionada busca de soluções, entende-se que para que as hostilidades sejam cessadas é imperioso o reconhecimento internacional da soberania dos estados em conflito. Para isso, os esforços diplomáticos têm sido essenciais para legitimar suas reivindicações à luz dos princípios do Tratado de Westphalia. Israel já alcançou amplo reconhecimento internacional, embora sua soberania sobre certos territórios ainda seja contestada. A Palestina, por outro lado, em busca do reconhecimento como estado
tem encontrado sucesso variado. A princípio, assim como aconteceu em Westphalia, a paz entre Israel e Palestina não nascerá em uma única reunião entre os representantes das partes, mas por uma profunda compreensão da necessidade de paz e de cessões de ambos os lados.

Dessa forma, chega-se à conclusão que o Tratado de Westphalia até hoje influencia o mundo, e os conflitos entre Israel e Palestina ilustram os desafios de aplicar princípios do Tratado em um mundo que mudou drasticamente desde 1648. As realidades de reivindicações territoriais sobrepostas, intervenções de atores externos e a luta pelo reconhecimento internacional, revelam as tensões entre a teoria da soberania estatal e as práticas internacionais contemporâneas.

Mesmo assim, nota-se que a paz e o período de reconstrução da Europa que seguiram o fim da Guerra dos Trinta Anos foi marcada pelos dizeres declarados nos tratados: “paz e a amizade cristã, universal, perpétua, verdadeira e sincera”. Da mesma forma, os conflitos sobre a soberania de territórios no Oriente Médio por Israel e Palestina não durarão para sempre e a necessidade de paz, reconstrução de vidas, laços e pontes se fará necessária. Nestes termos, espera-se que o maior efeito dos Tratados de Westphalia não seja no atual conflito entre as nações do Oriente, mas sim em sua futura conciliação. Para que a paz e a amizade entre israelenses e palestinos seja igualmente, universal, perpétua, verdadeira e sincera.


Desordem financeira, democratização da informação e crises de crédito

Cristina Ribas Vargas

As notícias recentes no mundo, em meio a guerras, e o debate sobre o acesso desigual a informação, trouxeram-me a lembrança um estudo que sempre apreciei, de Fred Block: As origens da desordem econômica internacional.

Block descreve a economia no período entre as duas grandes guerras mundiais, quando a Europa foi assolada pela desordem econômico-financeira. Antes disso a Inglaterra era então a potência industrial, militar e financeira da Europa, e sua moeda era a mais valorizada do continente. Sua liderança na defesa do livre comércio confirmava-se na atuação dos banqueiros ingleses, que concediam crédito independentemente do país no qual os recursos seriam gastos, ao contrário dos banqueiros alemães e franceses, que apenas concediam os empréstimos se os recursos fossem gastos em seus próprios países. A Inglaterra entendia que lucraria independentemente do país onde esses recursos fossem empregados. Foi um país deficitário durante a maior parte do século XIX devido à forte dependência de importações de recursos naturais, necessários à movimentação de sua indústria, e quando o balanço de pagamentos se tornava deficitário, a solução convencional era elevar a taxa de juros internamente e arcar com redução nos níveis de renda e emprego. No entanto, a partir de 1900, com a ascensão de EUA e Alemanha, a postura Inglesa mudou. Os déficits tornaram-se exorbitantes e o país se negou a fazer o ajuste internamente via aumento da taxa de juros e redução de emprego.  E foi justamente no período do entre guerras que a Inglaterra, cuja moeda era o padrão de referência internacional, decidiu abandonar o padrão ouro, provocando instabilidade e insegurança nas transações financeiras entre os países. A primeira guerra veio como resultado de uma tentativa de restabelecimento do padrão ouro, que resultou infrutífera, já que nenhum país queria assumir a responsabilidade de ter a moeda como padrão de referência internacional. Para agravar mais o quadro e acabar tornando a guerra inevitável os banqueiros ingleses mudaram de postura, e passaram a restringir o crédito externo, além de iniciarem a cobrança aos devedores, o que resultou em declarações de moratórias e adoção de controles cambiais por parte de outros países, dificultando mais ainda a situação econômica da Inglaterra. Neste momento da história os banqueiros acreditavam que a crise poderia ser solucionada se houvesse o retorno ao padrão ouro. No entanto, de acordo com Block, o que parecia mais difícil de ser notado é que a crise vinha do lado real da economia. A Inglaterra já não era mais a potência econômica mundial. As cotações das moedas passaram a flutuar e as taxas de câmbio a serem determinadas pelos níveis de divisas, sem uma paridade fixa direta com o ouro. Isso gerou grandes movimentos especulativos de capital e ataques contra as moedas mais fracas. Com o auxílio dos EUA em 1925 a Grã-Bretanha restabeleceu o padrão ouro ao nível do pré-guerra. O acordo previa grandes vantagens aos EUA, que apresentava taxas de juros mais atrativas: empréstimos de longo prazo começaram a migrar de Londres para Nova York. Aos poucos os grandes capitais dos EUA influenciavam o seu governo na tentativa de assumir o controle das finanças mundiais e iniciar o processo de cobrança sobre Inglaterra e França, orientando-os a imputarem ao país perdedor, a Alemanha, a responsabilidade pelos pagamentos de suas dívidas. Nascia a segunda guerra e a triste ascensão do nazismo. Como diria Mark Twain, a história não repete trajetórias, mas frequentemente ela rima. A inabilidade em incentivar a retomada do crescimento econômico a partir de uma postura menos restricionista conduziu o mundo à grande depressão, e na sequencia a segunda guerra. A partir dai o padrão monetário ouro foi abandonado definitivamente, e o que passou a viger foi o ‘não sistema financeiro internacional’.

Essa história é apenas para lembrar a importância da política de crédito. Do ponto de vista interno, nos faz pensar sobre como a informação perfeita sobre o perfil de crédito por parte instituições financeiras pode ser utilizada para restringir mais ainda o acesso ao crédito às famílias de menor renda, e portanto de maior risco, enquanto o acesso à informação por parte das Bigtechs nos remete ao risco de avaliações no mercado externo sem regras claras sobre as condições de concessão de crédito internacional. Em mundo pouco pacífico, o detentor de grande poder de informação associado ao poder de concessão de crédito, pode engendrar a desordem econômica mundial, ao contrário do que esperam os mais otimistas defensores da informação irrestrita aos agentes econômicos financeiros. É o início de uma reflexão sobre o quanto o conhecimento total da informação por parte daqueles que controlam a oferta de crédito no Brasil e no mundo pode de fato promover um maior acesso aqueles que historicamente não dispuseram de acesso ao crédito. Em outras palavras, o crédito é importante justamente quando mais precisamos dele, em situações de crise. Do contrário, como diria Mark Twain, será o mesmo que dar um relógio como garantia ao sistema financeiro para poder descobrir que horas são.  A informação completa sobre o agente que solicita o crédito pode piorar as condições sob as quais ele contrata esse serviço. Lembrem-se que os EUA conhecia muito bem a situação financeira da Inglaterra quando resolveu “socorre-la”.  A restrição do crédito inibe o investimento, a renda e a possibilidade de geração de um efeito multiplicador. Imaginem agora todas as informações perfeitas sobre cada família, empresa e governo de posse dos maiores oligopólios financeiros mundiais: como seria a política de crédito internacional? Os impactos sobre a economia real e a produção de riqueza poderiam ser determinados por agentes que não receberam a delegação de poder para determinar os rumos da política econômica mundial.  Não desanimemos, um outro mundo sempre é possível, mesmo que a história repita trajetórias.

Referências

BLOCK, F. L. The Origins of International Economic Disorder, 1977. (Las Orígenes del Desorden Económico Internacional, Fondo de Cultura, México, 1980).

WebAdvocacy. O “X” do Xandão. Editorial, 9 de abril de 2024.

Principais alterações na regulamentação da Lei da Empresa Limpa (Lei Anticorrupção), por meio do Decreto 11.129/2022

Fernando de Magalhães Furlan

O Decreto 11.129 entrou em vigor em 18 de julho de 2022, alterando a regulamentação da Lei nº 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

O Novo Decreto trouxe as seguintes principais alterações à Lei da Empresa Limpa:

  1. Dosimetria das multas:

Em relação à dosimetria das multas, foram modificados alguns critérios e alíquotas que determinam precisamente o valor final da penalidade, quais sejam, base de cálculo, circunstâncias agravantes e atenuantes, e limites mínimo e máximo. 

Apesar de a base de cálculo padrão da multa ainda consistir no faturamento bruto da pessoa jurídica no último exercício anterior ao da instauração do PAR, o Novo Decreto inovou ao:

      (I) ampliar as formas de apuração do faturamento, por meio da inclusão da estimativa e da identificação do montante total de recursos recebidos pela pessoa jurídica sem fins lucrativos no referido período; 

      (II) estabelecer que, na hipótese de empresas de um mesmo grupo econômico terem praticado os atos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção ou concorrido para a sua prática, a base de cálculo consistirá na soma dos faturamentos brutos de todas as empresas envolvidas; e 

      (III) determinar que, excepcionalmente, caso a pessoa jurídica comprovadamente não tenha tido faturamento no último exercício anterior ao da instauração do PAR, a base de cálculo consistirá no último faturamento bruto apurado pela pessoa jurídica, atualizado até o último dia do exercício anterior ao da instauração do PAR (arts. 20 e 21).

Quanto às circunstâncias agravantes e atenuantes aplicáveis ao cálculo da multa após o estabelecimento da respectiva base de cálculo, o Novo Decreto não só alterou determinadas hipóteses de incidência, como também modificou, ainda que pouco, a quase totalidade das respectivas alíquotas aplicáveis ao cálculo sob análise (artigos 22 e 23).

Por exemplo, o decreto aumentou de 4% para 5% o fator de redução da multa, no caso de a empresa possuir um programa de integridade efetivo. Confira:

Art. 23.  Do resultado da soma dos fatores previstos no art. 22 serão subtraídos os valores correspondentes        aos seguintes percentuais da base de cálculo:

      V – Até cinco por cento no caso de comprovação de a pessoa jurídica possuir e aplicar um programa de       integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo V”.

Essa medida busca incentivar as empresas e instituições a adotarem reais medidas de aprimoramento de seus programas de integridade. Para isso, o novo decreto agora traz detalhamento maior de alguns parâmetros para avaliar a efetividade de tais programas.

Por exemplo: a necessidade de realizar diligências apropriadas para contratar e supervisionar terceiros, agora com a menção expressa a despachantes, consultores e representantes comerciais, que deverão ter verificações prévias nos chamados background checks e poderão responsabilizar a empresa pela Lei Anticorrupção, caso pratiquem atos de corrupção, agindo em seu interesse ou benefício.

Com relação à dosimetria da multa prevista no art. 6º, I, da Lei Anticorrupção, o decreto 11.129 trouxe modificações expressivas em relação à norma anterior (Decreto 8.420/15). O primeiro destaque é o da inserção de um novo fator para o cálculo da multa, o da existência de concurso de atos lesivos. A regulamentação anterior não era clara quanto a essa hipótese, o que proporcionava insegurança jurídica. Doravante, quando a prática de mais de um ato lesivo estiver sendo objeto de um processo administrativo de responsabilização, haverá a imposição de multa de até 4% sobre o faturamento bruto da empresa, vejamos (art. 22, I, do Decreto 11.129/2023):

Art. 22.  O cálculo da multa se inicia com a soma dos valores correspondentes aos seguintes percentuais da base de cálculo:

I – Até quatro por cento, havendo concurso dos atos lesivos;

2. Acordos de Leniência:

Os preceitos sobre a celebração de acordos de leniência também foram objeto de modificações significativas. Em vez de exigir o reconhecimento de participação da empresa signatária na infração, como previa o decreto 8.420/15, o decreto 11.129/22 permite a mera admissão da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica pelo ato lesivo à Administração Pública.

Também foi incluída previsão de que, para a assinatura do acordo de leniência, deve haver a reparação integral da parcela incontroversa do dano causado e a perda/devolução dos valores correspondentes ao acréscimo patrimonial indevido ou ao enriquecimento ilícito.

Outra novidade consiste na previsão de que a assinatura de memorando de entendimentos seria causa interruptiva do prazo prescricional de 5 anos previsto na lei 12.846. Tal previsão, contudo, pode ser alvo de questionamentos futuros, pois essa hipótese não está prevista na lei como causa interruptiva da prescrição.

Além disso, eventuais infrações à Lei da Empresa Limpa, que também representem violação administrativa à Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) ou a outras normas de licitações e contratos da administração pública, serão julgadas em conjunto em um mesmo processo.

O novo decreto também confere algumas proteções ao proponente do acordo de leniência, como por exemplo, o sigilo da negociação.

3. Cálculo da vantagem auferida:

O decreto também prevê, em seu art. 26, três novas possibilidades para se calcular a vantagem auferida ou pretendida para fins de multa ou acordo:

“Art. 26.  O valor da vantagem auferida ou pretendida corresponde ao equivalente monetário do produto do ilícito, assim entendido como os ganhos ou os proveitos obtidos ou pretendidos pela pessoa jurídica em decorrência direta ou indireta da prática do ato lesivo.

§ 1º  O valor da vantagem auferida ou pretendida poderá ser estimado mediante a aplicação, conforme o caso, das seguintes metodologias:

I – pelo valor total da receita auferida em contrato administrativo e seus aditivos, deduzidos os custos lícitos que a pessoa jurídica comprove serem efetivamente atribuíveis ao objeto contratado, na hipótese de atos lesivos praticados para fins de obtenção e execução dos respectivos contratos;

II – pelo valor total de despesas ou custos evitados, inclusive os de natureza tributária ou regulatória, e que seriam imputáveis à pessoa jurídica caso não houvesse sido praticado o ato lesivo pela pessoa jurídica infratora; ou

III – pelo valor do lucro adicional auferido pela pessoa jurídica decorrente de ação ou omissão na prática de ato do Poder Público que não ocorreria sem a prática do ato lesivo pela pessoa jurídica infratora”.

4. Contratação de Pessoas Politicamente Expostas – PEPs:

Além de diligências na contratação de terceiros, o novo decreto regulamentador exige que sejam realizadas diligências apropriadas, baseadas em riscos, para contratar e supervisionar as pessoas expostas politicamente (PEPs), ou seja, pessoas que ocupam ou ocuparam, nos últimos cinco anos, cargos de escalão superior ou funções públicas proeminentes, seus familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas das quais participem.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.