Artigos de opinião

Gestão de Valor em Saúde: Um Paradigma Orientado por Desfechos

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo cada vez mais focado na qualidade e eficiência dos serviços de saúde, a gestão de valor surge como um conceito fundamental para garantir que os pacientes recebam o melhor cuidado possível. Central para esse paradigma está a compreensão do conceito de desfecho – os resultados tangíveis e intangíveis que os pacientes experimentam ao usar produtos ou serviços de saúde.

Os desfechos são os verdadeiros direcionadores de escolhas para os consumidores de serviços de saúde. Eles representam a medida definitiva da qualidade e eficácia do cuidado prestado, influenciando diretamente a satisfação do paciente e sua decisão de continuar utilizando os serviços oferecidos.

Designers, arquitetos e engenheiros têm uma compreensão intrínseca dos desfechos em seus respectivos campos. Seu trabalho é projetar e criar produtos e ambientes que entreguem desfechos que os clientes valorizam, ao mesmo tempo em que são acessíveis e economicamente viáveis. Da mesma forma, os serviços de saúde devem ser projetados e prestados com o objetivo claro de atingir certos desfechos para os pacientes.

A gestão de valor em saúde representa uma mudança de paradigma crucial nesse sentido. Em vez de se concentrar apenas nos processos e custos associados ao fornecimento de serviços de saúde, a gestão de valor coloca os desfechos do paciente no centro de todas as decisões e estratégias.

No entanto, diferentemente de outros setores, os serviços de saúde não são tradicionalmente projetados com base naquilo que realmente importa para os pacientes. Em vez disso, os sistemas de saúde usualmente estão mais preocupados com a eficiência operacional ou com a conformidade regulatória.

Na maioria dos sistemas de saúde ao redor do mundo, a regulação e o financiamento estão historicamente centrados na quantidade de serviços prestados, em vez de nos resultados alcançados pelos pacientes. Esse modelo de remuneração, baseado em fee-for-service, ou seja, no pagamento por procedimento realizado, muitas vezes cria incentivos perversos que priorizam a quantidade sobre a qualidade e eficácia dos cuidados de saúde.

Essa abordagem quantitativa tem levado a uma ênfase excessiva em procedimentos médicos e intervenções, em detrimento de estratégias de prevenção, promoção da saúde e gestão de doenças crônicas. Além disso, incentiva a fragmentação do cuidado, pois os prestadores de serviços de saúde são pagos por cada serviço prestado, resultando em falta de coordenação entre diferentes profissionais e instituições de saúde.

Por outro lado, a falta de incentivos financeiros para a melhoria dos desfechos do paciente pode levar à estagnação na qualidade do cuidado. Os prestadores de serviços de saúde podem não ter incentivos para investir em programas de melhoria da qualidade ou adotar práticas baseadas em evidências, se essas iniciativas não estiverem diretamente ligadas ao aumento da remuneração pelos serviços prestados.

Essa desconexão entre pagamento e resultados também pode levar a um desperdício significativo de recursos. Os pacientes podem receber cuidados excessivos ou desnecessários, simplesmente porque os prestadores de serviços são recompensados por cada intervenção realizada, independentemente de sua eficácia ou valor para o paciente.

Para superar esses desafios, é fundamental uma mudança na forma pela qual os serviços de saúde são regulados e financiados. Em vez de se concentrar exclusivamente na quantidade de serviços prestados, os sistemas de saúde devem adotar abordagens de pagamento baseadas em valor, que recompensam os prestadores de serviços pelo alcance de desfechos específicos e pela entrega de cuidados de alta qualidade e eficácia.

Essa mudança para um modelo de pagamento baseado em valor exige a implementação de estruturas de incentivo que recompensem os prestadores de serviços por resultados mensuráveis, como a melhoria da saúde do paciente, a redução de readmissões hospitalares e a prevenção de complicações relacionadas ao tratamento.

Além disso, é necessário um maior investimento em sistemas de informação e tecnologia que possam monitorar e avaliar continuamente os desfechos do paciente e o desempenho dos prestadores de serviços de saúde. Isso permitirá uma avaliação mais precisa do valor entregue pelos diferentes intervenientes no sistema de saúde e uma tomada de decisão mais informada sobre a alocação de recursos.

A mudança de um modelo de pagamento baseado em quantidade para um modelo baseado em valor é essencial para promover uma prestação de cuidados de saúde mais eficaz, eficiente e centrada no paciente. Ao alinhar os incentivos financeiros com os desfechos do paciente, os sistemas de saúde podem melhorar significativamente a qualidade e a equidade do cuidado, ao mesmo tempo em que garantem a sustentabilidade financeira a longo prazo.

Para efetivamente implementar uma abordagem de gestão de valor em saúde, é essencial que os prestadores de serviços de saúde identifiquem e priorizem os desfechos que são mais significativos para os pacientes. Isso requer uma compreensão profunda das necessidades, preferências e valores dos usuários finais.

Uma vez identificados, os desfechos devem orientar todas as etapas do processo de prestação de cuidados de saúde, desde o design de intervenções clínicas até a alocação de recursos e a medição do desempenho. Os sistemas de saúde devem ser estruturados de forma a maximizar a entrega dos desfechos desejados, garantindo ao mesmo tempo uma utilização eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, a gestão de valor em saúde exige uma mudança cultural e organizacional significativa dentro das instituições de saúde. Isso inclui o desenvolvimento de uma cultura de transparência, prestação de contas e melhoria contínua, na qual os desfechos do paciente são constantemente monitorados e utilizados para informar a tomada de decisões em todos os níveis da organização.

A gestão de valor em saúde representa uma abordagem inovadora e orientada para o paciente, que coloca os desfechos do paciente no centro de todas as atividades e decisões relacionadas à prestação de cuidados de saúde. Ao adotar esse paradigma, os sistemas de saúde podem avançar na construção de um modelo que ofereça realmente resultados que atendam às necessidades e expectativas dos pacientes.

A Independência Relativa de Instâncias

Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O princípio da relativa independência de instâncias determina que as esferas civil, penal e administrativa são independentes, isto é, uma decisão proferida em uma dessas instâncias não tem caráter vinculante, podendo, desta forma, existir a absolvição em uma delas e a condenação na outra. Diz-se relativa independência, pois toda regra comporta exceção, sendo elas o caráter vinculante (i) da absolvição penal, que nega a existência do fato ou autoria; (ii) da condenação de agente público na esfera penal, e (iii) da absolvição penal por ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito[1].

Neste contexto, no julgamento do REsp 2.081.262-RS (2022/0252631-6)[2], realizado em novembro de 2023, os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entenderam pela possibilidade de condenação, pela prática da conduta de cartel, no âmbito do Processo Administrativo que tramita perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ainda que tenha ocorrido a absolvição dos acusados nas esferas penal e civil.

Foram analisados e julgados, pelos Ministros, os recursos interpostos pelo CADE e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em face de acórdão proferido, por unanimidade, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (4ª T – TRF4), no julgamento de apelações e reexame necessário[3], que decidiu pela anulação de decisão proferida pelo CADE. Referida decisão, proferida pela autarquia, condenou, nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, diversos postos de gasolina e pessoas físicas a eles relacionadas, por formação de cartel[4], sob o fundamento de que os fatos objeto do referido processo administrativo foram analisados tanto no âmbito penal, quanto no civil, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), sendo tais fatos e o conjunto probatório que os fundamentou, considerados insuficientes para a condenação dos acusados pela prática de cartel na revenda de combustíveis no Município de Caxias do Sul/RS, nas duas esferas.

No voto proferido pela Ministra Relatora Regina Helena Costa[5], ela esclarece que “[À] à vista do princípio da relativa independência entre as instâncias de responsabilização consagrado nos arts. 66 do Código de Processo Penal, 935 do Código Civil de 2002 e 125 da Lei n. 8.112/1990, ressalvada a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta, ou, ainda, quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática, as conclusões levadas a efeito em âmbito criminal não reverberam sobre as atribuições da autarquia antitruste, viabilizando-se, por isso, a submissão de idêntico acervo probatório ao crivo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para exame dos pressupostos indispensáveis à apuração de condutas anticoncorrenciais”.

Adiciona que o artigo 16[6], da Lei nº 7.347/1995, excepciona[7] parcialmente o regramento “pro et contra” disposto no artigo 502[8], do Código de Processo Civil, instituindo o regime jurídico da “res judicata secundum eventum probationis”, que delibera acerca da “ausência de formação de coisa julgada quando, não obstante apreciado o mérito da ação civil pública, a sentença de improcedência é fundada em insuficiência probatória, hipótese na qual exigida apresentação de prova nova tão somente como requisito de ulterior demanda coletiva aviada por outros legitimados, regra não extensível à análise do mesmo contexto fático pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica[9].

Neste sentido, ainda de acordo com o voto da Ministra, a independência relativa das sanções administrativas baseadas na legislação de defesa da concorrência e as “demais órbitas de responsabilidade” autorizam que o mesmo conjunto probatório, tido por insuficiente para condenação em outras esferas, seja reputado apto a fundamentar a aplicação das penalidades decorrentes da prática de condutas anticoncorrenciais, ressalvada a hipótese prevista no artigo 66, do Código de Processo Penal[10]. Tal entendimento decorre, segundo a julgadora, dos objetivos de cada plano de proteção à concorrência – a Lei Antitruste visa coibir condutas anticompetitivas e punir, por meio de sanções, os responsáveis; o âmbito civil tem como escopo a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas e fixação de ordens com intuito de conformar a atuação dos agentes econômicos à legislação, sem prejuízo do acionamento da jurisdição penal com relação às pessoas físicas – dentro de um sistema próprio composto por três esferas independentes entre si.

Neste contexto, o voto da Ministra Relatora, que foi acompanhado à unanimidade pelos demais julgadores, deu parcial provimento ao recurso interposto pelo CADE, para afastar a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, como reconhecida pelas instâncias inferiores.

É importante destacar que, conforme ressaltado pela Ministra, no âmbito do processo administrativo, embora tenha sido utilizado o mesmo conjunto probatório, considerado insuficiente pelas esferas civil e penal anteriormente, outras provas foram produzidas, tais como oitiva de testemunhas e a coleta de informações junto à agência reguladora do setor petrolífero, sobre os preços de combustíveis no mercado local, o que afastaria eventual entendimento de que a decisão proferida pelo CADE foi baseada apenas em provas emprestadas.

Neste ponto, e apenas para provocar uma reflexão sobre o tema, entende-se que a questão posta, quanto à esfera cível, faz todo sentido, diante das características dos direitos tutelados. No entanto, no âmbito penal, esfera legitimada e detentora da expertise necessária para a apuração do crime de cartel, a análise de provas e a conclusão pela sua insuficiência, quanto à prática de cartel, não podem ser desconsideradas pelo CADE, ainda que as esferas sejam independentes entre si, sob pena de grave insegurança jurídica, pois, repise-se, tanto a esfera penal quanto a administrativa possuem a expertise para analisar a configuração ou não desta prática ilícita e (e não ‘ou’) concorrencial. Por essa razão, imprescindível que o conjunto probatório emprestado da esfera penal, diante da conclusão, nesta esfera, no que concerne à existência da prática da conduta de cartel, seja subsidiado com novas provas, de modo a complementar e tornar suficiente o que antes não era.

Não pode o CADE ignorar a decisão penal, pelo menos para sopesar com as demais provas que porventura possa invocar, sob pena de termos decisões conflitantes na avaliação dos mesmos elementos probatórios.


[1] Inteligência dos artigos:

Código de Processo Penal, Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Código Civil, Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Lei 8.112/1990, Art. 125.  As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Lei 12.529/2011, Art. 35.  A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (correspondente à Lei 8884/94, artigo 19). 

Lei 12.529/2011, Art. 47.  Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação (correspondente à Lei 8884/94, artigo 29). 

Lei 13.869/2019, Art. 8º. Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[2] Acórdão disponível no link: Julgamento Eletrônico (stj.jus.br).

[3] Ação anulatória de decisão proferida pelo CADE, movida por Paulo Ricardo Tonolli e Auto Posto Tonolli Ltda, tendo em vista a condenação de ambos pela prática de cartel, no âmbito do CADE, bem como da correlata penalidade de revogação da autorização para exercer atividade de posto de combustíveis, aplicada pela ANP. Em primeira instância, os pedidos foram julgados procedentes, tendo sido reconhecida a inviabilidade de o CADE reconhecer a existência de cartel, quando os mesmos fatos estavam acobertados pelo manto da coisa julgada decorrente da Ação Civil Pública 010.1.07.001043-59 e da Ação Penal 010.207.000.52097, momento em que fora afastada a existência de conduta ilícita. A decisão de 1º grau foi mantida pelo TRF4.

[4] Processo administrativo nº 08012.010215/2007-96, que teve por objeto apurar a existência coordenação de mercado ajustada entre revendedores de combustíveis líquidos (gasolina álcool e diesel) com atuação no Município de Caxias do Sul – RS —nos anos 2004, 2005 e 2006.

[5] A decisão da Ministra Relatora foi acompanhada pela unanimidade dos demais Ministros presentes na sessão de julgamento.

[6] Lei 7.347/1995, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

[7] A exceção parcial à regra ocorre no âmbito das ações coletivas, conforme artigo 18 da Lei 4.717/1965 e artigo 16 da Lei 7.347/1985, tendo em vista a preocupação legislativa com os interesses difusos e coletivos tutelados nas demandas desta natureza, que exige robusta e exauriente produção de provas.

[8] CPC, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

[9] A coisa julgada pro et contra, forma-se independentemente do resultado do processo, do teor da decisão judicial proferida. Não é relevante se o resultado é de procedência ou de improcedência do pedido, se houve ou não o esgotamento de provas, a decisão definitiva sempre será apta a produzir a coisa julgada. Essa é a regra geral do nosso Código de Processo Civil.

A coisa julgada secundum eventum probationis, forma-se no caso de esgotamento das provas. No caso de os pedidos formulados na demanda serem julgados procedentes (com esgotamento de provas), ou improcedentes (com provas suficientes), a decisão judicial só produzirá a coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar os pedidos improcedentes por insuficiência de provas, não haverá a coisa julgada.

[10] Vide nota de rodapé 1.

A posição dominante da UBER é o “fio solto” na engrenagem no projeto de remuneração dos motoristas de aplicativo

Elvino de Carvalho Mendonça

O PLP 12/2024[1] é uma tentativa do Governo Federal de garantir que os motoristas de aplicativos percebam uma remuneração mínima e que contribuam com o Regime Geral de Previdência Social. Nada mais em linha com um governo que tem o discurso voltado para as questões sociais!!

No entanto, não basta ter “boa vontade”, é preciso lembrar que as relações econômicas não são feitas de benevolência, mas de incentivos corretos e em razão disso, trazemos destaques importantes para a redação do Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024), referente a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas, como passaremos a tratar.

A remuneração a ser paga pela empresa de aplicativo ao motorista está prevista no art. 9º do PLP 12/2024. O valor da remuneração é de R$ 32,0 por hora e está dividida em duas remunerações: remuneração pelo serviço prestado (R$ 8,03) e remuneração pelos custos incorridos na prestação do serviço[2] (R$ 24,07).

A inserção do motorista de aplicativo no Regimes Geral de Previdência Social (RGPS) está disposta no art. 10 que, em apertada síntese, dispõe que o motorista recolherá 7,5% do valor da remuneração horária e a empresa de aplicativo recolherá 20% do valor total da remuneração horária (art. 11, III[3] e Art. 26-A[4]).

O PLP 12/2024 também assegura a inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa operadora de aplicativo, assegurado o direito de prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de mais de uma empresa operadora de aplicativo no mesmo período (art. 3º, I) e a inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço (art. 3º, II).

Como forma de eliminar a hipossuficiência dos motoristas de aplicativo o art 3º, § 3º impõe que este serão representados por sindicato com as seguintes atribuições:  I – negociação coletiva; II – celebração de acordo ou convenção coletiva; e III – representação coletiva dos trabalhadores ou das empresas nas demandas judiciais e extrajudiciais de interesse da categoria.

Por fim, para evitar qualquer tipo de discriminação, o projeto de lei complementar assegura, no art. 6º, que o motorista de aplicativo não poderá ser excluído de forma unilateral pela empresa de aplicativos, a menos que estejam presentes as hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma[5].

Como se pode ver, dos quatro dispositivos citados no parágrafo anterior, dois alteram diretamente a estrutura de custos das empresas de intermediação (remuneração e recolhimento ao RGPS) e dois tratam das condições oferta dos motoristas de aplicativos (exclusividade e discriminação).

Não há mistério!! A elevação dos custos com remuneração e RGPS trará um choque de oferta no mercado de prestação de serviços de intermediação e isso terá consequências sobre tanto sobre o consumidor final quanto sobre o motorista de aplicativo, pois não se pode olvidar que o mercado de prestação de serviços de intermediação é extremamente concentrado no Brasil tanto no mercado a montante quanto no mercado a jusante.

No mercado a montante, não é difícil perceber que os motoristas de aplicativos são hipossuficientes e, como tal, pouco ou nada conseguem fazer de forma individual. As empresas de intermediação possuem poder de oligopsônio sobre os motoristas e, portanto, têm o poder para extrair ao máximo o excedente destes trabalhadores.

Não por outro motivo o PLP cria a figura da entidade sindical[6] a fim de fazer frente ao poder de mercado das empresas de intermediação. Nesse ponto, a teoria econômica também é clara: a presença de sindicatos amplia a rigidez salarial e a consequência é a inserção de uma quantidade menor de motoristas de aplicativo que se teria na ausência do sindicato[7].

No mercado a jusante, o efeito do poder de mercado das empresas de aplicativo sobre o passageiro não é diferente. A ausência de concorrência existente neste mercado associada com o conjunto informações pessoais que as empresas detêm a respeito dos passageiros, permite que elas extraiam o excedente do consumidor de uma forma muito eficiente em prejuízo, inevitavelmente, dos consumidores e dos motoristas de aplicativos.

A iniciativa de remunerar os motoristas por aplicativo e de os inserir no RGPS é uma preocupação mundial. O PLP 12/2024 tem mérito e está em consonância com as melhores práticas internacionais de respeito a dignidade do trabalhador, pois rodos os trabalhadores devem ter condições de trabalho digno[8], remuneração compatível e proteção previdenciária.

Apesar da boa vontade que o PLP incarna, há um fio solto nessa engrenagem e ele se chama poder excessivo de mercado da empresa de intermediação entre motoristas e passageiros chamada Uber.

O que fazer?

Esperar a benevolência de uma empresa monopolista é desafiar a teoria econômica. Fazer regulação de tarifas ou coisa que o valha é desafiar a teoria da regulação econômica, pois, afinal, em que lugar estão as falhas de mercado para serem tratadas?

O fio está solto e há risco de curto!!!


[1] prop_mostrarintegra (camara.leg.br)

[2] Art. 9º, §3º, in verbis:

 § 3º O valor da remuneração a que se refere o § 2º é composto de R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

[3] III – 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento), no caso de trabalhador que preste serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede.

[4] Art. 26-A. Constitui receita da Seguridade Social a contribuição da empresa que opere aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede para oferecer serviços de intermediação a trabalhadores que prestem o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros e a usuários previamente cadastrados, incidente, à alíquota de 20%.

[5] Art. 6º A exclusão do trabalhador do aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros somente poderá ocorrer de forma unilateral pela empresa operadora de aplicativo nas hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa, conforme regras estabelecidas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma.

[6] A sindicalização do motorista por aplicativo está descrita no caput do art. 4º, in verbis:

Art. 4º Sem prejuízo do disposto no art. 3º, outros direitos não previstos nesta Lei Complementar serão objeto de negociação coletiva entre o sindicato da categoria profissional que representa os trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativo, observados os limites estabelecidos na Constituição.

[7] Os modelos de Labor Union demonstram que a presença de sindicatos conduz a solução do emprego para o second best.

[8] O Organização Internacional do Trabalho – OIT entende que [o] conceito de trabalho digno resume as aspirações de homens e mulheres no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração justa; segurança no local de trabalho e proteção social para as famílias; melhores perspetivas de desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afetam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento. [Trabalho Digno (ilo.org)]


Elvino de Carvalho Mendonça. Editor-Chefe da WebAdvocacy. Doutor em economia pela UNB e Ex-conselheiro do CADE.

O lado positivo do Poder Judiciário

Augusta Sampaio Ferraz

Tema recorrente na mídia ou em grupos jurídicos, as críticas aos Tribunais Superiores, em especial ao Supremo Tribunal Federal, são sempre muitas, e na maioria das vezes, carregadas de sentimentalismo. Escrevo o presente artigo para tentar mostrar que existe o lado bom do judiciário, inclusive na Suprema Corte e no Superior Tribunal de Justiça.

Comecemos com os números, primeiramente para mostrar o volume processual que ambas as Cortes recebem e julgam. No ano de 2023, o Superior Tribunal de Justiça recebeu 458 mil processos (quase meio milhão) e julgou 426 mil[1]. Já o Supremo Tribunal Federal recebeu 78.242 e proferiu 101.970 decisões, havendo, no final do ano de 2023, 24.071 processos em tramitação[2]. Não há dúvidas que os números são assustadores, levando em consideração que há, no STF, 11 ministros, e no STJ, 33.

Se detalharmos ainda mais os números acima e fizermos uma média, temos que, cada ministro do STF recebeu 7.113 processos no ano, ou 592 por mês. Já no STJ, cada ministro recebeu 13.787 processos no ano, ou 1.156 por mês.

O que podemos concluir, dessa forma, é que as portas da justiça brasileira são abertas para todos, da primeira à última instância. Temos, assim, o primeiro ponto positivo (pelo menos em certo sentido), na medida em que o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal é plenamente cumprido (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito).

De outro lado, podemos dizer que a principal instituição que liga o que acontece no judiciário à população não jurídica é a mídia, que desenvolve um papel crucial ao comunicar as informações sobre os Tribunais. É papel da mídia promover a compreensão pública sobre o funcionamento e a importância das instituições judiciárias.

Ao destacar casos exemplares de eficiência e justiça, a mídia pode inspirar confiança na população. Por outro lado, ao investigar e relatar casos de corrupção, morosidade processual ou outras deficiências, ela pode desempenhar um papel de colocar a população contra as instituições.

Não estamos dizendo aqui que não cabe à mídia criticar ou deixar de expor casos em que haja indício de ilegalidade ou imoralidade. Contudo, é fundamental que a cobertura midiática seja equilibrada, evitando sensacionalismo e promovendo uma compreensão mais completa do desempenho do judiciário, de modo que os veículos de comunicação de massa podem contribuir para a construção de uma sociedade informada e participativa, fomentando o debate e consequentemente o fortalecimento da democracia, ponto que tratarei a seguir.

A relação entre democracia, decisões judiciais (em especial as do STF) e a mídia é complexa e multifacetada. Em uma democracia, as decisões judiciais, em especial as proferidas pelos Tribunais superiores, têm repercussão significativa na concretização do direito e na sua aplicação, que trará impactos para toda população. A transparência e a compreensão pública do que acontece dentro desses Tribunais são fundamentais para a saúde do sistema democrático.

As Cortes Superiores, como o STF e o STJ, desempenham um papel crucial na concretização e uniformização do direito no Brasil. O primeiro, enquanto guardião da Constituição e o segundo, enquanto corte uniformizadora de toda legislação federal.

Como dito no início do presente artigo, o número de decisões proferidas nesses Tribunais é assustador. Não há, no mundo, judiciário que produza tanto quanto o brasileiro. E o que ouvimos de grande parte da população são somente críticas que vão desde a morosidade processual até o valor do salário de um magistrado.

Destaco aqui alguns casos relevantes julgados no STF e no STJ que trouxeram impactos positivos para parcela da população:

  • Constitucionalidade da previsão de medidas atípicas para assegurar o cumprimento de ordens judiciais: o STF decidiu que são constitucionais — desde que respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os valores especificados no próprio ordenamento processual, em especial os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — as medidas atípicas previstas no CPC/2015 destinadas a assegurar a efetivação dos julgados (Informativo 1082). A duração razoável do processo, que decorre da inafastabilidade da jurisdição, deve incluir a atividade satisfativa (CF/1988, art. 5º, LXXVIII; e CPC/2015, art. 4º). Assim, é inviável a pretensão abstrata de retirar determinadas medidas do leque de ferramentas disponíveis ao magistrado para fazer valer o provimento jurisdicional, sob pena de inviabilizar a efetividade do próprio processo, notadamente quando inexistir uma ampliação excessiva da discricionariedade judicial.
  • Prisão especial aos portadores de diploma de curso superior: o STF entendeu que é incompatível com a Constituição Federal de 1988 — por ofensa ao princípio da isonomia (CF/1988, arts. 3º, IV; e 5º, “caput”) — a previsão contida no inciso VII do art. 295 do Código de Processo Penal (CPP) que concede o direito a prisão especial, até decisão penal definitiva, a pessoas com diploma de ensino superior.
  • Lei Maria da Penha: obrigatoriedade de designação da audiência de retratação e do comparecimento da vítima: o STF entendeu que a interpretação no sentido da obrigatoriedade da audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), sem que haja pedido de sua realização pela ofendida, viola o texto constitucional e as disposições internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir, na medida em que discrimina injustamente a própria vítima de violência.
  • Seguradora deverá pagar indenização a segurado que não tinha diagnóstico médico confirmado: fundamentado na Súmula 609, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça deliberou que uma seguradora não pode se recusar a efetuar o pagamento da indenização do seguro de vida quando não exigiu a realização de exames médicos e perícias prévias à contratação e tampouco comprovou má-fé por parte do segurado.
  • Tratamento para síndrome de Down e lesão cerebral deve ser coberto de maneira ampla por plano de saúde: a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a operadora de plano de saúde tem a obrigação de cobrir as sessões de equoterapia, tanto para beneficiários com síndrome de Down quanto para beneficiários com paralisia cerebral. Entendimento semelhante já havia sido adotado pela Terceira Turma em relação ao tratamento de autismo.
  • Alteração de regime de bens do casamento com efeito retroativo (ex tunc): a 4ª Turma do STJ entendeu pela possibilidade da alteração do regime de bens com efeitos retroativos. O relator, Ministro Raul Araújo, entendeu que, como as partes adotaram voluntariamente o regime da separação total de bens e que a alteração para comunhão universal dificilmente acarretaria prejuízos a terceiros, é possível que alteração do regime de bens produza efeitos retroativos (ex tunc).

Trouxemos aqui apenas alguns dos milhares de casos significativos julgados por esses dois Tribunais. Com isso, procuramos demonstrar que, apesar de a esmagadora maioria das notícias veiculadas na mídia sobre a justiça brasileira não ser positiva, cabe a nós, operadores do direito, construir uma melhor imagem do judiciário, promovendo uma maior participação da sociedade e consequentemente a efetivação da democracia.

Por fim, deixamos claro que o judiciário, em especial as Cortes Superiores, são passíveis e devem receber críticas. Assim, devemos estar sempre atentos para possíveis excessos. Contudo, na construção de um judiciário inclusivo e democrático, enxergar o lado bom também é necessário.


[1] STJ apresenta números de 2023 no fim do ano judiciário

[2] Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)


Augusta Sampaio Ferraz. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


Sociedade digital brasileira

Adriana da Costa Fernandes

Do que se fala ultimamente no mundo, especialmente desde a Pandemia, é de um tempo de maior abertura a mudanças e da quebra de profundos paradigmas.

A sociedade brasileira vem enfrentando novamente um momento de ruptura de padrões comportamentais e, sem que sequer se perceba muito claramente, cabe a todos uma reflexão cautelosa agora acerca de, afinal, que legado este “grupamento geracional momentâneo” (se é que entendem, essa “galera do aqui e agora”) pretende deixar para as gerações que virão a seguir.

             É importante que se entenda que o tempo de agir sem se importar tanto assim com a consequência dos atos (o amanhã eu vejo isso) e sem a compreensão exata dos efeitos (eu não quero pensar nisso), mais do que ficou para trás. Já não é aceitável.

             Seja isto em razão da extrema agilidade do transcurso das informações nos meios de comunicação atuais, seja pelo impacto cada vez mais imediato das ações no seu entorno, na vida prática e socialmente. Tudo e todos estamos conectados, o tempo todo. Efeito dominó.

             Entretanto, lamenta-se ora o recado, mas o planeta está doente.

             E, neste contexto, o homem, grande ator no palco da vida, está em profunda agonia, porém, anestesiado, vivendo desventuras em série.

             Entretanto, note que não se pode considerar apenas um homem usual, mediano, e que vive nas Capitais como Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e lá vai. Isso só demonstra que, ainda, que não se perceba, a divisão, a qual já é conhecida e abrupta no campo político, está também igualmente presente em praticamente todos os outros campos, como no cultural, educacional, religioso, financeiro, familiar e, até mesmo, no emocional coletivo hoje.

             Todos no mesmo barco, porém, divididos. Separados por cores. Guerreando tecnologicamente. Mas, ainda assim, ansiosamente em busca de alguma ressignificação.

             Neste dilema, algumas palavras e atos simplesmente modificam completamente rotas e vidas de pessoas que vinham seguindo, até então, em um dado sentido. Tantos considerando dadas cores durante toda uma vida e passando, de uma hora para outra, simplesmente, a se sentirem órfãos entre patéticos antagonismos que não fazem sequer o menor sentido.

             São grupos inteiros, tantos uns de alta capacidade, sapiência e envergadura e que passaram completamente a carecer urgentemente de outros tipos de significado diários e de existência nos campos da vida. Outros que, lamentavelmente, apenas seguem e com nada disto se preocupam. Apenas são usados enquanto meros factoides de massa, descartáveis a partir da próxima estação.

             Num retrato mais apurado, das nuances, lá estão os mais velhos que se sentem usados, se ressentem de nada entenderem e de nada reconhecerem acerca do que viveram logo ali atrás.

             Também estão os bem mais novos. Tantos deles já tentando sobreviver, ajudar as famílias e outros apenas se mantendo alijados de tanto e de tudo. Vivendo em ilhas digitais e de grupo muito próprias, com o intuito de se protegerem ou, apenas, não se aborrecerem.

             E no meio, ah, no meio, os mariscos. Apanhando fortemente, entre o mar e o rochedo. De lá, de cá, lá vamos nós. Segura a força aí, Yemanjá!

             Que se saiba, o país se transforma mais e mais como a Índia e suas castas.

             A crise de saneamento básico e de segurança só se agravam.

             E a sociedade segue separada cada vez menos sutilmente por regras de conduta, postura, convivência, moradia e a velha norma implícita do tempo de Carlota Joaquina do “Quem conhece quem”. Se já era assim antes, agora ainda mais.

             O grupo nega e veta Maria.

             Dizem que ela é ótima, mas tem a pele meio assim ou assado.

             – Ih, isso é crime! É racismo.

             – “Tá”, mas, não é por isso.

             Ela mora lá e aqui não pode frequentar. É competente ao extremo, mas estudou acolá e aqui não pode trabalhar. Se veste assim, pensa de tal forma e tem a ousadia de dizer o que pensa.

             – Ah, ih! É mulher ainda por cima.

             Banca o seu corpo, resolveu ser mais gordinha, tem tatuagem, usa piercing, óculos grande e estranho, cabelo curto, às vezes longo, cacheado, ruivo, com mecha, não importa.

             O que importa, mesmo, é criticar e dizer que ela é “ousada, folgada e abusada”, não é mesmo?

             Afinal ela é mesmo diferente de nós e não se quer lidar com isso.

             – Sai para lá, Maria, sua louca, bipolar, doente.

             Afinal, o que é mesmo isso? Eu que nem sei… Do jeito que nem sei tantas coisas.

             O Brasil continua sendo patriarcal, pouquíssimo plural, (cada um no seu grupo é mais legal), assumindo um rumo digital estranho (ô), insensível com os idosos e deixando que se desgaste um de seus maiores e melhores sistemas legais, o Consumerista, justamente por questões de Cibercrime. Segue adotando tantas vezes, estranhamente, julgamentos jurisdicionais questionáveis, por serem até suaves na proteção do que se aqui debate e por estabelecer regras internas confusas, às vezes até opostas, em alguns campos.

             Isto tudo simplesmente porque os brasileiros, de uma forma geral, perdidos no meio deste mundo B.A.N.I. (frágil, ansioso, não linear e não compreensível) estão, mais do que nunca, confusos e precisando, francamente, de um grande basta social e digital.

             Uma sociedade convulsionada apresenta uma profusão de assuntos diários a serem debatidos e todos acabam por desaguar no mesmo lugar: no quanto os recursos tecnológicos estão sendo mal utilizados pela maioria.

             E assim, quem tem a possibilidade de bem explorá-los, ainda acaba por pouco esclarecer a quem não conhece nada ou quase nada. Isso ao invés de compreender que ganha mais se a sociedade como um todo alavancar. Afinal, essa é a responsabilidade dos grandes. Fazer com que os pequenos compreendam realmente que precisam destes novos recursos para melhorar sua vida, sua lógica, seu bem-estar.

             Não dá para ninguém mais ficar sentado esperando que um idoso, alguém com pouco recurso financeiro ou quem nada compreende do que se trata, bata na porta e peça suporte. A “responsa” é coletiva.

             As políticas públicas, as parcerias público-privadas, a iniciativa empresarial independente, sejam do tamanho que forem, devem fazer isso, ir ao encontro do outro, seja este outro, especialmente o mais frágil. E buscar o interlocutor, comunicar, publicizar. Esta é a lógica, inclusive, do novo Decreto de Cibersegurança Federal.

             Isto dito e posto, Brasil, que se aja, que se inicie, de fato, esta tarefa de todos nós (Bora?)

             Que caminhemos juntos, coletivamente. Ainda que por meio de pequenos e singelos passos em nosso mais simples cotidiano.

             Adelante, caminhantes!

As contratações anticompetitivas das agências de publicidade

Fernando de Magalhães Furlan

Ao longo dos anos, tem sido prática comercial reiterada das agências de publicidade o desvirtuamento da competição por projetos de produção audiovisual (filmes publicitários), dentro de campanhas publicitárias, ao oferecerem tais serviços por meio de produtoras próprias, relacionadas ou parceiras, utilizando informações privilegiadas.

Além disso, o mercado de serviços de publicidade é altamente concentrado no Brasil, denotando posição dominante da parte de meia dúzia de mega agências, que, utilizando a sua influência econômica, desviam projetos de produção audiovisual para produtoras parceiras, fechando assim o mercado para as produtoras independentes.

Tal conduta das agências pode, potencialmente, caracterizar o chamado tying (venda casada, isto é, condicionar a venda de produto/serviço à aquisição de outro) ou o bundling (estratégia de venda de vários produtos ou serviços em conjunto, com supostos benefícios de aquisição para o cliente, em termos de preço e/ou funcionalidade)[1]. Além disso, essa atitude das agências de publicidade denota comportamento antiético[2], além de contrário à ordem econômica e à livre concorrência.

Além do tying (venda casa) e bundling[3] (venda em pacote), que se caracterizam por condutas unilaterais, o comportamento das grandes agências de publicidade também pode configurar condutas concertadas como o bid-rigging
(licitação fraudulenta) e a fixação de preços[4].

Aliás, a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos da América investigou, durante os anos de 2016 e 2018, as agências de publicidade daquele país sobre o uso de unidades de produção internas para a manipulação de licitações e fixação de preços, chamando a atenção para práticas há muito reclamadas por produtoras independentes e estúdios de efeitos/produções visuais.

O DoJ investigou se as agências de publicidade distorcem o processo de licitação privada, utilizando informação privilegiada[5], em favor de suas próprias unidades de produção interna, forçando empresas independentes de produção e pós-produção a aumentar os seus preços e, consequentemente, perder a competição/licitação privada.

Nos Estados Unidos, aliás, a questão das unidades de produção interna e as práticas anticompetitivas é algo que a Associação de Editores de Criação Independentes – AICE (Association of Independent Creative Editors), por exemplo, vem trabalhando há algum tempo. Em 2014, a AICE emitiu uma declaração oficial destacando as preocupações com questões de transparência, neutralidade e a prática de “verificar licitações”, isto é, “convidar empresas independentes a fazer propostas irrealistas, um processo que pode custar a essas empresas milhares de dólares de uma só vez, simplesmente para fazer aumentar os números em um campo que eles não podem ganhar[6].

A investigação esteve focada no mercado estadunidense, mas também chamou a atenção para a tensão mais ampla entre unidades de produção internas e fornecedores independentes em mercados ao redor do mundo.

Em Londres, a Associação dos Produtores de Publicidade (Advertising Producers’ Association – APA) respondeu à revelação com um memorando aos seus membros. A declaração diz que a APA defende que seus membros não façam licitações (processos seletivos) contra produtoras independentes e que os clientes sejam mais questionadores, exigindo transparência.

A investigação do DoJ, ou de qualquer outra autoridade antitruste, deve também se concentrar em averiguar se o dinheiro dos clientes (anunciantes) está sendo efetivamente gasto da maneira a mais robusta e rigorosa possível, com os melhores talentos disponíveis, a fim de entregar o melhor resultado; ou se, ao contrário, é mera solução conveniente, para suportar um fluxo previsível e confortável de receita para as agências.

A questão, portanto, vai além da manipulação de licitações privadas para o fornecimento de serviços de audiovisual, por exemplo, favorecendo produtoras internas/associadas das próprias agências de publicidade. Pois, ao cortarem o orçamento automaticamente, as unidades de produção internas das agências não estão dando aos clientes acesso aos melhores talentos e maior valor ao seu dinheiro. Pelo contrário, estão se apropriando de um bem-estar que deveria ser do anunciante/cliente (consumidor).

Apesar de a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos haver arquivado/encerrado a investigação[7] de 2 anos sobre possível fraude a licitações e fixação de preços, de parte das agências de publicidade, para favorecerem unidades de produção internas, merece ser ressaltado que permanece em aberto investigação do Federal Bureau of Investigation – FBI sobre transparência entre anunciantes e agências de compra de mídia[8].

Em 10 de outubro de 2018, a Associação de Anunciantes Nacionais (ANA) notificou os seus membros de que o FBI lhe havia solicitado que informasse a seus membros sobre a investigação e pedisse que cooperassem, caso eles acreditassem que pudessem ter sido fraudados por suas agências de publicidade. Assim, o tema continua sob investigação, agora criminal, por parte das autoridades estadunidenses.

Além disso, o enforcement das autoridades antitruste estadunidenses, em relação ao setor publicidade, continua firme. Recentemente, em abril de 2022, a Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission – FTC) e a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) realizaram outra fase de sua “turnê de audição” (listening tour), com foco na indústria de mídia e entretenimento. Como nos fóruns anteriores, a FTC e o DOJ promoveram a discussão para permitir que participantes menores do mercado – como artistas, criadores de conteúdo, jornalistas e o público em geral – expressassem as suas opiniões sobre os efeitos da consolidação na indústria de mídia e entretenimento.

A presidente da FTC, Lina Khan, abriu o fórum destacando as mudanças significativas do mercado na indústria de mídia e entretenimento na última década. Kahn observou uma quantidade significativa de consolidação vertical entre empresas nos últimos anos e expressou preocupação de que, atualmente, apenas um punhado de empresas controla a maior parte da cadeia de suprimentos de entretenimento.

Essas mudanças levaram a uma preocupação semelhante por parte dos observadores e estudiosos da indústria da publicidade, de que essas entidades integradas exerceriam o seu poder de mercado contra criadores de conteúdo e limitariam a diversidade de conteúdo que chegaria aos consumidores. Em suma, Kahn alertou que a consolidação descontrolada na indústria de mídia e entretenimento pode permitir “poder descomunal sobre como a informação é distribuída” afetando, em suas palavras, o “sangue vital” da democracia.

Ao que se vê, a FTC e o DOJ estão perfeitamente sintonizados em relação ao impacto da consolidação na indústria de mídia e entretenimento nas condições econômicas[9].

Vejamos, por exemplo a “Nota de Esclarecimento”[10] da Associação dos Produtores Comerciais Independentes – AICP, dos Estados Unidos da América, sobre a operação de unidades de produção e pós-produção internas de muitas holdings e agências de publicidade, que geralmente são listadas sob nomes não relacionados. A AICP criou uma lista de unidades internas de agências conhecidas para referência de suas associadas e as aconselha a verificar a lista ao considerar uma solicitação de licitação de uma agência para determinar se está licitando contra uma empresa independente ou uma agência e/ou entidade pertencente a uma holding.

No Brasil,por meio da Nota Técnica nº 11/2016/CGAA4/SGA1/SG/CADE, no Processo Administrativo nº 08012.008602/2005-09, a Superintendência Geral do CADE assim se manifestou, em sua “Avaliação final” dos efeitos anticompetitivos (item 2.1.10.4) sobre conduta concertada e fixação de preços da parte das agências de publicidade e do Conselho Executivo de Normas-Padrão (CENP):

Parágrafo 461. Foram analisadas também as condutas de fixação de porcentagem uniforme da comissão de veiculação, o desconto padrão de agência, e de fixação de limites para o repasse de parte do desconto padrão de agência aos anunciantes. Concluiu-se que as condutas também são potencialmente anticompetitivas, já que excluem a possibilidade de concorrência por preços entre as agências, induzindo à uniformização de práticas comerciais e vedando ao consumidor dos serviços publicitários a possibilidade de optar por veicular publicidade com preços mais baixos”.

O próprio Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP), isto é, o fórum de autorregulação do mercado publicitário no Brasil, assim se posicionou, por meio da Comunicação Normativa No. 016, de setembro de 2010, sobre a Certificação de Agências de Publicidade, em seu artigo 6º:

O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços;” (grifos).

Ou seja, o próprio ente autorregulador dos serviços publicitários no país considera a produção audiovisual incompatível com as atividades de uma agência de publicidade. Isto é a produção audiovisual deve, obrigatoriamente, ser terceirizada/subcontratada por empresa independente, não relacionada à agência.

Ao agir de outra maneira, as agências de publicidade no país estão potencialmente praticando condutas ilícitas, nefastas à concorrência, fazendo incidir as hipóteses previstas no art. 36, caput, da Lei 12.529/11, seus incisos, parágrafos e alíneas, conforme abaixo:

– Limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; e

– Exercer de forma abusiva posição dominante.

Além disso, podem configurar as seguintes hipóteses previstas no § 3º do artigo 36, da LDC, sem prejuízo de outras:

I – acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:

  1. os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;

b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;

c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;

d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação (…);

II – Promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;

III – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;

IV – criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

V – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;

VIII – Regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar (…) a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;

X – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; e XVIII – subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem.


[1] “A consensus has emerged that a necessary condition for anticompetitive harm arising from allegedly exclusionary agreements is that the contracts foreclose rivals from a share of distribution sufficient to achieve minimum efficient scale (“MES”). This foreclosure concern is inextricably intertwined with the RRC paradigm and is applied by courts and agencies in cases involving allegedly exclusionary agreements of all kinds, including exclusive dealings, market share discounts, shelf space share agreements, category management arrangements, refusals to deal, tying, and bundling (…)”. RRC theories require an analytical link to be established between the allegedly exclusionary agreement and the MES of production. Joshua D. Wright, Moving Beyond Naïve Foreclosure Analysis, 19 GEO. MASON L. REV. 1163, 1163–64 (2012).

[2] CENP – Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário. Comunicação Normativa No. 016 (set/2010). Certificação de Agências de Publicidade (Objeto Social):  (…) “Art. 6º – O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços; (…)”. (Grifos).

[3] Venda de diferentes itens (bens ou serviços) em conjunto, como um pacote.

[4] WRIGHT, Joshua – Simple but Wrong or Complex but More Accurate? The Case for an Exclusive Dealing-Based Approach to Evaluating Loyalty Discounts. Bates White 10th Annual Antitrust Conference. Washington, DC 3 June 2013 -https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_statements/simple-wrong-or-complex-moreaccurate-case-exclusive-dealing-based-approach-evaluating-loyalty/130603bateswhite.pdf “Improving foreclosure analysis to align more closely with the raising rivals’ cost framework and thereby to focus more intensely upon the ultimate competitive effects of the contracts at issue would significantly improve the existing legal framework. For example, I have suggested elsewhere that measuring the foreclosure attributable to the defendant’s conduct in loyalty discount cases – and all cases alleging contracts create market power via the raising rivals’ cost mechanism – should require a “counterfactual” analysis of the degree of foreclosure without the contracts in question”.

[5] Limites orçamentários do cliente contratante dos serviços, interesses estratégicos dos clientes etc.

[6] Disponível em: https://www.lbbonline.com/news/us-probe-into-agency-in-house-production-bid-rigging-sends-shockwaves-round-industry. Acesso em: 31/07/2023.

[7] Disponível em: https://www.clubedecriacao.com.br/ultimas/departamento-de-justica-dos-eua/. Acesso em: 10/07/2023.

[8] Disponível em: https://www.adotat.com/2018/11/fbi-initiates-media-buy-fraud-investigation/. Acesso em: 10/07/2023.

[9] Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2022/05/media-and-entertainment-industry-gets-a-turn-in-doj-ftc-antitrust. Acesso em: 31/07/2023.

[10] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.aicp.com/assets/editor/Agency_InHouse_List_Final_March2018.pdf. Acesso em: 31/07/2023.

Signos linguísticos – o direito conceitual e direito comparado

Fabio Luiz Gomes

1.Signo Linguístico

O significado das palavras é um fato linguístico[1], ou seja, um fato semiótico, dessa forma não há significado sem signo, portanto, o signo é pressuposto de algum significado.

O significado de um signo não é mais que sua tradução para outro signo que lhe pode ser substituída e o torne inteligível.

 Segundo Santo Agostinho: “…que o nome significa a si mesmo junto com os outros nomes que significa..”[2], e conclui:

“Chegamos, portanto, àqueles sinais que significam a si mesmos e, com inteira reciprocidade, um significa o outro, ou seja, os seus significados reciprocamente se significam, de forma que o que este significa também aquele significa e vice-versa, diferenciando-se entre si apenas pelo som…”

Esse signo representa uma proposição de uma situação possível, uma representação de um pensamento, uma relação projetiva com o mundo.[3] Assim, essa proposição é articulada, exprimem fatos, uma expressão[4], deve estabelecer de forma lógica a realidade.

Observa-se que a semiótica estabelece o estudo de teias de significados,  uma análise profunda da compreensão de diversos fenômenos comunicativos e das diversas formas de linguagem.

Portanto, a semiótica serve de orientação científica ao estudar a noção de signo, análise das relações sociais, tipos de discurso (epistemologia, antropologia etc), poética, estética nas artes, imagens naturais ou imaginárias.

Quando o destinatário do signo for um ser humano vai solicitar uma atividade interpretativa deste.[5]

Todo esse processo exige a existência de um código, consistindo o mesmo em um sistema de significação[6], neste sentido estabelece-se um nexo de causalidade entre o que representa e o representado.

A comunicação entre seres humanos, seja biológica ou artificial sempre terá como pressuposto uma significação própria pré-determinada, portanto, os signos como marco de uma vida social.

Uma investigação crítica dos processos de criação dos signos e seus significados estabelecem o elemento constitutivo nuclear da criação humana no mundo, atribuindo dinamismo a estruturar as experiências humanas e interação destes com o seu ambiente em cadeias neurais subjacentes entre si, ou em processo criativo transcendente.

Esse processo de transformação e interação comunicativa se rearticula constantemente a percepção conceitual do discurso, da ética, da ideologia, o humano ou não humano, o natural ou criado pelo homem.

Desde as formas mais rudimentares da relação do homem com o objeto e do homem com o homem, a formação dos signos somente se desenvolveu na medida em que essa interação foi transmitida para si mesmo ou compartilhada com os outros.

Um aperfeiçoamento progressivo dos signos, se preservada toda cadeia,  expansivo e sujeito a outros significados na medida em que essa cadeia cria outros braços, seja interno (dentro de si mesmo) ou compartilhado com outras pessoas.

O corte histórico no desenvolvimento humano expõe isso: a idade da pedra lascada, essa pedra poderia ser usada como meio de abrir frutos, ou cortar carnes, ou mesmo como arma, mas esse conhecimento fora transmitido e assim foi se desenvolvendo uma cultura.

Destarte, poderíamos analisar a descoberta do fogo, a idade do bronze, ou mais recentemente as descobertas espaciais.

Os conhecimentos de significados vão se agregando e esquadrinhado suas associações e composições racionais.

Obviamente não poderia se dissociar a forma com que se desenvolveu essa cultura dos fatores externos, como o clima, a geografia etc.[7]

As relações do homem-ambiente compõe comportamentos e aprimoramentos de signos decorrentes dessa interação, p. ex., noção do que seja frio ou calor de acordo com o lugar em análise.

Uma vez extraído o objeto, este deve ser analisado tanto no nível social, mas também no nível funcional, desempenhando uma função significante.[8]

Vale também constatar que o estudo da semiótica poderá esbarrar no princípio da indeterminação, afinal, estabelecer significados e comunicar-se são funções sociais, contudo, o enfoque semiótico do intérprete de estabelecer o limite, isto é, focar no que a situação permite, portanto, a busca investigativa de ser uma interpretação crítica daquele objeto.

Observa-se, portanto, que a amplitude da comunicação busca intrinsecamente sua base em um sistema de significação.

2. Semiótica e as normas jurídicas

Numa interpretação semiótica[9] deve ser levada em consideração a figura do leitor por constituir a busca da “intentio operis”, isto é, daquele destinatário da norma.

As normas jurídicas estabelecem padrões de comportamento atribuindo-lhes valor, onde esses comportamentos são qualificados como obrigatórios ou permitidos. Dessa forma, aos destinatários da norma são exigidos observância, pois a linguagem inclui-se entre as instituições humanas resultantes da vida em sociedade.

Observa-se, portanto, que os sistemas jurídicos utilizam uma linguagem constitutiva ou mesmo declaratória comportamental.

Além disso, esses comportamentos intersubjetivos estabelecidos nessas normas aqui consideradas não podem prescindir da ética nem da moral.[10]

Neste sentido, os estudos da semiótica estabelecida em normas jurídicas permitem a adequação dessas normas ao princípio da confiança para os destinatários desta norma jurídica.

3. Semiótica dos conceitos jurídicos, direito comparado e a dignidade da pessoa humana

Os conceitos estabelecidos em normas jurídicas devem ter como fundamento o princípio da adequação à realidade[11] – o caráter dimensional dessa norma, e, ainda, estar de acordo (familiarizado) com a sociedade a que se destina.

Dessa forma, a interpretação de qualquer norma jurídica encontra muitas dificuldades na definição dos conceitos jurídicos.

Agrava-se a situação se considerarmos que o intérprete produz decisões individuais.

Os conceitos de signo utilizados pelo direito privado podem servir como diretriz de aproximação das normas jurídicas, pois além da tradição – origem romana, estar-se-ia mais próximo da realidade do intérprete e, portanto, mais adequado.

Esses conceitos podem ser, portanto, um ponto de partida de um interprete que pretenda analisar sistemas jurídicos.

Afinal, se assim não o fizer, as variáveis restariam indetermináveis quanto mais distantes daquele a quem se destina essa norma, isto é, o receptor dessa norma.

Por essa razão, o interprete deve estabelecer um limite cognitivo interpretativo, com isso esse parâmetro fixaria um campo de gravitacional que permitiria a interpretação racional.

Os conceitos jurídicos, sejam eles mais abstratos ou concretos, devem ser fixados o nexo causal entre a emissão e a recepção, de modo a identificar na cartela de significados qual a interpretação deve ser utilizada.

Ressaltando que o trabalho do intérprete torna-se quanto mais difícil se a norma for mais abstrata, portanto, os fatores externos a própria norma irá permitir a sua interpretação, isto é, as delimitações sociais (cultural, religiosa, política etc).

Nos países ocidentais, a cultura espelhada pelo Império Romano veio a consolidar diversos conceitos consubstanciados no direito privado, esses conceitos formaram signos perfeitamente inteligíveis pelo receptor da norma, p. ex., contratos de compra e venda.

Esses conceitos muitas vezes chegam a integrar o plano constitucional, que por vezes fala em propriedade, liberdade etc.

Portanto, se os signos em análise fizerem parte de Estados ocidentais esses conceitos herdados do Império Romano acabam por permitir um estudo com maior precisão.

Contudo, ainda que se considerem diversos princípios universais, a mesma norma poderá espelhar perspectivas com maior ou menor amplitude, dependendo dos fatores externos às normas, os signos possuíram significados diferentes.

Diante disso, o direito internacional poderá exercer um papel primordial no desenvolvimento humano, na medida em que puder aproximar esses conceitos entre os povos, e, na medida do possível aproximar ou harmonizar.

 Lembrando que por mais próximos que estejam, os aspectos culturais sempre influenciarão na forma que se interpretam as normas, por conseguinte os signos.

Portanto, o estudo dos conceitos jurídicos entre os povos envolve sempre o direito comparado e a interpretação semiótica torna-se um elemento essencial para uma comparação mais precisa.

Observa-se que uma comparação meramente formal das normas entre os povos perde o elemento essencial substantivo que subjaz qualquer comparação.

O resultado interpretativo semiológico pode servir de substância primordial para uma maior precisão normativa.

Dentro dessa perspectiva, as normas jurídicas devem buscar com justificativa e fundamento o próprio homem como resultado indissociável de formatação do conhecimento jurídico.

Portanto, a integração entre os povos deve ser através de normas jurídicas que tangenciam fronteiras, que não seja somente através de uma realidade formal, mas antes voltado para o ser humano destinatário daquelas normas.

Deve-se retirar qualquer véu interpretativo dos conceitos jurídicos, não excluindo a tradição, mas revisitando a possibilidade de mudança de paradigmas, os horizontes cognitivos não devem excluir o sol, mas antes buscar nessa linha descobertas, que possam significar conquistas ao ser humano.

O compromisso histórico compõe um componente primordial para a compreensão daquele signo, portanto, o significante e significado busca inicialmente como foi desenvolvido determinado conceito jurídico, seja por uma tradição no direito romano, ou anglo-saxónica, ou mesmo em países com tradições orientais.

Observa-se que o diálogo conceitual entre os povos acerca de determinada norma jurídica deve lançar um olhar que permita a dogmática jurídica estar preparada para os desafios do século XXI.

A interdisciplinaridade também compõe uma marca interpretativa da semiótica, contudo o caminho para o resultado pode ser reforçado com outros elementos científicos, mas o seu delineamento deve ser a dignidade da pessoa humana, dessa forma não seria o signo somente um elemento de apoio científico, mas o protagonista para o resultado humano normativo.

Dessa forma, a semiótica transcende um significado formal normativo, mas acrescenta a compreensão de mundo, tanto no ambiente natural, como também, o ser humano na sua vida social e de que forma subjetiva se desenvolveram essas normas em análise comparativa, de tal maneira que os direitos humanos possam ser o discurso legislativo a ser seguido.

O aspecto humano do direito torna o interprete mais autoconsciente dessa delimitação, envolve, portanto, não só a cultura formativa do direito, mas um liame entre a norma e o homem, verdadeiro titular desse direito, com essa função integrativa cognitiva.

A humanização do direito permite que seja ultrapassado o conteúdo vernacular da norma, mas também impõe limites à interdisciplinaridade que desconsidere o ser humano com titular desse direito, portanto, se estabelece o verdadeiro significado normativo.

Portanto, a superação do positivismo, que não esteja enraizada a insegurança jurídica, deve conceber o mundo cosmopolita com uma visão humana do direito e a entre comparação do direito, o melhor aproveitamento exige uma visão conscienciosa humana do acúmulo do conhecimento entre os povos e o melhor aproveitamento em benefício de todos.

Com essa compreensão humana do direito, os processos globais de integração entre as pessoas permitirá o desenvolvimento e a aproximação conceitual dos limites do significado jurídico, a identidade de desafios comuns entre os povos, portanto, a construção de elementos de conexão comuns como grande desafio delimitador das fronteiras dialogais com os conhecimentos normativos produzidos pelo homem.


[1] Termo utilizado por Roman Jakobson, Linguística e Comunicação.  Cultrix, São Paulo, 1970, p. 63.

[2] Santo Agostinho. “De Magistro”. RM, 11, 4ª Edição, pp. 305 e ss.

[3] Cf. Ludwig Wittgenstein.  Tractatus Lógico-Philosophicus. Biblioteca Universitária – Série – Filosofia, Vl. 10. Tradução e Apresentação de José Arthur Giannotti. Companhia Editora Nacional – Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1961, p. 62.

[4] Wittgenstein esclarece:“A expressão é tudo que, sendo essencial para o sentido da proposição podem ter em comum entre si.” Tractatus…, p. 65.

[5] Vide Umberto Eco, Los limites de La Interpretación…., pp. 24/25.

[6] Cf. Umberto Eco, Los limites de La Interpretación…, p. 25.

[7] A cultura não é só comunicação e significação, mas em uma análise mais ampla poderia entendê-la melhor através da semiótica.

[8] Cf. Umberto Eco. Los limites de La Interpretación….p. 52.

[9] Umberto Eco distingue a interpretação semântica ou semiósica e interpretação semiótica:

“La interpretación semântica o semiósicaeselresutadodel processo por elcual destinatário, ante lamanifesción lineal del texto, lallena de significado.  La interpretacióncrítica o simiótica es, en cambio, aquella por la que se intenta explicar por quérazonesestructuralesel texto puedeproducir essas (u otras, alternativas) interpretaciones semânticas.”

Los limites de laInterpretacion. Umberto Eco. GruppoEditorialeFalbi, Bompiciani: Milán, 1990.

[10] TIPKE, Klaus. Moral. Mora Tributaria del Estado y de loscontribuyentes (BesteuerungsmoralundSteuermoral).  Tradução Pedro M. Herrera Molina.  Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S. A.: Madri e Barcelona: 2002, pp. 25 e ss.

[11] TIPKE, Klaus.  Moral Tributaria do Estado….., p. 30.


Fabio Luiz Gomes. Doutor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca. Mestre em  Ciências Jurídica-Comparatísticas pela Faculdade de Direito pela Universidade de Coimbra.

Mercado de crédito privado: financiando o crescimento do agronegócio brasileiro

Leandro Oliveira Leite

O ano de 2023 ficou marcado pelo notável crescimento e avanço do setor agrícola brasileiro, destacando sua robustez e importância para a economia nacional. Em meio aos desafios enfrentados, os resultados expressivos na balança comercial evidenciaram o papel fundamental desempenhado pelo agronegócio, representando 49% da receita cambial do Brasil, com mais de US$166 milhões em exportações.

Um dos principais impulsionadores desse crescimento foi o recorde na safra nacional de cereais, fibras e oleaginosas, que alcançou um volume impressionante de 319,8 milhões de toneladas durante o período de 2022/2023. Essa produção em larga escala não apenas fortaleceu a segurança alimentar do país, mas também contribuiu significativamente para o abastecimento global de alimentos.

Além disso, o setor de proteínas animais apresentou um desempenho sólido, com aumentos na produção de carne bovina, de frango e suína nos nove primeiros meses de 2023 em comparação com o ano anterior. Esses números refletem a eficiência e a competitividade do setor pecuário brasileiro, que continua a expandir sua presença nos mercados nacional e internacional, contribuindo para a balança comercial do país.

O Crescimento do Mercado de Títulos de Crédito Privado no Agronegócio

Diante desse contexto favorável, é importante analisar o papel crescente do mercado de títulos de crédito privado no financiamento do agronegócio brasileiro. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), esse mercado tem experimentado um crescimento significativo nos últimos anos, representando uma alternativa importante para o financiamento do setor.

Os títulos de crédito privado permitem que produtores rurais e empresas do agronegócio acessem recursos financeiros de forma ágil e eficiente, especialmente em um cenário em que os recursos oficiais subsidiados do crédito rural estão se tornando mais seletivos e direcionados. Isso contribui para o desenvolvimento e a expansão das atividades agrícolas e agroindustriais, promovendo o crescimento econômico e a geração de empregos e renda no país.

Tabela 1. Valor do Estoque de títulos e Patrimônio dos Fiagro

Fonte: B3, CERC, CRDC, CVM e Anbima

Elaboração: Boletim de Finanças Privadas do Agro[1] (jan/2024) do MAPA/SPA/DEFIN/CGMF

Segundo dados do Boletim de Finanças Privadas do Agro de janeiro de 2024, os principais instrumentos de captação privada de recursos para o financiamento das cadeias produtivas do agronegócio (CPR[2], LCA[3], CDCA[4], CRA[5] e Fiagro[6]) vêm tendo bons e significativos desempenhos nos últimos anos, movimentando ao todo quase R$ 1 trilhão.

Regulação e Atuação governamental

O Banco Central e o Ministério da Agricultura desempenham papéis fundamentais na garantia da estabilidade e do desenvolvimento do mercado de títulos de crédito privado no agronegócio brasileiro. O Banco Central atua como regulador e supervisor do sistema financeiro nacional, estabelecendo normas e diretrizes para as operações financeiras, incluindo as relacionadas ao mercado de capitais e aos títulos de crédito privado. Já o Ministério da Agricultura formula e implementa políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do agronegócio, promovendo programas e incentivos que estimulam investimentos no setor.

Benefícios e Atrativos dos Títulos de Crédito Privado

Uma das vantagens dos títulos de crédito privado é a diversificação de fontes de financiamento que proporcionam, reduzindo a dependência do crédito rural oficial e permitindo uma alocação mais eficiente de recursos. Além disso, esses títulos oferecem flexibilidade em termos de prazos, taxas de juros e garantias, permitindo que os produtores escolham a modalidade de financiamento mais adequada às suas necessidades e características específicas de cada projeto ou atividade agrícola.

A participação crescente das Agtechs[7] e AgFintechs[8] tem impulsionado ainda mais o mercado de títulos de crédito privado, oferecendo soluções inovadoras e tecnológicas para o setor agrícola. Essas empresas facilitam o acesso ao crédito e otimizam os processos relacionados ao financiamento no campo, contribuindo para a modernização e a competitividade do agronegócio brasileiro.

Perspectivas Futuras

Diante do cenário promissor, é fundamental que as políticas públicas e regulatórias acompanhem o crescimento do mercado de títulos de crédito privado, criando um ambiente propício ao seu desenvolvimento. Regulações claras e incentivos adequados são essenciais para garantir a sustentabilidade e a segurança das operações de financiamento no agronegócio, promovendo assim o crescimento econômico e a competitividade do setor.

Em suma, o mercado de títulos de crédito privado tem se consolidado como uma importante fonte de financiamento para o agronegócio brasileiro, contribuindo para o fortalecimento e a expansão das atividades agrícolas e agroindustriais. Com sua crescente relevância e potencial de crescimento, esse mercado desempenha um papel fundamental no apoio ao desenvolvimento econômico e social do país.


[1] O Boletim de Finanças Privadas do Agro, com publicação mensal, é desenvolvido pela Coordenação-Geral de Instrumentos de Mercado e Financiamento, do Departamento de Política de Financiamento ao Setor Agropecuário, da Secretaria de Política Agrícola, do Ministério da Agricultura e Pecuária.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/boletim-de-financas-privadas-do-agro acesso em 19/02/2024.

[2] Cédula de produtor rural

[3] Letra de Crédito do Agronegócio

[4] Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio

[5] Certificados de Recebíveis do Agronegócio

[6] Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais

[7] AgTechs, ou Agricultural Technologies, são empresas que utilizam tecnologia para desenvolver soluções inovadoras no setor agrícola, combinando conhecimentos em agricultura, Ciência de dados, Inteligência Artificial (IA) e Internet das Coisas (IoT) para melhorar a eficiência, a produtividade e a sustentabilidade nas atividades agropecuárias

[8] Agfintech é um termo que representa a convergência entre a agricultura e a tecnologia financeira (fintech). Essa combinação busca aplicar soluções financeiras inovadoras e tecnologicamente avançadas para atender às necessidades do setor agrícola

Opções Reais e o Novo Modelo de Compartilhamento de Riscos da ANTT

Reflexões sobre o Leilão Vazio da BR 381/MG

Katia Rocha

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes anunciaram, recentemente, a perspectiva de realização de 13 novos leilões de concessões rodoviárias para 2024, perfazendo um total de R$ 110 bilhões em investimentos, valor em linha ao previsto no Novo PAC para novas concessões e concessões existentes, com capital privado.

A iniciativa tem o desafio de aumentar os investimentos no setor, conhecido por ensejar uma considerável lacuna de investimentos da ordem de 1,8% PIB ano, praticamente a metade da lacuna total de infraestrutura do país.

Faz parte de uma agenda maior para integração das estradas do país num sistema de transporte multimodal abrangente (que inclui os eixos ferroviários, hidroviários, portuários) de forma a melhorar a infraestrutura logística e aumentar a nossa produtividade e competitividade global.

A ANTT administra atualmente 24 concessões de rodovias, totalizando aproximadamente 13.000 km. Corresponde a apenas 13% da malha rodoviária federal total. Desse total, praticamente um terço apresenta, há tempos, problemas relacionados a obras paradas, processos de devolução ou relicitação[1].

É fato que o setor de transportes, enseja, em diversos países, um grande número de incidências em renegociações de contratos. Entre as melhores práticas internacionais para mitigação desse problema, a necessidade de uma matriz de alocação de riscos previsível e eficiente é fundamental, sendo, inclusive, parte das recomendações estruturais para Governança da Infraestrutura da OCDE.

Outras iniciativas contemplam: i) avanços na qualidade regulatória e no ambiente institucional; ii) melhor estruturação e modelagem dos projetos; iii) leilões de maior outorga ou híbridos em contraposição aos de menor tarifa; iv) indicadores de performance e regulação por incentivos; v) incentivos a concorrência e leilões competitivos; vi) arcabouço regulatório previsto em lei; vii) efetividade de governança, segurança jurídica, controle e responsabilidade; e viii) concessões de menor porte/trechos[2].

 No Brasil, inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco tem sido reportado como determinante de diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.  

Como forma de tratar essa questão, a ANTT aprovou, ao final de 2023, o relatório final de encerramento da Audiência Pública nº 013/2022, cujo objetivo foi destinado a aprimoramentos regulatórios no que tange ao novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT, a ser aplicada nos Contratos da 5ª Etapa de Concessão de Rodovias Federais.

Diversas estruturas de compartilhamento de riscos entre Poder Concedente e concessionária foram endereçadas na proposta. Relacionam-se às receitas e aos custos da concessão e abrangem o risco de demanda (tráfego), risco geológico, licenciamento ambiental, desapropriação e desocupação, custo de insumos e risco cambial. A possibilidade de compartilhamento foi vinculada à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária.

Regra geral, o racional tratou de diminuir as incertezas dos fluxos de caixa da concessão, com estabelecimentos de determinados intervalos ou bandas em torno das receitas requeridas esperadas (função da demanda pelo tráfego) ou regras para variações nos custos projetados em decorrência de riscos geológicos, desapropriações etc; no decorrer da vida útil do contrato.

Realizações dentro do intervalo dessa banda (em torno de 15% da receita esperada) são alocados exclusivamente à concessionária, e, fora deste intervalo, ou nos demais casos de riscos que afetam os custos do investimento, seriam alocados ou compartilhados com o Poder Concedente, em determinado montante, a depender do tipo específico e momento de ocorrência (como exemplo a alocação dos riscos geológicos ao Poder Concedente nos primeiros 2 anos da concessão, entre outros).

Dessa forma, o aprimoramento regulatório introduziu uma espécie de seguro (hedge) no contrato de concessão, no que tange às variáveis críticas incertas. Abordou, igualmente, a questão de incentivos e alinhamento do contrato, no sentido que o acesso ao seguro é condicional à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos pela concessionária (90% do Capex).

O conceito de estruturas de compartilhamento de risco para viabilizar decisões de investimento tem relação direta com os preceitos da Teoria das Opções Reais[3]. São modelos baseados no apreçamento de derivativos financeiros[4], aplicados a investimentos em ativos reais, como as concessões. Descrevem o comportamento do agente (investidor) na sua decisão de investimento e participação no certame, sob condições de incerteza. Ajudam o formulador de política pública no sentido de desenhar os incentivos adequados para maximizar e alinhar os objetivos pretendidos.

Tais modelos estabelecem uma relação (não-linear) entre a decisão de investimento (participação no certame e exercício da opção mediante desembolso do Capex/strike price) e as diversas incertezas embutidas nos fluxos de caixa da concessão (tráfego, risco geológico, desapropriação, etc).

Identifica critérios ótimos de decisão como a “cunha de investimento” (relação entre as receitas e os custos do investimento) a partir da qual deve-se prosseguir com o investimento. Nesses modelos, regras baseadas nas métricas de Valor Presente Líquido (VPL) ligeiramente positivos são inadequadas e insuficientes. É comum em diversos casos práticos, a “cunha de investimento” ser da ordem de 2, 3 ou mais para que o investimento se viabilize[5].

Uma concessão com custos de investimentos e obras estimados em R$ 10 Bilhões – a exemplo da BR 381/MG – pode muito bem requerer montantes de receitas bem superiores a esse valor para tornar a concessão atrativa e viável, a depender das incertezas existentes. De fato, mesmo com previsão de receitas tarifárias, da ordem de R$ 22 Bilhões[6] – “cunha de investimento” de 2,2 – o leilão da BR 381/MG em novembro de 2023 foi frustrado e não encontrou interessados. Foi dessa forma adiado e sujeito a reavaliações.

É possível que uma “cunha de investimento” maior fosse necessária. Há que se calcular. Os modelos existentes de opções reais são excelentes candidatos para se estabelecer este valor, sendo igualmente úteis para a análise de eventuais desenhos complementares de compartilhamento de riscos, e, para a própria análise de impacto regulatório (AIR).

Quanto maior a incerteza, seja nas receitas (demanda por tráfego), quanto nos custos de investimentos (risco geológico, desapropriação, etc) maior a “cunha de investimento” exigida[7]. Dessa forma, alocações de riscos que diminuam as incertezas (volatilidade) dos fluxos de caixa da concessão, seja através do estabelecimento de bandas de receita (ou tráfego), ou de estruturas de riscos que afetam os custos do investimento (compartilhamento de riscos geológicos etc), diminuem efetivamente essa “cunha”, e aumentam a atratividade da concessão.

Importante ressaltar que enquanto tais estruturas de compartilhamento de risco possibilitam maior atratividade (melhor relação de risco x retorno) para a concessão, possibilitando, inclusive, potencial de maiores deságios tarifários, implicam, igualmente, num aumento da distribuição do custo percebido pelo Poder Concedente, em igual montante ao seguro oferecido. Essa questão é levantada no Acórdão TCU 1142/2023, e será objeto de coluna posterior.

Em termos gerais, o desafio do formulador de políticas públicas consiste, portanto, em viabilizar concessões não atrativas ao menor custo possível desse seguro, tendo em conta todas externalidades positivas geradas pelo investimento, seja em termos do bem estar do usuário final, mas também, em termos de aumentos na produtividade, competitividade e desenvolvimento econômico.

Concluindo, o aperfeiçoamento regulatório apresentado pela ANTT é mais que meritório e endereça recomendações estruturais já debatidas na academia e nas melhores práticas internacionais, com efeitos positivos sobre o programa de novos leilões de concessões e sobre toda a agenda da infraestrutura logística do país, com vistas a aumentar a nossa produtividade, competitividade, crescimento econômico e social.


[1] Cabe menção aos contratos da terceira etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016

[2] Enquanto a média de trechos concedidos em leilões nos últimos 5 anos no Brasil foi de 410 km com 1 a 2 grupos participantes nos certames, na Colômbia essa média foi de 220 km com participação de 3 a 4 grupos nos certames. Ver detalhes em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi

[3] Ver Trigeorgis (1996).

[4] Ver Black e Scholes (1973) e Merton (1973).

[5] Ver Dixit and Pindyck (1994).

[6] Ver Acordão TCU 1142/2023.

[7] A lógica é similar ao efeito da volatilidade em uma opção (grega vega).


Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.