A Urgente Necessidade de Regulamentação da Lei 14.758/2023: Garantindo a Efetividade na Prevenção e Controle do Câncer

Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

A Lei 14.758, publicada em 20 de dezembro de 2023, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. Com um período de “vacatio legis” de 180 dias, esperava-se que a regulamentação da lei ocorresse até junho de 2024. No entanto, já se passaram 223 dias e ainda não há regulamentação efetiva por parte do Ministério da Saúde. Esse atraso compromete a implementação das políticas previstas e a garantia de atendimento adequado aos pacientes oncológicos no Brasil. Este artigo destaca os principais pontos da Lei 14.758 que necessitam de imediata regulamentação e a importância de flexibilidade na adaptação das normativas conforme as realidades locais.

  1. Da definição de critérios e procedimentos para otimizar a navegação dos pacientes

A “navegação do paciente” refere-se a um sistema de acompanhamento personalizado para pacientes com doenças complexas, como o câncer, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico, tratamento e cuidados contínuos. O conceito foi desenvolvido para ajudar os pacientes a superarem as barreiras que dificultam a obtenção de cuidados médicos adequados e oportunos. Envolve a coordenação entre diferentes profissionais e serviços de saúde para garantir que o paciente receba cuidados contínuos e integrados. Isso pode incluir a organização de consultas com especialistas, a coordenação de tratamentos em diferentes locais e a comunicação entre os diferentes membros da equipe de saúde.

A regulamentação deve definir os critérios de seleção e capacitação dos navegadores de saúde[1], suas atribuições e responsabilidades, incluindo o acompanhamento do paciente desde o diagnóstico até o término do tratamento, além dos mecanismos de monitoramento e avaliação do programa para garantir sua eficiência e eficácia.

A ideia é de que os navegadores ajudem os pacientes a superarem barreiras que podem incluir dificuldades financeiras, problemas de transporte, falta de informação sobre a doença e o tratamento, barreiras linguísticas e culturais e obstáculos administrativos. Nesse sentido, sua ação envolve o fornecimento de informações sobre a doença, opções de tratamento e recursos de apoio disponíveis, ajudando os pacientes a tomarem decisões informadas sobre seu cuidado. Também cabe aos navegadores a oferta de suporte emocional e prático para ajudar os pacientes a lidarem com o impacto da doença.

Além disso, é papel dos navegadores o monitoramento do progresso do paciente ao longo do tratamento e a avaliação da eficácia do plano de cuidados, de modo a permitir a realização de ajustes conforme necessário. Essa atividade está centrada, portanto, na coleta de dados para identificar áreas de melhoria e garantir que o paciente esteja recebendo o melhor atendimento possível.

A navegação do paciente é uma abordagem essencial para melhorar a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde para pacientes com câncer. Ao fornecer suporte personalizado, superar barreiras, coordenar cuidados e monitorar o progresso, os navegadores de saúde ajudam a garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado de maneira oportuna e eficaz. A implementação de um programa robusto de navegação do paciente, conforme previsto pela Lei 14.758/2023, é fundamental para alcançar os objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e melhorar a qualidade de vida dos pacientes oncológicos no Brasil.

Exemplos de Navegação do Paciente em Oncologia

Diagnóstico Rápido e Tratamento Inicial

Um paciente diagnosticado com câncer de mama pode ser designado a um navegador de saúde que ajuda a agendar rapidamente consultas com oncologistas, exames de imagem e biópsias. O navegador também pode ajudar o paciente a entender os resultados dos exames e discutir opções de tratamento.

Acesso a Tratamentos Especializados

Um paciente em uma área rural pode enfrentar dificuldades para acessar tratamentos especializados. O navegador pode organizar transporte para o paciente até um centro oncológico regional, coordenar consultas com especialistas e facilitar o uso de telemedicina para consultas de acompanhamento.

Suporte durante o Tratamento

Durante a quimioterapia, o navegador pode ajudar o paciente a gerenciar os efeitos colaterais, pode fornecer informações sobre nutrição e cuidados de suporte e mesmo organizar serviços de apoio, como aconselhamento psicológico ou grupos de apoio.

Transição para Cuidados Pós-Tratamento

Após o tratamento, o navegador pode ajudar o paciente a fazer a transição para os cuidados de sobrevivência, coordenando consultas de acompanhamento, exames regulares de monitoramento e programas de reabilitação.

  • Das fontes de financiamento

A implementação efetiva da Lei 14.758/2023 depende de um financiamento robusto e sustentável. A regulamentação das fontes de financiamento é crucial para garantir que os recursos necessários estejam disponíveis e sejam utilizados de forma eficiente e equitativa. A falta de clareza e transparência sobre as fontes de financiamento pode levar a desigualdades na distribuição de recursos, comprometendo a efetividade das políticas de prevenção e controle do câncer.

A regulamentação deve definir claramente as fontes de financiamento, que podem incluir orçamento federal, estadual e municipal, além de parcerias com a iniciativa privada e organizações não-governamentais. Isso assegura que todas as partes interessadas estejam cientes de suas responsabilidades e compromissos financeiros.

A regulamentação deve ainda estabelecer critérios claros e justos para a distribuição dos recursos financeiros. Isso pode incluir a avaliação das necessidades locais, considerando fatores como a incidência de câncer, a infraestrutura de saúde existente, a disponibilidade de profissionais qualificados e a capacidade de implementação das políticas.

Por exemplo, municípios com alta incidência de câncer e infraestrutura limitada devem receber mais recursos para desenvolver suas capacidades. Em contraste, grandes centros urbanos com recursos adequados podem focar em programas de inovação e aprimoramento da qualidade dos cuidados.

Importante destacar também a necessidade de a regulamentação incluir mecanismos de monitoramento e transparência para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficaz e ética. Isso pode envolver auditorias regulares, relatórios públicos sobre a alocação e uso dos recursos, e a participação da sociedade civil no monitoramento das políticas de financiamento.

Uma via interessante seria estimular parcerias com o setor privado para complementar o financiamento público, trazendo investimentos adicionais e inovações tecnológicas para o sistema de saúde. Empresas farmacêuticas, por exemplo, podem colaborar em programas de acesso expandido a medicamentos oncológicos, enquanto organizações não-governamentais podem oferecer apoio logístico e educacional.

  • Dos protocolos clínicos

A uniformização dos tratamentos oncológicos é crucial para garantir a qualidade do atendimento. A regulamentação deve definir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas baseadas em evidências científicas e estabelecer a obrigatoriedade da adoção desses protocolos por todas as unidades de saúde, públicas e privadas.

Além de garantir a qualidade, a adoção de protocolos clínicos facilita o atendimento de pacientes que, eventualmente, precisem se deslocar para municípios diferentes daqueles nos quais iniciaram seu tratamento.

Vale lembrar também que, para garantir a qualidade do atendimento, é fundamental investir na formação continuada dos profissionais de saúde. A regulamentação deve estabelecer programas de capacitação em oncologia para médicos, enfermeiros e demais profissionais envolvidos no cuidado dos pacientes, além de promover parcerias com universidades e instituições de ensino para o desenvolvimento de cursos e treinamentos especializados.

É preciso ainda buscar a estruturação de uma rede de assistência oncológica integrada e eficiente, abrangendo a definição de centros de referência em oncologia, garantindo acesso a tratamentos especializados, e a criação de mecanismos de regulação e encaminhamento de pacientes, evitando longas filas de espera e deslocamentos desnecessários.

  • Da necessária adaptação da política à diversidade regional e local

A diversidade regional do Brasil exige que a regulamentação da Lei 14.758/2023 seja flexível o suficiente para se adaptar às diferentes realidades locais. Municípios e estados possuem diferentes níveis de infraestrutura e disponibilidade de profissionais de saúde. A regulamentação deve permitir que cada local adapte as normativas conforme suas capacidades, garantindo a implementação eficiente da política em todo o território nacional.

Estimular parcerias entre governos locais, instituições de ensino, organizações não-governamentais e a iniciativa privada pode acelerar a implementação das políticas e melhorar a qualidade do atendimento. Incentivar o uso de tecnologias, como telemedicina e sistemas de informação em saúde, é fundamental para superar barreiras geográficas e otimizar o atendimento aos pacientes oncológicos.

A diversidade do sistema de saúde brasileiro torna imperativo que a regulamentação seja adaptável às necessidades e capacidades locais. Por exemplo, em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a infraestrutura de saúde é mais desenvolvida, com a presença de diversos hospitais especializados em oncologia, tecnologias avançadas e uma quantidade significativa de profissionais qualificados. Nesse contexto, a implementação dos programas previstos pela lei pode ser mais rápida e abrangente.

Por outro lado, em municípios menores e regiões mais remotas, como no interior do Amazonas ou no sertão nordestino, a realidade é bem diferente. A escassez de profissionais de saúde especializados, equipamentos médicos adequados e infraestrutura hospitalar torna a implementação da política de prevenção e controle do câncer um desafio muito maior. Nesses locais, a regulamentação deve permitir adaptações, como a utilização de telemedicina para consultas e acompanhamento de pacientes, parcerias com hospitais regionais para o encaminhamento de casos mais complexos e programas de capacitação específicos para profissionais de saúde locais.

Nos casos concretos em que existem dificuldades logísticas e de infraestrutura para oferecer tratamento oncológico adequado, a regulamentação flexível permitiria a criação de um sistema de navegação que integrasse a telemedicina para consultas iniciais e de acompanhamento, além de prever a realização de mutirões de saúde periódicos com equipes médicas especializadas que se deslocariam até a região para atendimento presencial e capacitação dos profissionais locais.

Outro aspecto crítico que necessita de regulamentação é a questão da oferta desigual de medicamentos oncológicos entre os diversos estados e municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo os medicamentos que já foram incorporados há anos ao sistema público não estão disponíveis de maneira uniforme em todo o país. Essa desigualdade no fornecimento compromete significativamente o tratamento de pacientes oncológicos, criando uma disparidade no acesso a terapias essenciais.

Por exemplo, medicamentos como o trastuzumabe, usado no tratamento do câncer de mama HER2 positivo, e o imatinibe, utilizado para tratar leucemias e tumores gastrointestinais, são amplamente reconhecidos e incorporados ao SUS. Contudo, pacientes em estados do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam dificuldades para acessar esses medicamentos, diferentemente de pacientes em estados do Sudeste e Sul, onde a disponibilidade é mais regular.

A regulamentação precisa estabelecer mecanismos para garantir a distribuição equitativa de medicamentos oncológicos em todas as regiões do país. Isso pode incluir a criação de um sistema centralizado de gestão de estoques e distribuição, que leve em consideração as necessidades específicas de cada localidade, e a implementação de políticas que assegurem o reabastecimento constante dos medicamentos essenciais, evitando interrupções no tratamento. Experiências internacionais bem-sucedidas podem servir de referência e permitir a economia de tempo e de recursos na implementação das medidas necessárias.

Conclusão

A regulamentação da Lei 14.758/2023 é urgente para garantir a efetividade da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. A definição clara das diretrizes de implementação, financiamento, protocolos clínicos, capacitação de profissionais e garantia de distribuição equitativa de medicamentos é essencial para que os pacientes oncológicos recebam o atendimento adequado e oportuno.

Além disso, a flexibilidade na regulamentação permitirá a adaptação das políticas às diferentes realidades locais, promovendo equidade no acesso aos serviços de saúde em todo o Brasil. É imperativo que o Ministério da Saúde agilize esse processo para garantir a plena implementação da lei e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos no País.


[1] Os navegadores de saúde, que podem ser profissionais da área médica, enfermeiros ou assistentes sociais, são designados para cada paciente para oferecer suporte contínuo. Eles ajudam a coordenar consultas, exames, tratamentos e outras necessidades do paciente ao longo do percurso de cuidado.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Por que os juros altos são uma desgraça?

Marco Aurélio Bittencourt

Antes de tudo, é necessário definir o que são juros altos e como os juros nominais são estimados pelos agentes econômicos. Apelo para a equação de Fisher: taxa de juros nominal = taxa de juros real + inflação esperada,  . Você pode olhar essa equação da seguinte forma: você tem 100 reais hoje e sabe que pode comprar 10 pães. Aí você empresta esses 10 pães, ou se estiver no mundo nominal, a uma taxa de juros nominal, , por 5% ao período (qualquer período, mas temos que escolher um para que taxa e período sejam compatíveis. Escolho ano). Espero ganhar ½ pão ou 5 reais de juros mais o capital que investi. O que pode atrapalhar minha conta? A inflação esperada,  . Eu tenho que chutar uma . Chuto zero, porque a coisa no Brasil está preta, ou seja, não espero crescimento e assim todo mundo tem problema, inclusive os empresários que não se arriscam a aumentar o preço (o engraçado é que estamos vendo as embalagens dos produtos encolherem ou pesarem menos. Gosto do Chicabom. Hoje pago o mesmo preço, mas o picolé é a metade). Então a minha taxa de juros nominais,  coincide com a taxa de juros de real, . O que isso significa? Que posso voltar ao mercado e comprar meus dez pães e mais meio pão; o que era o que esperava. Foi o quanto quis ganhar por emprestar meus 100 reais.

Mas onde está o problema? Está na expectativa da inflação. Se o preço do pão mudar (para cima, inflação e para baixo, deflação) posso perder. Suponha que a inflação seja de 6%. Como ganhei 5 reais, tenho em caixa 105 reais. Mas vou agora comprar o pão por (1+0,06) *10= 10,6. Quantos pães agora posso comprar? Posso comprar 9,90 pães (105/10,6). O que aconteceu? Eu errei na previsão da inflação. Eu chutei que era zero, mas foi de 6%. Fiquei mais pobre, porque agora, além de retardar meu consumo, tenho uma quantidade de pães menor do que tinha antes de emprestar minha grana. Em termos de fórmulas: a minha taxa de juros nominal tem que corresponder a uma taxa de juros real mais uma expectativa de inflação. Se eu tivesse acertado, teria cobrado acertadamente  Teria um ganho bruto de (1+0,11) *100=111 e assim poderia comprar 111/10,6 = 10,47 pães. (não dá exatamente 5 pães a mais, por conta de aproximações que fiz com a fórmula).

Quais as implicações da nossa brincadeira. Primeiro, a taxa de juros real eu chutei. Vale lembrar que é uma variável não observável, mas pode ser inferida com pouca precisão, é certo. Por que pode ser aferida? Por conta da arbitragem planetária. Se alguém ganha acima do que os demais estão ganhando, há uma corrida em direção ao mercado lucrativo, fazendo com que a arbitragem produza seu efeito: os ganhos seriam iguais e assim uma taxa de juros real ficaria de fato inabalada. A razão da corrida? Chame do que você quiser. De inveja, de cobiça, seja lá o que você quiser chamar, mas a razão econômica é simples: se deixar passar a oportunidade, sou engolido pelo sistema capitalista. Então se alguém ganha acima dos demais, a turma vai ao mercado ganhador e investe aos montes até que a rentabilidade extra desapareça e a taxa de juros reais prevaleça em todos os negócios. Essa taxa de juros real pode ser mascarada por outra razão. A nossa segunda observação. Se há incerteza na economia, a taxa de juros real pode ser encoberta por esse fenômeno, de tal forma que tenho que calibrar mais minha taxa de juros nominal, supondo que as expectativas inflacionarias sejam conhecidas e dadas. Então se soma a incerteza à inflação esperada.

No caso do Brasil, nossas taxas de juros nominais são altas por conta da expectativa inflacionaria que é ajustada pelo Banco Central pelo cenário econômico no visor de sua tela prospectiva. Então, calibra-se a taxa de juros básica, na crença de que se ajustando essa taxa, as demais caminhariam em linha, com a esperança de que o deslocamento de todo o feixe de juros seja coerente com a taxa básica. Como provavelmente a calibração não está correta, a taxa de juros real da fórmula de Fisher é estimada de forma exagerada. O que faz a turma de empresários que precisam investir no seu próprio negócio? Vão comparar o que ganham investindo no seu negócio (a taxa de juros real que eles conhecem que está abaixo da que o Banco Central faz a turma crer que seja a verdadeira) com o ganho investindo no mercado financeiro. Se seu negócio é menos atrativo do que o financeiro, retardam o investimento no seu negócio. Como podem fazer isso? Usando as máquinas e os seus equipamentos por um tempo maior do que outra forma o fariam. Mas certamente seus custos vão aumentar e perderão competitividade. Como resolvem o problema? Alguém tem que ajudar essa turma tupiniquim, para não serem engolidos pela arbitragem planetária. Se ficam por muito tempo no mercado financeiro, de duas uma: ou os juros sobem mais ainda para compensar seus custos elevados ou alguma proteção explicita do governo está a postos (Estado, se a proteção é duradoura, ou seja, a proteção estaria incorporada ao modelo). A redução de custos vai ocorrer de forma exógena ao negócio – por redução salarial, modificação no câmbio, incentivo fiscal, etc. A consequência disso pode ser uma armadilha da qual não conseguimos nos libertar. Esse padrão é autofágico e em algum momento ele terá que ser corrigido e, pelo rastro histórico, continuará tudo como dantes, mas piorando para a turma do andar debaixo cada vez mais. Contudo, fácil ver a saída econômica. Só que o problema é político! Está tudo bem para os de sempre, não importa quem pague a conta.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


STF reconhece constitucionalidade da atual redação do art. 289 da Lei das S/A

Dispositivo consagra sistema híbrido de publicação: resumo em jornal físico e íntegra na internet

André Santa Cruz

Amanda Mesquita Souto

Bruno Camargo Silva

A Lei 13.818/2019 alterou a redação do art. 289 da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações – LSA), que trata das publicações das sociedades anônimas. Desde 1º de janeiro de 2022, data da entrada em vigor dessa lei, houve (i) a exclusão da publicação em Diários Oficiais e (ii) a simplificação da publicação em jornais de grande circulação (resumo na versão física e íntegra na versão eletrônica).

Essa mudança teve o objetivo de desburocratizar as publicações das sociedades anônimas, reduzindo o seu custo, mas nunca foi intenção do legislador suprimir a necessidade de publicação em jornal físico: a ideia foi simplificar tal publicação, que passou a ser resumida, mas acompanhada de outra publicação integral, esta em versão eletrônica.

Sempre defendemos que a Lei 13.818/2019 não eliminou a necessidade de publicações em jornais impressos. O que a lei criou foi um mecanismo de simplificação, redução de custos e aumento da transparência, por meio da combinação de uma publicação em meio impresso (versão resumida) com uma publicação em meio eletrônico (versão integral). Assim se garantiu, de um lado, a almejada redução de custos para as companhias e, de outro lado, a imprescindível difusão da informação para todos os interessados.

Essa interpretação foi a mesma exarada pela Presidência da República e pela Procuradoria Geral da República nos autos da ADIn 7.011, que questionava a constitucionalidade da Lei 13.818/2019.  Em que pese essa ação não ter sido julgada no mérito, visto que a Ministra relatora, Cármen Lúcia, negou seguimento à ação em razão da ilegitimidade ativa da parte autora, verificamos que não houve dúvidas, nas manifestações desses entes, sobre a publicação resumida determinada pela nova redação do art. 289 da LSA ter que ser realizada em jornal impresso.

O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), no Manual de Registro de Sociedade Anônima (Anexo V da IN 81/2020), também consagrou essa interpretação, sempre deixando claro que, quando a LSA menciona “jornal de grande circulação”, está se referindo a um veículo impresso.

Outro argumento que reforça essa interpretação é o seguinte: quando o legislador quis realmente eliminar a necessidade de publicações de sociedades anônimas em meio físico (jornal impresso), ele o fez de maneira muito clara e direta, mas com um recorte bem específico. Referimo-nos à Lei Complementar 182/2021, conhecida como o Marco Legal das Startups, que alterou o art. 294 da LSA, possibilitando que a companhia fechada com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) realize as publicações legais totalmente de forma eletrônica.

Por fim, no dia 4 de julho de 2024, foi publicado o acórdão do STF no julgamento da ADIn 7.194, que julgou improcedente a referida ação para declarar a constitucionalidade do art. 1º da Lei 13.818/2019, que deu a atual redação ao art. 289 da LSA.

No referido julgamento, o STF não apenas reconheceu a constitucionalidade da regra que dispensou as sociedades anônimas de publicarem atos societários e demonstrações financeiras em Diários Oficiais, mas também deixou claro que a correta interpretação da atual redação do art. 289 da LSA é a seguinte: publicação resumida em jornal de grande circulação na sua versão FÍSICA e publicação integral no portal eletrônico do mesmo jornal. A propósito, confira-se o item 2 da ementa do acórdão:

2. No intuito de se disponibilizarem as informações pertinentes às pessoas e entidades interessadas, embora dispensada a publicação em diário oficial, a norma manteve a obrigatoriedade de divulgação dos atos das sociedades anônimas em jornais de ampla circulação, tanto no formato FÍSICO, de forma resumida, quanto no formato eletrônico, na íntegra.

De acordo com o Ministro relator, Dias Toffoli, “a divulgação da íntegra dos atos societários na página da internet de jornais de grande circulação é medida que logra atingir grande número de pessoas interessadas e que se mostra acessível para o fim que se propõe. Ademais, a norma mantém a obrigatoriedade de divulgação dos atos societários na MÍDIA IMPRESSA, o que contempla a parcela da população que não costuma ou não consegue fazer uso de meios eletrônicos de acesso à informação”.

Vale ressaltar que o referido julgamento do STF se deu em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que tem efeito vinculante e erga omnes.

Portanto, sem qualquer espaço para dúvidas, de acordo com a atual redação do art. 289 da LSA, simplificou-se a regra geral de publicidade legal das companhias brasileiras, adotando-se um sistema híbrido de publicação: resumo em jornal de grande circulação FÍSICO e, simultaneamente, íntegra no sítio eletrônico desse mesmo jornal na internet.


André Santa Cruz é advogado, sócio-fundador do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.

Amanda Mesquita Souto é advogada associada no escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e ex-diretora do DREI.

Bruno Camargo Silva é advogado, sócio da Camargo Silva Consultoria. Professor de Direito Empresarial e Processual. Jornalista. Mestrando em Direito pela Universidad Europea Del Atlántico (Espanha). Especialista em Direito Processual pela PUC-MINAS.


A relação entre taxa de juros e inadimplência na análise concorrencial

Cristina Ribas Vargas

O debate sobre os determinantes da taxa de juros continua instigando os economistas modernos. Embora no passado o debate entre Keynes e os economistas clássicos tenha sido considerado esgotado por Hicks, ao afirmar que a taxa de juros era determinada pela oferta e demanda tanto no mercado de moeda quanto no mercado de fundos emprestáveis, a discussão ainda apresentava outros enfoques a serem considerados. A discussão entre Keynes e os clássicos ia além da delimitação dos mercados no qual a taxa era determinada: se no mercado monetário para transações imediatas, ou no mercado financeiro, com vistas a ganhos excedentes futuros. Não se tratava apenas de considerar a mudança do locus de mercado em análise, isto é, se no mercado de transações monetárias imediatas intermediadas por moeda, ou no mercado de aplicações financeiras. O ponto chave da discussão era compreender como a relação entre a produtividade do capital e a propensão a poupar incidiam sobre a taxa de juros. Para os clássicos a determinação da taxa era direta, na medida em que a produtividade do capital e a propensão à poupar determinariam os níveis de investimento e poupança, estabelecendo a taxa de juros de equilíbrio. No entanto, na versão keynesiana, a determinação da taxa de juros seria estabelecida indiretamente pela produtividade do capital e pela propensão a poupar. Neste caso, seriam os níveis de renda e emprego estabelecidos a partir da produtividade do capital e propensão à poupar pré-existentes que determinariam o volume de moeda necessário para as transações econômicas.

A escola pós-keynesiana deu continuidade ao debate, e apresentou novo enfoque acerca da determinação da taxa de juros: Paul Davidson e Jan Kregel buscavam responder se elevações na propensão à poupar induziam a aumentos no nível de investimento. Os autores concluíram que, em geral, a propensão a poupar não teria influência significativa sobre a determinação da taxa de juros. Além disso, o debate ampliou a possibilidade de identificar mais de uma taxa de juros vigorando na economia, e distinguiram a taxa entre taxa de juros de longo prazo e de curto prazo. Neste caso, a influência da propensão à poupar sobre as diferentes taxas produziria resultados diversos. Considerando que a elevação da propensão a poupar poderia incentivar o aumento do nível de investimento e a consequente redução da taxa de juros no longo prazo, dada a relação indireta entre propensão à poupar e taxa de juros, cabe destacar que P. Davidson e J.Kregel argumentam que se o período de investimento for igual aquele em que ocorre o efeito multiplicador da renda, torna-se possível gerar poupança suficiente para liquidar todo empréstimo contraído para financiar o investimento inicial. A esse respeito (Oreiro, 2000:290) destaca:

“Asimakopulos defendeu a tese de que um aumento da propensão a poupar poderia estimular o investimento ao reduzir a taxa de juros de longo prazo. Isso porque um aumento da propensão a poupar facilitaria as operações de funding das dívidas de curto prazo das empresas em obrigações de longo prazo. Davidson e Kregel, por outro lado, argumentaram que as conclusões de Asimakopulos só seriam corretas em condições muito específicas e que, em geral, a propensão a poupar não teria nenhuma influência sobre a estrutura a termo das taxas de juros.”

Desta forma, o debate teórico formulado pelas escolas clássica, keynesiana e pós-keynesiana demonstraram que a determinação da taxa de juros não é tema trivial e esgotado em si mesmo. A continuidade do debate representa a oportunidade para aprofundarmos o estudo sobre a relação entre a taxa de juros e a evolução da inadimplência.

A análise concorrencial por vezes depara-se com o argumento de que não é possível reduzir a taxa de juros cobrada ao consumidor em função do elevado coeficiente de inadimplência vigente no mercado. O gráfico abaixo mostra a evolução da inadimplência para cinco modalidades de recursos de concessão de crédito: Home equity, SFH, Livre, FGTS e Comercial. A inadimplência corresponde ao percentual de operações com ao menos uma parcela vencida acima de 90 dias.

Evolução da inadimplência entre maio de 2014 e maio de 2024.

Fonte: Sistema de Informações de Créditos (SCR)/BCB.

No gráfico a seguir observamos a evolução da taxa SELIC (% a.a.) entre 2014 e 2024. É possível observar comparando os gráficos que embora exista uma tendência de queda no percentual de inadimplência entre maio/2021 e maio/2024, não se observa o mesmo movimento evolutivo no gráfico da evolução da SELIC para o mesmo período.

Evolução da taxa de juros SELIC entre maio de 2014 e maio de 2024.

Fonte: IPEADATA/BCB.

Neste caso, importa observar para a análise concorrencial, que outros fatores além da inadimplência contribuem para a determinação da taxa básica de juros, e que por si só não se pode considera-la como justificativa para restrição da concorrência entre taxas de juros praticadas no mercado por instituições financeiras. Além disso, modelos de determinação da inadimplência que considerem a evolução do efeito multiplicador da renda na determinação da taxa de juros podem ensejar um novo olhar sobre a relação de causalidade entre inadimplência e taxa de juros: enquanto o crescimento da renda facilita a quitação de financiamentos, contribui para a redução da taxa de juros e da própria inadimplência. Assim, é importante ressaltar que a inadimplência apresentada como única justificativa para tendência de rigidez à alta da taxa de juros, pode não ser argumento suficientemente forte para explicar a impossibilidade da redução dos juros praticados no mercado, a depender da conjuntura vigente.

Referências

Banco Central do Brasil – BCB, Efeito da inadimplência nas taxas de juros Estudo Especial nº 12/2018 – Divulgado originalmente como boxe do Relatório de Economia Bancária (2017) – volume 1 | nº 1

Disponível em:  https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/Efeito_inadimplencia_taxas_juros.pdf

OREIRO, José Luís. O Debate entre Keynes e os “Clássicos” sobre os Determinantes da Taxa de Juros: Uma Grande Perda de Tempo?, in Revista de Economia Política, vol. 20, nº 2 (78), pp. 287-311, abril-junho/2000

Disponível em https://www.scielo.br/j/rep/a/fG7jTvBP9GntNktVSF3fP8m/

Banco Central do Brasil – BCB, Estatísticas.Detalhamento gráfico, inadimplência.

Disponível em:

https://cdn-www.bcb.gov.br/estatisticas/detalhamentoGrafico/GraficoImobiliario/credito_estoque_inadimplencia_pf

IPEADATA. Taxa de juros – Selic – fixada pelo Comitê de Política Monetária (Copom).

Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx

Contratos administrativos: a ilusão do Pacta Sunt Servanda (ou como o Estado asfixia o setor privado)

José Américo Azevedo

O brocardo latino pacta sunt servanda, cuja origem remonta à Idade Média, por intermédio do Direito Canônico, pode ser compreendido, em tradução literal, como “os pactos devem ser observados” (Missouri Housing Development v. Brice, 1988), ou “os pactos devem ser respeitados” (Nike Intern. Ltd. v. Athletic Sales, Inc., 1988), ou, ainda, “os pactos devem ser obedecidos” (United States v. Verdugo-Urquidez, 1991)[1].

De toda forma, independentemente do nível de imperatividade do cumprimento do pacto, observa-se que o referido princípio é o ápice da concepção jurídica da autonomia da vontade entre as partes. Nas relações sociais onde são acordadas obrigações mútuas, o instrumento de regulação da intenção das partes é o contrato. Clovis Bevilaqua, no final do século XIX, trouxe importante lição:

Pode-se, portanto, considerar o contracto como um conciliador dos interesses collidentes, como um pacificador dos egoismos em lucta. É certamente esta a primeira e mais elevada funcção social do contracto. E, para avaliar-se de sua importancia, basta dizer que, debaixo deste poncto de vista, o contracto corresponde ao direito, substitue a lei no campo restricto do negocio por elIe regulado.[2]

Mister perceber a importância da função do contrato no trato social. Nesta perspectiva, necessário trazer à lume o conceito de relação sinalagmática. É dizer, o contrato é, em todo o tempo, uma relação bilateral ou plurilateral. E na medida em que se configura na expressão da vontade das partes, pressupõe a existência de direitos e deveres para os seus signatários, simultaneamente e de forma recíproca. Neste sentido, Giselda Hironaka apresenta:

A relação obrigacional é uma relação jurídica que existe sempre entre pessoas determinadas (duas ou mais), da qual pelo menos uma é devedora e a outra credora. Há na relação uma prestação delimitada. Outros deveres de conduta – que estão delimitados e são, de certo modo, secundários – também podem ser exigidos. O dever primário e decisivo, que dá conteúdo e significado à relação obrigacional e determina o caráter típico da mesma é a prestação determinada. A obrigação está dirigida a esta prestação determinada ao devedor, ou à prestação de ambas as partes, o que corresponde, neste caso, ao próprio sinalagma. Quando a prestação é cumprida, ter-se-á alcançado a finalidade da obrigação, restando esta, geralmente, extinta.[3]

Assim, depreende-se que, à medida em que a relação contratual é bilateral – supondo-se entre duas partes –, faz-se necessário o cumprimento obrigacional por ambos os lados. Neste ângulo, se torna inevitável mirar os contratos administrativos, nos quais, em um polo se encontra o cidadão ou a empresa, integrante da sociedade e, em outro, o Estado, tendo como agente a Administração Pública.

Nessa visada, passa-se a observar a desconformidade do poder de negociação e controle contratual entre os dois pactuantes. À Administração cabe definir as regras para a contratação pública, estabelecendo condições desde o procedimento licitatório – se o há –, até a execução do instrumento contratual, em todos os aspectos, restando à outra parte somente acatar as prescrições impostas, sob pena, em caso de recusa, de tombar alijada do processo, portanto, sem a possibilidade de prestar um serviço ao Estado.

Não há, geralmente, qualquer margem para negociação dos termos contratuais, traduzindo-se, na realidade, em contratos de adesão, onde não existe espaço para modificações ou necessários ajustes em benefício da mais adequada prestação dos serviços.

Longe de qualquer intenção polêmica, ilustra-se o enfoque apresentado.

Começa-se explanando acerca do “fato do príncipe” em contratos administrativos. A teoria do fait du prince surgiu na França, em finais do século XIX e início do século XX, pela mão da jurisprudência do Conseil d’Etat, como reconhecimento de uma prerrogativa exorbitante da Administração Pública de alterar as prestações devidas pelo contraente privado.[4]

Segundo Gabriel Brocchi, “é uma referência à notável obra de Maquiavel, ‘O Príncipe’, escrita na Itália renascentista do século XVI, em que se aborda a presença de um Estado forte, sugerindo que as atitudes do governante nos seus domínios são legítimas, para manter-se como autoridade”[5].

Pode-se observar que se apresenta latente o poderio do Governo nas relações contratuais, além de remeter a um período pouco democrático, onde a autoridade estatal era resguardada com a utilização de todos os meios disponíveis, legítimos ou não.

Carvalho Filho traz importante reflexão:

A supremacia do Estado no contrato enseja desde logo uma inevitável consequência. Se o dogma da igualdade das partes impõe a igualdade de condição dos sujeitos do contrato, bem como a inexistência de vantagens em favor de qualquer deles, a predominância estatal provoca o nascimento de uma série de prerrogativas conferidas à Administração. Estas, como é óbvio, refogem ao âmbito do direito privado, ou seja, exorbitam dos limites deste campo. Por isso, a doutrina as tem denominado de cláusulas exorbitantes ou de privilégio.

(…)

O dado fundamental que caracteriza o fato do príncipe reside na sua proveniência: origina-se sempre do próprio Estado, no exercício de atividade lícita. Esse fato oriundo da Administração Pública não se pré-ordena diretamente ao particular contratado. Ao contrário, tem cunho de generalidade, embora reflexamente incida sobre o contrato, ocasionando oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste.[6]

Embora lícito, significativo repisar que o fato do príncipe que “origina-se sempre do próprio Estado” ocasiona “oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste”, desequilibrando a relação contratual.

Outro aspecto de inteira importância é a imposição de previsões sancionatórias unilaterais, em total desacordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Assume-se que a única parte passível de incidir em inadimplência contratual seja o particular, sem que estejam previstas punições para as faltas cometidas pela Administração no deslinde da relação avençada.

Nesta ótica, o agente público utiliza-se da disparidade de poder da relação para submeter o contratado aos rigores máximos, em caso de alguma falta na execução do contrato, sem que sua própria responsabilidade seja aferida e apenada.

Para não navegar somente no campo das teorias e suposições, dá-se um exemplo real, abstendo-se, por óbvio, de nominar os protagonistas, vez que totalmente prescindível.

Em uma autarquia federal, foi contratada a elaboração de um projeto, consistindo nas etapas de projeto básico e projeto executivo. A empresa contratada cometeu atrasos nas entregas dos produtos para análise por parte da contratante. Esta, no entanto, incorreu, quando da avaliação do projeto entregue, em atraso relativamente de igual monta. Ocorre que o contrato ficou paralisado durante sua execução, por quase três anos, por decisão unilateral da Administração, alegando ausência de recursos orçamentários para pagamento dos serviços contratados. Durante este período a empresa continuou trabalhando, entregando a versão final do projeto básico que foi devidamente aprovado pela contratante.

No entanto, a empresa foi multada por mora, no montante de 120% do valor da etapa referente ao projeto básico – note-se, projeto este aprovado –, sem que seus recursos no processo administrativo fossem deferidos. Ou seja, a empresa prestou o serviço, apresentou o projeto que acabou aprovado e foi multada em valor 20% superior ao que deveria receber. É dizer, a empresa está pagando à contratante 120% do valor do projeto aprovado que elaborou, promovendo o enriquecimento ilícito do Estado.

Em relação à contratante, não houve, no processo de apuração de responsabilidade, qualquer menção acerca dos atrasos promovidos pela Administração – categoricamente ignorados –, remanescendo somente a punição à empresa contratada.

Resta claro que tal disparate não encontrará guarida na esfera judicial, devendo, no entanto, serem observados, no âmbito administrativo, os excessos cometidos pelos agentes públicos, para que haja uma efetiva correição, buscando a legitimidade das relações entre o público e o privado. Não obstante, estará, no caso de judicialização da contenda, se abarrotando, desnecessariamente, os escaninhos forenses por ações de responsabilidade absoluta da Administração.

Há que se enfatizar que, ao fim e ao cabo, a maior prejudicada pelas distorções nas relações decorrentes dos contratos administrativos mal geridos, é a própria sociedade, que não somente arca com os custos financeiros e temporais dessa desvantajosa gestão, como, por conseguinte, deixa de receber o objeto contratado. Indubitável o desacato à Constituição Federal que define, em seu artigo 37 que a Administração Pública deve obedecer, em suas ações, ao Princípio da Eficiência.

Diversos outros exemplos podem ser trazidos, convertendo o despretensioso artigo em um corolário de ocorrências que o tornaria assustadoramente enfadonho. O que se pretende é demonstrar a desigualdade das partes nas relações contratuais entre a Administração Pública e o ente privado.

Para minimizar os impactos deletérios deste relacionamento, faz-se necessário o incremento das fiscalizações, correições e auditorias internas e externas, além da responsabilização pessoal do agente público que incorrer em ações de caráter culposo ou doloso, prejudiciais à contratada, para que a impunidade não seja a práxis na Administração Pública.


[1] HYLAND, Richard. Pacta sunt servanda: a meditation. Virginia-USA: Virginia Law of International Law, 1994. p. 407.

[2] BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. Bahia-Brazil: Livraria Magalhães, 1896. p. 166.

[3] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A chamada causa dos contratos: relações contratuais de fato. Revista de Direito do Consumidor: vol. 93, Mai – Jun / 2014, p. 210.

[4] COSTA, Andreia Duarte da. Modificações objetivas do contrato de concessão de serviços públicos num cenário de crise. Dissertação de Mestrado. Lisboa-Portugal: Universidade de Lisboa, 2016. p. 102.

[5] BROCCHI, Gabriel Gallo. A teoria do fato do príncipe. 2020.

Disponível em:

Acesso em: 23.07.2024.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. O fato do príncipe nos contratos administrativos. In: Revista de Direito da Procuradoria-Geral de Justiça, Rio de Janeiro, nº 23, p.73-79, jan./jun. 1986. pp. 74, 76.


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex-colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.

O Processo de Due Diligence no Financiamento de Litígios

Eric Moura

O financiamento de litígios envolve uma empresa que fornece suporte financeiro a um autor ou escritório de advocacia em troca de uma parte do resultado de um acordo ou sentença. Esse financiamento cobre honorários advocatícios e outras despesas associadas ao caso. Ele permite que os autores sigam com ações que, de outra forma, não poderiam arcar, nivelando assim as condições contra réus bem capitalizados. Essa prática tem ganhado força, pois mitiga o risco financeiro para os autores e escritórios de advocacia que trabalham com honorários condicionados ao êxito.

Quando um financiador apoia um caso, isso geralmente sinaliza a força da causa. As empresas de financiamento de litígios realizam uma diligência rigorosa antes de comprometer recursos, analisando os méritos do caso, a probabilidade de sucesso e o potencial de recuperação financeira. Esse processo rigoroso de análise, que inclui avaliação jurídica, factual e financeira, é semelhante às avaliações feitas por investidores sofisticados em outros setores. A aprovação do financiamento, portanto, implica que o caso passou por várias camadas de escrutínio, indicando uma maior probabilidade de sucesso, o que pode facilitar acordos.

Saber que um autor tem apoio financeiro para sustentar um litígio prolongado pode incentivar os réus a buscarem um acordo em vez de se envolverem em uma batalha legal prolongada. Além disso, as partes podem preferir acordos para garantir uma recuperação mais rápida e mitigar a incerteza e os custos associados aos julgamentos. Essa dinâmica muitas vezes leva a resoluções mais eficientes, beneficiando todas as partes envolvidas ao reduzir o tempo e as despesas com litígios.

Assim, a próxima pergunta lógica é: como o processo de due diligence funciona na prática e como os autores e seus advogados podem melhor preparar seus casos para esse processo?

O Processo de Due Diligence e suas Etapas Preliminares

A due diligence de uma ação envolve uma avaliação abrangente de vários aspectos do caso para garantir que os financiadores invistam apenas em casos com fortes perspectivas. Os financiadores geralmente examinam os méritos jurídicos, o histórico factual, as projeções financeiras e os riscos potenciais de recuperação associados ao caso. Ao analisar meticulosamente esses elementos, os financiadores tomam decisões informadas sobre quais casos apoiar. No entanto, antes que a due diligence possa ocorrer, algumas etapas preliminares são necessárias.

Acordo de Confidencialidade

A celebração de um Acordo de Confidencialidade (NDA) é vital para proteger informações confidenciais relativas ao caso. O processo de financiamento geralmente começa com o autor ou seu advogado fornecendo ao financiador uma visão geral do caso e uma estimativa do capital necessário para seu desenvolvimento. Antes de aprofundar as discussões detalhadas, os financiadores exigem a execução de um NDA.

Uma vez que o NDA está em vigência, o financiador receberá informações mais específicas e confidenciais sobre o caso. Isso geralmente inclui: (1) o histórico factual e os argumentos jurídicos; (2) potenciais recuperações e avaliações preliminares de danos; (3) a jurisdição do litígio para garantir a conformidade com a legislação aplicável; (4) o montante de financiamento solicitado, incluindo o orçamento do advogado; e (5) o arranjo de financiamento desejado, seja para capital de giro, honorários advocatícios, custos do litígio ou uma combinação. Durante essas conversas iniciais, o financiador verificará se o arranjo de financiamento proposto está alinhado com seus critérios de seleção, como o tamanho mínimo do investimento.

Term Sheet

Quando o financiador decide prosseguir após discussões preliminares e uma análise inicial do caso, geralmente, há a emissão de um “term sheet” não vinculativo que delineia os termos econômicos do investimento proposto. Este documento frequentemente inclui um período estimado de due diligence, permitindo que o financiador avalie minuciosamente os méritos do caso. A duração deste período varia conforme a complexidade e a jurisdição do caso, mas pode ser acelerado de acordo com particularidades.

Fundamentalmente, o term sheet descreve as expectativas das partes em relação à transação a ser realizada após a due diligence. Ele geralmente detalha o valor e os tipos de capital que o financiador se compromete a disponibilizar, o cronograma de liberação, a estrutura de retorno do financiador e a ordem de pagamento. Os retornos frequentemente aumentam com o tempo à medida que o financiador investe mais capital no litígio. A avaliação adequada do retorno varia conforme o investimento e pode ser estruturada como um múltiplo do valor financiado, um percentual dos resultados do litígio ou o maior dos dois. Um financiador de boa reputação também presta atenção particular à parcela do resultado que o autor receberá. O objetivo é que todas as partes permaneçam alinhadas durante o curso do litígio; portanto, se há a hipótese de o autor obter apenas uma parcela pequena do resultado de um acordo ou sentença, o financiador pode recusar o financiamento do caso. Por exemplo, a Omni Bridgeway se esforça para criar estruturas de retorno flexíveis adaptadas às necessidades do reclamante e às especificidades de cada caso, e está sempre avaliando quanto de uma eventual recuperação irá para o reclamante.

Embora os term sheets geralmente não sejam vinculativos em relação a termos específicos, a maioria dos financiadores exige um período de exclusividade. Essa exclusividade garante que o investimento significativo de tempo e recursos do financiador na análise do caso e na condução da due diligence (incluindo a contratação de especialistas externos, advogados transacionais e a realização de pesquisas relativas a background) não seja desperdiçado.

Uma vez que o term sheet é executado, o financiador inicia o processo detalhado de due diligence.

O Processo de Due Diligence

O processo de due diligence no financiamento de litígios é uma análise abrangente projetada para avaliar os méritos de um caso e concluir os termos do acordo de financiamento de litígio. Esta revisão multifacetada garante que o caso seja um investimento sólido, avaliando vários aspectos críticos.

O processo é mais eficiente quando o material submetido pelos autores e seus advogados está bem organizado e aborda as áreas-chave no processo de due diligence. Essas áreas incluem:

  • Autor e Representação Legal: Avaliar o histórico, a estabilidade financeira e o histórico de litígios do autor é crucial. Da mesma forma, são avaliadas a experiência, reputação e histórico do advogado do reclamante em lidar com casos semelhantes.
  • Réus e Sua Equipe Jurídica: É realizada uma pesquisa sobre a capacidade financeira dos réus para satisfazer potenciais sentenças ou acordos. As estratégias utilizadas e reputações dos advogados de defesa também são analisadas.
  • Base Factual: Uma revisão meticulosa do histórico factual é necessária para determinar a força e a credibilidade das alegações do reclamante.
  • Documentação de Apoio: Documentos-chave que apoiam o caso do autor, como contratos e correspondências, são examinados detalhadamente, assim como a documentação referente às defesas.
  • Estratégias de Defesa: Avaliar as defesas potenciais que o réu pode levantar e revisar documentos relevantes de apoio é essencial para entender os possíveis desafios do caso.
  • Reconvenções: Considerar possíveis reconvenções do réu e seu impacto potencial no caso é outro aspecto crítico da análise.
  • Estrutura Legal: A lei aplicável, incluindo questões de jurisdição e prazos prescricionais, é analisada minuciosamente para identificar quaisquer restrições ou obstáculos legais.

Fornecer esses documentos prontamente permite que os financiadores realizem uma análise minuciosa e eficiente. Além disso, quando os autores e seus advogados fornecem memorandos detalhados sobre essas várias áreas-chave de pesquisa — como perfis do autor e do réu, estratégias jurídicas, suporte probatório e defesas potenciais — isso auxilia significativamente o processo de due diligence. Esses memorandos ajudam os financiadores a entender as complexidades do caso e identificar riscos e oportunidades.

Além disso, a preparação e o refinamento do orçamento são partes cruciais do processo de due diligence. Para que os financiadores decidam investir, o orçamento deve ser suficiente para alcançar uma conclusão bem-sucedida, exigindo que seja conservador até o julgamento. Muitas vezes, casos são rejeitados porque a relação necessária entre investimento e retorno esperado é muito estreita. Orçamentos claros e realistas que não dependem de acordos precoces ajudam a confirmar a viabilidade econômica do investimento no litígio.

Embora o processo de due diligence possa ser trabalhoso para os autores e seus advogados, ele é essencial para garantir o financiamento e muitas vezes fortalece o caso. O processo incentiva os advogados a analisar possíveis vulnerabilidades, identificar as melhores provas e desenvolver contra-argumentos mais cedo do que o habitual. Essa abordagem proativa pode levar a uma estratégia mais robusta e aumentar a probabilidade de um resultado favorável.

Em conclusão, o processo de due diligence é um elemento crucial do financiamento de litígios, garantindo que os financiadores invistam em casos com fortes perspectivas. Ao avaliar minuciosamente todos os aspectos de um caso, os financiadores podem tomar decisões informadas, mitigar riscos financeiros e apoiar os autores em suas demandas jurídicas.

Fontes

Omni Bridgeway. “Step by Step: The Nuts and Bolts of the Funding Process – Part One.” Acesso em 20 de julho de 2024. Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/blog/blog-posts/blog-details/global/2021/09/29/step-by-step-the-nuts-and-bolts-of-the-funding-process-part-one

Omni Bridgeway. “In Practice: How is Due Diligence Carried Out on a Case?” Acesso em 20 de julho de 2024. Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/video-catalog/all-videos/video-details/in-practise-how-is-due-diligence-carried-out-on-a-case


ERIC MOURA. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com


O limite da atuação dos tribunais superiores na formação de teses

Maria Augusta Sampaio Ferraz

A normatividade dos precedentes no direito brasileiro

No contexto jurídico atual, o destaque dos precedentes é evidente. Sua introdução no sistema jurídico brasileiro tem como fundamento desempenhar um papel crucial na promoção da isonomia na aplicação do direito, assegurando que casos semelhantes sejam tratados de maneira uniforme e previsível. Este mecanismo busca contribuir significativamente para a segurança jurídica e para a confiança dos cidadãos no judiciário.

As Cortes Superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, são fundamentais na formação de teses que orientam a aplicação do direito pelos demais tribunais. As decisões proferidas por estas instâncias superiores estabelecem, em determinados casos, precedentes obrigatórios, que devem ser seguidos pelos tribunais inferiores, garantindo assim a coerência e a integridade do ordenamento jurídico.

A partir do momento em que os precedentes são adotados como fontes do direito no sentido de formarem uma regra de conduta, as decisões judiciais deixam de ser apenas resoluções de casos concretos para assumirem um papel normativo. Esta transformação é evidenciada pela relevância conferida aos acórdãos das Cortes Superiores, especialmente o STF e o STJ.

Nesse sentido, o papel das Cortes Superiores é de grande destaque, pois certas decisões proferidas nessas jurisdições constituem precedentes com efeito vinculante tanto horizontalmente, entre os próprios ministros e turmas desses tribunais, quanto verticalmente, obrigando os tribunais inferiores a seguirem essas orientações. A adoção dessa prática visa assegurar a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais, promovendo a segurança jurídica e a isonomia.

A normatividade dos precedentes é vista como um mecanismo indispensável para garantir a uniformidade, a estabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais. A adoção do CPC/2015 e a valorização dos precedentes pelas Cortes Superiores evidenciam uma transformação significativa no sistema jurídico brasileiro, que busca conciliar a tradição do civil law com a prática dos precedentes, tradicionalmente associada ao common law.

Quando falamos em precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, podemos falar das decisões proferidas em sede de Repercussão Geral, que, após o julgamento, são formados “temas”, que nada mais são o dispositivo da decisão que deve ser observado para posterior aplicação em casos idênticos ou semelhantes, com o devido dever de adequação.

A formação de teses e os limites que devem ser observados pelos tribunais

A decisão judicial é, de maneira simples, o resultado da subsunção de um fato a determinada norma. Para Kelsen, a subsunção é um processo técnico-jurídico que assegura a objetividade e a previsibilidade do direito.[1] Contudo, há algum tempo, a tarefa dos juízes não é vista, exclusivamente, como só a de aplicar a lei dedutivamente[2], seja pela necessidade de completude do sistema, que muitas vezes contêm lacunas ou termos vagos que precisem de interpretação, seja pelo crescente papel dos Tribunais Superiores na interpretação dessas normas. Soma-se a isso a importância dos precedentes, conforme já abordado.

O julgamento de recursos extraordinários e formação de teses pelo STF e pelo STJ tem um papel fundamental na uniformização da interpretação da Constituição Federal e das Leis Federais, além da promoção da segurança jurídica. Contudo, é imperativo que estes Tribunais, ao proferirem decisão em determinado recurso de aplicação vinculante, observem estritamente os limites do caso concreto, evitando extrapolar ou modificar a questão originalmente discutida e decidida nas instâncias inferiores. Esse cuidado é essencial para garantir que a tese fixada reflita exatamente o que foi decidido, sem ir além ou aquém do que foi solicitado e debatido.

A necessidade de observância dos limites do caso concreto se fundamenta nos artigos 102, inciso III e 105, inciso III, da Constituição Federal, que estabelecem a competência do STF e do STJ, respectivamente, para “julgar, mediante recurso extraordinário/especial, as causas decididas em única ou última instância”. Este dispositivo implica que a tese a ser fixada deve corresponder precisamente ao que foi objeto de discussão no caso concreto, não podendo divergir do que foi pedido e debatido nas instâncias inferiores. Ao exceder esses limites, estes Tribunais correm o risco de criarem novas normas jurídicas sem a devida participação das partes envolvidas, o que contraria os princípios do devido processo legal e do contraditório. Isso ocorre porque as teses não podem, de maneira arbitrária, abordar temas que não foram incluídos no pedido inicial e sobre os quais não houve um debate amplo e exaustivo.

Nesse sentido foi o posicionamento do STJ no julgamento do Recurso Especial 1798374, de relatoria do Ministro Mauro Campbell. No caso, o Tribunal discutiu se seria possível a interposição de recurso especial contra decisão de segunda instância que fixa tese em abstrato em incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR). A decisão foi que o recurso não seria cabível pela ausência do requisito constitucional de necessidade de causa decidida.[3]

RATIO DECIDENDI, OBITER DICTUM e tese

No contexto dos precedentes, alguns conceitos jurídicos do direito anglo-saxão são inerentes ao tema, tais como ratio decidendi e obiter dictum. Desse modo, o jurista brasileiro tem o ônus de enquadrá-los no âmbito jurisdicional constitucional para aplicá-los no ordenamento jurídico nacional.

Inicialmente, cabe destacar que observamos, em especial com a valorização dos precedentes e com o dever de observância dos provimentos jurisdicionais vinculantes, que os Tribunais, em especial o STF e o STJ, tentam, de alguma forma, universalizar tanto quanto possível a amplitude de suas teses para que mais casos sejam abarcados na aplicação de seus precedentes.

A conduta ocorre, em certa medida, como uma tentativa de diminuição de acervo e de recebimento de processos por essas Cortes, tendo em vista que após um pronunciamento vinculante, seja através de repercussão geral ou de recursos repetitivos, os Tribunais de segunda instância podem obstar o processamento dos recursos que estejam em consonância com as teses proferidas pelas Cortes Superiores, inviabilizando a sua subida e assim diminuindo o acervo desses Tribunais.

Contudo, tal medida se mostra temerária e quiçá contra legem. Condutas que simplifiquem ou tentem buscar atalhos para problemas estruturais não se mostram efetivas, como podemos perceber nas últimas décadas.

Assim, para que seja possível definir a generalidade de uma tese é necessária a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Comecemos pela ratio, que, para é o fundamento essencial da decisão judicial, ou seja, o ponto central de onde se extrai a regra jurídica aplicável ao caso concreto. A ratio decidendi é a parte da decisão que contém a norma geral, que serve de base para o julgamento e que pode ser utilizada em futuros casos semelhantes. É a essência do raciocínio judicial que determina o resultado do caso e que pode ser replicada em situações análogas para garantir a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais.[4]

Já tudo aquilo que não foi identificado como razão principal para decisão é obiter dictum. Ou seja, tudo aquilo que não é ratio decidendi, e que não é essencial ou fundamental para o resultado de um caso.

O grave problema a ser enfrentado é que as Cortes Superiores brasileiras têm como costume se referir à ratio decidendi como teses, e por isso a relação entre os termos é de extrema importância. Se a tese deve refletir o(s) principal(is) fundamento(s) do julgamento do caso concreto, e ela não reflete, há, no mínimo, um problema de falta de coerência ou de lógica entre teoria (lei) e prática (julgamento).

O raciocínio sistemático pensado de acordo com o nosso sistema legal, portanto, nos leva à conclusão de que uma tese formada por fundamentos tidos como obiter dicta não refletem a discussão jurídica trazida no caso concreto e posta em julgamento. Nesse sentido, se os artigos da Constituição acima citados dispõem que o STF e o STJ devem julgar, mediante recursos extraordinário e especial, as causas decididas em única ou última instância, e se não existe causa decidida, é possível que possamos falar em inconstitucionalidade da tese formada em determinado precedente, por descumprimento de norma constitucional.

Essa é uma discussão traz reflexões necessárias de aplicação prática, em especial no sistema judicial brasileiro, onde institutos importados encontram-se cada vez mais presentes no ordenamento jurídico.

Portanto, a postura das Cortes Superiores em buscar a universalização de suas teses, visando reduzir o acervo de processos, deve ser ponderada com cautela. Simplificações ou atalhos para resolver problemas estruturais do sistema judiciário podem levar a soluções inadequadas e contrárias aos princípios fundamentais do direito. É crucial que as teses fixadas reflitam fielmente os fundamentos discutidos e decididos no caso concreto, garantindo assim a legitimidade e a eficácia dos precedentes.

Referências

ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

ARRUDA ALVIM, Teresa. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.


[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.

[2] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

[3] A tese fixada pelo STJ no REsp 1798374 foi a seguinte: Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de “causa decidida”, mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema.

[4] ALVIM, Teresa Arruda. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.


MARIA AUGUSTA SAMPAIO FERRAZ. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


Destaques do último Relatório de Economia Bancária – REB do BC

Leandro Oliveira Leite

O Relatório de Economia Bancária (REB)[1] trouxe uma série de pontos cruciais que refletem o desempenho e a evolução do Sistema Financeiro Nacional (SFN) ao longo do ano. Os principais destaques abordam a maior concorrência, a desaceleração do crescimento do crédito, a evolução da portabilidade, as inovações no setor financeiro e a incorporação do risco climático na análise do SFN.

O REB, publicação anual do Banco Central (BC), analisa diversos aspectos do SFN e as relações entre instituições financeiras e seus clientes. A última edição do REB, publicado em 06 de junho de 2024, vem adotando uma forma de comunicação mais moderna e direta, resumindo o conteúdo principal de cada parágrafo nas primeiras frases, seguido de detalhes subsequentes.

O relatório é composto por cinco capítulos principais, além de boxes temáticos que abordam questões específicas do SFN. Veja os principais capítulos abordados no REB neste ano:

  • Concorrência no SFN: Evolução dos indicadores de concentração e concorrência no SFN, inovações no setor e a atuação do Banco Central para fomentar um ambiente financeiro mais competitivo e inovador.
  • Evolução do Crédito no SFN: Análise do comportamento dos agregados de crédito, características das operações e dos tomadores, portabilidade de crédito e crédito para financiamento de importação e exportação.
  • Captações do Sistema Financeiro: Exame da composição e evolução das captações do sistema financeiro, detalhando os diferentes instrumentos e seus desempenhos ao longo do ano.
  • ICC e Spread: Decomposição do Índice de Custo de Crédito (ICC) e seu spread, analisando fatores como custo de captação, inadimplência, despesas administrativas, tributos e Fundo Garantidor de Créditos (FGC), além da margem financeira.
  • Rentabilidade das Instituições Financeiras: Análise da rentabilidade das instituições financeiras, abordando a performance financeira e os desafios enfrentados no ano.

Em 2023, observou-se uma desaceleração no crescimento do crédito no Sistema Financeiro Nacional, em grande parte devido à política monetária restritiva adotada pelo Banco Central. Esse contexto desafiador foi agravado pelo aumento da inadimplência, refletindo um ambiente econômico mais difícil para tomadores de crédito. O relatório detalha como essas condições impactaram os diferentes tipos de crédito, desde o crédito para consumo até o crédito para empresas, e analisa as características dos tomadores de crédito nesse período.

A evolução da portabilidade de crédito foi outro ponto de destaque. Essa funcionalidade permite aos consumidores transferirem suas dívidas entre instituições financeiras em busca de melhores condições, como taxas de juros mais baixas ou prazos mais vantajosos. O relatório sublinha o crescimento significativo dessa prática, que se tornou uma ferramenta importante para aumentar a competitividade no mercado de crédito, beneficiando os consumidores e incentivando as instituições financeiras a oferecerem condições mais atrativas.

O Banco Central do Brasil tem promovido várias inovações no setor financeiro, buscando modernizar e otimizar as operações financeiras no país. Entre as iniciativas destacadas no REB, estão o projeto Drex e as “Finanças Programáveis”.

  • Projeto Drex: Visa a modernização do sistema financeiro por meio de novas tecnologias, como o uso de blockchain e contratos inteligentes, que prometem tornar as transações mais seguras, rápidas e transparentes.
  • Finanças Programáveis: Envolvem a automatização de processos financeiros, permitindo a criação de produtos financeiros mais personalizados e eficientes. Essas inovações têm o potencial de transformar profundamente a forma como os serviços financeiros são oferecidos e consumidos no Brasil.

Já os boxes temáticos do Relatório são seções especiais dedicadas a estudos e pesquisas específicas sobre diversos aspectos do SFN. Esses boxes oferecem uma análise detalhada de temas emergentes e relevantes, proporcionando uma compreensão mais profunda das dinâmicas e dos desafios enfrentados pelo setor financeiro. A seguir, destacam-se alguns dos principais boxes temáticos abordados.

O primeiro dos boxes temáticos do REB examina a eficiência do sistema financeiro brasileiro. Esse estudo avalia a performance das instituições financeiras em termos de custos operacionais, produtividade e qualidade dos serviços oferecidos. O objetivo é identificar áreas onde há potencial para melhorias, bem como reconhecer as melhores práticas que podem ser replicadas para aumentar a eficiência do sistema como um todo. A análise inclui comparações internacionais, proporcionando um contexto mais amplo para entender como o Brasil se posiciona em relação a outros mercados.

A concentração nos mercados de cartões de pagamento é outro tema explorado em um dos boxes do REB. Esse estudo avalia a estrutura do mercado de cartões de crédito e débito no Brasil, avaliando o grau de concentração e suas implicações para a concorrência e os consumidores. O relatório examina as barreiras à entrada para novos competidores e as estratégias das instituições financeiras estabelecidas para manter sua participação de mercado. As conclusões destacam a necessidade de políticas que incentivem a concorrência e reduzam os custos para os consumidores.

Outro boxe temático relevante trata dos custos das remessas internacionais. As transferências de dinheiro entre países são cruciais para muitas famílias e pequenos negócios, especialmente aqueles que dependem de remessas enviadas por trabalhadores no exterior. O relatório analisa os custos associados a essas transferências, destacando as iniciativas que têm sido implementadas para reduzir essas despesas e tornar as remessas mais acessíveis e eficientes.

A expansão dos serviços financeiros é um tópico crucial abordado em um dos boxes temáticos. Este estudo foca na inclusão financeira e nas estratégias para ampliar o acesso aos serviços bancários e financeiros em regiões menos atendidas. O relatório analisa iniciativas como a digitalização dos serviços financeiros, a expansão das cooperativas de crédito e o papel das fintechs na promoção de um maior acesso ao crédito e a outros serviços financeiros. Essas iniciativas são fundamentais para promover a inclusão financeira e garantir que mais brasileiros tenham acesso às ferramentas necessárias para melhorar sua condição econômica.

Os programas educação financeira, também boxe temático, é vital para capacitar os consumidores a tomar decisões informadas sobre suas finanças pessoais. O relatório avalia a eficácia dos programas existentes, destacando as melhores práticas e identificando áreas onde há necessidade de aprimoramento. Os resultados mostram que uma maior educação financeira está correlacionada com uma melhor gestão do crédito e maior resiliência financeira, sublinhando a importância de continuar a investir nesses programas.

Finalmente, um dos mais inovadores, aborda o risco climático e sua relação com o Sistema Financeiro Nacional. Este estudo propõe a introdução de indicadores para avaliar e mitigar os impactos ambientais no setor financeiro. O relatório discute como as mudanças climáticas podem afetar a estabilidade financeira e a importância de integrar considerações ambientais na gestão de riscos das instituições financeiras. A proposta é que o SFN adote práticas sustentáveis e se prepare para os desafios futuros impostos pelas mudanças climáticas.

Ressalta-se que as impressões do mercado financeiro em relação ao REB foram, em geral, positivas e otimistas. Vários pontos específicos foram destacados pelos analistas e participantes do mercado:

  1. Aumento da Concorrência no Mercado de Crédito: O mercado financeiro viu com bons olhos o aumento da concorrência no mercado de crédito, especialmente nos segmentos bancário e cooperativo. O Indicador de Lerner, utilizado para medir a concorrência, mostrou uma redução significativa, indicando um aumento na competitividade. Este aumento foi atribuído ao maior custo marginal em relação ao aumento dos preços, refletindo uma pressão competitiva saudável.
  2. Estabilidade na Concorrência de Serviços Financeiros: A concorrência no mercado de serviços financeiros permaneceu relativamente estável. O indicador de Lerner para os serviços financeiros do segmento bancário manteve-se em níveis semelhantes desde a pandemia, com pequenas oscilações, o que foi interpretado como um sinal de estabilidade e maturidade do mercado.
  3. Redução da Concentração no SFN: A redução do nível de concentração no Sistema Financeiro Nacional (SFN) foi destacada como um avanço significativo. A diminuição da concentração ocorreu em vários agregados contábeis, incluindo ativos totais, depósitos totais e operações de crédito. Esta redução foi vista como um reflexo positivo das iniciativas do BCB para aumentar a diversidade e a competitividade no setor financeiro.
  4. Inovações Financeiras: As inovações financeiras e a atuação proativa do BCB foram amplamente elogiadas. Resoluções como a BCB 308[2], que disciplina o registro e o depósito centralizado de recebíveis imobiliários, foram vistas como medidas que conferem maior segurança às operações de financiamento, beneficiando especialmente construtores e incorporadores de menor porte.
  5. Desafios Contínuos: Apesar dos avanços, o mercado também reconhece os desafios contínuos na implementação de políticas que promovam uma concorrência ainda maior e a necessidade de adaptação às novas regulações. As expectativas são de que o BCB continue a atuar de maneira eficaz para manter a estabilidade e incentivar a inovação no sistema financeiro.

Assim, o REB joga luz a um cenário de crescente concorrência no mercado de crédito e uma estabilização na concorrência de serviços financeiros, com uma redução geral da concentração no SFN. As ações do Banco Central têm sido fundamentais para promover um ambiente financeiro mais competitivo e seguro, refletindo sua dedicação em melhorar a eficiência e a equidade no mercado financeiro brasileiro.

Em suma, o Relatório de Economia Bancária – REB foi recebido como um relatório que sinaliza avanços importantes na regulação e na promoção da concorrência, com medidas que contribuem para um ambiente financeiro mais competitivo e seguro.


[1] https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioeconomiabancaria

[2] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&numero=308


LEANDRO OLIVEIRA LEITE. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Como é que me defino politicamente? LIBERAL!

Marco Aurélio Bittencourt

Aproveito ideia de outro blogueiro e faço minha confissão pública sobre minhas preferências em política. Lembro meu entendimento sobre o modelo brasileiro: o do rent seeking (na minha linguagem, o modelo da pilhagem). Lembro ainda o objetivo: tratar de assuntos pertinentes a sociedade e economia brasileira, com implicações econômicas. O foco é de economia política (não consigo ver o estudo da economia de outra forma).

A bem da transparência, é instrutivo estruturar o meu pensamento político. Até porque podem os raríssimos leitores inferirem posturas que abomino, caso sejam levados por clichês. Evidentemente, sigo a recomendação de David Hume (discutir com idiota, você sempre perderá, pois esses estão presos a clichês e verdades absolutas). Todavia, reconheço que não é fácil fugir dos clichês. Às vezes usamos expressões que podem ter interpretações diversas, mas podem encurtar caminhos. Eu mesmo me valho dessa estratégia. Reconheço que há uma mixórdia no entendimento do que seja liberal.

Começo então minha preleção me declarando liberal, com muitos pontos de contato com a socialdemocracia e alguns com o conservadorismo. Sou a favor de um Estado com funções robustas, mas não de um Estado excessivamente ativista. As funções que fazem o Estado robusto se prendem basicamente: à justiça, segurança, defesa nacional, saúde, educação, previdência social e assistência social, a infraestrutura, a conservação dos recursos naturais e à regulação das atividades econômicas que não estejam no contexto competitivo. Na órbita municipal, principalmente o controle do plano diretor a tornar as cidades agradáveis para se viver. Essas atividades devem ser públicas, mas, exceto a segurança e a defesa, justificariam o funcionalismo público. As demais poderiam ser executadas pelo setor privado ou ter forma de seleção simplificada, com salários equiparados ao do setor privado. Quanto ao funcionalismo em si, deveria ser apenas uma categoria e não importa se executivo, judiciário ou legislativo. Deveríamos ter dois níveis: superior e técnico, seguindo as profissões já reconhecidas. A regra básica para postos de gestão em todas as esferas públicas seria a de rodízio e indicação eletiva. No tocante as empresas estatais, lembro a lógica de sua criação (a valer para a grande maioria das empresas): a recusa do setor privado em colocar dinheiro nesses negócios. Sendo assim, não vejo razão para privatizá-las. Se argumentam ineficiência, que pode ser verdade, mas o remédio não seria privatizar e sim estabelecer boa governança. De qualquer forma, havendo interesse em privatizar, duas regras a observar: a) não pode haver aumento de poder de mercado e b) tem que haver aumento no investimento. Quanto à regulação, de forma geral, tem que manter o ambiente competitivo. Regulação que aumenta o poder de mercado ou a empresa privatizada não gerar investimento devem ser consideradas ilegais.

O Estado também pode e deve ter algum papel redistributivo e alocativo. Os programas assistenciais devem se guiar por dois parâmetros: social e financeiro. Fome não pode existir. Moradores de rua devem contar com suporte municipal. Educação básica garantida a todas as crianças e jovens com um padrão de qualidade definido e pelo menos idêntico ao do setor privado.  Dada a realidade econômica (ver http://chutandoalata.blogspot.com/2020/11/olhando-o-brasil-de-uma-maneira-simples.html), uma profissão em nível técnico deve ser garantida a todos. A universidade só seria custeada para os reconhecidamente pobres e para esses seria concedido uma remuneração básica, com contrapartida social de trabalho condizente com a atividade estudantil, em tempo e modo. O segundo parâmetro é que o custo do programa deverá ser decrescente ao longo do tempo.

No tocante ao aspecto alocativo, todas as funções de governo devem estar retratadas no orçamento público e, portanto, com o aval da sociedade. Destaque deve ser dada às atividades de infraestrutura e de conservação dos recursos naturais, tendo em vista principalmente os efeitos de externalidade. A omissão aos princípios legais e constitucionais deve ser considerado crime cometido pelo gestor público afeto à questão específica.

Toda atividade pública tem que contar com apoio legal expresso na Constituição ou lei específica relativo ao gasto específico. Não constando, não pode ser objeto de pauta orçamentária. Por fim, o orçamento público deve ser equilibrado em todas as esferas institucionais (união, estado e município). O ente federal poderá, em casos de notória recessão, que desbalanceia receitas e despesas, apelar para o endividamento público temporário. Todo e qualquer ajuste nas despesas só poderá ocorrer na forma de redução das remunerações, quer para empresários beneficiados orçamentariamente, quer para funcionários. O desequilíbrio se não revertido e tiver implicações sobre o pagamento de juros sobre a dívida pública e revelando-se excessivo, deve ser monetizado.

Além de tudo isto, para poder financiar os bens públicos fundamentais, o Estado não pode ser fraco a nível fiscal, pelo que tem de travar uma guerra sem tréguas à evasão fiscal, interna e externa (paraísos fiscais). A eficiência burocrática deve ser uma política sem fim.

Podem carimbar o que descrevi acima como direita liberal, mas será uma simplificação porque apenas uma dimensão (esquerda-direita) é insuficiente para descrever o meu pensamento sobre as todas as escolhas políticas necessárias para o mundo complexo à nossa volta. Por exemplo, sou católico não praticante e sempre fui “de esquerda” a nível dos costumes. Considero muito positiva a política de descriminalização do consumo de drogas em que os viciados são tratados como doentes e não como criminosos. Em relação a lei do aborto, sou tolerante com a possibilidade e recomendo observarem o debate que se travou no Uruguai, mas meu voto seria contrário. Quanto à ideologia de gênero, sou contrário. Mas não endosso nenhum comportamento contrário à opção sexual. Em resumo, entendo que o preconceito é uma máscara para manter os mais fracos socialmente nessa condição de fraqueza para exploração pura e simples da força de trabalho. Em relação ao politicamente correto, sou totalmente contra. Atitude é tudo. O amparo legal entendo que já existe o suficiente para proteção dos que se consideram desamparados na órbita dos costumes. Mas isso não implica que não devemos rever as políticas públicas e leis que dão amparo aos atingidos pela discriminação e preconceito. Por fim, sou plenamente favorável ao estabelecimento de ONGs. A regra para participação pública nessas entidades é simples: acatar o modelo de ONG do governo e só conceder benefício se a ONG contar com benefício privado, tendo limite governamental de um % dos gastos privados menor do que 60%.

Pode ser que tenha deixado de fora alguns itens para definição clara de uma posição política. Em tempo poderei fazer o devido ajuste. Deixo ainda expresso que apoio integralmente a rebeldia verdadeira. Infelizmente nossa constituição, diferentemente de outras como a alemã, não dá amparo legal a tal situação de rebeldia verdadeira (cada um que defina a sua).

Retirei esse artigo de minha coletânea de artigos que publiquei em meu blog http://chutandoalata.blogspot.com , antes da pandemia. Pode ser que agora, pelo efeito da covid-19, possa ter mudado minha posição política, quer por interesse, quer seja por paixão. Evidentemente, não gastarei do meu colesterol bom para mimos. Para aqueles acompanhados por querubins em purgatório que travam cancelamento tosco, apenas usarei o ruim, já seguindo a abreviação não oficial e nem recomendável: VPPQP!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Quando uma atuação concertada entre concorrentes não é considerada cartel

Kemil Raje Jarude

Como se sabe, o Cartel é considerado a conduta mais nociva em termos concorrenciais e que pressupõe o acordo entre rivais para o controle da oferta por meio de acordo de preços. Entretanto, nem todo acordo entre rivais pode ser considerado prejudicial à concorrência. Por exemplo, consórcios são um mecanismo importante para a consecução de projetos de grande monta ou complexidade, permitindo a oferta de produtos ou serviços em maior escala ou com preços mais competitivos por conta do aumento de eficiências.

Além disso, a criação de associações permite o desenvolvimento de tecnologias que dão condições de interoperabilidade que ajudam a reduzir custos e ampliar o acesso a tecnologias. Exemplo disso é o Bluetooth, administrado pelo Bluetooth Special Interest Group e que conta com mais de 35 mil empresas associadas.

Todavia, há casos em que empresas que estejam agindo licitamente em conjunto acabem por incorrer em condutas que possam ter efeitos negativos à concorrência. Tais condutas decorrem do comportamento ilícito desse agente econômico que age sob bases lícitas, ocasionando prejuízos ao mercado.

No ano de 2022, o CADE julgou dois casos interessantes que exemplificam esse tipo de situação. O intuito do artigo é mostrar como o fato de ter a permissão legal para agir economicamente com outros concorrentes não mitiga, por si só, o risco de eventual conduta ilícita do ponto de vista concorrencial. Os dois casos a seguir são complexos e exigiram fôlego de nossa competente autoridade antitruste, no que buscarei focar nos elementos que levaram aos problemas debatidos e os principais critérios de análise do CADE para a tomada de decisão.

Caso British Telecom – Correios: Processo Administrativo nº 08700.011835/2015-02

O caso

Na 196ª Sessão Ordinária de Julgamento foi apreciado o caso oriundo de uma representação da British Telecom (BT) em face de Claro, Oi e Telefônica. Em linhas gerais, o imbróglio envolvia a concorrência pelo Pregão nº 144/2015 que tinha por objeto a contratação de serviços de telecomunicação na modalidade SCM (Serviços de Comunicação Multimídia) para interligar diversas agências dos Correios por todo o país pelo prazo de 5 anos.

A BT era a então fornecedora desse serviço para os Correios, mas diante do encerramento do prazo do contrato anterior, um novo certame foi realizado por meio do Pregão nº 144/2015. Porém, nessa concorrência viu a formação de um competidor composto de Claro e uma de suas subsidiárias, Oi e Telefônica.

Análise da SG/CADE

Conforme indica o anexo da Nota Técnica nº 33/2017[1], de forma resumida, Claro, Oi e Telefônica detinham a infraestrutura necessária para o oferecimento do serviço objeto do Pregão 144/2015. A BT ao buscar contratar tal infraestrutura para participar do certame enfrentou as seguintes situações:

Claro: A empresa não teria respondido aos pedidos de orçamento enviados pela BT[2], dando indício de recusa de contratar.

Telefônica: Esta não teria permitido a contratação de sua “rede especializada”, ofertando acesso apenas a sua “rede regular”[3]. O que se demonstrou é que a “rede regular” tinha um valor 7 vezes maior que o preço da “rede especializada”, reduzindo o poder competitivo da BT.

Oi: A empresa não teria mantido a linearidade da relação preço/volume do que fora oferecido ao Consórcio em comparação ao oferecido à BT[4], reduzindo a capacidade competitiva da BT no certame.

Em resumo, segundo apurado pela Superintendência-Geral do CADE, a Claro teria praticado recusa de contratar na medida em que era detentora de um insumo considerado essencial para que a BT pudesse ter condições de competitividade no certame. Além disso, Telefônica e Oi, também detentoras de tal estrutura considerada essencial, ofereceram preços para a BT a maior do que os ofertados para o consórcio em que elas mesmo integravam de modo a favorecerem a si mesmas em detrimento da BT na disputa pela prestação de serviços aos Correios no certâmen em questão. Ou seja, as condutas identificadas foram (i) recusa de contratar e (ii) discriminação de preços com intuito de excluir concorrentes.

Quanto a essas duas condutas, é interessante notar que o Anexo da Nota Técnica nº 33/2017 conclui que tais condutas foram praticadas tanto de forma unilateral quanto de forma coordenada.

Nesse sentido, para análise da ilicitude de uma dada conduta, seja ela unilateral ou coordenada, é preciso que se verifique a existência de 3 elementos[5]:

  • Detenção de poder de mercado por parte da investigada;
  • Potencialidade de danos significativos à concorrência no mercado da representante e;
  • Existência ou não de justificativas objetivas.

Ainda, interessante notar também o enquadramento legal dado para as condutas unilaterais e coordenadas do caso em questão de acordo com o rol expostos nos incisos da Lei 12529/11, Art. 36, §3º.

Condutas unilaterais:

Inciso III – Limitar ou impedir o acesso de novas empresas no mercado;

Inciso IV – Criar dificuldades à constituição, ao funcionamento, ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

Inciso V – Impedir acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuições

Inciso X – Discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços e condições operacionais de venda ou prestação de serviço;

Inciso XI – Recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais.

Condutas coordenadas:

Inciso I – Acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a – preços de bens ou serviços ofertados individualmente, d – preços, condições, vantagens ou abstenção em licitações pública;

Inciso III – Limitar ou impedir o acesso de novas empresas no mercado.

Opinião do Tribunal

O caso foi encaminhado para o Tribunal do Cade pelo Despacho de encerramento da SG de 05 de março de 2021. A Conselheira Paula Farani foi sorteada relatora do caso e o tribunal acompanhou por unanimidade a sua decisão de condenação de Claro, Oi e Telefônica pelas condutas unilaterais e coordenadas.

No voto da Conselheira Farani, há uma distinção importante entre conduta coordenada e cartel, dissipando a confusão entre os dois tipos que acompanhou o processo, como transcrito a seguir:

“Trata-se, portanto, de uma conduta com efeitos semelhantes a um cartel, uma vez que restringe a concorrência horizontal e os rivais agem de forma coordenada, embora com este não se confunda. Para esclarecer a diferença deste tipo de conduta concertada em relação a carteis, ao mesmo tempo que se ressalta os riscos concorrenciais que lhes são associados, transcrevo trecho de guia elaborado pela Federal Trade Commission, dos Estados Unidos: 

‘A fim de competir em mercados modernos, os concorrentes por vezes precisam de colaboração. As forças competitivas estão guiando as empresas em direção a colaborações complexas para alcançar objetivos tais como a expansão para mercados estrangeiros, o financiamento de dispendiosos esforços de inovação, e a redução dos custos de produção e outros.

No ambiente de mercado atual, os concorrentes interagem de muitas maneiras, através de associações comerciais, grupos profissionais, joint ventures, organizações que estabelecem padrões, e outros grupos industriais. Tais relações são frequentemente não apenas competitivamente benignas, mas também pró-competitivos. Mas existem riscos concorrenciais quando concorrentes interagem a tal ponto que já não agem independentemente, ou quando a colaboração dá aos concorrentes a capacidade de exercer o poder de mercado em conjunto.

Para os acordos de não competição, tais como fixação de preços, manipulação de propostas em licitações e divisão de mercado, as regras são claras. Os tribunais decidiram há muitos anos que essas práticas são tão intrinsecamente prejudiciais para os consumidores, que elas serão sempre ilegais, as chamadas violações per se. Para outros acordos entre concorrentes, as regras não são tão claras e definidas e frequentemente exigem uma investigação intensiva sobre o propósito e os efeitos da colaboração, incluindo quaisquer justificativas comerciais. Os aplicadores da lei devem perguntar: qual é a finalidade e o efeito dos acordos entre concorrentes? Eles restringem a concorrência ou promovem eficiência?’[6](Grifou-se)”

Dois elementos chamam a atenção nesse trecho. Primeiro, o critério da institucionalidade como diferenciador de um cartel clássico e de condutas coordenadas. Além disso, o exercício de poder de mercado decorrente da colaboração com bases lícitas parece também auxiliar nessa distinção, pois no cartel clássico o exercício de poder de mercado seria decorrente de uma colaboração ilícita. Em outras palavras, fazer um consórcio para participação em uma licitação é lícito, embora tenha que se tomar o devido cuidado para que sua atuação não incorra em eventual abuso de poder de mercado, que pode ou não se originar do consórcio. Já em um cartel, o conluio é per se ilícito, caso se comprove a sua existência.

Para analisar se o consórcio formado teria ou não uma justificativa no sentido de fomentar a competição, a Conselheira Farani se valeu do critério apresentado pela OCDE para a aferição do caráter concorrencial de um consórcio em licitações.

De acordo com tal critério, consórcios em licitações teriam efeitos pró-competitivos quando:

“(i) Os fornecedores são ativos em mercados distintos;

(ii) Os participantes de um consórcio oferecem um serviço integrado único que não poderia ser oferecido de maneira independente;

(iii) Dois ou mais fornecedores ativos em diferentes áreas geográficas apresentam propostas que atendem a todo o território contratual, gerando eficiências;

(iv) Dois ou mais fornecedores combinam capacidades para atender a contratos amplos que não poderiam ser atendidos individualmente;[7]

Ao contrário, consórcios podem ter efeitos concorrenciais quando observadas os seguintes elementos:

“(i) Cada uma das empresas possui recursos econômicos, financeiros e técnicos para atender ao contrato individualmente;

(ii) O consórcio é formado pelos maiores concorrentes no mercado relevante;

(iii) O consórcio não gera eficiências ou as eficiências não são repassadas para os compradores em termos de redução de preços, maior qualidade ou melhor entrega;

(iv) O consórcio permite que os membros troquem informações entre si que pode prejudicar a concorrência em contratações futuras.[8]

Partindo dessas referências, então ao Conselheira Farani extrai a seguinte regra para analisar a eventual natureza competitiva do consórcio em análise, que seria: “(i) a complementariedade de atuação, seja de produto ou geográfico; ou (ii) capacidade insuficiente para atender integralmente o contrato.[9]” (grifos nossos)

Nesse sentido, o que a Conselheira conclui é que Claro e Oi teriam condições de atender praticamente todo o território nacional, apresentando uma sobreposição quase completa em termos de oferta de serviço SCM. Dessa forma, haveria complementariedade apenas entre as redes da Telefônica com a da Oi ou Claro. Assim, Oi e Claro teriam capacidade para atender o contrato de forma isolada, não havendo justificativa para a formação do consórcio[10]. Assim, diante das práticas de recusa de contratar e de discriminação de preços com intuito anticompetitivo e da ausência de justificativa economicamente plausível para o consórcio analisado, então é que se conclui pela existência de infração à ordem econômica.

Caso GranPetro – Processo Administrativo nº 08700.001831/2014-27

O caso

Na 205ª Sessão Ordinária de Julgamento foi apreciado o caso oriundo de uma representação da GranPetro em face das empresas que integravam o pool de abastecimento de aeronaves do aeroporto internacional de Guarulhos – SP bem como a própria concessionária que hoje administra o aeroporto.

Tal pool de abastecimento é formado pelas empresas Air BP Brasil Ltda., BR Distribuidora S.A. (hoje denominada Vibra) e Raízen Combustíveis S.A. A controvérsia se dava por conta do interesse da GranPetro em integrar o pool, o que era questionado pelas demais empresas bem como a concessionária do aeroporto.

Análise da SG/CADE

De acordo com a Nota Técnica nº 11/2019, seriam duas as condutas analisadas em concreto:

“a) Recusa de contratar, associada à imposição de dificuldade de acesso à infraestrutura essencial, no Pool de Paulínia/SP, por parte da Raízen; e

b) Imposição de barreiras artificias à entrada e de dificuldades no acesso a infraestrutura essencial no mercado de QAv no Aeroporto de Guarulhos, por parte das distribuidoras BR, Raízen e Air BP e do GRU Airport.[11]

Essas acabam sendo as duas condutas levadas a julgamento pelo Tribunal do CADE posteriormente. De todo modo, a Nota Técnica nº 31/2020 traz um maior detalhamento quanto o objeto de investigação. Nesse sentido, indica a NT que 3 seriam os temas de análise da investigação: (i) recusa de contratação, (ii) fechamento de mercado e a (iii) existência de uma essential facility[12].

Muito embora a recusa de contratar não seja um conduta anticompetitiva por si só, é importante observar o critério indicado pela NT nº 31/2020 de quando tal comportamento pode ser nocivo: “A conduta é especialmente preocupante quando um agente verticalizado com posição dominante em alguma das etapas da cadeia produtiva se recusa: (i) a ofertar um insumo essencial a um agente no mercado à jusante; ou (ii) a adquirir produtos de um agente no mercado à montante de modo a eliminar a concorrência nesse mercado.[13]

A seguir, analisando a questão em torno do conceito de essential facility, a SG indica o caso MCI Telecommunications Corp. vs AT&T Co.United States, julgado pela Corte de Apelação do Distrito de Columbia, como referência. Desse caso, “(i) controle da infraestrutura essencial por um monopolista; (ii) impossibilidade de um concorrente duplicar, de modo fático ou razoável, a infraestrutura; (iii) recusa de acesso a um concorrente; e (iv) existência de condições técnicas e econômicas para fornecimento de acesso a concorrentes[14]” seriam fatores para determinar a existência de uma essential facility.

Observando esses dois pontos, pode-se perceber que eles se tornam problemáticos na medida em que levam a exclusão de um concorrente, reduzindo a possibilidade de ofertas de bens/serviços no mercado relevante em questão.

A NT nº 31/2020 indicou os seguintes elementos como característicos de uma situação em que há a possibilidade de fechamento de mercado:

  • Participação de mercado da empresa integrada à montante;
  • Essencialidade do insumo;
  • Representatividade do valor do insumo no custo total de produção;
  • Nível de diferenciação propiciado pelo insumo; e,
  • Custos de troca para recorrer a um fornecedor alternativo – presença de relações de exclusividade ou nível de verticalização de mercado.

Além disso, importante observar a existência de mitigadores:

  • Presença de competidores no mercado;
  • Capacidade ociosa por parte dos concorrentes;
  • Nível de qualidade dos insumos alternativos;
  • Baixos custos de troca; e
  • Baixa representatividade dos insumos no valor do bem final[15].

Em paralelo, a NT nº 31/2020 também elenca características em termos econômicos que funcionariam como incentivos para um comportamento de fechamento de mercado por um agente econômico:

  • Rentabilidade da estratégia;
  • Existência de um trade-off – abre-se mão de receitas em um mercado na expectativa de recuperação em outro mercado;
  • Custo de oportunidade da estratégia – a depender da margem de receitas à montante;
  • Grau de retorno em caso de sucesso da estratégia – a depender da margem de receitas à jusante; e
  • Capacidade de promover um desvio da demanda dos concorrentes para a empresa integrada.

Também aqui deve-se considerar os mitigadores:

  • Margem elevada à montante – alto custo de oportunidade das vendas recusadas;
  • Baixa margem de lucro à jusante – vale a pena manter vendas para concorrentes; e
  • Baixa capacidade de desviar a demanda para a empresa integrada – custo do insumo for pequeno frente ao total do produto ou baixa for a substituibilidade entre os concorrentes[16].

No caso em questão, a investigação dividiu a análise em duas condutas que viriam a ser analisadas. Dada a complexidade das duas condutas, vamos apenas nos ater a sua denominação genérica, muito embora com as informações aqui dispostas seja possível encontrá-las a posteriori nos autos indicados.

Quanto a Conduta 1, do ponto de vista de critério para analisar a eventual existência de dano, a SG tomou por base os seguintes parâmetros:

  • Posição dominante no mercado a montante;
  • Existência de justificativas objetivas e plausíveis para a recusa por parte do fornecedor;
  • Se o objeto da recusa possui substitutos próximos e;
  • Se a recusa de fato é capaz de prejudicar a concorrência no mercado a jusante[17].

Quanto a tais pontos, a NT nº31/2020 conclui que (i) havia posição dominante das empresas que compunham o pool; (ii) as justificativas apresentadas para a recusa não seriam plausíveis se não pelo argumento da livre negociação, embora não estivesse alinhado com os termos estabelecidos no Termo de Regulação de Conduta quando da criação da Raízen; (iii) haveria substitutibilidade do objeto da recusa apresentada pela Raízen uma vez que a GranPetro poderia contratar cessão de espaço junto a BR Distribuidora, hoje Vibra. (iv) a SG conclui que a recusa realizada pela Raízen, de todo modo, não teria sido capaz de prejudicar a concorrência no mercado de distribuição de QAv. Portanto, entendeu a SG que não teria havia dano concorrencial em relação a a Conduta 1, sobretudo pela existência de substitutos ao pleito da GranPetro bem como a identificação de que não teria havido prejuízo à concorrência decorrente da recusa da Raízen.

Quanto a Conduta 2, do ponto de vista de critério para analisar a eventual existência de dano, a SG tomou por base os seguintes questionamentos:

  • A infraestrutura do Pool de Guarulhos caracteriza-se como uma essential facility?;
  • O controle da infraestrutura do Pool de Guarulhos à montante concede capacidade aos incumbentes para fechamento do mercado de operações into plane das distribuidoras de combustíveis de aviação no Aeroporto de Guarulhos à jusante?
  • A Cláusula 2.2.2 do Contrato CCAIG (Central de Combustíveis do Aeroporto Internacional de Guarulhos – vulgo “pool”) tem conteúdo discriminatório e anticoncorrencial?
  • A aplicação da Cláusula 2.2.2 no Contrato CCAIG pelas distribuidoras Representadas à Gran Petro configurou uma barreira artificial à entrada?[18]

A Cláusula 2.2.2 do Contrato CCAIG (pool) dizia o seguinte:

“2.2.2. Fica acordado entre as partes que, em função dos investimentos a serem feitos pelo CCAIG descritos na cláusula 10.8 e no Anexo II a este contrato, a utilização do Queroduto por terceiros durante a vigência deste contrato dependerá da concordância e autorização das Partes. A autorização do CCAIG será dada mediante (i) disponibilidade de capacidade do Queroduto e (ii) atendimento por parte do terceiro aos requisitos mínimos de natureza operacional, técnica e financeira que permitam a plena utilização do Queroduto conforme os padrões de segurança estabelecido nos padrões nacionais e internacionais.[19]

Pois bem, quanto a Conduta 2 e as premissas estabelecidas como critério para a existência de eventual dano, a SG conclui pelo seguinte:

  • Conduta anticompetitiva identificada: imposição artificial de barreiras à entrada no mercado relevante de comercialização de QAv no Aeroporto de Guarulhos, especificamente na atividade de operação into plane;
  • Forma de implementação: o estabelecimento da Cláusula 2.2.2 no Contrato CCAIG, celebrado em 30/04/2013;
  • Período: a partir da celebração do Contrato CCAIG até o momento;
  • Elemento probatório: Contrato CCAIG e análise realizada na presente manifestação pela regra da razão; e
  • Autores: GRU Airport, de um lado, e partícipes do CCAIG – Air BP, BR, e Raízen – de outro[20].

A conclusão geral que se findou a SG é a de que os critérios abstratos estabelecidos pela cláusula 2.2.2 do CCAIG serviram para um retardamento do ingresso da GranPetro, elevando as barreiras à entrada para a ampliação de concorrentes neste mercado.

Opinião do Tribunal

No Tribunal, o caso foi sorteado para a relatoria do Conselheiro Hoffmann. Dada a complexidade do caso, os próprios órgãos do CADE apresentaram visões divergentes quanto a licitude ou não das condutas investigadas, como é possível observar do quadro extraído do voto do Relator Hoffmann[21]:

Ademais, o Conselheiro Relator votou pelo arquivo quanto a acusação indicada tanto para a Conduta 1 quanto para a Conduta 2, no que foi acompanhado pela Conselheira Lenisa Prado. Entretanto, o voto do Conselheiro Braido divergiu do apresentado pelo relator sob o argumento de que o impedimento do acesso pela GranPetro ao pool poderia fazer com que a alternativa que lhe restaria, abastecimento por meio de caminhões tanque, colocasse a GranPetro em situação de custo médio mais elevado, causando uma distorção concorrencial a longo prazo, o que desincentivaria a ampliação da competição ocasionado pela abstração da Cláusula 2.2.2 do CCAIG já apresentado acima:

“Em resumo, a indefinição das condições de acesso de novas empresas no condomínio administrador do CCAIG tem como efeito principal impedir a livre entrada de empresas distribuidoras de combustível de aviação. Ainda que se considere a situação hipotética apresentada pelas Representadas, na qual o ingresso de empresa sem acesso à rede de hidrantes seria financeiramente viável, isso dependeria de um aumento nos volumes abastecidos por meio de CTAs no aeroporto, algo que distorceria a alocação ótima de fatores de produção, gerando ineficiência técnica, aumento de custos e subutilização da infraestrutura instalada.

Concluo, dessa forma, que a conduta aqui analisada limita a livre concorrência e a livre iniciativa (art. 36, I). Adicionalmente, no caso das distribuidoras Representadas, esse ato também gera dominância de mercado relevante (art. 36, II) e constitui abuso de posição dominante (art. 36, IV).[22]

Por fim, todos os demais, com exceção dos Conselheiros Hoffmann e Prado, votaram pela condenação das representadas empresas do pool e da GRU Airport em decorrência da opinião de que haveria “imposição de barreiras artificias à entrada e de dificuldades no acesso a infraestrutura essencial no mercado de QAv no Aeroporto de Guarulhos” ocasionada pelo comportamento das representadas usando por base a Cláusula 2.2.2 do CCAIG.

Avaliando os três primeiros critérios indicados para análise do caso (recusa de contratar, fechamento de mercado e essential facility), o que se percebe é que o critério final de decisão (imposição de barreiras artificiais à entrada) foi trazido a uma análise mais aprofundada quando o caso já estava em estágio avançado de análise, o que só reforça a complexidade do caso.

Conclusões

Muitas vezes a chave de análise Conduta Unilateral x Cartel pode dar a impressão (errônea, como vimos) de que a primeira só pode ser realizada por agentes de forma isolada enquanto o segundo apenas por agentes em conjunto. Obviamente, Cartéis exigem mais de uma agente econômico para a sua prática. Entretanto, agentes econômicos quando atuam conjuntamente também podem incorrer nas hipóteses daquilo que se denomina por Condutas Unilaterais, sendo denominadas, como indicado acima, Condutas Concertadas. Em ambos os casos analisados observamos o envolvimento de bens públicos, no conceito jurídico (como no caso BT), ou vinculados a equipamentos públicos (como é o caso GranPetro vinculado a estrutura do aeroporto de Guarulhos). O que se pode levantar de lição é que nesse tipo de situação o cuidado quanto a condições plenas de concorrência deve ser redobrado, sobretudo no que condiz a entrada de novos agentes ou quando se está de posse de estruturas ou insumos que possam influenciar os custos de seus concorrentes. A beleza do Direito da Concorrência está justamente no exercício de ver com as lentes da economia para se tomar decisões de caráter jurídico e é disso que decorre a necessidade de medir o máximo possível os efeitos das estratégias empresariais de modo que o ótimo não vire inimigo do bom. 


[1] Vide SEI 0378893 no PA nº 08700.011835/2015-02

[2] Idem. p.35.

[3] Idem. p.37.

[4] Idem. p. 50.

[5] Idem p. 31.

[6] Disponível em: https://www.ftc.gov/tips-advice/competition-guidance/guide-antitrust-laws/dealings-competitors. Acesso em 15 de fevereiro de 2022. Apud Voto Conselheira Paula Farani no PA nº 08700.011835/2015-02. (SEI 1024583)

[7] Vide OCDE (2021), Combate a cartéis em licitações no Brasil: Uma revisão das Compras Públicas Federais. p. 62. Disponível em: < https://www.oecd.org/competition/fighting-bid-rigging-in-brazil-a-review-of-federal-publicprocurement. Htm > Apud idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Vide SEI 0597389 no PA nº 08700.001831/2014-27.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] Idem. Nota de Rodapé 32.

[20] Idem.

[21] Vide Voto Conselheiro Luiz Hoffmann no PA nº 08700.001831/2014-27 (SEI 1136025)

[22] Voto do Conselheiro Luis Braido no PA nº 08700.001831/2014-27 (SEI 1149523)


KEMIL RAJE JARUDE. Advogado e vice-presidente da Câmara Júnior Brasil-Alemanha. Bacharel pela FDUSP e especialista em Direito Alemão pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (Alemanha). Alumni do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) e do PET (Programa Especial de Treinamento) do Ministério da Educação do Brasil. Foi professor convidado na I Escola Internacional de Verão em Direito Internacional dos Investimentos da Georg-August-Universität (Alemanha). É pós-graduando em direito concorrencial e regulatório pela FGV-SP.