Artigos de opinião

O Processo de Due Diligence no Financiamento de Litígios

Eric Moura

O financiamento de litígios envolve uma empresa que fornece suporte financeiro a um autor ou escritório de advocacia em troca de uma parte do resultado de um acordo ou sentença. Esse financiamento cobre honorários advocatícios e outras despesas associadas ao caso. Ele permite que os autores sigam com ações que, de outra forma, não poderiam arcar, nivelando assim as condições contra réus bem capitalizados. Essa prática tem ganhado força, pois mitiga o risco financeiro para os autores e escritórios de advocacia que trabalham com honorários condicionados ao êxito.

Quando um financiador apoia um caso, isso geralmente sinaliza a força da causa. As empresas de financiamento de litígios realizam uma diligência rigorosa antes de comprometer recursos, analisando os méritos do caso, a probabilidade de sucesso e o potencial de recuperação financeira. Esse processo rigoroso de análise, que inclui avaliação jurídica, factual e financeira, é semelhante às avaliações feitas por investidores sofisticados em outros setores. A aprovação do financiamento, portanto, implica que o caso passou por várias camadas de escrutínio, indicando uma maior probabilidade de sucesso, o que pode facilitar acordos.

Saber que um autor tem apoio financeiro para sustentar um litígio prolongado pode incentivar os réus a buscarem um acordo em vez de se envolverem em uma batalha legal prolongada. Além disso, as partes podem preferir acordos para garantir uma recuperação mais rápida e mitigar a incerteza e os custos associados aos julgamentos. Essa dinâmica muitas vezes leva a resoluções mais eficientes, beneficiando todas as partes envolvidas ao reduzir o tempo e as despesas com litígios.

Assim, a próxima pergunta lógica é: como o processo de due diligence funciona na prática e como os autores e seus advogados podem melhor preparar seus casos para esse processo?

O Processo de Due Diligence e suas Etapas Preliminares

A due diligence de uma ação envolve uma avaliação abrangente de vários aspectos do caso para garantir que os financiadores invistam apenas em casos com fortes perspectivas. Os financiadores geralmente examinam os méritos jurídicos, o histórico factual, as projeções financeiras e os riscos potenciais de recuperação associados ao caso. Ao analisar meticulosamente esses elementos, os financiadores tomam decisões informadas sobre quais casos apoiar. No entanto, antes que a due diligence possa ocorrer, algumas etapas preliminares são necessárias.

Acordo de Confidencialidade

A celebração de um Acordo de Confidencialidade (NDA) é vital para proteger informações confidenciais relativas ao caso. O processo de financiamento geralmente começa com o autor ou seu advogado fornecendo ao financiador uma visão geral do caso e uma estimativa do capital necessário para seu desenvolvimento. Antes de aprofundar as discussões detalhadas, os financiadores exigem a execução de um NDA.

Uma vez que o NDA está em vigência, o financiador receberá informações mais específicas e confidenciais sobre o caso. Isso geralmente inclui: (1) o histórico factual e os argumentos jurídicos; (2) potenciais recuperações e avaliações preliminares de danos; (3) a jurisdição do litígio para garantir a conformidade com a legislação aplicável; (4) o montante de financiamento solicitado, incluindo o orçamento do advogado; e (5) o arranjo de financiamento desejado, seja para capital de giro, honorários advocatícios, custos do litígio ou uma combinação. Durante essas conversas iniciais, o financiador verificará se o arranjo de financiamento proposto está alinhado com seus critérios de seleção, como o tamanho mínimo do investimento.

Term Sheet

Quando o financiador decide prosseguir após discussões preliminares e uma análise inicial do caso, geralmente, há a emissão de um “term sheet” não vinculativo que delineia os termos econômicos do investimento proposto. Este documento frequentemente inclui um período estimado de due diligence, permitindo que o financiador avalie minuciosamente os méritos do caso. A duração deste período varia conforme a complexidade e a jurisdição do caso, mas pode ser acelerado de acordo com particularidades.

Fundamentalmente, o term sheet descreve as expectativas das partes em relação à transação a ser realizada após a due diligence. Ele geralmente detalha o valor e os tipos de capital que o financiador se compromete a disponibilizar, o cronograma de liberação, a estrutura de retorno do financiador e a ordem de pagamento. Os retornos frequentemente aumentam com o tempo à medida que o financiador investe mais capital no litígio. A avaliação adequada do retorno varia conforme o investimento e pode ser estruturada como um múltiplo do valor financiado, um percentual dos resultados do litígio ou o maior dos dois. Um financiador de boa reputação também presta atenção particular à parcela do resultado que o autor receberá. O objetivo é que todas as partes permaneçam alinhadas durante o curso do litígio; portanto, se há a hipótese de o autor obter apenas uma parcela pequena do resultado de um acordo ou sentença, o financiador pode recusar o financiamento do caso. Por exemplo, a Omni Bridgeway se esforça para criar estruturas de retorno flexíveis adaptadas às necessidades do reclamante e às especificidades de cada caso, e está sempre avaliando quanto de uma eventual recuperação irá para o reclamante.

Embora os term sheets geralmente não sejam vinculativos em relação a termos específicos, a maioria dos financiadores exige um período de exclusividade. Essa exclusividade garante que o investimento significativo de tempo e recursos do financiador na análise do caso e na condução da due diligence (incluindo a contratação de especialistas externos, advogados transacionais e a realização de pesquisas relativas a background) não seja desperdiçado.

Uma vez que o term sheet é executado, o financiador inicia o processo detalhado de due diligence.

O Processo de Due Diligence

O processo de due diligence no financiamento de litígios é uma análise abrangente projetada para avaliar os méritos de um caso e concluir os termos do acordo de financiamento de litígio. Esta revisão multifacetada garante que o caso seja um investimento sólido, avaliando vários aspectos críticos.

O processo é mais eficiente quando o material submetido pelos autores e seus advogados está bem organizado e aborda as áreas-chave no processo de due diligence. Essas áreas incluem:

  • Autor e Representação Legal: Avaliar o histórico, a estabilidade financeira e o histórico de litígios do autor é crucial. Da mesma forma, são avaliadas a experiência, reputação e histórico do advogado do reclamante em lidar com casos semelhantes.
  • Réus e Sua Equipe Jurídica: É realizada uma pesquisa sobre a capacidade financeira dos réus para satisfazer potenciais sentenças ou acordos. As estratégias utilizadas e reputações dos advogados de defesa também são analisadas.
  • Base Factual: Uma revisão meticulosa do histórico factual é necessária para determinar a força e a credibilidade das alegações do reclamante.
  • Documentação de Apoio: Documentos-chave que apoiam o caso do autor, como contratos e correspondências, são examinados detalhadamente, assim como a documentação referente às defesas.
  • Estratégias de Defesa: Avaliar as defesas potenciais que o réu pode levantar e revisar documentos relevantes de apoio é essencial para entender os possíveis desafios do caso.
  • Reconvenções: Considerar possíveis reconvenções do réu e seu impacto potencial no caso é outro aspecto crítico da análise.
  • Estrutura Legal: A lei aplicável, incluindo questões de jurisdição e prazos prescricionais, é analisada minuciosamente para identificar quaisquer restrições ou obstáculos legais.

Fornecer esses documentos prontamente permite que os financiadores realizem uma análise minuciosa e eficiente. Além disso, quando os autores e seus advogados fornecem memorandos detalhados sobre essas várias áreas-chave de pesquisa — como perfis do autor e do réu, estratégias jurídicas, suporte probatório e defesas potenciais — isso auxilia significativamente o processo de due diligence. Esses memorandos ajudam os financiadores a entender as complexidades do caso e identificar riscos e oportunidades.

Além disso, a preparação e o refinamento do orçamento são partes cruciais do processo de due diligence. Para que os financiadores decidam investir, o orçamento deve ser suficiente para alcançar uma conclusão bem-sucedida, exigindo que seja conservador até o julgamento. Muitas vezes, casos são rejeitados porque a relação necessária entre investimento e retorno esperado é muito estreita. Orçamentos claros e realistas que não dependem de acordos precoces ajudam a confirmar a viabilidade econômica do investimento no litígio.

Embora o processo de due diligence possa ser trabalhoso para os autores e seus advogados, ele é essencial para garantir o financiamento e muitas vezes fortalece o caso. O processo incentiva os advogados a analisar possíveis vulnerabilidades, identificar as melhores provas e desenvolver contra-argumentos mais cedo do que o habitual. Essa abordagem proativa pode levar a uma estratégia mais robusta e aumentar a probabilidade de um resultado favorável.

Em conclusão, o processo de due diligence é um elemento crucial do financiamento de litígios, garantindo que os financiadores invistam em casos com fortes perspectivas. Ao avaliar minuciosamente todos os aspectos de um caso, os financiadores podem tomar decisões informadas, mitigar riscos financeiros e apoiar os autores em suas demandas jurídicas.

Fontes

Omni Bridgeway. “Step by Step: The Nuts and Bolts of the Funding Process – Part One.” Acesso em 20 de julho de 2024. Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/blog/blog-posts/blog-details/global/2021/09/29/step-by-step-the-nuts-and-bolts-of-the-funding-process-part-one

Omni Bridgeway. “In Practice: How is Due Diligence Carried Out on a Case?” Acesso em 20 de julho de 2024. Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/video-catalog/all-videos/video-details/in-practise-how-is-due-diligence-carried-out-on-a-case


ERIC MOURA. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com


O limite da atuação dos tribunais superiores na formação de teses

Maria Augusta Sampaio Ferraz

A normatividade dos precedentes no direito brasileiro

No contexto jurídico atual, o destaque dos precedentes é evidente. Sua introdução no sistema jurídico brasileiro tem como fundamento desempenhar um papel crucial na promoção da isonomia na aplicação do direito, assegurando que casos semelhantes sejam tratados de maneira uniforme e previsível. Este mecanismo busca contribuir significativamente para a segurança jurídica e para a confiança dos cidadãos no judiciário.

As Cortes Superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, são fundamentais na formação de teses que orientam a aplicação do direito pelos demais tribunais. As decisões proferidas por estas instâncias superiores estabelecem, em determinados casos, precedentes obrigatórios, que devem ser seguidos pelos tribunais inferiores, garantindo assim a coerência e a integridade do ordenamento jurídico.

A partir do momento em que os precedentes são adotados como fontes do direito no sentido de formarem uma regra de conduta, as decisões judiciais deixam de ser apenas resoluções de casos concretos para assumirem um papel normativo. Esta transformação é evidenciada pela relevância conferida aos acórdãos das Cortes Superiores, especialmente o STF e o STJ.

Nesse sentido, o papel das Cortes Superiores é de grande destaque, pois certas decisões proferidas nessas jurisdições constituem precedentes com efeito vinculante tanto horizontalmente, entre os próprios ministros e turmas desses tribunais, quanto verticalmente, obrigando os tribunais inferiores a seguirem essas orientações. A adoção dessa prática visa assegurar a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais, promovendo a segurança jurídica e a isonomia.

A normatividade dos precedentes é vista como um mecanismo indispensável para garantir a uniformidade, a estabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais. A adoção do CPC/2015 e a valorização dos precedentes pelas Cortes Superiores evidenciam uma transformação significativa no sistema jurídico brasileiro, que busca conciliar a tradição do civil law com a prática dos precedentes, tradicionalmente associada ao common law.

Quando falamos em precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, podemos falar das decisões proferidas em sede de Repercussão Geral, que, após o julgamento, são formados “temas”, que nada mais são o dispositivo da decisão que deve ser observado para posterior aplicação em casos idênticos ou semelhantes, com o devido dever de adequação.

A formação de teses e os limites que devem ser observados pelos tribunais

A decisão judicial é, de maneira simples, o resultado da subsunção de um fato a determinada norma. Para Kelsen, a subsunção é um processo técnico-jurídico que assegura a objetividade e a previsibilidade do direito.[1] Contudo, há algum tempo, a tarefa dos juízes não é vista, exclusivamente, como só a de aplicar a lei dedutivamente[2], seja pela necessidade de completude do sistema, que muitas vezes contêm lacunas ou termos vagos que precisem de interpretação, seja pelo crescente papel dos Tribunais Superiores na interpretação dessas normas. Soma-se a isso a importância dos precedentes, conforme já abordado.

O julgamento de recursos extraordinários e formação de teses pelo STF e pelo STJ tem um papel fundamental na uniformização da interpretação da Constituição Federal e das Leis Federais, além da promoção da segurança jurídica. Contudo, é imperativo que estes Tribunais, ao proferirem decisão em determinado recurso de aplicação vinculante, observem estritamente os limites do caso concreto, evitando extrapolar ou modificar a questão originalmente discutida e decidida nas instâncias inferiores. Esse cuidado é essencial para garantir que a tese fixada reflita exatamente o que foi decidido, sem ir além ou aquém do que foi solicitado e debatido.

A necessidade de observância dos limites do caso concreto se fundamenta nos artigos 102, inciso III e 105, inciso III, da Constituição Federal, que estabelecem a competência do STF e do STJ, respectivamente, para “julgar, mediante recurso extraordinário/especial, as causas decididas em única ou última instância”. Este dispositivo implica que a tese a ser fixada deve corresponder precisamente ao que foi objeto de discussão no caso concreto, não podendo divergir do que foi pedido e debatido nas instâncias inferiores. Ao exceder esses limites, estes Tribunais correm o risco de criarem novas normas jurídicas sem a devida participação das partes envolvidas, o que contraria os princípios do devido processo legal e do contraditório. Isso ocorre porque as teses não podem, de maneira arbitrária, abordar temas que não foram incluídos no pedido inicial e sobre os quais não houve um debate amplo e exaustivo.

Nesse sentido foi o posicionamento do STJ no julgamento do Recurso Especial 1798374, de relatoria do Ministro Mauro Campbell. No caso, o Tribunal discutiu se seria possível a interposição de recurso especial contra decisão de segunda instância que fixa tese em abstrato em incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR). A decisão foi que o recurso não seria cabível pela ausência do requisito constitucional de necessidade de causa decidida.[3]

RATIO DECIDENDI, OBITER DICTUM e tese

No contexto dos precedentes, alguns conceitos jurídicos do direito anglo-saxão são inerentes ao tema, tais como ratio decidendi e obiter dictum. Desse modo, o jurista brasileiro tem o ônus de enquadrá-los no âmbito jurisdicional constitucional para aplicá-los no ordenamento jurídico nacional.

Inicialmente, cabe destacar que observamos, em especial com a valorização dos precedentes e com o dever de observância dos provimentos jurisdicionais vinculantes, que os Tribunais, em especial o STF e o STJ, tentam, de alguma forma, universalizar tanto quanto possível a amplitude de suas teses para que mais casos sejam abarcados na aplicação de seus precedentes.

A conduta ocorre, em certa medida, como uma tentativa de diminuição de acervo e de recebimento de processos por essas Cortes, tendo em vista que após um pronunciamento vinculante, seja através de repercussão geral ou de recursos repetitivos, os Tribunais de segunda instância podem obstar o processamento dos recursos que estejam em consonância com as teses proferidas pelas Cortes Superiores, inviabilizando a sua subida e assim diminuindo o acervo desses Tribunais.

Contudo, tal medida se mostra temerária e quiçá contra legem. Condutas que simplifiquem ou tentem buscar atalhos para problemas estruturais não se mostram efetivas, como podemos perceber nas últimas décadas.

Assim, para que seja possível definir a generalidade de uma tese é necessária a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Comecemos pela ratio, que, para é o fundamento essencial da decisão judicial, ou seja, o ponto central de onde se extrai a regra jurídica aplicável ao caso concreto. A ratio decidendi é a parte da decisão que contém a norma geral, que serve de base para o julgamento e que pode ser utilizada em futuros casos semelhantes. É a essência do raciocínio judicial que determina o resultado do caso e que pode ser replicada em situações análogas para garantir a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais.[4]

Já tudo aquilo que não foi identificado como razão principal para decisão é obiter dictum. Ou seja, tudo aquilo que não é ratio decidendi, e que não é essencial ou fundamental para o resultado de um caso.

O grave problema a ser enfrentado é que as Cortes Superiores brasileiras têm como costume se referir à ratio decidendi como teses, e por isso a relação entre os termos é de extrema importância. Se a tese deve refletir o(s) principal(is) fundamento(s) do julgamento do caso concreto, e ela não reflete, há, no mínimo, um problema de falta de coerência ou de lógica entre teoria (lei) e prática (julgamento).

O raciocínio sistemático pensado de acordo com o nosso sistema legal, portanto, nos leva à conclusão de que uma tese formada por fundamentos tidos como obiter dicta não refletem a discussão jurídica trazida no caso concreto e posta em julgamento. Nesse sentido, se os artigos da Constituição acima citados dispõem que o STF e o STJ devem julgar, mediante recursos extraordinário e especial, as causas decididas em única ou última instância, e se não existe causa decidida, é possível que possamos falar em inconstitucionalidade da tese formada em determinado precedente, por descumprimento de norma constitucional.

Essa é uma discussão traz reflexões necessárias de aplicação prática, em especial no sistema judicial brasileiro, onde institutos importados encontram-se cada vez mais presentes no ordenamento jurídico.

Portanto, a postura das Cortes Superiores em buscar a universalização de suas teses, visando reduzir o acervo de processos, deve ser ponderada com cautela. Simplificações ou atalhos para resolver problemas estruturais do sistema judiciário podem levar a soluções inadequadas e contrárias aos princípios fundamentais do direito. É crucial que as teses fixadas reflitam fielmente os fundamentos discutidos e decididos no caso concreto, garantindo assim a legitimidade e a eficácia dos precedentes.

Referências

ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

ARRUDA ALVIM, Teresa. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.


[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78.

[2] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo, Processo de Conhecimento, Recursos, Precedentes – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 208.

[3] A tese fixada pelo STJ no REsp 1798374 foi a seguinte: Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de “causa decidida”, mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema.

[4] ALVIM, Teresa Arruda. O novo CPC: o que importa? 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.


MARIA AUGUSTA SAMPAIO FERRAZ. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


Destaques do último Relatório de Economia Bancária – REB do BC

Leandro Oliveira Leite

O Relatório de Economia Bancária (REB)[1] trouxe uma série de pontos cruciais que refletem o desempenho e a evolução do Sistema Financeiro Nacional (SFN) ao longo do ano. Os principais destaques abordam a maior concorrência, a desaceleração do crescimento do crédito, a evolução da portabilidade, as inovações no setor financeiro e a incorporação do risco climático na análise do SFN.

O REB, publicação anual do Banco Central (BC), analisa diversos aspectos do SFN e as relações entre instituições financeiras e seus clientes. A última edição do REB, publicado em 06 de junho de 2024, vem adotando uma forma de comunicação mais moderna e direta, resumindo o conteúdo principal de cada parágrafo nas primeiras frases, seguido de detalhes subsequentes.

O relatório é composto por cinco capítulos principais, além de boxes temáticos que abordam questões específicas do SFN. Veja os principais capítulos abordados no REB neste ano:

  • Concorrência no SFN: Evolução dos indicadores de concentração e concorrência no SFN, inovações no setor e a atuação do Banco Central para fomentar um ambiente financeiro mais competitivo e inovador.
  • Evolução do Crédito no SFN: Análise do comportamento dos agregados de crédito, características das operações e dos tomadores, portabilidade de crédito e crédito para financiamento de importação e exportação.
  • Captações do Sistema Financeiro: Exame da composição e evolução das captações do sistema financeiro, detalhando os diferentes instrumentos e seus desempenhos ao longo do ano.
  • ICC e Spread: Decomposição do Índice de Custo de Crédito (ICC) e seu spread, analisando fatores como custo de captação, inadimplência, despesas administrativas, tributos e Fundo Garantidor de Créditos (FGC), além da margem financeira.
  • Rentabilidade das Instituições Financeiras: Análise da rentabilidade das instituições financeiras, abordando a performance financeira e os desafios enfrentados no ano.

Em 2023, observou-se uma desaceleração no crescimento do crédito no Sistema Financeiro Nacional, em grande parte devido à política monetária restritiva adotada pelo Banco Central. Esse contexto desafiador foi agravado pelo aumento da inadimplência, refletindo um ambiente econômico mais difícil para tomadores de crédito. O relatório detalha como essas condições impactaram os diferentes tipos de crédito, desde o crédito para consumo até o crédito para empresas, e analisa as características dos tomadores de crédito nesse período.

A evolução da portabilidade de crédito foi outro ponto de destaque. Essa funcionalidade permite aos consumidores transferirem suas dívidas entre instituições financeiras em busca de melhores condições, como taxas de juros mais baixas ou prazos mais vantajosos. O relatório sublinha o crescimento significativo dessa prática, que se tornou uma ferramenta importante para aumentar a competitividade no mercado de crédito, beneficiando os consumidores e incentivando as instituições financeiras a oferecerem condições mais atrativas.

O Banco Central do Brasil tem promovido várias inovações no setor financeiro, buscando modernizar e otimizar as operações financeiras no país. Entre as iniciativas destacadas no REB, estão o projeto Drex e as “Finanças Programáveis”.

  • Projeto Drex: Visa a modernização do sistema financeiro por meio de novas tecnologias, como o uso de blockchain e contratos inteligentes, que prometem tornar as transações mais seguras, rápidas e transparentes.
  • Finanças Programáveis: Envolvem a automatização de processos financeiros, permitindo a criação de produtos financeiros mais personalizados e eficientes. Essas inovações têm o potencial de transformar profundamente a forma como os serviços financeiros são oferecidos e consumidos no Brasil.

Já os boxes temáticos do Relatório são seções especiais dedicadas a estudos e pesquisas específicas sobre diversos aspectos do SFN. Esses boxes oferecem uma análise detalhada de temas emergentes e relevantes, proporcionando uma compreensão mais profunda das dinâmicas e dos desafios enfrentados pelo setor financeiro. A seguir, destacam-se alguns dos principais boxes temáticos abordados.

O primeiro dos boxes temáticos do REB examina a eficiência do sistema financeiro brasileiro. Esse estudo avalia a performance das instituições financeiras em termos de custos operacionais, produtividade e qualidade dos serviços oferecidos. O objetivo é identificar áreas onde há potencial para melhorias, bem como reconhecer as melhores práticas que podem ser replicadas para aumentar a eficiência do sistema como um todo. A análise inclui comparações internacionais, proporcionando um contexto mais amplo para entender como o Brasil se posiciona em relação a outros mercados.

A concentração nos mercados de cartões de pagamento é outro tema explorado em um dos boxes do REB. Esse estudo avalia a estrutura do mercado de cartões de crédito e débito no Brasil, avaliando o grau de concentração e suas implicações para a concorrência e os consumidores. O relatório examina as barreiras à entrada para novos competidores e as estratégias das instituições financeiras estabelecidas para manter sua participação de mercado. As conclusões destacam a necessidade de políticas que incentivem a concorrência e reduzam os custos para os consumidores.

Outro boxe temático relevante trata dos custos das remessas internacionais. As transferências de dinheiro entre países são cruciais para muitas famílias e pequenos negócios, especialmente aqueles que dependem de remessas enviadas por trabalhadores no exterior. O relatório analisa os custos associados a essas transferências, destacando as iniciativas que têm sido implementadas para reduzir essas despesas e tornar as remessas mais acessíveis e eficientes.

A expansão dos serviços financeiros é um tópico crucial abordado em um dos boxes temáticos. Este estudo foca na inclusão financeira e nas estratégias para ampliar o acesso aos serviços bancários e financeiros em regiões menos atendidas. O relatório analisa iniciativas como a digitalização dos serviços financeiros, a expansão das cooperativas de crédito e o papel das fintechs na promoção de um maior acesso ao crédito e a outros serviços financeiros. Essas iniciativas são fundamentais para promover a inclusão financeira e garantir que mais brasileiros tenham acesso às ferramentas necessárias para melhorar sua condição econômica.

Os programas educação financeira, também boxe temático, é vital para capacitar os consumidores a tomar decisões informadas sobre suas finanças pessoais. O relatório avalia a eficácia dos programas existentes, destacando as melhores práticas e identificando áreas onde há necessidade de aprimoramento. Os resultados mostram que uma maior educação financeira está correlacionada com uma melhor gestão do crédito e maior resiliência financeira, sublinhando a importância de continuar a investir nesses programas.

Finalmente, um dos mais inovadores, aborda o risco climático e sua relação com o Sistema Financeiro Nacional. Este estudo propõe a introdução de indicadores para avaliar e mitigar os impactos ambientais no setor financeiro. O relatório discute como as mudanças climáticas podem afetar a estabilidade financeira e a importância de integrar considerações ambientais na gestão de riscos das instituições financeiras. A proposta é que o SFN adote práticas sustentáveis e se prepare para os desafios futuros impostos pelas mudanças climáticas.

Ressalta-se que as impressões do mercado financeiro em relação ao REB foram, em geral, positivas e otimistas. Vários pontos específicos foram destacados pelos analistas e participantes do mercado:

  1. Aumento da Concorrência no Mercado de Crédito: O mercado financeiro viu com bons olhos o aumento da concorrência no mercado de crédito, especialmente nos segmentos bancário e cooperativo. O Indicador de Lerner, utilizado para medir a concorrência, mostrou uma redução significativa, indicando um aumento na competitividade. Este aumento foi atribuído ao maior custo marginal em relação ao aumento dos preços, refletindo uma pressão competitiva saudável.
  2. Estabilidade na Concorrência de Serviços Financeiros: A concorrência no mercado de serviços financeiros permaneceu relativamente estável. O indicador de Lerner para os serviços financeiros do segmento bancário manteve-se em níveis semelhantes desde a pandemia, com pequenas oscilações, o que foi interpretado como um sinal de estabilidade e maturidade do mercado.
  3. Redução da Concentração no SFN: A redução do nível de concentração no Sistema Financeiro Nacional (SFN) foi destacada como um avanço significativo. A diminuição da concentração ocorreu em vários agregados contábeis, incluindo ativos totais, depósitos totais e operações de crédito. Esta redução foi vista como um reflexo positivo das iniciativas do BCB para aumentar a diversidade e a competitividade no setor financeiro.
  4. Inovações Financeiras: As inovações financeiras e a atuação proativa do BCB foram amplamente elogiadas. Resoluções como a BCB 308[2], que disciplina o registro e o depósito centralizado de recebíveis imobiliários, foram vistas como medidas que conferem maior segurança às operações de financiamento, beneficiando especialmente construtores e incorporadores de menor porte.
  5. Desafios Contínuos: Apesar dos avanços, o mercado também reconhece os desafios contínuos na implementação de políticas que promovam uma concorrência ainda maior e a necessidade de adaptação às novas regulações. As expectativas são de que o BCB continue a atuar de maneira eficaz para manter a estabilidade e incentivar a inovação no sistema financeiro.

Assim, o REB joga luz a um cenário de crescente concorrência no mercado de crédito e uma estabilização na concorrência de serviços financeiros, com uma redução geral da concentração no SFN. As ações do Banco Central têm sido fundamentais para promover um ambiente financeiro mais competitivo e seguro, refletindo sua dedicação em melhorar a eficiência e a equidade no mercado financeiro brasileiro.

Em suma, o Relatório de Economia Bancária – REB foi recebido como um relatório que sinaliza avanços importantes na regulação e na promoção da concorrência, com medidas que contribuem para um ambiente financeiro mais competitivo e seguro.


[1] https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioeconomiabancaria

[2] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&numero=308


LEANDRO OLIVEIRA LEITE. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Como é que me defino politicamente? LIBERAL!

Marco Aurélio Bittencourt

Aproveito ideia de outro blogueiro e faço minha confissão pública sobre minhas preferências em política. Lembro meu entendimento sobre o modelo brasileiro: o do rent seeking (na minha linguagem, o modelo da pilhagem). Lembro ainda o objetivo: tratar de assuntos pertinentes a sociedade e economia brasileira, com implicações econômicas. O foco é de economia política (não consigo ver o estudo da economia de outra forma).

A bem da transparência, é instrutivo estruturar o meu pensamento político. Até porque podem os raríssimos leitores inferirem posturas que abomino, caso sejam levados por clichês. Evidentemente, sigo a recomendação de David Hume (discutir com idiota, você sempre perderá, pois esses estão presos a clichês e verdades absolutas). Todavia, reconheço que não é fácil fugir dos clichês. Às vezes usamos expressões que podem ter interpretações diversas, mas podem encurtar caminhos. Eu mesmo me valho dessa estratégia. Reconheço que há uma mixórdia no entendimento do que seja liberal.

Começo então minha preleção me declarando liberal, com muitos pontos de contato com a socialdemocracia e alguns com o conservadorismo. Sou a favor de um Estado com funções robustas, mas não de um Estado excessivamente ativista. As funções que fazem o Estado robusto se prendem basicamente: à justiça, segurança, defesa nacional, saúde, educação, previdência social e assistência social, a infraestrutura, a conservação dos recursos naturais e à regulação das atividades econômicas que não estejam no contexto competitivo. Na órbita municipal, principalmente o controle do plano diretor a tornar as cidades agradáveis para se viver. Essas atividades devem ser públicas, mas, exceto a segurança e a defesa, justificariam o funcionalismo público. As demais poderiam ser executadas pelo setor privado ou ter forma de seleção simplificada, com salários equiparados ao do setor privado. Quanto ao funcionalismo em si, deveria ser apenas uma categoria e não importa se executivo, judiciário ou legislativo. Deveríamos ter dois níveis: superior e técnico, seguindo as profissões já reconhecidas. A regra básica para postos de gestão em todas as esferas públicas seria a de rodízio e indicação eletiva. No tocante as empresas estatais, lembro a lógica de sua criação (a valer para a grande maioria das empresas): a recusa do setor privado em colocar dinheiro nesses negócios. Sendo assim, não vejo razão para privatizá-las. Se argumentam ineficiência, que pode ser verdade, mas o remédio não seria privatizar e sim estabelecer boa governança. De qualquer forma, havendo interesse em privatizar, duas regras a observar: a) não pode haver aumento de poder de mercado e b) tem que haver aumento no investimento. Quanto à regulação, de forma geral, tem que manter o ambiente competitivo. Regulação que aumenta o poder de mercado ou a empresa privatizada não gerar investimento devem ser consideradas ilegais.

O Estado também pode e deve ter algum papel redistributivo e alocativo. Os programas assistenciais devem se guiar por dois parâmetros: social e financeiro. Fome não pode existir. Moradores de rua devem contar com suporte municipal. Educação básica garantida a todas as crianças e jovens com um padrão de qualidade definido e pelo menos idêntico ao do setor privado.  Dada a realidade econômica (ver http://chutandoalata.blogspot.com/2020/11/olhando-o-brasil-de-uma-maneira-simples.html), uma profissão em nível técnico deve ser garantida a todos. A universidade só seria custeada para os reconhecidamente pobres e para esses seria concedido uma remuneração básica, com contrapartida social de trabalho condizente com a atividade estudantil, em tempo e modo. O segundo parâmetro é que o custo do programa deverá ser decrescente ao longo do tempo.

No tocante ao aspecto alocativo, todas as funções de governo devem estar retratadas no orçamento público e, portanto, com o aval da sociedade. Destaque deve ser dada às atividades de infraestrutura e de conservação dos recursos naturais, tendo em vista principalmente os efeitos de externalidade. A omissão aos princípios legais e constitucionais deve ser considerado crime cometido pelo gestor público afeto à questão específica.

Toda atividade pública tem que contar com apoio legal expresso na Constituição ou lei específica relativo ao gasto específico. Não constando, não pode ser objeto de pauta orçamentária. Por fim, o orçamento público deve ser equilibrado em todas as esferas institucionais (união, estado e município). O ente federal poderá, em casos de notória recessão, que desbalanceia receitas e despesas, apelar para o endividamento público temporário. Todo e qualquer ajuste nas despesas só poderá ocorrer na forma de redução das remunerações, quer para empresários beneficiados orçamentariamente, quer para funcionários. O desequilíbrio se não revertido e tiver implicações sobre o pagamento de juros sobre a dívida pública e revelando-se excessivo, deve ser monetizado.

Além de tudo isto, para poder financiar os bens públicos fundamentais, o Estado não pode ser fraco a nível fiscal, pelo que tem de travar uma guerra sem tréguas à evasão fiscal, interna e externa (paraísos fiscais). A eficiência burocrática deve ser uma política sem fim.

Podem carimbar o que descrevi acima como direita liberal, mas será uma simplificação porque apenas uma dimensão (esquerda-direita) é insuficiente para descrever o meu pensamento sobre as todas as escolhas políticas necessárias para o mundo complexo à nossa volta. Por exemplo, sou católico não praticante e sempre fui “de esquerda” a nível dos costumes. Considero muito positiva a política de descriminalização do consumo de drogas em que os viciados são tratados como doentes e não como criminosos. Em relação a lei do aborto, sou tolerante com a possibilidade e recomendo observarem o debate que se travou no Uruguai, mas meu voto seria contrário. Quanto à ideologia de gênero, sou contrário. Mas não endosso nenhum comportamento contrário à opção sexual. Em resumo, entendo que o preconceito é uma máscara para manter os mais fracos socialmente nessa condição de fraqueza para exploração pura e simples da força de trabalho. Em relação ao politicamente correto, sou totalmente contra. Atitude é tudo. O amparo legal entendo que já existe o suficiente para proteção dos que se consideram desamparados na órbita dos costumes. Mas isso não implica que não devemos rever as políticas públicas e leis que dão amparo aos atingidos pela discriminação e preconceito. Por fim, sou plenamente favorável ao estabelecimento de ONGs. A regra para participação pública nessas entidades é simples: acatar o modelo de ONG do governo e só conceder benefício se a ONG contar com benefício privado, tendo limite governamental de um % dos gastos privados menor do que 60%.

Pode ser que tenha deixado de fora alguns itens para definição clara de uma posição política. Em tempo poderei fazer o devido ajuste. Deixo ainda expresso que apoio integralmente a rebeldia verdadeira. Infelizmente nossa constituição, diferentemente de outras como a alemã, não dá amparo legal a tal situação de rebeldia verdadeira (cada um que defina a sua).

Retirei esse artigo de minha coletânea de artigos que publiquei em meu blog http://chutandoalata.blogspot.com , antes da pandemia. Pode ser que agora, pelo efeito da covid-19, possa ter mudado minha posição política, quer por interesse, quer seja por paixão. Evidentemente, não gastarei do meu colesterol bom para mimos. Para aqueles acompanhados por querubins em purgatório que travam cancelamento tosco, apenas usarei o ruim, já seguindo a abreviação não oficial e nem recomendável: VPPQP!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Quando uma atuação concertada entre concorrentes não é considerada cartel

Kemil Raje Jarude

Como se sabe, o Cartel é considerado a conduta mais nociva em termos concorrenciais e que pressupõe o acordo entre rivais para o controle da oferta por meio de acordo de preços. Entretanto, nem todo acordo entre rivais pode ser considerado prejudicial à concorrência. Por exemplo, consórcios são um mecanismo importante para a consecução de projetos de grande monta ou complexidade, permitindo a oferta de produtos ou serviços em maior escala ou com preços mais competitivos por conta do aumento de eficiências.

Além disso, a criação de associações permite o desenvolvimento de tecnologias que dão condições de interoperabilidade que ajudam a reduzir custos e ampliar o acesso a tecnologias. Exemplo disso é o Bluetooth, administrado pelo Bluetooth Special Interest Group e que conta com mais de 35 mil empresas associadas.

Todavia, há casos em que empresas que estejam agindo licitamente em conjunto acabem por incorrer em condutas que possam ter efeitos negativos à concorrência. Tais condutas decorrem do comportamento ilícito desse agente econômico que age sob bases lícitas, ocasionando prejuízos ao mercado.

No ano de 2022, o CADE julgou dois casos interessantes que exemplificam esse tipo de situação. O intuito do artigo é mostrar como o fato de ter a permissão legal para agir economicamente com outros concorrentes não mitiga, por si só, o risco de eventual conduta ilícita do ponto de vista concorrencial. Os dois casos a seguir são complexos e exigiram fôlego de nossa competente autoridade antitruste, no que buscarei focar nos elementos que levaram aos problemas debatidos e os principais critérios de análise do CADE para a tomada de decisão.

Caso British Telecom – Correios: Processo Administrativo nº 08700.011835/2015-02

O caso

Na 196ª Sessão Ordinária de Julgamento foi apreciado o caso oriundo de uma representação da British Telecom (BT) em face de Claro, Oi e Telefônica. Em linhas gerais, o imbróglio envolvia a concorrência pelo Pregão nº 144/2015 que tinha por objeto a contratação de serviços de telecomunicação na modalidade SCM (Serviços de Comunicação Multimídia) para interligar diversas agências dos Correios por todo o país pelo prazo de 5 anos.

A BT era a então fornecedora desse serviço para os Correios, mas diante do encerramento do prazo do contrato anterior, um novo certame foi realizado por meio do Pregão nº 144/2015. Porém, nessa concorrência viu a formação de um competidor composto de Claro e uma de suas subsidiárias, Oi e Telefônica.

Análise da SG/CADE

Conforme indica o anexo da Nota Técnica nº 33/2017[1], de forma resumida, Claro, Oi e Telefônica detinham a infraestrutura necessária para o oferecimento do serviço objeto do Pregão 144/2015. A BT ao buscar contratar tal infraestrutura para participar do certame enfrentou as seguintes situações:

Claro: A empresa não teria respondido aos pedidos de orçamento enviados pela BT[2], dando indício de recusa de contratar.

Telefônica: Esta não teria permitido a contratação de sua “rede especializada”, ofertando acesso apenas a sua “rede regular”[3]. O que se demonstrou é que a “rede regular” tinha um valor 7 vezes maior que o preço da “rede especializada”, reduzindo o poder competitivo da BT.

Oi: A empresa não teria mantido a linearidade da relação preço/volume do que fora oferecido ao Consórcio em comparação ao oferecido à BT[4], reduzindo a capacidade competitiva da BT no certame.

Em resumo, segundo apurado pela Superintendência-Geral do CADE, a Claro teria praticado recusa de contratar na medida em que era detentora de um insumo considerado essencial para que a BT pudesse ter condições de competitividade no certame. Além disso, Telefônica e Oi, também detentoras de tal estrutura considerada essencial, ofereceram preços para a BT a maior do que os ofertados para o consórcio em que elas mesmo integravam de modo a favorecerem a si mesmas em detrimento da BT na disputa pela prestação de serviços aos Correios no certâmen em questão. Ou seja, as condutas identificadas foram (i) recusa de contratar e (ii) discriminação de preços com intuito de excluir concorrentes.

Quanto a essas duas condutas, é interessante notar que o Anexo da Nota Técnica nº 33/2017 conclui que tais condutas foram praticadas tanto de forma unilateral quanto de forma coordenada.

Nesse sentido, para análise da ilicitude de uma dada conduta, seja ela unilateral ou coordenada, é preciso que se verifique a existência de 3 elementos[5]:

  • Detenção de poder de mercado por parte da investigada;
  • Potencialidade de danos significativos à concorrência no mercado da representante e;
  • Existência ou não de justificativas objetivas.

Ainda, interessante notar também o enquadramento legal dado para as condutas unilaterais e coordenadas do caso em questão de acordo com o rol expostos nos incisos da Lei 12529/11, Art. 36, §3º.

Condutas unilaterais:

Inciso III – Limitar ou impedir o acesso de novas empresas no mercado;

Inciso IV – Criar dificuldades à constituição, ao funcionamento, ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

Inciso V – Impedir acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuições

Inciso X – Discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços e condições operacionais de venda ou prestação de serviço;

Inciso XI – Recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais.

Condutas coordenadas:

Inciso I – Acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a – preços de bens ou serviços ofertados individualmente, d – preços, condições, vantagens ou abstenção em licitações pública;

Inciso III – Limitar ou impedir o acesso de novas empresas no mercado.

Opinião do Tribunal

O caso foi encaminhado para o Tribunal do Cade pelo Despacho de encerramento da SG de 05 de março de 2021. A Conselheira Paula Farani foi sorteada relatora do caso e o tribunal acompanhou por unanimidade a sua decisão de condenação de Claro, Oi e Telefônica pelas condutas unilaterais e coordenadas.

No voto da Conselheira Farani, há uma distinção importante entre conduta coordenada e cartel, dissipando a confusão entre os dois tipos que acompanhou o processo, como transcrito a seguir:

“Trata-se, portanto, de uma conduta com efeitos semelhantes a um cartel, uma vez que restringe a concorrência horizontal e os rivais agem de forma coordenada, embora com este não se confunda. Para esclarecer a diferença deste tipo de conduta concertada em relação a carteis, ao mesmo tempo que se ressalta os riscos concorrenciais que lhes são associados, transcrevo trecho de guia elaborado pela Federal Trade Commission, dos Estados Unidos: 

‘A fim de competir em mercados modernos, os concorrentes por vezes precisam de colaboração. As forças competitivas estão guiando as empresas em direção a colaborações complexas para alcançar objetivos tais como a expansão para mercados estrangeiros, o financiamento de dispendiosos esforços de inovação, e a redução dos custos de produção e outros.

No ambiente de mercado atual, os concorrentes interagem de muitas maneiras, através de associações comerciais, grupos profissionais, joint ventures, organizações que estabelecem padrões, e outros grupos industriais. Tais relações são frequentemente não apenas competitivamente benignas, mas também pró-competitivos. Mas existem riscos concorrenciais quando concorrentes interagem a tal ponto que já não agem independentemente, ou quando a colaboração dá aos concorrentes a capacidade de exercer o poder de mercado em conjunto.

Para os acordos de não competição, tais como fixação de preços, manipulação de propostas em licitações e divisão de mercado, as regras são claras. Os tribunais decidiram há muitos anos que essas práticas são tão intrinsecamente prejudiciais para os consumidores, que elas serão sempre ilegais, as chamadas violações per se. Para outros acordos entre concorrentes, as regras não são tão claras e definidas e frequentemente exigem uma investigação intensiva sobre o propósito e os efeitos da colaboração, incluindo quaisquer justificativas comerciais. Os aplicadores da lei devem perguntar: qual é a finalidade e o efeito dos acordos entre concorrentes? Eles restringem a concorrência ou promovem eficiência?’[6](Grifou-se)”

Dois elementos chamam a atenção nesse trecho. Primeiro, o critério da institucionalidade como diferenciador de um cartel clássico e de condutas coordenadas. Além disso, o exercício de poder de mercado decorrente da colaboração com bases lícitas parece também auxiliar nessa distinção, pois no cartel clássico o exercício de poder de mercado seria decorrente de uma colaboração ilícita. Em outras palavras, fazer um consórcio para participação em uma licitação é lícito, embora tenha que se tomar o devido cuidado para que sua atuação não incorra em eventual abuso de poder de mercado, que pode ou não se originar do consórcio. Já em um cartel, o conluio é per se ilícito, caso se comprove a sua existência.

Para analisar se o consórcio formado teria ou não uma justificativa no sentido de fomentar a competição, a Conselheira Farani se valeu do critério apresentado pela OCDE para a aferição do caráter concorrencial de um consórcio em licitações.

De acordo com tal critério, consórcios em licitações teriam efeitos pró-competitivos quando:

“(i) Os fornecedores são ativos em mercados distintos;

(ii) Os participantes de um consórcio oferecem um serviço integrado único que não poderia ser oferecido de maneira independente;

(iii) Dois ou mais fornecedores ativos em diferentes áreas geográficas apresentam propostas que atendem a todo o território contratual, gerando eficiências;

(iv) Dois ou mais fornecedores combinam capacidades para atender a contratos amplos que não poderiam ser atendidos individualmente;[7]

Ao contrário, consórcios podem ter efeitos concorrenciais quando observadas os seguintes elementos:

“(i) Cada uma das empresas possui recursos econômicos, financeiros e técnicos para atender ao contrato individualmente;

(ii) O consórcio é formado pelos maiores concorrentes no mercado relevante;

(iii) O consórcio não gera eficiências ou as eficiências não são repassadas para os compradores em termos de redução de preços, maior qualidade ou melhor entrega;

(iv) O consórcio permite que os membros troquem informações entre si que pode prejudicar a concorrência em contratações futuras.[8]

Partindo dessas referências, então ao Conselheira Farani extrai a seguinte regra para analisar a eventual natureza competitiva do consórcio em análise, que seria: “(i) a complementariedade de atuação, seja de produto ou geográfico; ou (ii) capacidade insuficiente para atender integralmente o contrato.[9]” (grifos nossos)

Nesse sentido, o que a Conselheira conclui é que Claro e Oi teriam condições de atender praticamente todo o território nacional, apresentando uma sobreposição quase completa em termos de oferta de serviço SCM. Dessa forma, haveria complementariedade apenas entre as redes da Telefônica com a da Oi ou Claro. Assim, Oi e Claro teriam capacidade para atender o contrato de forma isolada, não havendo justificativa para a formação do consórcio[10]. Assim, diante das práticas de recusa de contratar e de discriminação de preços com intuito anticompetitivo e da ausência de justificativa economicamente plausível para o consórcio analisado, então é que se conclui pela existência de infração à ordem econômica.

Caso GranPetro – Processo Administrativo nº 08700.001831/2014-27

O caso

Na 205ª Sessão Ordinária de Julgamento foi apreciado o caso oriundo de uma representação da GranPetro em face das empresas que integravam o pool de abastecimento de aeronaves do aeroporto internacional de Guarulhos – SP bem como a própria concessionária que hoje administra o aeroporto.

Tal pool de abastecimento é formado pelas empresas Air BP Brasil Ltda., BR Distribuidora S.A. (hoje denominada Vibra) e Raízen Combustíveis S.A. A controvérsia se dava por conta do interesse da GranPetro em integrar o pool, o que era questionado pelas demais empresas bem como a concessionária do aeroporto.

Análise da SG/CADE

De acordo com a Nota Técnica nº 11/2019, seriam duas as condutas analisadas em concreto:

“a) Recusa de contratar, associada à imposição de dificuldade de acesso à infraestrutura essencial, no Pool de Paulínia/SP, por parte da Raízen; e

b) Imposição de barreiras artificias à entrada e de dificuldades no acesso a infraestrutura essencial no mercado de QAv no Aeroporto de Guarulhos, por parte das distribuidoras BR, Raízen e Air BP e do GRU Airport.[11]

Essas acabam sendo as duas condutas levadas a julgamento pelo Tribunal do CADE posteriormente. De todo modo, a Nota Técnica nº 31/2020 traz um maior detalhamento quanto o objeto de investigação. Nesse sentido, indica a NT que 3 seriam os temas de análise da investigação: (i) recusa de contratação, (ii) fechamento de mercado e a (iii) existência de uma essential facility[12].

Muito embora a recusa de contratar não seja um conduta anticompetitiva por si só, é importante observar o critério indicado pela NT nº 31/2020 de quando tal comportamento pode ser nocivo: “A conduta é especialmente preocupante quando um agente verticalizado com posição dominante em alguma das etapas da cadeia produtiva se recusa: (i) a ofertar um insumo essencial a um agente no mercado à jusante; ou (ii) a adquirir produtos de um agente no mercado à montante de modo a eliminar a concorrência nesse mercado.[13]

A seguir, analisando a questão em torno do conceito de essential facility, a SG indica o caso MCI Telecommunications Corp. vs AT&T Co.United States, julgado pela Corte de Apelação do Distrito de Columbia, como referência. Desse caso, “(i) controle da infraestrutura essencial por um monopolista; (ii) impossibilidade de um concorrente duplicar, de modo fático ou razoável, a infraestrutura; (iii) recusa de acesso a um concorrente; e (iv) existência de condições técnicas e econômicas para fornecimento de acesso a concorrentes[14]” seriam fatores para determinar a existência de uma essential facility.

Observando esses dois pontos, pode-se perceber que eles se tornam problemáticos na medida em que levam a exclusão de um concorrente, reduzindo a possibilidade de ofertas de bens/serviços no mercado relevante em questão.

A NT nº 31/2020 indicou os seguintes elementos como característicos de uma situação em que há a possibilidade de fechamento de mercado:

  • Participação de mercado da empresa integrada à montante;
  • Essencialidade do insumo;
  • Representatividade do valor do insumo no custo total de produção;
  • Nível de diferenciação propiciado pelo insumo; e,
  • Custos de troca para recorrer a um fornecedor alternativo – presença de relações de exclusividade ou nível de verticalização de mercado.

Além disso, importante observar a existência de mitigadores:

  • Presença de competidores no mercado;
  • Capacidade ociosa por parte dos concorrentes;
  • Nível de qualidade dos insumos alternativos;
  • Baixos custos de troca; e
  • Baixa representatividade dos insumos no valor do bem final[15].

Em paralelo, a NT nº 31/2020 também elenca características em termos econômicos que funcionariam como incentivos para um comportamento de fechamento de mercado por um agente econômico:

  • Rentabilidade da estratégia;
  • Existência de um trade-off – abre-se mão de receitas em um mercado na expectativa de recuperação em outro mercado;
  • Custo de oportunidade da estratégia – a depender da margem de receitas à montante;
  • Grau de retorno em caso de sucesso da estratégia – a depender da margem de receitas à jusante; e
  • Capacidade de promover um desvio da demanda dos concorrentes para a empresa integrada.

Também aqui deve-se considerar os mitigadores:

  • Margem elevada à montante – alto custo de oportunidade das vendas recusadas;
  • Baixa margem de lucro à jusante – vale a pena manter vendas para concorrentes; e
  • Baixa capacidade de desviar a demanda para a empresa integrada – custo do insumo for pequeno frente ao total do produto ou baixa for a substituibilidade entre os concorrentes[16].

No caso em questão, a investigação dividiu a análise em duas condutas que viriam a ser analisadas. Dada a complexidade das duas condutas, vamos apenas nos ater a sua denominação genérica, muito embora com as informações aqui dispostas seja possível encontrá-las a posteriori nos autos indicados.

Quanto a Conduta 1, do ponto de vista de critério para analisar a eventual existência de dano, a SG tomou por base os seguintes parâmetros:

  • Posição dominante no mercado a montante;
  • Existência de justificativas objetivas e plausíveis para a recusa por parte do fornecedor;
  • Se o objeto da recusa possui substitutos próximos e;
  • Se a recusa de fato é capaz de prejudicar a concorrência no mercado a jusante[17].

Quanto a tais pontos, a NT nº31/2020 conclui que (i) havia posição dominante das empresas que compunham o pool; (ii) as justificativas apresentadas para a recusa não seriam plausíveis se não pelo argumento da livre negociação, embora não estivesse alinhado com os termos estabelecidos no Termo de Regulação de Conduta quando da criação da Raízen; (iii) haveria substitutibilidade do objeto da recusa apresentada pela Raízen uma vez que a GranPetro poderia contratar cessão de espaço junto a BR Distribuidora, hoje Vibra. (iv) a SG conclui que a recusa realizada pela Raízen, de todo modo, não teria sido capaz de prejudicar a concorrência no mercado de distribuição de QAv. Portanto, entendeu a SG que não teria havia dano concorrencial em relação a a Conduta 1, sobretudo pela existência de substitutos ao pleito da GranPetro bem como a identificação de que não teria havido prejuízo à concorrência decorrente da recusa da Raízen.

Quanto a Conduta 2, do ponto de vista de critério para analisar a eventual existência de dano, a SG tomou por base os seguintes questionamentos:

  • A infraestrutura do Pool de Guarulhos caracteriza-se como uma essential facility?;
  • O controle da infraestrutura do Pool de Guarulhos à montante concede capacidade aos incumbentes para fechamento do mercado de operações into plane das distribuidoras de combustíveis de aviação no Aeroporto de Guarulhos à jusante?
  • A Cláusula 2.2.2 do Contrato CCAIG (Central de Combustíveis do Aeroporto Internacional de Guarulhos – vulgo “pool”) tem conteúdo discriminatório e anticoncorrencial?
  • A aplicação da Cláusula 2.2.2 no Contrato CCAIG pelas distribuidoras Representadas à Gran Petro configurou uma barreira artificial à entrada?[18]

A Cláusula 2.2.2 do Contrato CCAIG (pool) dizia o seguinte:

“2.2.2. Fica acordado entre as partes que, em função dos investimentos a serem feitos pelo CCAIG descritos na cláusula 10.8 e no Anexo II a este contrato, a utilização do Queroduto por terceiros durante a vigência deste contrato dependerá da concordância e autorização das Partes. A autorização do CCAIG será dada mediante (i) disponibilidade de capacidade do Queroduto e (ii) atendimento por parte do terceiro aos requisitos mínimos de natureza operacional, técnica e financeira que permitam a plena utilização do Queroduto conforme os padrões de segurança estabelecido nos padrões nacionais e internacionais.[19]

Pois bem, quanto a Conduta 2 e as premissas estabelecidas como critério para a existência de eventual dano, a SG conclui pelo seguinte:

  • Conduta anticompetitiva identificada: imposição artificial de barreiras à entrada no mercado relevante de comercialização de QAv no Aeroporto de Guarulhos, especificamente na atividade de operação into plane;
  • Forma de implementação: o estabelecimento da Cláusula 2.2.2 no Contrato CCAIG, celebrado em 30/04/2013;
  • Período: a partir da celebração do Contrato CCAIG até o momento;
  • Elemento probatório: Contrato CCAIG e análise realizada na presente manifestação pela regra da razão; e
  • Autores: GRU Airport, de um lado, e partícipes do CCAIG – Air BP, BR, e Raízen – de outro[20].

A conclusão geral que se findou a SG é a de que os critérios abstratos estabelecidos pela cláusula 2.2.2 do CCAIG serviram para um retardamento do ingresso da GranPetro, elevando as barreiras à entrada para a ampliação de concorrentes neste mercado.

Opinião do Tribunal

No Tribunal, o caso foi sorteado para a relatoria do Conselheiro Hoffmann. Dada a complexidade do caso, os próprios órgãos do CADE apresentaram visões divergentes quanto a licitude ou não das condutas investigadas, como é possível observar do quadro extraído do voto do Relator Hoffmann[21]:

Ademais, o Conselheiro Relator votou pelo arquivo quanto a acusação indicada tanto para a Conduta 1 quanto para a Conduta 2, no que foi acompanhado pela Conselheira Lenisa Prado. Entretanto, o voto do Conselheiro Braido divergiu do apresentado pelo relator sob o argumento de que o impedimento do acesso pela GranPetro ao pool poderia fazer com que a alternativa que lhe restaria, abastecimento por meio de caminhões tanque, colocasse a GranPetro em situação de custo médio mais elevado, causando uma distorção concorrencial a longo prazo, o que desincentivaria a ampliação da competição ocasionado pela abstração da Cláusula 2.2.2 do CCAIG já apresentado acima:

“Em resumo, a indefinição das condições de acesso de novas empresas no condomínio administrador do CCAIG tem como efeito principal impedir a livre entrada de empresas distribuidoras de combustível de aviação. Ainda que se considere a situação hipotética apresentada pelas Representadas, na qual o ingresso de empresa sem acesso à rede de hidrantes seria financeiramente viável, isso dependeria de um aumento nos volumes abastecidos por meio de CTAs no aeroporto, algo que distorceria a alocação ótima de fatores de produção, gerando ineficiência técnica, aumento de custos e subutilização da infraestrutura instalada.

Concluo, dessa forma, que a conduta aqui analisada limita a livre concorrência e a livre iniciativa (art. 36, I). Adicionalmente, no caso das distribuidoras Representadas, esse ato também gera dominância de mercado relevante (art. 36, II) e constitui abuso de posição dominante (art. 36, IV).[22]

Por fim, todos os demais, com exceção dos Conselheiros Hoffmann e Prado, votaram pela condenação das representadas empresas do pool e da GRU Airport em decorrência da opinião de que haveria “imposição de barreiras artificias à entrada e de dificuldades no acesso a infraestrutura essencial no mercado de QAv no Aeroporto de Guarulhos” ocasionada pelo comportamento das representadas usando por base a Cláusula 2.2.2 do CCAIG.

Avaliando os três primeiros critérios indicados para análise do caso (recusa de contratar, fechamento de mercado e essential facility), o que se percebe é que o critério final de decisão (imposição de barreiras artificiais à entrada) foi trazido a uma análise mais aprofundada quando o caso já estava em estágio avançado de análise, o que só reforça a complexidade do caso.

Conclusões

Muitas vezes a chave de análise Conduta Unilateral x Cartel pode dar a impressão (errônea, como vimos) de que a primeira só pode ser realizada por agentes de forma isolada enquanto o segundo apenas por agentes em conjunto. Obviamente, Cartéis exigem mais de uma agente econômico para a sua prática. Entretanto, agentes econômicos quando atuam conjuntamente também podem incorrer nas hipóteses daquilo que se denomina por Condutas Unilaterais, sendo denominadas, como indicado acima, Condutas Concertadas. Em ambos os casos analisados observamos o envolvimento de bens públicos, no conceito jurídico (como no caso BT), ou vinculados a equipamentos públicos (como é o caso GranPetro vinculado a estrutura do aeroporto de Guarulhos). O que se pode levantar de lição é que nesse tipo de situação o cuidado quanto a condições plenas de concorrência deve ser redobrado, sobretudo no que condiz a entrada de novos agentes ou quando se está de posse de estruturas ou insumos que possam influenciar os custos de seus concorrentes. A beleza do Direito da Concorrência está justamente no exercício de ver com as lentes da economia para se tomar decisões de caráter jurídico e é disso que decorre a necessidade de medir o máximo possível os efeitos das estratégias empresariais de modo que o ótimo não vire inimigo do bom. 


[1] Vide SEI 0378893 no PA nº 08700.011835/2015-02

[2] Idem. p.35.

[3] Idem. p.37.

[4] Idem. p. 50.

[5] Idem p. 31.

[6] Disponível em: https://www.ftc.gov/tips-advice/competition-guidance/guide-antitrust-laws/dealings-competitors. Acesso em 15 de fevereiro de 2022. Apud Voto Conselheira Paula Farani no PA nº 08700.011835/2015-02. (SEI 1024583)

[7] Vide OCDE (2021), Combate a cartéis em licitações no Brasil: Uma revisão das Compras Públicas Federais. p. 62. Disponível em: < https://www.oecd.org/competition/fighting-bid-rigging-in-brazil-a-review-of-federal-publicprocurement. Htm > Apud idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Vide SEI 0597389 no PA nº 08700.001831/2014-27.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] Idem. Nota de Rodapé 32.

[20] Idem.

[21] Vide Voto Conselheiro Luiz Hoffmann no PA nº 08700.001831/2014-27 (SEI 1136025)

[22] Voto do Conselheiro Luis Braido no PA nº 08700.001831/2014-27 (SEI 1149523)


KEMIL RAJE JARUDE. Advogado e vice-presidente da Câmara Júnior Brasil-Alemanha. Bacharel pela FDUSP e especialista em Direito Alemão pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (Alemanha). Alumni do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) e do PET (Programa Especial de Treinamento) do Ministério da Educação do Brasil. Foi professor convidado na I Escola Internacional de Verão em Direito Internacional dos Investimentos da Georg-August-Universität (Alemanha). É pós-graduando em direito concorrencial e regulatório pela FGV-SP.


Hidrogênio Verde: Estimativa da Produção Brasileira em 2030 e a Chamada Estratégica PDI 023/2024 da Aneel

Nelson Siffert e Katia Rocha

O hidrogênio, elemento químico mais abundante no universo, cuja produção mundial é da ordem de 95 Mt/ano, há mais um século tem sido produzido em larga escala, fazendo uso de combustíveis fósseis (gás natural e carvão), com base no processo SMR (Steam-Methane Reforming), com emissões de cerca 8 tCO2/tH2.  A indústria do hidrogênio de baixo carbono, por outro lado, onde a mesma molécula é produzida com níveis de emissões diretas próximas de zero, pode ser considerada uma indústria nascente, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.  Agentes públicos e privados, neste contexto, balizam suas expectativas, reduzem as incertezas e direcionam suas ações, tomando como referência marcos (milestones) de médio e longo prazo, que expressam expectativas de crescimento do mercado.

O ano de 2030 pode ser tomado como um importante marco temporal de médio prazo, sobre o qual é preciso construir uma visão que venha a ser compartilhada, considerada crível, pelos agentes públicos e privados, sobre metas e objetivos relacionados à produção e demanda de hidrogênio de baixo carbono. Enfim, é preciso que cadeia de valor se movimente de forma coordenada, visando objetivo comuns, com sincronismos de tempos e movimentos.

Desse modo, à luz da experiência internacional, qual cenário, em termos de volume de produção de hidrogênio de baixo carbono, o Brasil poderá alcançar em 2030? Quais etapas são necessárias superar?

As projeções da Agência Internacional de Energia (IEA) apontam que até 2030 é esperado que o mercado mundial do hidrogênio venha crescer 57%, em relação ao atual patamar de produção (95 Mt/ano), atingindo 150 Mt/ano. Deste total, 70 Mt é estimado que seja hidrogênio de baixo carbono, sendo 51 Mt com base na rota eletrolítica e 19 Mt com base no gás natural com captura de carbono (CCUS).

Os anúncios e intenções de investimento nesta indústria se multiplicam diariamente em todo o mundo, somando mais de 490 GW de capacidade de eletrolisadores Mas, como ressalta o IEA, apenas 4% deste montante tem se transformado em decisão final de investimento (FID). Este descompasso, entre os anúncios e intenções de investimentos, é observável nos principais mercado mundiais, bem como no Brasil.

A expansão do mercado dependerá nos próximos anos, em grande medida, da velocidade com que venha ocorrer: i) a precificação das emissões de carbono em setores específicos; ii) ganhos de escala na produção dos eletrolisadores, reduzindo o valor do Capex; iii) elevação dos indicadores de eficiência tecnológica ao longo da cadeia de valor; e iv) redução no preço das energias renováveis, especialmente, a eólica e solar fotovoltáica. A atuação destes vetores tem potencial para eliminar o gap de preços hoje existente entre o hidrogênio de baixo carbono, cujo custo nivelado de produção (LCOH) chega a superar US$ 4,5/kg de H2, contra US$ 1,5/kg de H2 de origem fóssil, a depender do preço do gás natural. A diferença de preços a depender da tecnologia empregada na produção de hidrogênio é o principal obstáculo à expansão da indústria.

Uma planta de produção de hidrogênio de 100 MW de capacidade, com geração própria de energia, em níveis próximos à demanda de energia do eletrolisador, representa um investimento da ordem de US$ 400 milhões. O volume de produção estimado alcança 15.000 t/ano, com demanda de energia de 850.000 MWh/ano, absorvendo toda a geração de energia de um parque renovável híbrido de 300 MW de capacidade.

Para os provedores de funding para um investimento desta ordem (100 MW), sejam eles acionistas ou credores, é preciso que os riscos estejam mitigados, incluindo o regulatório e financeiro. Um dos principais pilares é obter um contrato de longo prazo de compra e venda de hidrogênio de baixo carbono, em preços iguais ao maiores que o LCOH, onde a contraparte do offtaker apresente baixo risco de crédito. Não se verifica no mercado condições atrativas, tanto pela ponta compradora como vendedora, condições para que tais contratos venham ser celebrados visando grandes volumes de produção.

Neste contexto, estratégias gradualistas são aquelas em que projetos demonstração ou piloto, em menor escala, mas ainda assim em escala comercial, antecedem os projetos em larga escala, permitindo que seja observada, com menor grau de risco, a performance técnica, operacional, econômico-financeira e comercial. Uma vez demonstrada a sustentabilidade do modelo de negócios, estruturas de financiamento com base na modalidade de project finance são capazes de promover a escalabilidade tão desejada.

O uso do hidrogênio de baixo carbono, em projetos de menor escala, no mercado interno, a partir de relações bilaterais entre offtakers industriais e provedores de energia renovável, propiciam que aprendizados e novos conhecimentos sejam incorporados. 

A Chamada Estratégica PDI 023/2024 da Aneel para hidrogênio de baixo carbono deve ser observada com atenção. Mais de 60 empresas de transmissão, geração e distribuição demonstraram interesse em participar, estando aberta a possiblidade de se apoiar projetos-piloto em hidrogênio de baixo carbono com recursos não-exigíveis.

Sob a ótica da Aneel, procura-se avaliar os possíveis impactos que a expansão desta atividade poderá ter sobre o setor elétrico brasileiro. Para os empreendedores que atuam no setor elétrico brasileiro, a Chamada da Aneel é uma oportunidade excepcional no contexto brasileiro, à medida que contribui para reduzir o custo de capital dos projetos, ampliando as possibilidades para se viabilizar (match) o mercado entre produtores e offtakers de hidrogênio de baixo carbono. Certamente, modelos de negócios inovadores serão descortinados à medida que uma safra, de pelo menos uma dezena de projetos-piloto, iniciarem sua implantação física no próximo ano, distribuídos regionalmente, com diferentes arranjos técnico-operacionais, financeiros e comerciais.

O aprendizado a ser proporcionado por esta política pública em curso, somando-se a outras iniciativas na área da certificação, regulação e funding, como vem sendo sinalizado pelo PNH2 com os respectivos marcos temporais estabelecidos no seu plano de trabalho 2023-2025: i) até 2025, disseminar plantas piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do país; ii) até 2030 consolidar o Brasil como o mais competitivo produtor de hidrogênio de baixo carbono do mundo; e iii) até 2035 consolidar hubs de hidrogênio de baixo carbono no Brasil; serão determinantes para a decolagem da indústria do hidrogênio de baixo carbono no Brasil.

Sendo assim, o mercado interno deve ser priorizando antes de se voltar para o mercado externo. Não há atalhos para se chegar a projetos de larga escala. É preciso gradualismo e consistência. O espaço fiscal não permite experimentalismos. As estimativas para a produção brasileira de hidrogênio de baixo carbono em 2030 – da ordem de 200 kt/ano a 800 kt/ano – a depender da maturação das condições de contorno (redução do LCOH, precificação do carbono, redução do Capex) é equivalente, em seu limite superior, às estimativas do IEA (2023) e Hydrogen Council (2022).  Se vamos nos situar, em 2030, próximos do piso ou do teto desta banda, é uma questão em aberto.  

A Chamada Estratégica da Aneel, a despeito das limitações que apresenta, possui o condão de pôr em movimento a indústria de hidrogênio de baixo carbono no Brasil. Não é um jogo jogado, mas está em aberto. Não temos tempo a perder. Mais de 40 países já lançaram suas Estratégias Nacionais para o Hidrogênio. A janela de oportunidade para se estabelecer como um player relevante na cadeia de valor do hidrogênio renovável se fecha nos próximos anos, à medida que o Inflation Reduction Act – IRA  nos EUA e os Leilões de Hidrogênio na Europa avançam. Temos que nos focar em atingir marcos críveis e factíveis para a produção de hidrogênio renovável até 2030, no médio prazo, mas sem supor que haja atalhos nesta jornada.


* Diretor ICT – Resel. E-mail: nelson.siffert@ictresel.org.br

** Pesquisadora do IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br

Nivelando o “campo de jogo” por meio do financiamento de demandas judiciais

Eric Moura e Fernando de Magalhães Furlan

Introdução

O financiamento de litígios ou de demandas judiciais envolve um terceiro, pessoa(s) física(s) ou jurídica(s), cobrindo parte ou todas as despesas legais (custas, honorários etc.) em uma disputa, em troca de uma parte dos resultados recuperados da resolução da causa. Esse tipo de financiamento pode ser usado para apoiar várias reivindicações legais, incluindo disputas contratuais, disputas comerciais, reivindicações de propriedade intelectual, arbitragem, compra de recebíveis legais e enforcement de julgamentos (execução).[1]

Ele representa uma forma distinta de financiamento comercial, principalmente devido à sua natureza non-recourse[2]. Ou seja, ao contrário dos empréstimos bancários tradicionais, que são recourse — exigindo a devolução do principal e dos juros, independentemente do sucesso — o financiamento de litígios não obriga o reclamante a reembolsar valores, caso o litígio não resulte em uma recuperação deles.[3] Os financiadores de litígios, por meio de análise de viabilidade, veem os direitos de litígio como um ativo crível e oferecem financiamento, sem exigir garantias adicionais, estruturando o investimento como uma non-recourse. Esse arranjo permite que as partes busquem seus direitos sem assumir o ônus financeiro sozinhas.

A disponibilidade de financiamento nivela o campo de jogo (level the playing field) para o reclamante. Isso permite que sejam contratados os melhores advogados para o caso, pagos os honorários de especialistas e que recursos estejam disponíveis ao longo do ciclo de vida do caso para levá-lo a uma conclusão meritória.

O financiamento de litígios abrange vários tipos de arranjos de financiamento para apoiar disputas legais. O financiamento de caso único, por exemplo, fornece capital para as despesas legais de um único caso ou arbitragem, incluindo capital de giro contingente à recuperação do caso. Por outro lado, o financiamento de portfólio envolve múltiplos casos ou arbitragens de um escritório de advocacia ou de uma empresa, com o investimento do financiador e o correspondente retorno recuperados por meio de qualquer um dos casos do portfólio, o que é chamado de cross-collateralization (colateralização cruzada). O financiamento de multiparte apoia ações coletivas contra um réu, comum em ações de valores mobiliários, de disputas ambientais e de causas consumeristas.[4]

Financiamento de litígios para empresas: possibilitando disputas equilibradas

Os financiadores de litígios permitem que os departamentos jurídicos de empresas se transformem em centros de receita[5], permitindo que uma empresa exerça plenamente seus direitos. Empresas de todos os tamanhos vêm utilizando crescentemente o financiamento de litígios por várias razões estratégicas, as quais trazem benefícios comerciais únicos. O financiamento de litígios permite, principalmente, o acesso a recursos legais que poderiam ser financeiramente onerosos ou arriscados, não apenas para pequenas e médias empresas e startups, mas também para grandes corporações.

Enquanto entidades menores frequentemente usam o financiamento para nivelar o campo de jogo contra oponentes maiores, com grande capacidade financeira, grandes empresas também aproveitam o financiamento de litígios para otimizar a alocação de recursos e manter a flexibilidade financeira. Para essas entidades maiores, o financiamento de litígios permite que elas persigam batalhas legais complexas e potencialmente custosas, sem imobilizar capital que poderia ser usado para outros investimentos estratégicos ou necessidades operacionais.[6]

As implicações estratégicas do financiamento de litígios vão além do mero suporte financeiro. Ter o apoio de financiadores de litígios, que geralmente realizam uma diligência detalhada antes de investir, pode sinalizar a força da posição legal de uma empresa e suas chances de sucesso. Isso não apenas ajuda a tomar decisões legais mais informadas, mas também a assumir casos de longa duração, sem o risco de ficar sem capital ao longo do caminho. No geral, o financiamento de litígios não é apenas uma ferramenta financeira, mas um ativo estratégico que aprimora a capacidade de uma empresa de gerenciar riscos, controlar custos e apoiar objetivos comerciais mais amplos. Isso fica particularmente evidente nos cenários analisados a seguir e que destacam as variadas aplicações do financiamento de litígios em ambientes corporativos.

Para empresas enfrentando dificuldades financeiras, o instinto imediato é frequentemente implementar medidas de corte de custos, incluindo a redução de despesas legais que podem parecer não essenciais para as operações em andamento. No entanto, se tal empresa possui uma reivindicação, esse ativo pode resultar em um pagamento futuro significativo, embora possa levar anos até que o caso seja resolvido. O financiamento de litígios pode, nesse caso, desempenhar um papel crítico, monetizando a reivindicação antecipadamente, com base em seu valor futuro projetado ou cobrindo custos e despesas legais contínuas. Isso permite que a empresa retenha esse ativo enquanto melhora a sua estabilidade financeira imediata, reforçando diretamente o balanço patrimonial ou aliviando gastos contínuos.[7]

Nos casos em que empresas estão navegando pela recuperação ou falência, o financiamento de litígios também pode fornecer capital operacional crucial, geralmente disponível apenas por meio de financiamento Debtor in Possession (DIP). Tipicamente, o financiamento DIP é garantido por ativos tangíveis, mas o financiamento de litígios oferece uma alternativa que não requer garantia tradicional. Em vez disso, usa as recuperações de litígios futuras potenciais como uma garantia non-recourse, preservando assim a prioridade do credor garantido sênior sobre os ativos tangíveis da empresa. Esse financiamento pode cobrir taxas legais, custos de reestruturação ou outras despesas operacionais, permitindo que a empresa mantenha operações durante um período financeiramente tumultuado.[8]

Outro exemplo seria ampliar o orçamento do departamento jurídico para proteger mais proativamente a marca e o market share da empresa (por exemplo, por meio de demandas envolvendo propriedade intelectual ou concorrência). Isso vai além de simplesmente manter a despesa de litígio fora do balanço e gerar receita após a resolução. Está ativamente trabalhando em direção ao objetivo estratégico da empresa de crescer e manter sua vantagem competitiva.

Além disso, o financiamento de litígios oferece aos credores uma oportunidade valiosa de monetizar demandas contra um devedor em falência. Os credores podem enfrentar longas esperas enquanto o processo se desenrola, o que pode durar anos. Um financiador de litígios, que intervém para monetizar essas reivindicações, pode fornecer alívio financeiro imediato e reduzir a incerteza e os riscos associados a processos prolongados.

Esses cenários destacam o papel dinâmico e benéfico do financiamento de litígios em contextos de insolvência, proporcionando liquidez crítica e vantagens estratégicas. Ao transformar reivindicações/demandas de litígio em ativos tangíveis, os advogados in-house podem efetivamente alavancar essas ferramentas para salvaguardar e avançar os interesses financeiros de entidades em crise (distressed) ou insolventes e seus credores, navegando a complexidade da insolvência corporativa com maior perspicácia e estratégia.

Financiamento de litígios para escritórios de advocacia: uma ferramenta para monetização antecipada e expansão

O financiamento de litígios tem se tornado uma ferramenta cada vez mais popular também entre escritórios de advocacia para gerenciar os riscos financeiros associados a litígios. Ao compartilhar o risco com um financiador, os escritórios podem assumir casos significativos sem arcar com todo o ônus financeiro, suavizando assim os fluxos de caixa e mitigando o impacto de resultados de litígios potencialmente voláteis. Esse arranjo financeiro também apoia os escritórios na melhoria de seus resultados, permitindo-lhes perseguir mais casos e aumentar as receitas com uma abordagem associada ao risco. Além disso, possibilita que os escritórios ofereçam estruturas de preços competitivas, tornando os serviços jurídicos mais acessíveis aos clientes e melhorando a posição de mercado do escritório.

Os escritórios de advocacia utilizam o financiamento de litígios principalmente para mitigar riscos, especialmente em arranjos de honorários de contingência, onde o escritório arca com os custos do litígio e só recebe pagamento após um resultado bem-sucedido. Ao garantir financiamento externo, os escritórios podem perseguir casos significativos e potencialmente lucrativos, sem assumir todo o risco financeiro por conta própria.

Além disso, o financiamento de litígios ajuda os escritórios de advocacia a manter a estabilidade financeira. Como o financiamento é non-recourse — o que significa que não precisa ser reembolsado, se o litígio não for bem-sucedido — ele não impacta negativamente o balanço patrimonial do escritório. Os escritórios podem usar esse financiamento para cobrir custos operacionais, mantendo assim o fluxo de caixa e possibilitando expansões ou atualizações tecnológicas, sem tensão financeira.

O financiamento de litígios geralmente começa com o financiamento de caso único, onde os recursos são fornecidos especificamente para as despesas de um caso particular, mas também pode envolver financiamento de portfólio, que inclui a obtenção de fundos para um grupo de casos. Esta abordagem de portfólio ajuda a diversificar os riscos de litígio e pode atrair termos de financiamento mais favoráveis. Os portfólios também podem ser estruturados de maneira que casos adicionais possam ser incluídos ao longo do caminho, diversificando ainda mais o risco e oferecendo oportunidades adicionais para a cross-collateralization (colateralização cruzada).

Os principais financiadores de litígios frequentemente oferecem equipes internas que desenvolvem planos estratégicos de execução, tanto no início de um caso, quanto à medida que ele avança.[9] Esses planos geralmente envolvem a identificação de ativos do réu, que podem ser alvo para satisfazer uma decisão judicial ou entender mecanismos legais internacionais para a execução de decisões cross border.

O benefício de ter um plano de execução em vigor, ao longo da vida de um caso financiado, é reduzir o risco de um réu dissipar ou ofuscar seus ativos, de modo que, uma vez que uma decisão seja proferida, o reclamante tenha opções para a recuperação.

No geral, o financiamento de litígios oferece aos escritórios de advocacia uma ferramenta financeira estratégica para aprimorar suas capacidades de litígio, gerenciar riscos e melhorar a sua eficiência operacional, enquanto expande o acesso a serviços jurídicos para uma gama mais ampla de clientes.

Acesso ao financiamento[10]

Ao buscar financiamento de litígios, os potenciais reclamantes e seus representantes legais podem esperar um processo estruturado e meticuloso, que começa com o estabelecimento de um acordo de confidencialidade (NDA). Este passo crucial garante a confidencialidade e facilita a troca de informações necessárias para que o financiador avalie completamente os méritos do caso.

Na fase inicial, o financiador de litígios conduz uma análise aprofundada do caso ou portfólio, sob a proteção do NDA. Essa avaliação visa principalmente a determinar se o caso atende aos critérios do financiador/investidor. Ela envolve uma avaliação detalhada dos méritos do caso, dos danos potenciais e do entendimento de como as partes veem a divisão de riscos e outros fatores relevantes. A complexidade do caso, o tamanho do investimento proposto e o panorama jurídico geral influenciam esta análise inicial.

Caso haja interesse mútuo em prosseguir, o financiador pode emitir um term sheet. Este documento delineia os termos financeiros preliminares do investimento potencial. Os detalhes do term sheet, incluindo se é vinculativo e seu cronograma, podem variar significativamente, dependendo do financiador e das práticas regionais. Alguns financiadores podem exigir exclusividade durante o período de due diligence, enquanto outros podem estipular taxas de desistência ou outras condições.

Segue-se uma fase rigorosa de due diligence, onde os financiadores conduzem uma investigação abrangente sobre a oportunidade de investimento. Isso inclui uma análise exaustiva dos méritos das demandas/reivindicações, dos resultados possíveis e dos antecedentes financeiros e legais do reclamante e dos advogados envolvidos. O processo pode variar de uma firma de financiamento para outra, com algumas dependendo de equipes internas de litigantes experientes e outras recorrendo a advogados e assessores externos para obter insights.

Uma vez concluída a due diligence, a decisão de financiar o caso é tomada por um comitê de investimento ou órgão similar dentro da organização do financiador. Esta decisão é baseada em apresentações detalhadas dos resultados do caso. Se o investimento for aprovado, um Acordo de Financiamento de Litígios (LFA, na sigla em inglês) vinculante é redigido, detalhando os termos do investimento. Essa fase varia em duração, mas geralmente abrange várias semanas.

Após o investimento, o monitoramento do caso é tipicamente discreto. Os financiadores frequentemente adotam uma abordagem de “toque leve”, respeitando as decisões estratégicas da equipe jurídica enquanto retêm o direito de ser informados sobre desenvolvimentos significativos e ofertas de acordo. Atualizações regulares e discussões estratégicas ocorrem, com financiadores às vezes participando de procedimentos importantes como observadores, garantindo que permaneçam informados, sem comprometer a confidencialidade dos detalhes financeiros do reclamante.

Ao longo do processo, a expertise dos profissionais de financiamento de litígios, especialmente aqueles com formação jurídica, proporciona uma contribuição não vinculativa inestimável, que pode orientar a estratégia e influenciar a trajetória do caso, sublinhando seu papel não apenas como apoiadores financeiros, mas como parceiros estratégicos no processo de litígio.

Conclusão

O financiamento de litígios é uma ferramenta para empresas e escritórios de advocacia de todos os tamanhos, aprimorando estratégias legais e financeiras. Essa solução de financiamento inovadora não apenas alivia o ônus financeiro, associado a litígios custosos, mas também equipa escritórios e reclamantes com os recursos necessários para perseguir casos da forma a mais robusta possível.

As empresas se beneficiam do financiamento de litígios, pois ele permite que seus interesses sejam protegidos e seus direitos sejam afirmados, sem comprometer a sua liquidez operacional. Ao aproveitar o financiamento externo, as empresas podem perseguir reivindicações e proteger seus ativos, sem tensão financeira imediata, mantendo assim a estabilidade e focando em suas atividades principais.

Para os escritórios de advocacia, por outro lado, o financiamento de litígios pode transformar a maneira como gerenciam cargas de trabalho e relacionamentos com clientes. Isso permite que os escritórios aceitem casos mais complexos e de alto risco, sem o risco de esgotar os recursos do escritório, ampliando assim o seu alcance de mercado e potencialmente aumentando as suas taxas de sucesso e lucratividade. Esse tipo de financiamento apoia, não apenas a busca pela justiça, mas também o crescimento e a sustentabilidade do próprio escritório.

Além disso, o financiamento de litígios introduz uma camada de disciplina financeira e perspicácia jurídica no processo de litígio, pois os financiadores trazem a sua própria expertise e habilidades analíticas para avaliar os méritos das reivindicações.

Em última análise, o financiamento de litígios não se limita a fornecer recursos financeiros; trata-se de capacitar escritórios de advocacia e empresas a buscar estrategicamente seus direitos legais. Ao compensar riscos e possibilitar uma busca mais ativa em suas reivindicações, o financiamento de litígios ajuda a nivelar o campo de jogo, garantindo que todos os escritórios e empresas tenham acesso aos recursos que apoiam seu sucesso e saúde financeira a longo prazo.


[1] Disponível em: https://omnibridgeway.com/litigation-finance. Acesso em: 30/05/2024.

[2] Modalidade de empréstimo em que não há a exigência de garantias.

[3] Disponível em: https://omnibridgeway.com/litigation-finance. Acesso em: 30/05/2024.

[4] Idem.

[5]Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/blog/blog-posts/blog-details/global/2023/02/22/how-corporate-legal-departments-can-generate-revenue-with-legal-finance. Acesso em: 31/05/2024.

[6] Disponível em: https://iveybusinessjournal.com/unlocking-value-in-commercial-disputes/. Acesso em: 31/05/2024.

[7] Disponível em: https://omnibridgeway.com/insights/blog/blog-posts/blog-details/global/2024/05/21/the-in-house-view—-litigation-funding-and-corporate-insolvency-what-in-house-counsel-need-to-know/. Acesso em: 29/05/2024.

[8] Id.

[9] Disponível em: https://omnibridgeway.com/litigation-finance. Acesso em: 31/05/2024.

[10] Id.


Eric Moura. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com

Fernando de Magalhães Furlan. Doutor pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Professor do Centro Universitário do Planalto Central (UNICEPLAC). E-mail: fernandomfurlan@gmail.com.


Imposto sobre valor agregado – algumas delimitações conceituais tributárias e do direito privado

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Imposto sobre valor agregado – algumas delimitações conceituais tributárias e do direito privado

Fabio Luiz Gomes

Resumo

O Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) é um tributo utilizado em grande parte dos sistemas jurídicos dos Estados do mundo, e por essa razão se faz necessário que mais países venham a implementá-lo nos seus sistemas jurídicos. O problema da interpretação dos conceitos de direito tributário com normas de direito privado assume proporções globais, sobretudo para conferir maior segurança jurídica aos contribuintes e minimizar a fraude e evasão fiscal, por essa razão uma forçosa criação de normas internacionais nesse sentido. Um grande desafio será compatibilizar as normas privadas e tributárias dos países de origem anglo-saxônica e romano-germânica, common law e civil law. Portanto, este trabalho irá desenvolver de forma resumida o desafio conceitual de “entrega de bens” e “prestação de serviços”.

Palavras-chave

Imposto sobre Valor Agregado. Tributos indiretos. Comércio internacional. Conceitos decommon law e civil law. Normas internacionais de tributos indiretos e conceitos de direito privado.

Abstract

The Value Added Tax (VAT) is a tax used in a large part of the legal systems of States around the world, for this reason it is necessary for more countries to implement it in their legal systems. The problem of interpreting the concepts of tax law with private law norms assumes global proportions, especially to provide greater legal certainty to taxpayers and minimize tax fraud and evasion, which is why there is a mandatory creation of international standards in this regard. A major challenge will be to make private and tax rules from countries of Anglo-Saxon and Roman-Germanic origin, common law and civil law, compatible. Therefore, this work will briefly develop the conceptual challenge of “delivery of goods” and “provision of services”.

Keywords

Value Added Tax. Indirect taxes. International trade. Common law and civil law concepts. International rules on indirect taxes and concepts of private law.

Introdução

No Brasil, de tempos em tempos se volta à discussão sobre a adoção de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).Nos idos da década de 1960, após a reforma tributária, já se falava em uma nova reforma tributária para adoção de um IVA, que, diga-se, poderia ter sido implementado no Brasil ainda nesse período.Enquanto isso, aproximadamente 170 países já possuem em seus ordenamentos jurídicos o IVA.

Os trabalhos desenvolvidos tanto nos Estados individualmente considerados quanto nos blocos regionais e no âmbito internacional procuram estudar os impactos dos tributos indiretos no cidadão, bem como buscam diminuir a evasão fiscal e a fraude fiscal.

Nesse diapasão, o aspecto conceitual desse tributo passa a ser o elemento principal de qualquer discussão nos três níveis espaciais do IVA.

Cumpre destacar que o IVA possui basicamente dois elementos materiais: “entrega de bens” e “prestação de serviços” e que os Estados que possuem esse tributo procuram no direito privado a resposta conceitual para uma interpretação genérica, de outro lado estabelecem, contudo, normas de exceção e neste alteram os conceitos do direito privado.

Observa-se que esses conceitos não possuem somente uma dimensão interna dos países, mas também asdimensões regional e internacional.

Apesar da complexidade que envolve o estudo dos conceitos do IVA nas três dimensões, é verdade que esse estudo só é possível em razão do número grande de países que adotam o IVA em seus sistemas jurídicos e, além disso, de os conceitos elementares do direito privado possuírem uma origem em comum no direito romano.

1. Elementos conceituais do Imposto sobre Valor Agregado – Tangenciamento necessário na delimitação conceitual

a) Elemento territorial

Estabelece-se um vértice tangencial entre as três dimensões conceituais do direito privado, esse vértice será o elemento de conexão, dessa forma entende-se que será possível entender melhor os conceitos do IVA e com isso servir de elemento de propulsãonas transações de bens e serviços no cenário internacional, com maior participação das pessoas internacionais.

No aspecto conceitual os signos estabelecem diversos significados, sobretudo, os oriundos dos contratos de compra e venda de bens e serviços, e aos destinatários da norma (sejam empresas ou pessoas naturais) em três dimensões, sem qualquer parâmetro conceitual, isso pode denotar inúmeras distorções decorrentes de inúmeras variáveis.

b) Conceito de “entrega de bens” e “prestação de serviços”

Obviamente dentro dos conceitos de “entrega de bens” e “prestação de serviços, sejam em transações B2B (entre empresas), ou B2C(entre empresa e consumidor), ou mesmo B2G (entre empresa e governo), há de se esperar que a aproximação conceitual entre os envolvidos permita uma maior concretude e segurança jurídica aos personagens dessas transações, podendoesses agentes econômicos alcançar um ambiente denegócio com maior confiança nos sistemas jurídicos.

O conceito de “entrega de bens” possui diversas acepções que envolvem o verbo “entregar”: esse signo poderia direcionar a muitos significados, p. ex., dar, oferecer, alienar, consignar, doar, transferir, vender etc., mas é fato que possui uma relação obrigacional de “dar”.

Observa-se que cada sinônimo descrito poderá também identificar uma obrigação, um contrato: contrato de compra e venda, contrato de doação, contrato de alienação, contrato de consignação etc.

Em todos esses contratos encontramos o seu sentido significante no direito privado; de modo geral, os Estados reconhecem genericamente o seu significado, afinal são contratos antigos com fundação no direito romano.

Na União Europeia, o conceito atribuído à entrega de bens fixa mais um elemento, a título oneroso[1], portanto incide o IVA em contratos onerosos[2].

De modo geral, os contratos de compra e venda são os mais utilizados na prática e também os mais tributados por IVA, seja nas transações internas no território dos Estados, seja nas transações intracomunitárias.

Já no conceito de “prestação de serviços”, o verbo é “prestar”: portanto, uma obrigação de fazer, que também pode se relacionar a inúmeros tipos contratuais, p. ex., contrato por tempo determinado, contrato por tempo indeterminado, contrato de trabalho home office, contrato de prestação de serviços advocatícios etc.

Novamente, aqui, as normas comunitárias da União Europeia colocaram a onerosidade como requisito; portanto, as prestações de serviços devem ser onerosas.

c) Conceito de “entrega de bens” e “prestação de serviços” no âmbito internacional

Em que pese o grande avanço nos sistemas jurídicos dos Estados, seria inócua sem um tratamento internacional estabelecendo conceitos do direito privado e ainda deveriam estabelecer conexão direta com os tributos indiretos, sobretudo o IVA, de modo a buscar nos conceitos do direito tributário o alicerce para conceituar “entrega de bens” e “prestação de serviços”.

Constata-se, assim, o entrave em termos reais por não haver uma harmonização dos conceitos do direito privado e mais ainda a sua utilização pelos Estados para os seus conceitos nas suas normas tributárias.

Essa harmonização deve partir de uma variedade de dimensão zero, onde se buscaria o tangencialmente tridimensional e harmônico; dessa forma, estar-se-ia diminuindo as variáveis possíveis em relação a diversos princípios, dentre eles: a neutralidade fiscal, a segurança jurídica, a confiança e a isonomia.

Um próximo passo seria desenvolver normas que viessem a garantir os contribuintes nas três dimensões, o que só seria possível caso fosse desenvolvida efetivamente uma harmonização conceitual tridimensional.

Atualmente os trabalhos realizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) seguem essa linha de forma muito tímida, dando maior ênfase ao desenvolvimento do comércio internacional e à aplicação dos princípios da neutralidade e do Estado de destino (OCDE, 2010; Arendonk; Jansen; Paardt, 2011).

De outro lado, as Nações Unidas buscam harmonizar os contratos de compra e venda, isto é, normas do direito privado, através da CISG (United NationsConventiononInternationalSaleofGoods).

Como dito acima, os contratos de compra e venda representam grande parte das transações que envolvem bens.

Infelizmente constata-se que o desenvolvimento do direito privado e do direito fiscal vem ocorrendo de forma separada, como se isso fosse possível, gerando um complexo normativo assistemático, dificultando as transações internacionais e o desenvolvimento do comércio internacional.

Fenômeno similar vem ocorrendo na União Europeia – sem mencionar o Mercosul (pois neste nem se discute, está anestesiado na própria origem) –, onde se desenvolvem grandes grupos de estudo para harmonizar o direito privado europeu[3] e o prosseguimento da harmonização do IVA.

Em que pese serem trabalhos muito bem elaborados, constantemente o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e os Tribunais internos de cada Estado são instados a se pronunciar sobre a aplicação ou não de uma norma conceitual do direito privado interno.

d) Interpretação econômica das normas conceituais tributárias

Observa-se que a aplicação da teoria econômica das normas conceituais tributárias (como será desenvolvido) leva ao casuísmo, uma opção a favor do fisco, e, no âmbito internacional, onde há muitas soberanias fiscais envolvidas, acaba por inviabilizar a tributação internacional ou intracomunitáriadessas transações ou inviabilizaria a atuação das pequenas e médias empresas a atuarem no cenário internacional ou dentro de um bloco integracional.

2. Sistemas da common law e civil law e os conceitos de direito privado e tributário

Numa perspectiva ampla, dois grandes sistemas se sobressaem, os sistemas de common law e civil law, representantes anglo-saxônico e romano-germânico, trabalhando com conceitos estabelecidos com formas interpretativas distintas (Séroussi, 2006).

A tradição dacivil law foi desenvolvida na Europa continental e ao mesmo tempo influenciou, assim como acommon law, as suas colônias.

O sistema da civil law, nos séculos XIX e XX, também foi adotado por países que possuíam tradições jurídicas distintas, como Rússia e Japão, que reformularam os seus sistemas jurídicos com o objetivo de desenvolver um poder econômico e político.

2.1. Sistema common law

O sistema common law surgiu na Inglaterra durante a Idade Média e, obviamente, influenciou suas colônias em todos os continentes.Observa-se que há distinções profundas entre os dois sistemas jurídicos, pois a sua tradição jurídica foi desenvolvida de forma diferente, por uma série de razões históricas[4].

O sistema common law geralmente não é codificado, isto é, não há nenhuma compilação legal abrangente de normas jurídicas.Ao contrário, estas se baseiam em algumas leis esparsas, e o que de fato fundamenta o seu direito são os precedentes (Séroussi, 2006, p. 25), ou seja, decisões judiciais que já foram realizadas em situações semelhantes.

Esses precedentes a serem aplicados em decisões de cada caso novo são determinados pelo juiz que preside a causa. Como resultado, os juízes têm um papel fundamental na formação do sistema jurídico em países com essa tradição.

Na União Europeia, o Reino Unido[5]– exceto a Escócia (Séroussi, 2006, p. 19) – configura o representante do sistema common law.O direito de common law possui como base a formação de decisões judiciais (case law) e busca decisões anteriores parecidas ou conexas com o caso em litígio, a legal rule.

O direito inglês é, antes de tudo, um direito erigido sobre a jurisprudência (decisionsoftheCourts) elaborada nos tribunais Westminster (common law) pelo tribunal da chancelaria (equity) (Séroussi, 2006, p. 27).

No aspecto econômico, o Reino Unido exporta principalmente para a Alemanha, os EUA e os Países Baixos. Por sua vez, as suas importações provêm em grande parte da Alemanha, da China e dos Países Baixos.

O sistema da common law é baseado em precedentes; tanto a entrega de bens quanto a prestação de serviços envolvem obrigações.

2.2. Distinções contratuais – conceituais entre os sistemas jurídicos da common law e civil law[6]

Esses sistemas jurídicos apresentam distinções substanciais no aspecto contratual e, portanto, na própria essência conceitual objeto desse contrato.

Dentre elas, destacam-se no sistema common law: a) a doutrina da consideration; b)adoctrineofprivatyofcontract; e c)a interpretação literal do contrato.

No sistema civil law, institutos que não possuem correspondentes no sistema da common law: a)boa-fé; b)o poder de adaptação ou revisão de um contrato; e c)a execução específica da obrigação.

Para os fins do nosso tema, faremos algumas considerações.

2.3. Doutrina daconsideration

No sistema da common law, a contraprestação (consideration) é essencial para a existência do contrato.

Nesse sentido, diversos contratos no sistema da civil law não são considerados para o sistema da common law, como, p. ex., a doação pura, uma vez que não tem contraprestação do donatário.

Essa diferença repercute no aspecto prático no que concerne à execução, pois, de fato, no sistema dacommon law não seria um contrato.

Na prática, diversas doações realizadas nos EUA acabam por firmar contraprestações irrisórias/fictícias para que se dê azo à execução contratual[7].

Para esses casos, os tribunais nos EUA firmaram, contudo, o entendimento de que essa doutrina da consideration deve ser adequada, isto é, para ser considerada contraprestação, deve ser analisado no caso concreto se é ou não adequada essa cláusula contratual.

2.4. Formação de um quadro-comum para formação de uma harmonização do direito contratual internacional

Conforme acima analisado, os problemas concernentes às distinções entre os sistemas da common law e dacivil law no âmbito internacional, nomeadamente nos contratos, limitam o pleno desenvolvimento das transações de bens e serviços internacionais.

Observa-se que a doutrina da consideration aplicada nos países da common law acaba por gerar grandes problemas de aplicação prática; para garantir a possibilidade de execução dos contratos, as pessoas burlam o sistema estabelecendo meios fictícios para configuração de um contrato.

A formação de um quadro-comum contratual no âmbito internacional acabaria com essa insegurança na celebração contratual entre pessoas localizadas em países da common law e da civil law.

Conclusão

Observa-se que são inúmeros os desafios a serem superados para se estabelecer maior segurança jurídica nas transações de bens e serviços nas três dimensões (interna, regional e internacional).

No âmbito dos tributos indiretos,o aspecto estrutural e conceitual configura o maior desafio.O estrutural pressupõe que os Estados já tenham em seus ordenamentos jurídicos internos um IVA – tipo consumo.

Portanto, o núcleo conceitual fundacional do IVA – “entrega de bens” e “prestação de serviços” – compõe o elemento material desse imposto, e o receptor da norma – contribuinte – deve compreender quais são as transações que integram esse tributo.

Dessa forma, o direito privado apresenta o alicerce necessário para que a tributação através do IVA seja compreendida, e, portanto, confere a ela maior segurança jurídica.

Esses conceitos do direito privado poderiam ser alterados somente em hipóteses excepcionais.

Mesmo assim, ainda que de forma singela, as diferenças entre os sistemas da common law e dacivil lawestabelecem desafios conceituais.

O desenvolvimento dos sistemas jurídicos dos Estados pode partir de normas internacionais que permitam estabelecer elementos de conexão entre o direito tributário e o direito privado.

Desse modo, serviriam como norte para os sistemas jurídicos internos de cada Estado, o que permitiria o desenvolvimento do comércio internacional, sobretudo com o desenvolvimento tecnológico digital, realidade atual que não se pode ignorar.Assim, permitir-se-ia às administrações fazendárias a adaptação aos desafios atuais, principalmente quantoàs evasões e às fraudes fiscais.

Referências

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CAMPOS, Diogo Leite de; RODRIGUES, Benjamim Silva; SOUSA, Jorge Lopes. Lei Geral Tributária – Anotada e comentada.Lisboa: Encontro da Escrita, 2012.

GOMES, Fabio Luiz(coord.). Reforma tributária – Tributação, desenvolvimento e economia digital.São Paulo: Almedina, 2023.

GOMES, Fabio Luiz. Direito internacional – Perspectiva contemporânea.São Paulo: Saraiva, 2010.

GOMES, Fabio Luiz. Manual do IVA nas Comunidades Europeias e os impostos sobre o consumo no Mercosul. Curitiba: Juruá, 2006.

GOMES, Fabio Luiz;ALMEIDA, Daniel Freire e;ALMEIDA, Verônica Scriptore Freire e. Panorama do direito no terceiro milênio. São Paulo: Almedina, 2013.

GOMES, Fabio Luiz; ALMEIDA, Daniel Freire e; CATARINO, João Ricardo (org.). Garantias dos contribuintes no sistema tributário. Homenagem a Diogo Leite de Campos.São Paulo: Saraiva, 2013.

OCDE – ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. VAT/GST relief for foreign businesses: the state of play. A Business and Government survey. Paris: OCDE, 2010.

SCHENK, Alan; OLDMAN, Oliver. Value added tax: a comparative approach.Cambridge; New York:Cambridge University Press, 2007. (Cambridge Tax Law Series).

SÉROUSSI, Roland. Introdução ao direito inglês e norte-americano.Tradução de Renata Maria Parreira Cordeiro.São Paulo: Landy Editora, 2006.

TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim.Porto Alegre:Sérgio Antonio Fabris Editor, 2008. v. I.


[1] Artigo 2º da Diretiva n. 2006/112/CE do Conselho da União Europeia, de 28 de novembro de 2006.

[2] Em Portugal, o Código do IVA dispõe:

“Artigo 2.º 1 –

[…]

a) As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos da incidência real de IRS e de IRC. As pessoas singulares ou colectivas referidas nesta alínea são também sujeitos passivos do imposto pela aquisição de qualquer dos serviços indicados no n.º 8 do artigo 6.º, nas condições nele previstas; […].” (grifos nossos).

Observa-se que o legislador português quis deixar claro que habitualidade compõe o elemento material do IVA, mas também o agir de modo independente.

[3] São trabalhosacadêmicos: Principles of European Contract Law, Pavia Group on a European Civil Code, Study Group on Tort Law, Acquis Group. No âmbito das instituições comunitárias, desenvolve-se o Quadro Comum de Referência, com escopo de harmonizar a legislação europeia e as decisões dos tribunais, bem como servir de base para produção legislativa, doutrinária e jurisprudencial. Tudo no sentido de tornar os direitos nacionais menos díspares entre si, facilitando dessa maneira as transações transfronteiriças de modo a incrementar o mercado interno.

[4] Para analisar historicamente o sistema da common law, vide: BAKER, J. H. An introduction to english legal history. London: Butterworths LexisNexis, 2002;BELLOMO,Manlio.The common legal past of Europe 1000-1800. Washington, DC: Catholic University of America Press, 1995;CROMARTIE,Alan.The Constitutionalist Revolution: an essay on the history of England, 1450-1642. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; DAINOW, Joseph. The civil law and the common law: some points of comparison. American Journal of Comparative Law, Oxford, v. 15, n. 3, p. 419-435, 1966-1967;MILSOM, S.F.C. Historical foundations of the common law. Oxford: Oxford University Press, 1981;STEIN,Peter.Roman Law in European History. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; eVAN CAENEGEM, R.C. The birth of the English Common Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

[5]Ainda que o Reino Unido tenha votado através de plebiscito sua saída da União Europeia, ainda haverá um prazo de transição para esse ato; e, após sua saída, manterá relações estreitas com a União Europeia.

[6]Vide: MORAIS, Fabíola.Aproximação do direito contratual dos Estados-Membros da União Europeia.São Paulo:Renovar, 2007. (Biblioteca de Teses).

[7]No exemplo, a doação de imóvel tendo como contraprestação um dólar. Obviamente, esse valor irrisório seria somente para dar uma conotação contratual a essa doação.


Fabio Luiz Gomes. Doutor em Administración, Hacienda y Justicia en el Estado Social pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca, com qualificação “Sobresaliente” cum laude. Mestre em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Professor Convidado no Doutorado na Universidade Autônoma de Lisboa. Professor de Direito Tributário nos Cursos de MBA/LLM do IBMEC e da FGV. Autor, coautor, coordenador e prefaciador de diversos livros. Membro alumni do Instituto Max Planck. Conferencista, parecerista e árbitro internacional. Parecerista da Revista da Escola Superior do Ministério Público da União e da Revista da Fundação Getulio Vargas– FGV São Paulo. Membro do Conselho Editorial da Editora Fabbris.


Imposto Seletivo: as idiossincrasias de um conceito contemporâneo

José Américo Azevedo

Benjamin Franklin afirmou que “nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos”. Apesar de ter empregado a expressão em uma carta datada de 1789, Franklin não a criou, apenas ajudou a popularizá-la. Ela já estava em circulação alguns anos antes!

O Brasil, após 50 anos utilizando um mesmo modelo de arrecadação de impostos, está engendrando uma Reforma Tributária que, após aprovada a Emenda Constitucional nº 132, está em fase de regulamentação. Dentro deste delineamento está prevista a instituição do chamado “Imposto Seletivo”.

A ideia do imposto seletivo é taxar comportamentos – e, por conseguinte, produtos e serviços –, que possam, de alguma forma, trazer mal à sociedade, entendidos como um amplo espectro uniforme e visivelmente direcionado a um só fim.

À primeira vista, merecem ser feitas duas reflexões: (i) qual é a sociedade e o que ela quer?; e (ii) cabe ao Estado estabelecer essa definição?

A sociedade, múltipla e plural, merece o respeito à sua autonomia para definir, de fato, quais são suas prioridades. Sem “senso comum” e sem “obviedades”. Dito isso, entramos em um campo altamente minado por ideologias antagônicas que confundem, mais do que explicam, o real papel do Governo nesse imbróglio. Avancemos!

No Brasil, o imposto seletivo passou a estar previsto na Constituição Federal quando, em sua Emenda nº 132, de dezembro de 2023, inseriu o inciso VIII em seu artigo 153, determinando que “[c]ompete à União instituir impostos sobre (…) produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”. É o chamado – impropriamente – de “imposto do pecado”.

A partir desse arcabouço constitucional – frise-se, derivado –, há que se taxar bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Excelente iniciativa! A teleologia da legislação tem consistência, na medida em que não se quer, para o exercício pleno da cidadania, atitudes prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

Porém, a questão é outra!

A gênese do imposto seletivo é coibir atitudes socialmente inapropriadas, e, em momento algum, servir de ferramenta arrecadatória. Até porque a legislação impede! Assim, faz-se mister, existir uma política pública que respalde a cobrança do tributo, de forma a se almejar, e, objetivamente, alcançar, uma meta prestabelecida.

Cabe ao Governo, como política de Estado, desenhar uma estrutura onde a aplicação do imposto seletivo irá, a partir de mensurações específicas, atingir a meta almejada pela política pública vinculada, sob pena de o tributo estar sendo somente uma fonte de arrecadação, e não uma forma de direcionar a sociedade para um fim desejado.

Em sua justificativa, a proposta da Emenda Constitucional argumenta que “[a] PEC prevê a criação de ‘impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos’, ao fundamento de que deveriam sofrer tributação adicional os itens ‘geradores de externalidades negativas’, a exemplo de ‘cigarros e bebidas alcoólicas’”.

Não obstante o caráter social – e quiçá altruísta – da proposta, a operacionalização no mundo político, jurídico, tributário – enfim, dos fatos –, deve ser analisada com a parcimônia necessária. O conceito de prejuízo à saúde e ao meio ambiente é bastante elástico e impreciso, singrando pelos mares das vontades políticas dos governos de plantão.

Há que se considerar, por exemplo, que a sobretaxação de produto “nocivos à saúde”, por exemplo, fomentará o contrabando entre países vizinhos, como acontece com a maior parte do tabaco consumido no estado do Paraná, só para exemplificar.

Em um ambiente democrático deve prevalecer a autonomia da vontade. Evidentemente, essa limitação está constrita ao respeito à liberdade do próximo, sem que um cidadão tenha a possibilidade legal de prejudicar outro. Porém, a escolha – e não está a se falar em extremo liberalismo – tem que ser respeitada e desenvolvida. Imputar comprometimentos tributários à essa escolha soa como tangimento à individualidade pessoal. Deve ser encontrado o caminho do meio!

Voltando à essência do tema, o imposto seletivo deve ser usado de tal forma que permita à sociedade direcionar seus rumos, sem mudanças abruptas, para um mundo mais equalizado e ambientalmente mais protegido. Penalizar, tributariamente, setores produtivos essenciais à economia do país não trará, em primeiro lugar, o resultado econômico-financeiro desejado, e após, não beneficiará a economia do país, levando-o a situações que terão que ser justificadas com subterfúgios midiáticos.

Se, acaso, de toda forma, for o caminho político escolhido, não se pode cair na armadilha de achar que uma política governamental irá mudar, significativamente, o modo de vida dos cidadãos. O entranhamento e a inerência das práticas costumeiras são naturais à sociedade. Faz-se necessária a moderação da ação do Estado em relação às opções dos cidadãos.

Em contraponto a este aspecto, cabe uma reflexão. A responsabilidade das empresas do setor produtivo deve ser equilibrada e, caso necessário, imputada uma obrigação compensatória, sob forma de tributo ou iniciativas sociais e/ou ambientais, mas sempre à luz da proporcionalidade e razoabilidade, de tal forma que não haja a demonização da atividade produtiva, sempre tão cara à fomentação de empregos e de ganhos à sociedade.

No PLP 68/2024, de origem do Poder Executivo, a justificativa para a implantação do imposto seletivo, traz:

De acordo com o comando constitucional, o imposto incidirá sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens ou serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Nesse sentido, o art. 393 prevê a incidência do Imposto Seletivo sobre os seguintes bens: (i) veículos; (ii) embarcações e aeronaves; (iii) produtos fumígenos; (iv) bebidas alcoólicas; (v) bebidas açucaradas; e (vi) bens minerais extraídos.

Ora, é indiscutível que o uso excessivo de produtos fumígenos e de bebidas alcoólicas é nocivo à saúde, mas o que dizer dos demais itens? Como colocar como prejudicial à saúde a bebida açucarada ao mesmo tempo em que coloca como integrante da cesta básica de alimentos o “açúcar classificado nos códigos 1701.14.00 e 1701.99.00 da NCM/SH”? Ademais, ao passo que o imposto seletivo sobretaxa o produto, os alimentos destinados ao consumo humano preveem uma redução em 60% das alíquotas padrão. Nada mais contraditório!

Em relação aos veículos de todas as espécies, qual a comprovação científica do grau de nocividade ao meio ambiente? Estudos apontam que o metano expelido pela flatulência de rebanhos bovinos causa mais efeito estufa que o CO2 dos automóveis. E não se trata de chiste, mas de rigorosa análise técnica.

Avançando, no que diz respeito aos bens minerais extraídos, o projeto apresentado é uma violência ao mercado produtivo nacional. Como conceito, o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), no novo modelo representado pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), deve ser cobrado no destino ao contrário do modelo atual, cujos bens e serviços são taxados na origem. A partir deste enfoque, há que se arguir, como exemplo, qual a nocividade do alumínio para o meio ambiente? Não há! No entanto, a extração da bauxita, matéria prima para a fabricação do alumínio, deve ser sobretaxada. Mas, em que caso a bauxita é utilizada como destino final, para manter respeitado o momento da taxação? Não há! É de se levar em conta, ainda, que essa tributação faz com que o fabricante de alumínio, para manter o exemplo, se sinta incentivado a importar a bauxita, que ficaria mais barata que a nacional. Ora, se o dano ao meio ambiente ocorre na extração do minério, como pode o Brasil aventar a possibilidade de cobrar tributos nas atividades de outro país? Assim, existe um claro disparate entre os conceitos utilizados no projeto de lei, maculando, na origem, sua aplicabilidade.

E mesmo quanto aos produtos fumígenos e às bebidas alcoólicas. Qual o objetivo de sobretaxá-los? Diminuir o consumo? Diminuir os gastos públicos relacionados aos problemas de saúde advindos do consumo de álcool e tabaco? Conscientizar a população dos malefícios trazidos pela utilização desses produtos? É preciso deixar claro o objetivo a ser alcançado e não somente amplificar a carga tributária, visando ao aumento de arrecadação.

Por fim, mas não menos importante, é atentar para o fato de que se o objetivo é taxar a produção, extração, comercialização ou importação de bens ou serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, essa tributação deve estar, necessariamente, atrelada a uma política pública que vise a mitigar ou compensar os supostos danos causados à saúde ou ao meio ambiente. O projeto de lei do Governo não condiciona a existência dessa política à cobrança do imposto.

O PLP 29/2024, de autoria do deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança e outros, elaborado em conjunto com a sociedade civil organizada, por intermédio de uma coalizão formada por 26 Frentes Parlamentares, dispõe sobre a instituição do imposto seletivo. Porém, além de deixar claro que o imposto tem como finalidade “desestimular o consumo de bens e serviços comprovadamente prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, define que as hipóteses de incidência do imposto serão estabelecidas em Lei Complementar Específica, que “deverão, obrigatoriamente, prever as metas programáticas e objetivos para a definição e incidência do Imposto Seletivo, sendo necessário estabelecer a evolução na mitigação dos impactos inerentes às atividades, bens ou serviços e operações prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”.

Ou seja, o tributo deve ter claramente expresso, para sua existência, uma finalidade tangível, consubstanciada por meio de uma política pública mensurável e aferível, de forma a ser possível constatar a eficácia da tributação, que por seu caráter extrafiscal, como já dito, não pode ter natureza arrecadatória, mas intimidatória e educativa.

Assim, necessário se faz permanecermos vigilantes com o que está sendo concebido nos gabinetes parlamentares, para não sermos presenteados com um verdadeiro cavalo de Troia.


José Américo Azevedo.

Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex-colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.


Prioridades regulatórias do Banco Central em 2024

Leandro Oliveira Leite

O Banco Central do Brasil (BCB) pretende regulamentar três grandes temas neste ano, o mercado interbancário, os investimentos de não residentes em portfólio e os ativos virtuais.

Em 2024, o BCB traçou um roteiro ambicioso para o futuro do sistema financeiro nacional. A agenda regulatória, focada em temas como Open Finance, tokenização, inteligência artificial, sustentabilidade e inovação financeira, demonstra o compromisso em construir um ambiente mais eficiente, inclusivo e resiliente, alinhado às tendências globais e às demandas da sociedade brasileira.

Avanços concretos

O BCB já deu os primeiros passos em sua jornada regulatória, com ações como:

  • Aprimoramento do Bureau de Crédito Rural: novas funcionalidades para consulta pelas instituições financeiras e pelos produtores rurais, facilitando o acesso ao crédito e a gestão de riscos.
  • Inclusão de informações quantitativas na divulgação do GRSAC: Gerenciamento de Riscos Sociais, Ambientais e Climáticos pelas instituições financeiras, promovendo maior transparência e responsabilidade socioambiental.

Em busca de equilíbrio

Diversas iniciativas estão em andamento, buscando um equilíbrio entre a promoção da inovação e a proteção do consumidor:

  • Consulta pública sobre o uso de criptoativos em operações cambiais e para transferências de capitais internacionais: busca-se uma regulamentação abrangente e equilibrada para garantir a segurança e a transparência das transações com criptomoedas.
  • Estudo sobre a necessidade de regulação da tokenização: visa garantir a segurança e a transparência dos processos de emissão, escrituração e negociação de ativos tokenizados, impulsionando o desenvolvimento dessa tecnologia inovadora.
  • Estudo sobre os riscos e impactos do uso da inteligência artificial pelas instituições financeiras: busca mitigar riscos como o de conduta e o de modelo, garantindo que a IA seja utilizada de forma ética e responsável.
  • Implementação do IFRS 9: novos padrões internacionais de contabilidade para instrumentos financeiros, promovendo maior comparabilidade e confiabilidade das informações financeiras.

Ajustando o rumo

Algumas iniciativas tiveram seus prazos de entrega ajustados para garantir uma regulamentação mais robusta e eficaz:

  • Regulamentação do Banking-as-a-Service (BaaS): norma que visa regulamentar a relação de parcerias entre instituições financeiras e não financeiras para oferta de produtos e serviços financeiros. A entrega foi adiada para 2025 devido à complexidade do tema e à necessidade de um diálogo aprofundado com o setor.
  • Regulamentação dos prestadores de serviços de ativos virtuais (PSAV): norma que visa regulamentar a atividade de empresas que intermediam a compra e venda de criptoativos. A entrega também foi adiada para 2025 para garantir uma regulamentação abrangente e adequada às características únicas desse mercado.

Outras prioridades em foco

O BC também está focado em outras iniciativas importantes:

  • Definição da estrutura de governança do Open Finance: visa garantir a governança eficiente e eficaz da plataforma Open Finance, promovendo a abertura de dados e a inovação no setor financeiro.
  • Regulamentação da jornada de inicialização sem redirecionamento: busca simplificar o processo de abertura de contas em instituições financeiras, facilitando o acesso aos serviços financeiros.
  • Aprimoramento do funcionamento do Proagro: visa aperfeiçoar a cobrança do adicional, o modelo de cobertura, a participação do Tesouro Nacional e do Agente, bem como a definição do público-alvo, garantindo maior segurança e eficiência na proteção da produção rural.
  • Instituição de nova modalidade de boleto para liquidação de ativos financeiros: visa facilitar a liquidação de ativos financeiros como duplicata e recebíveis, otimizando os processos de pagamento.
  • Definição da forma de organização e funcionamento das cooperativas: busca modernizar o marco legal das cooperativas de crédito, alinhando-o às melhores práticas internacionais.
  • Disciplinar a edição e aprovação de catálogos de ativos financeiros pelas instituições financeiras: visa garantir maior padronização e transparência nos processos de autorização, facilitando o acesso ao crédito e o investimento em ativos financeiros.

Desafios e perspectivas

O Banco Central reconhece os desafios que enfrenta na implementação de sua agenda regulatória para 2024. O principal deles é acompanhar a rápida evolução das tecnologias, especialmente no campo da inteligência artificial e dos ativos virtuais. É crucial que o BC seja ágil e adaptável para garantir que a regulação acompanhe o ritmo da inovação, sem sufocar o potencial transformador dessas novas tecnologias.

Outro desafio importante é encontrar um equilíbrio entre a proteção do consumidor e a promoção da inovação. O BCB precisa garantir que a regulação proteja os consumidores de riscos, como fraudes e manipulações de mercado, sem, no entanto, criar obstáculos excessivos à inovação e à competitividade do setor financeiro.

A inclusão financeira também é uma prioridade para o BCB. É necessário buscar soluções que facilitem o acesso da população aos serviços financeiros, especialmente para os segmentos mais vulneráveis da sociedade. Isso pode ser feito através da simplificação de produtos e serviços, da expansão da oferta de crédito e da promoção da educação financeira.

Apesar dos desafios, o BCB está confiante de que sua agenda regulatória contribuirá para a construção de um sistema financeiro nacional mais moderno, seguro, inclusivo e resiliente. As ações do BCB visam impulsionar o desenvolvimento econômico e social do país, garantindo que o Brasil esteja preparado para enfrentar os desafios globais e locais com eficiência e responsabilidade.

Perspectivas:

Assim, a expectativa é que as ações do BCB contribuam para um sistema financeiro nacional mais moderno, seguro e inclusivo, impulsionando o desenvolvimento econômico e social do país.

Tabela – Lista de Prioridades de Regulação do BC em 2024

Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/regulacao?modalAberto=regulacao_bc   Acessado em28/05/2024.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.