Como as regras multilaterais de comércio podem auxiliar no fim da pandemia e a restaurar o prestígio da OMC
Fernanda Manzano Sayeg
A Organização Mundial do Comércio (“OMC”) é, indiscutivelmente, uma das mais importantes organizações internacionais. Desde os inícios de suas atividades, em 1º de janeiro de 1995, a OMC tem gerenciado os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio, atuado como fórum para a negociação de novas regras, supervisionado a implementação dos acordos pelos membros e solucionado os conflitos gerados pela aplicação de suas regras.
Contudo, a OMC foi perdendo, progressivamente, a capacidade de atualizar a sua agenda temática e, atualmente, vive um momento extremamente delicado.
Nos últimos anos, as disputas comerciais entre Estados Unidos e China resultaram na adoção de medidas protecionistas e sanções comerciais que são contrárias às regras da OMC. Além disso, o Órgão de Apelação da organização está impossibilitado de funcionar por falta de quórum, visto que os Estados Unidos conseguiram bloquear a indicação de novos membros para o Órgão.
Em meio às discussões sobre a necessidade de reforma da organização, teve início a pandemia da COVID-19 e, com ela, ficou clara que a interdependência das cadeias produtivas, que são transnacionais, bem como a relevância da liberalização do comércio internacional, já que insumos para medicamentos, equipamentos de proteção individual e vacinas são, muitas vezes, importados.
Assim, quando foi deflagrada a pandemia, com o intuito de evitar a escassez doméstica, muitos países, incluindo os Estados Unidos e alguns membros da União Europeia, impuseram restrições temporárias à exportação de certos produtos médicos e alimentícios. Entre tais medidas estava a necessidade de autorização para a exportação para equipamentos de proteção individual. Outros países aumentaram a concessão de subsídios e incentivos fiscais para fortalecer a produção interna de medicamentos e equipamentos médicos.
No entanto, a maioria das medidas introduzidas pelos países buscavam facilitar o comércio, com a eliminação ou a redução da alíquota de imposto de importação para bens relacionados ao tratamento ou prevenção da COVID-19, bem como a aceleração das inspeções alfandegárias para determinados bens, como equipamentos médicos usados no tratamento da doença.
Nesse cenário, não é surpreendente que, até 21 de agosto de 2020, os Membros tenham apresentado à OMC 225 notificações sobre a adoção de medidas relacionadas à COVID-19. Como as notificações dependem de apresentações oficiais e, portanto, muitas vezes estão atrasadas ou incompletas, acredita-se que o número real de medidas introduzidas no contexto da COVID-19 seja ainda maior.
Assim, a pandemia trouxe à tona a necessidade de se repensar e, quem sabe, reestruturar as cadeias globais e valor de forma a garantir o suprimento de itens essenciais a todos os países, mesmo em situações excepcionais, como aquela gerada pela COVID-19. Da mesma forma, a pandemia está acelerando tendências como a mudança para uma economia prioritariamente digital, que não era uma realidade em muitos membros da OMC antes da COVID-19, sobretudo em países de menor desenvolvimento econômico relativo. E, principalmente, a pandemia tem colocado em xeque questões como a proteção às patentes em um momento em que milhares de vidas humanas poderiam ter sido salvas com vacinas, medicamentos e equipamentos hospitalares, muitos dos quais são protegidos por direitos de propriedade intelectual.
Em outubro de 2020, momento em que as vacinas para a COVID-19 estavam em fase de testes, e de modo a evitar o que se chamaria posteriormente de “nacionalismo da vacina”, Índia e África do Sul apresentaram ao Conselho do TRIPS uma proposta para a concessão de um waiver temporário à implementação, aplicação e execução das Secções 1, 4, 5, e 7 da Parte II do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) em medicamentos utilizados na prevenção, na contenção ou no tratamento da COVID-19. A proposta objetiva suspender as proteções dos direitos de propriedade intelectual (patentes, direitos autorais, desenhos industriais e informações não divulgadas) em medicamentos utilizados na proteção e no tratamento da COVID-19 até que a pandemia esteja sob controle.
Se por um lado a proposta de waiver conta com o apoio de 57 Membros, incluindo todo o Grupo Africano e países menos desenvolvidos, por outro, países desenvolvidos como Inglaterra, Suíça e os Estados Unidos, que têm grandes indústrias farmacêuticas domésticas, se manifestaram contrários, alegando que a proteção dos direitos de propriedade intelectual incentivou a pesquisa e a inovação e que a suspensão desses direitos não resultaria em um súbito aumento no fornecimento de vacinas. O Brasil, após semanas de silêncio sobre o tema – com vistas a evitar uma crise política com a Índia, que é um importante fornecedor do imunizante se manifestou contrariamente à proposta da Índia e da África do Sul.
Propostas alternativas, incluindo a decretação de uma moratória de dois anos para a aplicação de patentes, sem as exigências de renúncia à proteção da propriedade intelectual sobre direitos autorais, desenhos industriais e informações confidenciais, bem como a proposta de flexibilização de quaisquer restrições e impostos de exportação que possam estar restringindo o fluxo de vacinas e tratamentos para a COVID-19. Também há esperanças de que os Membros possam chegar a um acordo com empresas farmacêuticas sem que necessariamente ocorra um waiver do TRIPS, como vem sugerindo a Diretora-Geral da OMC.
Em todos os cenários, o que se depreende é que a necessidade de consenso entre todos os Membros, que é um dos princípios basilares da OMC, tornou-se um dos principais obstáculos à atuação da Organização, seja como um fórum que poderia estar criando novas regras mais adequadas para o momento atual, seja atuando na fiscalização do cumprimento das normas existentes. É imprescindível que os membros repensem essa questão e procurem uma solução, que pode estar na celebração de acordos plurilaterais.
Portanto, a crise da COVID-19 pode dar o impulso necessário para que os 164 membros da OMC busquem modernizar a organização e cheguem a um acordo sobre uma ambiciosa agenda de reformas. A Conferência Ministerial da OMC, que ocorreria no Cazaquistão, em junho de 2020, e que foi transferida para junho de 2021, parece ser a ocasião perfeita para esse acordo.
Neste cenário otimista, a nova Diretora-Geral, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, que tomou posse, no início de março de 2021, tem a oportunidade de fazer história não apenas como a primeira mulher e a primeira africana a dirigir a OMC, mas como a mulher que ajudou colocar fim à pandemia e a desenhar uma nova OMC, adequada ao Século XXI. Afinal, a liberalização comercial não é mais um objetivo, mas uma realidade inexorável.
Referências Bibliográficas
FUNKE, Martha. Geopolítica envolve o licenciamento compulsório. Publicado no Valor Econômico em 25/02/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2021/02/25/geopolitica-envolve-o-licenciamento-compulsorio.ghtml
SAYEG, Fernanda M. O papel decisivo da OMC na pandemia. Publicado no JOTA em 18 de março de 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-papel-decisivo-da-omc-na-pandemia-18032021
SCHNEIDER-PETSINGER, Marianne. Reforming the World Trade Organization: Prospects for Transatlantic Cooperation and the Global Trade System. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2020/09/reforming-world-trade-organization/02-wto-reform-and-covid-19.
ZUCOLOTO, Graziela; MIRANDA, Pedro; PORTO, Patrícia. A propriedade industrial pode limitar o combate à pandemia? Publicado em 04/30/2020. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/en/topics/188-a-propriedade-industrial-pode-limitar-o-combate-a-pandemia