Artigos de opinião

O fim da história do Direito da Concorrência

Angelo Prata de Carvalho

Francis Fukuyama conquistou ampla fama ao sustentar que, por ocasião da queda do muro de Berlim, firmou-se notável consenso em torno da superioridade das democracias liberais ocidentais e do capitalismo sobre suas ideologias rivais. A conclusão do autor, na verdade, não se limita a afirmar a vitória do capitalismo liberal ocidental, mas consiste em dizer que tal sistema político-econômico consiste no ponto final da evolução ideológica humana ou, ainda, no fim da história[1].

            O fim da história já foi também pontificado no campo do Direito Empresarial, como se depreende do texto clássico de Henry Hansmann e Reinier Kraakman, para quem, por mais que ainda persistam intensos debates a respeito de instituições fundantes do Direito Societário, do mercado de capitais e das próprias estruturas de governança, as reflexões essenciais sobre essa seara adquiriram considerável grau de homogeneidade em torno da proteção dos interesses dos sócios[2]. Assim, os esforços empreendidos no sentido de proteger outros interesses afetados pela atuação dos agentes econômicos foram suplantados por uma ideologia dominante que protege preocupações de curto prazo relacionadas à satisfação dos interesses mais imediatos dos sócios – notadamente a maximização de seu autointeresse.

            A construção de um consenso a respeito das premissas básicas de reflexão de campos vinculados à atuação dos agentes econômicos invariavelmente conduziria à convergência tanto dos institutos jurídicos quanto das próprias metodologias de interpretação e aplicação do direito, de maneira a estruturar um corpo minimamente previsível e confiável de ferramentas capazes de pavimentar a estrada para que agentes privados possam usufruir de sua grande capacidade de organização – ou, talvez, de sua eficiência.

            O percurso histórico do Direito da Concorrência – capítulo indispensável de qualquer estudo a respeito do campo, com as necessárias referências ao advento do Sherman Act como meio de defesa da sociedade contra o poder (econômico e político) acumulado pela elite capitalista – é marcado por frequentes conflitos de ideias, pelo desenvolvimento de intrincadas metodologias econômicas e pela marcante preocupação com as repercussões políticas e sociais da concentração do poder econômico. Acontece que, em dado momento do século XX, nascem em Chicago premissas de análise econômica aplicadas ao Direito da Concorrência que tiveram a pretensão de emprestar a esse ramo do direito não somente a objetividade metodológica buscada pelos agentes econômicos para construírem seus modelos de negócio de maneira a maximizar a eficiência dos mercados, mas também seu próprio conceito de eficiência.

            Pouco importaria, nesse sentido, a aversão aos monopólios que originou o Direito da Concorrência – aversão esta motivada pelo fundado receio de que os monopolistas vertessem seu monumental poder econômico em avassaladora força política –, na medida em que, aplicados os métodos, técnicas e conceitos gestados pela Escola de Chicago, seria possível aferir os efeitos decorrentes de seu comportamento e eventualmente até qualifica-los como positivos. Associados os ganhos de eficiência às grandes estruturas corporativas antes combatidas pelo próprio Direito da Concorrência, as preocupações relacionadas à concentração de mercado são arrefecidas pela possibilidade de produzirem efeitos positivos caso garantidas condições mínimas de rivalidade.

            Não sem motivo, assinala Paula Baqueiro, em sua recente dissertação de mestrado, que a ascensão dos pressupostos da Escola de Chicago teve como passo necessário “abandonar quaisquer finalidades e valores políticos, sociais e econômicos e eleger a eficiência econômica como objetivo único do direito antitruste, no intuito de superar a subjetividade e imprecisão que valores “não econômicos” implicariam na análise concorrencial”[3]. O sucesso das metodologias neoclássicas, assim, verdadeiramente estimulou o abandono dos pressupostos sociais, políticos e econômicos que motivaram a própria criação do Direito da Concorrência, de tal maneira que “findou por estreitar gravemente o escopo do direito antitruste e afastá-lo da economia política, por minimizar a atuação do direito antitruste e restringi-la aos casos de “ineficiência”, e por difundir a presunção de que os mercados se autorregulam e não seriam problemáticas a conquista e manutenção de poder de mercado”[4].

            Em outras palavras, uma vez consagradas premissas teóricas e metodologias operacionais capazes de suficientemente simplificar a realidade complexa com que se depara o Direito da Concorrência, com a vantagem adicional de comportar o ânimo concentracionista dos agentes econômicos, pôde o Direito da Concorrência acomodar-se na tranquilidade produzida pelo consenso em torno das ideias da Escola de Chicago. Dessa maneira, por mais que episodicamente surjam posicionamentos críticos capazes de gerar fagulhas de divergência diante da ideologia dominante, tais eventos não passariam de fogos controlados, a tal ponto que algumas oscilações na teoria antitruste mainstream passariam a ser vistas não como alertas quanto às falhas de Chicago, mas modismos passageiros que, cedo ou tarde, confirmariam a adequação e a suficiência das metodologias neoclássicas.

            A história do Direito da Concorrência, assim, teria chegado ao seu fim tão logo a Escola de Chicago construiu seu edifício teórico e declarou-o – ela própria – patrimônio tombado passível até de algumas rachaduras, mas jamais de ser derrubado. Por mais que não se ignore a adaptabilidade dessas metodologias a essas novas realidades, renovando-se por meio da articulação de modelos matemáticos que supostamente são capazes de apreender a transformação da sociedade e da economia, parece verdadeiramente contraditório fazer-se vista grossa ao fato de que marcadamente repetem as mesmas premissas teóricas simplistas que fragilizam a argumentação da Escola de Chicago desde a sua gênese.

            As contradições do fim da história do Direito da Concorrência evidenciam-se de maneira exponencial diante dos desafios da economia digital e dos danos causados pela intensificação do movimento de concentrações que as metodologias de Chicago permitiram, de forma que também endurecem as críticas à sua impermeabilidade a variáveis sociais, políticas e mesmo econômicas. Daí pontuar Lina Khan que o que o “fim da história” do Direito da Concorrência nada mais seria do que uma pausa prolongada na constante disputa a respeito da finalidade e dos valores que orientam o antitruste norte-americano[5]. Com os recentes desenvolvimentos de posturas críticas a respeito do Direito da Concorrência e com a verificação dos efeitos nefastos da concentração, a estabilidade do consenso sobre os seus propósitos viria sendo gravemente abalada pelo que a autora denomina de ruptura protagonizada por autores que integram a corrente neobrandeisiana.

            Facilmente se poderia, porém, apontar a corrente neobrandeisiana como apenas mais um episódio de questionamento ao Direito da Concorrência mainstream, que, como vários outros, será passageiro e não tardará a ser suplantado pelos firmes pilares da ideologia de Chicago, que atribui ao antitruste a limitada função de promover o bem-estar do consumidor a partir de suas já há muito conhecidas definições de eficiência. Acontece que olhar para a origem do Direito da Concorrência e seu ulterior desenvolvimento, de fato, não permite que se chegue a conclusões muito distintas, já que a Escola de Chicago efetivamente expande sua influência a nível global e chega a orientar um processo de convergência tanto das legislações quanto das metodologias de análise antitruste. O neobrandeisianismo, assim, seria tão somente mais um sintoma do fim da história do Direito da Concorrência.

            Isso porque o verdadeiro fim da história do Direito da Concorrência não ocorre com o advento da Escola de Chicago – como se pode crer a partir da observação atenta e ansiosa dos movimentos das autoridades e dos teóricos norte-americanos –, mas sim com a aceitação do pressuposto de que é a partir dos Estados Unidos e da história do Direito da Concorrência norte-americano que serão balizadas as políticas de defesa da livre concorrência de países radicalmente diversos. A análise centrada no direito norte-americano – e mesmo nas recentes contradições com relação às posições europeias e à ativa literatura crítica à postura dos Estados Unidos – ignora que há outros Direitos da Concorrência regidos por constituições e leis próprias, orientados por normas sociais e culturais peculiares e que foram capazes de gerar modalidades de capitalismo que, ainda que não sejam essencialmente distintas, no mínimo são conformadas por elementos valorativos diversos daqueles que permitira, a ascensão das metodologias de Chicago.

            Diferentemente do que aconteceu com a queda do muro de Berlim – que tanto não encerrou lutas ideológicas como abriu espaço para o recrudescimento de um liberalismo infenso às clivagens sociais e mesmo aos imperativos democráticos que fez corar até o próprio Fukuyama –, de fato parece acertado declarar o fim da história do Direito da Concorrência nos Estados Unidos, ao menos para que se coloque em dúvida a conduta de assumi-lo como referencial a ser acompanhado e copiado. No entanto, de maneira alguma parece justo decretar o fim da história do Direito da Concorrência como ramo do direito fundado nas características idiossincráticas dos demais sistemas jurídicos, políticos e econômicos que prezam pela defesa da livre concorrência – sobretudo pois sua história ainda está por começar.


[1] Ver: FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. Nova York: The Free Press, 1992.

[2] HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. 2000. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=204528.

[3] BAQUEIRO, Paula. Poder econômico e poder político no Direito da Concorrência brasileiro: uma análise a partir da sociologia econômica e da ordem econômica constitucional. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2022. p. 86.

[4] BAQUEIRO, Op. cit., p. 87.

[5] KHAN, Lina. The end of Antitrust history revisited. Harvard Law Review. v. 133, pp. 1655-1682, 2020.

O Regime de Origem como um dos Focos Centrais das Negociações Internacionais

Josefina Guedes & Eliane Fontes

Quando se aborda o tema de acordos internacionais, imediatamente pensa-se em questões tarifárias, procurando resguardar as tarifas de importação dos produtos fabricados e reduzir as dos não fabricados, dependendo do interesse de cada nação envolvida. Acordos internacionais são complexos e abarcam inúmeros temas, que vão muito além da mera desgravação tarifária para obter acesso a mercados ou tentar restringi-los. De maneira alguma, questiona-se a relevância de questões tarifárias, mas normalmente quando se completa a desgravação tarifária perde-se o objeto. Outros temas, em contrapartida, ganham em importância, como é o caso do regime de origem, que abordaremos no presente artigo.

Regime de origem é o corpo normativo de determinado acordo comercial que estabelece a maneira pela qual a origem será comprovada para que faça jus aos benefícios firmados nesse acordo. Por intermédio do regime de origem, as partes acordam sobre os critérios, exigências e obrigações na matéria origem. A observância desse regime permite que os países possam garantir vantagens comerciais que foram acordadas, sendo considerado importante instrumento de política comercial.

Historicamente, após a Segunda Grande Guerra, em 1947, foi estabelecido o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ou Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio (GATT), visando promover o comércio internacional e remover ou reduzir barreiras comerciais, tais como tarifas ou quotas de importação, a eliminação de preferências entre os signatários.

O Acordo Geral tratava-se de um conjunto de normas tarifárias destinadas a impulsionar o livre comércio e a combater práticas protecionistas nas relações comerciais internacionais, gerando com isso riqueza entre as nações.

Vinte e três foram membros fundadores, são eles: Brasil, Bélgica, África do Sul, Austrália, Birmânia (ou Myanmar), França, Canadá, Reino Unido, Ceilão, Holanda, Estados Unidos, Chile, China, Cuba, Checoslováquia, Índia, Líbano, Síria, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Rodesia do Sul.

O Acordo inicialmente foi discutido na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego, em Havana, entre 1947 e 1948, após o fracasso das negociações para criação da International Trade Organization (ITO).

Assim, o Acordo Geral, conhecido como GATT, foi assinado, em Genebra, no dia 30 de outubro de 1947, com vigência a partir de 1º de janeiro de 1948, ficou vigendo até 14 de abril de 1994, quando foi substituído pelos Acordos da Rodada do Uruguai, assinado por 123 países membros, em Marrakesh, criando a entidade internacional denominada Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1º de janeiro de 1995.

Em paralelo as negociações multilaterais, nessa mesma época, diversos outros acordos foram surgindo em formatos regionais, uniões aduaneiras, como a União Europeia, ALADI na América Latina, Mercosul, NAFTA, ASEAN, entre outros. Cada um desses acordos estabeleceu seu próprio regime de origem, para assim preservar preferências regionais mais vantajosas para seus parceiros. Além de garantir, o início das cadeias globais de valor das grandes multinacionais e nações.

Esse emaranhado de acordos, no final da década de 90, passou a ser um problema, sendo duramente criticado, uma vez que os regimes de origens elaborados para cada acordo, sejam regionais ou de livre comercio, passaram a ser grandes barreiras ao comércio de bens pelo mundo.

A complexidade dos regimes de origens começou a ser questionada pelas cadeias globais de valor que foram surgindo nas últimas décadas, uma vez que o objetivo desses grandes grupos é fabricar seus produtos em regiões mais competitivas, levando em consideração o custo da mão de obra, logística e incentivos fiscais locais.

Diante de todo esse movimento, foi necessário reavaliar os regimes de origem e buscar uma simplificação, principalmente a redução de conteúdo local, para poder atingir as necessidades desse novo desenho de produção e comércio.

Nesse novo cenário, surgiram novos conceitos de regime de origem, sofisticando-se de tal forma, que a nomenclatura vem resultando numa linguagem complexa para os que não atuam na área internacional, como mercadoria originária, mercadoria obtida, mercadoria integralmente elaborada, transformação substancial, salto tarifário, índice de conteúdo regional e etc.

Em função dessas necessidades, houve um desmembramento das regras de origem, podendo ser classificadas em regimes de origem: Não-Preferenciais ou Preferenciais.

Independentemente do tipo de regras de origem, todos observam conjunto de leis, normas, regulamentos e atos administrativos de aplicação geral, utilizados por cada país para a determinação do país de origem das mercadorias, desde que não relacionados as regras comerciais contratuais ou autônomos acordadas, que prevejam a concessão de preferências tarifárias.

Em relação ao regime de origem não-preferencial, a regra de origem utilizada é o tratamento de nação mais favorecida que está prevista no Acordo Geral da OMC, como também, nas medidas de defesa comercial, nas restrições quantitativas discriminatórias ou quotas tarifárias como salvaguardas, compras governamentais, entre outras.

No âmbito da OMC foi criado um Comitê para estabelecer regras de origem não-preferenciais comuns, para utilização de todos os Países-Membros. No entanto, por diferenças incontornáveis de enfoques econômicos entre os países, o trabalho não pode ser concluído.

Quanto aos regimes de origem preferenciais, usualmente são regras negociadas nos acordos internacionais de comércio, para a concessão de preferências tarifárias entre as partes signatárias, que devem ser cumpridas para que uma determinada mercadoria possa ser considerada originária de um desses países e assim receber tratamento tarifário preferencial.

Existem alguns regimes de origem preferenciais estabelecidos sem negociação entre as partes, quando um país decide conceder, unilateralmente, preferências tarifárias para outros. Um exemplo clássico é o Sistema Geral de Preferências (SGP), pelo qual vários Países Desenvolvidos, se comprometeram, no âmbito da UNCTAD, a efetuar concessões unilaterais preferenciais a Países em Desenvolvimento ou Países Menos Desenvolvidos, podendo estabelecer regras de origens próprias para esses regimes comerciais autônomos ou específicos, com o objetivo principal de auxiliar no desenvolvimento econômico e social e a inserção dos outros países na economia mundial.

Mas a grande maioria das regras de origem preferenciais integram os Regimes de Origem negociados nos acordos de comércio, definindo duas categorias de mercadorias que podem ser consideradas como originárias: (i) bens integralmente obtidos ou produzidos no território de um ou mais países signatários do acordo, e (ii) bens que utilizam algum tipo de insumo importado, mas cumprem com as regras de origem estabelecidas no acordo. São consideradas como originárias:

  • Quando as mercadorias são totalmente obtidas no território dos países-membros do acordo. Normalmente são produtos do reino animal, vegetal ou mineral, recursos naturais ou frutos da caça e pesca extraídos no território dos países-membros, produtos de pesca. Ou podem ser produtos elaborados integralmente no território de qualquer parte quando em sua elaboração forem utilizados, única e exclusivamente, materiais originários das partes.
  • Quando as mercadorias utilizam insumos importados de países não integrantes do acordo. Nesses casos, as mercadorias podem ser qualificadas como originárias, mesmo tendo sido produzidas com materiais não-originários, desde que esses produtos, elaborados total ou parcialmente com insumos de países de fora do acordo, cumpram com as regras de origem estabelecidas no acordo. Estas regras podem ser de cumprir um percentual mínimo de valor agregado no seu território ou de que os produtos são resultantes de um processo de transformação que lhes confira nova individualidade, caracterizada pelo fato de estarem classificados em uma posição tarifária diferente dos materiais não-originários.

Outrossim, as partes envolvidas no acordo podem determinar requisitos específicos de origem, que prevalecem sobre os critérios gerais, os quais têm por objetivo principal dificultar qualquer manobra para o não cumprimento das regras de origem acordadas e assim garantir a correta utilização dos benefícios do acordo.  

A título de exemplo, o acordo de livre comércio Mercosul e União Europeia, o regime de origem foi em grande parte baseado em requisitos específicos por setor econômico ou até por produto, devido as cadeias globais de valor, e demais necessidades das regiões envolvidas, como a manutenção de investimentos e empregos.

Com os acordos que resultaram em uma união aduaneira e considerando também as cadeias globais de valor, foram necessárias outras regras para acomodar tais situações, o que resultou na regra de acumulação de origem, que consiste na possibilidade da mercadoria ser originária, quando os produtores de um país-membro desse acordo ou união aduaneira, considere como originário todos os insumos provenientes dos países sócios do acordo ou união aduaneira.

Dessa forma, a acumulação de origem, constitui um dos elementos mais importantes dos regimes de origem, porque permite integrar as estruturas produtivas dos países-membros do acordo, incrementando o comércio entre as partes signatárias. Para isso, é necessário que se cumpram alguns tipos de acumulação:

“a) Acumulação de mercadorias ou bens: considerar como originário todos os insumos dos países sócios do acordo, desde que esses cumpram os regimes de origem do acordo;

b) Acumulação de processos: no momento da aplicação da regra de origem, considera os territórios dos países-membros do acordo como um único território;

c) Acumulação estendida: permite aos membros de um acordo (A e B) acumular insumos de terceiros países não-membros (C), sempre que esses terceiros países tenham acordos com cada um desses países-membros (A e B). A acumulação pode ser ampla (para todos os produtos) ou somente setorial [1]

Por exemplo, no caso europeu, um produto pode ter seu processo produtivo em 2 (dois) ou mais países e ser considerado produto originário da União Europeia.

Diante da complexidade do tema, somado a dinâmica do comercio exterior, conclui-se que em negociações internacionais para criação de acordo comercial o capítulo destinado às regras de origem deve ter atenção especial e redobrada, pois essas regras subsistirão aos temas tarifários, que podem ser considerados temporários, durando apenas enquanto a desgravação tarifária total não é atingida. 

Por fim, o dinamismo atual, em especial do comércio internacional, onde a cada momento surgem novas necessidades para atender as demandas globais, somados a fatores externos, como guerras e pandemias nos permite dizer que muitas outras mudanças poderão ocorrer no debate sobre regras de origem.


[1] Fonte: Secretaria de Comercio Exterior – SECEX

PIX e AIR: Quando a liberdade econômica desperta o ilusionismo e levanta cortina de fumaça[1]

Juliana Oliveira Domingues[*]

A fumaça natural é muito diferente da “cortina de fumaça”. A expressão cortina de fumaça costuma ser utilizada como uma alusão às estratégias militares e de mágicos (ilusionistas). Essas “cortinas” são produzidas, artificialmente, para “confundir”. Trata-se de tradicional manobra direcionada à desorientar. Agora, muito se engana quem imagina que essa tática só é utilizada por mágicos e ilusionistas.

No mês passado, por exemplo, houve evento muito interessante onde levantou-se uma cortina de fumaça sobre o PIX. A fala polêmica, por assim dizer, deu-se no evento da ABIPAG, com o apoio do IBRAC (Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional) e de diversas associações sobre “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital”. Organizado em cinco painéis temáticos compostos por painelistas e moderadores do mercado, autoridades públicas e membros da academia, o evento debateu os impactos das inovações tecnológicas no mercado financeiro e seus reflexos na defesa da concorrência.

Nesse sentido, foram focos dos debates open finance, open banking, novidades que envolvem os meios eletrônicos de pagamento e evoluções decorrentes de plataformas digitais, entre outros exemplos. Regra geral, aqueles que são naturalmente pró-concorrência partem da premissa que “competition drives innovation”, ou seja, concorrência e inovação caminham juntas.

Foi interessante observar, ao longo do evento, as posições quase uníssonas confirmando aspectos positivos ao bem-estar social, diante das recentes inovações tecnológicas. Inegavelmente, mercados secularmente fechados tornaram-se mais competitivos. No caso do PIX não foi diferente, especialmente quando falamos sobre os métodos de pagamento. Dados do Bacen indicam que 80% das transações com PIX substituíram as transações em dinheiro. O pagamento em “cash” (dinheiro) possui custo de logística para o Bacen, para as instituições financeiras, para as próprias empresas (tal como Ronald H. Coase e Oliver Williamson explicam) e tais custos acabam sendo repassados para a sociedade.

Com base em dados do Bacen e diversos estudos recentes, o PIX tem se destacado como exemplo exitoso para a transformação do mercado de pagamentos, trazendo inúmeros benefícios em razão da diminuição de custos, democratização de acesso e desburocratização. Desse modo, surpreendeu a fala de professor de direito e economia da FGV/SP ao afirmar que: i) o PIX não respeitou (ou não foi precedido) da AIR e que ii) haveria maior judicialização a partir de seu uso massificado.

Neste breve artigo, dedico-me a assoprar a fumaça levantada em cima do tema de AIR.

Afinal: AIR seria aplicável, ou não, para o PIX?

Pois bem, retomo esse tema, após dois anos da publicação com Miele e Silva do texto “Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas[1]. A força normativa à AIR está na LLE (lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.848/2019) vinculando a sua aplicação. A LLE foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente, entrando em vigor no dia 20 de setembro de 2019.

Contudo, tal como reiterada em diversas Notas Técnicas da Senacon[2] e em produções acadêmicas anteriores, a produção dos efeitos quanto à AIR ocorreu apenas em 15 de abril de 2021 para o Ministério da Economia, para as agências reguladoras (Lei nº 13.848/2019) e para o Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e, a partir de 14 de outubro de 2021, para os demais órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (art. 24)[3].

E o que motivou o legislador a prever esse regime de transição?

Obviamente, quando há nova orientação passa a ser necessária adequação e capacitação das estruturas que farão a análise. Vimos a mesma situação na entrada em vigor da lei 12.529/2011, há 10 anos, quando a estrutura do CADE passou a ser adequada à análise prévia de atos de concentração empresarial, por exemplo.

No que diz respeito ao AIR, quem trabalhou com políticas públicas na transição da norma (i.e. no Ministério da Economia, nas agências reguladoras, Inmetro e nos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional), e/ ou segue acompanhando essa transição, testemunha muitos desafios durante a execução de referida análise.

Cabe dizer, ainda, que há dispensa da aplicação da AIR quando há ato normativo de “baixo impacto” ou seja, aquele que: “b  i. não enseja aumento excessivo tanto de custos para os usuários de determinados serviços e para os agentes econômicos quanto de despesa orçamentário ou financeira para o Estado; e ii. não impacta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais[4].

Em resumo, explicado o contexto acima, temos premissas que sopram a fumaça para longe: AIR não era necessária para o open banking visto que a previsão da LLE é superveniente a esse processo. E, ainda que por hipótese fosse exigida, há muito espaço para se discutir se não seria o caso de dispensa. Para além disso, vale lembrar que a concorrência entre as fintechs e as grandes instituições financeiras e de meios pagamento não deve ser considerada como “despesa financeira”.

Afinal, para quem o PIX causou “aumento excessivos de custos?” Bem, para os consumidores e cidadãos não houve custo, muito pelo contrário! O PIX notadamente promoveu maior inclusão social. Schumpeter estaria comemorando essa grande revolução dos meios de pagamento. Hoje, é possível observar vendedores ambulantes aceitando o PIX como forma de pagamento, em todos os cantos do Brasil. É um fenômeno raro, mas de fato o PIX foi bem recebido em todas as classes sociais e em pouco tempo se tornou importante ferramenta.

 De todo modo, tirando as imprecisões interpretativas[5] naturais de toda norma jurídica, há ao menos 03 premissas que assopram para muito longe a fumaça artificial levantada pelo colega professor em torno do PIX:

  1. O PIX foi previsto e entrou em vigor após o início da primeira etapa do open banking e sem obrigatoriedade, por lei, de AIR, mas foi construído com participação do setor privado por meio do Fórum PIX (com instituições financeiras e de pagamentos, além de empresas de tecnologia e muitos representantes do varejo).
  2. O PIX não enseja aumento excessivo de custos (i. e. perda eventual de lucro dos tradicionais métodos de pagamento não é despesa) e não impacta negativamente as políticas públicas. Aliás, o PIX é um mecanismo disruptivo e eficiente para maximizar a competitividade do setor financeiro, de forma a funcionalizar o alcance do bem-estar social (consumer welfare) previsto na análise econômica e nas políticas públicas regulatórias e de defesa da concorrência;
  3. O PIX permanece sob permanente monitoramento do Bacen, com base em suas competências. Isto significa que o regulador/ agente público poderá criar mecanismos de correções de eventuais percursos não esperados. Isso faz parte de toda inovação e não deve “matá-la”.

A Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) – interessante mecanismo de análise dos efeitos – segue prevista. O ARR permite o controle de efeitos dos atos já editados, confere o atingimento dos seus objetivos e avalia os outros impactos para mercado e para a sociedade (art. 2º, inc. III). Entretanto, as agências mais maduras neste tema (entre as quais ANVISA, ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANAC) ainda encontram desafios para adequar a abrangência e a implementação tanto da AIR quanto da ARR.

Em resumo, o PIX é uma realidade que nos obriga a compreender os efeitos da liberdade econômica e da economia criativa digital. Isso tira muitos de suas zonas de conforto e será uma prova àqueles que sempre defenderam a bandeira liberal: não dá para defender a liberdade, a eliminação dos custos de transação e o empreendedorismo e, ao mesmo tempo, fomentar ruídos para garantir reservas de mercado.

É verdade que “[p]or muitas décadas, conformamo-nos a viver em um país avesso à liberdade econômica, ao empreendedorismo, […][6], como afirma a Professora Luciana Yeung (Insper) no capítulo “uma chama de esperança”, em livro organizado pela professora Ana Frazão com os Ministros Ricardo Villas Boas Cueva e Luis Felipe Salomão com comentários à LLE. Sim, após anos de entraves, muitos se conformaram com o ambiente pouco favorável à entrada de novos negócios, às novas tecnologias e com a ausência de concorrência. Não é de hoje que falhas de mercado são combatidas pelos reguladores. Assim, passa a ser mais importante a valorização das alternativas criadas no sistema financeiro (precisamente com o open banking) que o Bacen buscou corrigir.

Portanto, impossível compararmos os efeitos ocasionados em Pompeia após a erupção do Vesúvio com os efeitos do gelo seco em um palco de show de mágica. A fumaça artificial do ilusionista se dissipa facilmente, mas aquela decorrente de mudanças profundas – decorrentes de um “vulcão”, fazendo alusão à frase de Victor Hugo do início do artigo – tendem a seguir por muito tempo. Firmam-se os efeitos da revolução (neste caso, a digital) e da economia 4.0, com marcas perenes e permanentes das chamas de um grande vulcão da disrupção.


[1] DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.

[2] Veja-se, Nota Técnica n.º 48/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, elaborada pela Senacon em 2020, com o objetivo de esclarecer os objetivos do Open Banking. A nota técnica traz conclusões positivas e recomendações sobre o assunto. Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana O. PARAVELA, Tatyana C. Open banking: o futuro do sistema financeiro aberto no Brasil na perspectiva do Consumidor. v. 15 n. 2 (2021): Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central. Disponível em: < https://revistapgbc.bcb.gov.br/revista/article/view/1133 > Acesso em 22 de set. de 2022.

[3] CF. DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.

[4] Id.Ibid.

[5] A lei traz conceitos abertos como “aumento expressivo” e “forma substancial” (art. 2º., II, a, b e c).

[6] YEUNG, Luciana L. Friedrich Hayek, Liberdade Econômica, a MP e a Lei da Liberdade Econômica: Por Que É Necessária? In: Luis Felipe Salomão; Ricardo Villas Bôas Cueva; Ana Frazão. (Org.). Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, v. 1, p. 88.


[*] Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.


[1] Com especial agradecimento ao debates realizados com exímios profissionais que contribuíram para o amadurecimento do texto: Mariana Zilio (advogada e ex-assessora/ chefe de Gabinete da Senacon), Andrey Freitas (Ex-Coordenador Geral na Senacon e subsecretário da SEAE/ME, também colunista do Webadvocay), Conselheiro Gustavo A. Freitas de Lima (que acompanhou o tema na Casa Civil e esteve no debate sobre o PIX como representante do CADE), Aluísio de Freitas Miele (professor, pesquisador e coautor de artigos que envolvem o tema) e Ângelo Duarte (chefe de departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro do Bacen).

Ainda sobre a especialização de juízes: argumentos favoráveis à especialização

Fernando de Magalhães Furlan

If the advocates must be specialists, can we wholly ignore

the need for some specialization in the judicial systems?[1]

Chief Justice Warren Burger, 1982

O sopesamento da relação custo-benefício na concepção e operação de juizados especializados é não somente natural, mas também indicada para se evitar o dispêndio de tempo e recursos, humanos e financeiros, de maneira desnecessária ou inconsistente.

As características de exclusividade e limitação dos juizados e tribunais especializados criam diversos benefícios e custos. Esses benefícios e custos podem ser classificados em quatro linhas principais de raciocínio: “(a) desenvolvimento do capital humano judicial; (b) criação de jurisprudência e doutrina uniformes e previsíveis; (c) impacto do sistema legal na economia política; e (d) ganhos na gestão eficiente dos tribunais”[1].

Como, afinal, podemos avaliar se a especialização influencia o resultado do caso ou a qualidade e utilidade da decisão? Como a especialização promove a proficiência e o quanto ela é útil para o julgador?

Alguns comentaristas[2] argumentam que “depois da nomeação de um juiz para uma corte especializada específica, a sua proficiência tende a aumentar”. A repetição de casos semelhantes solidifica a compreensão do julgador em relação a subáreas específicas, e a diversidade de casos dentro da jurisdição especializada pode preencher as lacunas no conhecimento do julgador sobre o conjunto das matérias sob a sua responsabilidade.

Os juízes especializados tendem a se tornar hábeis em questões substantivas e processuais que envolvem determinadas matérias, especialmente as altamente técnicas. Disso certamente devem resultar decisões mais precisas. Algumas dessas matérias poderão exigir treinamento extralegal como, por exemplo, fundamentos econômicos, finanças, engenharia e ciências aplicadas[3].

Além disso, juizados especializados podem estimular o surgimento de advogados especializados que incentivem o julgador a se manter atualizado e com uma formação contínua. Por sua vez, os julgadores têm um forte incentivo para investir o tempo necessário para aprender mais sobre áreas do conhecimento jurídico nas quais eles permanecerão engajados.

Advogados e servidores são também falíveis e juízes especializados podem reduzir a probabilidade de “inadvertência simples”[4], numa determinada decisão. Isto é, por sua experiência e conhecimento conseguem compensar descuidos de advogados e auxiliares. Também podem reduzir a chance de uma parte ganhar ou perder um caso similar apenas por causa de um desequilíbrio na qualidade da advocacia. Além disso, a presença de mais de um julgador na mesma área de especialização e até no mesmo local físico permite um intercâmbio mais produtivo entre os juízes.

A utilidade do conhecimento especializado depende, naturalmente, do estágio do processo. “Presumivelmente, a especialização do julgador é mais importante nas fases iniciais do processo”[5], quando os fatos, depoimentos, testemunhas, documentos e todo o acervo dos autos estiver sendo colhido e as primeiras decisões sendo tomadas.

Isso porque não há decisão prévia a considerar, o julgador terá que construir o caso por conta própria. “À medida que o caso avance para instâncias recursais, a necessidade de conhecimentos especializados tende a diminuir”[6], pelo menos se o julgador de primeira instância houver expressado bem o seu raciocínio e a sua conclusão, bem como tratado corretamente evidências e testemunhos.

Embora se admita que alguma familiaridade com uma determinada área específica do direito possa ser útil para um juiz desempenhando funções recursais, acredita-se que os benefícios de conhecimentos mais específicos e especializados seriam apenas marginais nesse caso, ao contrário do que ocorre com juízes de primeira instância.

Legomsky pondera que quanto maior o escopo da escolha do julgador, mais essencial é a compreensão profunda dos objetivos de políticas públicas relevantes, a redução da inadvertência, a coerência e a minimização da dependência das habilidades dos advogados envolvidos na controvérsia[7].

Em fases posteriores da adjudicação, o papel tipicamente limitado de um tribunal de revisão, apelação ou recursos, em questões de fato e ponderação de evidências, diminui o valor da especialização.

Em relação a questões fáticas e colheita de evidências, típicas das instâncias iniciais de um processo, a especialização pode ser favorável pois[8]:

a.       a familiaridade com matérias jurídicas interconectadas facilita a compreensão e a inquirição de especialistas e peritos;

b.      permite melhor avaliação de informações e dados técnicos de áreas como a economia;

c.       a repetição de temas correlatos melhora o entendimento de fontes recorrentes de evidência e permite ao julgador uma melhor avaliação da influência e legitimidade dessas fontes sobre a qualidade da evidência.

A especialização também promove a eficiência na medida em que permite a redução do tempo necessário para que os advogados esclareçam o julgador sobre aspectos básicos de uma determinada área de especialização[9]. Essa redução de tempo acaba tendo repercussões financeiras, tanto para o Erário quanto para as partes do litígio.

Para a juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor, “não há dúvida de que quando um juiz tem uma especialização em uma área ou campo do direito, esse juiz pode se preparar para audiências com menos tempo e pode resolver problemas mais rapidamente e talvez melhor[10].

Nos Estados Unidos, atualmente 28 estados contam com cortes de negócios (business courts) ou cortes especializadas em litígios complexos[11]. As cortes de negócios têm sido principalmente “uma divisão de um tribunal maior, com jurisdição limitada a alguns tipos de disputas comerciais, presididas por apenas alguns juízes especializados, com ênfase na gestão agressiva de casos”[12].

Essas cortes de negócios foram criadas “sob a premissa da inovação, eficiência e flexibilidade, especificamente adaptadas às necessidades dessas jurisdições”[13]. Enquanto algumas cortes de negócios são fisicamente separadas, com o seu próprio e exclusivo magistrado, outras estão integradas a um registro geral baseado em critérios de distribuição pré-estabelecidos.

As variáveis mais comuns entre essas cortes de negócios dizem respeito a: (i) retenção de um montante mínimo de controvérsias sobre negócios para critérios jurisdicionais de inclusão e distribuição; (ii) aceitação de transferências de jurisdição em todo o estado, distrito ou região abrangida; ou (iii) se a inclusão deve se limitar a apenas uma região específica. Adicionalmente, as jurisdições que adotam cortes de negócios devem decidir se os casos serão automaticamente atribuídos a elas, com base apenas em critérios de especialização pré-estabelecidos, ou se uma transferência está subordinada a um pedido das partes ou a recomendação do magistrado responsável[14].

A maioria dos modelos de cortes de negócios incorpora um conjunto complexo de litígios econômico-empresariais a uma lista preexistente de controvérsias genéricas. Tal modelo tem sido preferido porque permite que juízes já estabelecidos possam se responsabilizar por essas demandas judiciais complexas, sem a necessidade de nomeação de juízes exclusivos para a corte de negócios, reduzindo custos[15].

Aspectos da eficiência comparativa podem parecer óbvios para qualquer advogado ou juiz sem a necessidade de verificação empírica. Entretanto, já é possível realizar análise comparativa de desempenho, com as introduções altamente bem-sucedidas de cortes de negócios em Nova York e em Chicago. Em Nova York, o julgamento de casos comerciais aumentou 35% em 1993 (ano em que os juízes especializados começaram a atuar) em relação a 1992, uma eficiência atribuída à introdução dos juízes especializados[16]. O resultado de tais eficiências é que, com os mesmos recursos, o trabalho de mais de quatro juízes generalistas pode ser realizado por três juízes especializados (uma redução inicial de 25%).

Em mercados regulados, por exemplo, em que se faz necessário um planejamento de longo prazo e, portanto, é demandado um grau elevado de segurança jurídica e previsibilidade, os benefícios da especialização na promoção da consistência das decisões judiciais se tornam ainda mais pronunciados[17].

O dinamismo e a constante evolução de certas áreas do conhecimento jurídico, inclusive aquelas relacionadas à economia e aos negócios, também advogam a favor da especialização.

De outra parte, o volume de litígios em determinadas áreas do conhecimento jurídico é altamente relevante para o estabelecimento de um órgão jurisdicional especializado.

O Grupo de Trabalho sobre a Implementação da Política de Concorrência da Rede Internacional da Concorrência (International Competition Network – ICN), por exemplo, publicou um documento de trabalho[18] durante a sua 6ª Conferência Anual em Moscou, Rússia, em maio de 2007. Nesse documento, a ICN reafirmou que “a falta de conhecimentos especializados sobre questões de concorrência pelo Poder Judiciário é uma questão crucial que afeta a implementação da política de concorrência, especialmente para os países em desenvolvimento”.

Quando um sistema de tribunais de jurisdição geral é premido pelo volume de casos, e todos os esforços razoáveis para reduzir o número total de casos já foram feitos, então três opções básicas se colocam[19]:

  • criar juizados de jurisdição genérica;
  • expandir o tamanho dos juizados de competência geral existentes; ou
  • grupos selecionados de casos para juizados especializados.

Em relatório[20] publicado em 2016, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defende que a especialização do Judiciário é uma questão de grau e pode variar entre a especialização parcial e completa. A especialização judicial, de acordo com aquela organização plurilateral, pode implicar pelo menos três vantagens:

a)      maior eficiência decorrente da repetição e padronização das tarefas, das competências e da experiência dos juízes que analisam e compreendem as evidências e os argumentos econômicos. A eficiência pode ser medida por meio de indicador de duração da revisão judicial. Tempos de revisão menores gerarão maior certeza nos mercados, e o estabelecimento de prazos de conclusão da revisão judicial é uma prática positiva;

b)      a uniformidade das decisões é alcançada por meio da concentração de casos semelhantes e de áreas correlatas em cortes específicas. Uma maior especialização em assuntos determinados e uma redução do número de juízes responsáveis promoverão a uniformidade de forma natural. Quanto maior a uniformidade na interpretação em temas jurídico-econômicos, maior a certeza e a previsibilidade no mercado; e

c) a melhoria da qualidade das decisões é resultado do aumento da habilidade e da experiência na aplicação correta de ramos relacionados do direito às evidências de um caso. Além disso, quando os juízes discordam, ainda que parcialmente, ou invertem as decisões administrativas quando equivocadas, isso pode ter um efeito na qualidade das decisões emitidas pelas próprias autoridades administrativas.

Aquele relatório também enfatiza outros fatores que influenciam o desempenho das cortes judiciais, tanto de jurisdição geral quanto especializada, envolvidas com temas econômico-empresariais. Dentre eles destacamos:

a)      especialistas (economistas e demais profissionais) internos ou externos podem ajudar os juízes a interpretar evidências econômico-gerenciais e avaliar o seu valor probatório. Idealmente, os especialistas devem defender as suas próprias posições econômico-gerenciais, e tais posições devem estar firmemente fundamentadas em conceitos e modelos econômicos e na razoabilidade gerencial;

b)      as competências técnicas dos servidores do Judiciário são essenciais para o desenvolvimento de uma especialização em matérias econômico-comerciais. Essas competências podem ser desenvolvidas e apoiadas num robusto sistema de formação continuada nessas matérias. A perspectiva internacional também é essencial para se ter acesso às melhores práticas e experiências de outras jurisdições;

c)      devem ser adotados sistemas de gestão sólidos para uma administração confiável e transparente dos processos judiciais, bem como para a produção sistemática de bases de dados e estatísticas sobre os resultados obtidos; e

d)      o orçamento da corte é um meio eficaz para aumentar a performance e reduzir a duração dos litígios. A experiência internacional mostra que o investimento em infraestrutura e tecnologia da informação contribui para tanto.

A OCDE[21] pondera que quando as cortes e tribunais são de jurisdição geral e a concentração de casos da mesma natureza não for possível, os juízes podem usar outros meios para complementar os seus próprios conhecimentos e experiências, como, por exemplo, a realização de audiências de instrução e esclarecimentos com as partes, antes dos julgamentos, e a utilização de peritos econômicos ou profissionais especializados para ajudar a estruturar o processo de coleta de fatos e dados e o entendimento de questões complexas para facilitar a compreensão por juízes de jurisdição geral.

Afinal, mesmo que o volume de casos em áreas específicas do direito não seja muito grande, a carga de trabalho nas cortes e tribunais generalistas seria sensivelmente reduzida, desde que os casos transferidos fossem suficientemente complexos, o que disponibilizaria uma boa porção do tempo dos juízes generalistas.

Em estudo realizado com juízes generalistas e, em especial, juízes de falência (bankrupcy judges) nos EUA, que são certamente especialistas, Rachlinski, Guthrie e Wistrich descobriam que o nível de dependência do pensamento intuitivo dos juízes de falência era comparável ao do de juízes generalistas. Entretanto, os juízes de falência se saíram melhor em desconsiderar alegações que prejudicariam a qualidade da sua tomada de decisão. Tal resultado deixou aberta a possibilidade de que a especialização dos juízes de falência ajude a melhorar os processos pelos quais eles tomam decisões[22].

No contexto brasileiro, consoante levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[23] em 2009, as ações judiciais envolvendo agências reguladoras e CADE e que foram finalizadas, apresentaram tempo de processamento médio de 36 meses. Para as ações judiciais ainda pendentes de decisão há um prazo estimado de processamento de 50 meses.

Enquanto ainda em curso uma ação judicial, as decisões administrativas oscilam entre ter os seus efeitos suspensos (geralmente por meio de medidas liminares ou cautelares) e serem restabelecidas em diversos graus recursais. Em um cenário no qual o Judiciário dá margem à insegurança e à incerteza para depois confirmar decisões administrativas, o estudo do CNJ indaga se uma jurisdição específica para lidar com essas disputas, em um foro célere e especializado, não seria uma resposta.


[1] KESAN, Jay P.; BALL, Gwendolyn G. Judicial experience and the efficiency and accuracy of patent adjudication: an empirical analysis of the case for a Specialized Patent Trial Court. Harvard Journal of Law & Technology, Volume 24, Number, 2 Spring 2011 (24 Harv. J. L. & Tech. 393 2010-2011), p. 400.

[2] WOODWARD D. R.; LEVIN, R. M. In Defense of Deference: Judicial Review of Agency Action, 31 Administrative Law Review, 329, 332, 1979. Apud LEGOMSKY. Op. cit., p. 8.

[3] BRUFF, Harold H. Specialized Courts in Administrative Law. HeinOnline: 43 Admin. L. Rev. 329, 199. Available Through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[4] LEGOMSKY, Stephen H. Specialized justice: courts, administrative tribunals, and a cross-national theory of specialization. New York: Oxford University Press, 1990, p. 9.

[5] Idem, p. 9.

[6] Ibidem, p. 9.

[7] Ibidem, p 22.

[8] Ver entrevista com o Juiz Jeffries da Alta Corte da Nova Zelândia (New Zealand High Court). Apud LEGOMSKY, Stephen H. Op. cit., p. 10.

[9] LUBBERS, Jeffrey S. A unified Corps of Administrative Law Judges (ALJs): A proposal to Test the Idea at the Federal Level, 65, Judicature 266, p. 274.

[10] MIDDLETON, Martha. Specialty courts: two more Justices speak out. American bar Association Journal (January), 69:23, 1983.

[11] BERGAL, Jenni. Business Courts Take on Complex Corporate Conflicts. The Pew Charitable Trusts, Oct. 28, 2015.

[12] PEEPLES, Ralph and NYHEIM, Hanne. Beyond the Border: An International Perspective on Business Courts. 17:4 Bus. L. Today, Mar/Apr 2008.

[13] PITTMAN, Spence C. Business Courts: Specialized Courts for Complex Business Litigation. 87 Okla. B.J. 805 2016, p. 806. Available through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[14] DRAHOZAL, Christopher R. Business Courts and the Future of Arbitration. 10 Cardozo f. of Conflict Resol. 491, 496, 2008.

[15] PITTMAN, Spence C. Op. cit., p. 806.

[16]AMERICAN BAR ASSOCIATION. Business courts: towards a more efficient judiciary. Business Lawyer. 52.3 (May 1997): p. 947-963.

[17] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Judicial Review of Federal Administrative Action: Quest for the Optimum Forum. Columbia Law Review, Vol. 75, Nº 1, January 1975,

[18] “Concorrência e Judiciário – Estudo de Casos” (Competition and the Judiciary. 2nd. Phase – Case Studies). International Competition Network. Competition Policy Implementation Working Group. 6th ICN Annual Conference Moscow, Russia. May-June 2007.

[19] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Op. cit., p. 63.

[20] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialized and Generalist Courts), 2016.

[21] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialised and Generalist Courts), 2016.

[22] GUTHRIE, Chris; RACHLINSKI, Jeffrey J.; WISTRICH, Andrew J. The “Hidden Judiciary”: An Empirical Examination of Executive Branch Justice, 58 DUKE L.J. 1477, 1479 (2009).

[23] AZEVEDO, Paulo Furquim de; FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. As inter-relações entre o processo administrativo e o judicial, sob a perspectiva da segurança jurídica do plano da concorrência econômica e da eficácia da regulação pública. São Paulo: USP, 2011. Relatório da pesquisa. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relat_pesquisa_usp_edital1_2009.pdf>. Acesso em: 20.09.2022.


[1]Se os advogados precisam ser especialistas, podemos ignorar completamente a necessidade de alguma especialização nos sistemas judiciais?” (Juiz Warren Burger, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, 1982 – tradução livre).

Concorrência desleal e links patrocinados no Google

Eduardo Molan Gaban

Em recente e inédita decisão proferida no julgamento do Recurso Especial n. 1.937.989/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que configura concorrência desleal o fato de empresa anunciante utilizar a marca registrada de empresa concorrente como palavra-chave no sistema de links patrocinados da Google como meio de obter resultados privilegiados nas buscas e captar clientela[1].

Segundo a autora da ação, empresa de turismo cujo principal produto são viagens para a Disney, em que pese detentora do regular registro dos direitos relativos à sua marca junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), o resultado da pesquisa do nome completo de sua marca junto à Google mostrava como primeiro resultado empresa concorrente do ramo de turismo, prestadora do mesmo tipo de serviço, requerida na demanda.

Em primeira instância, o juiz monocrático reconheceu que a empresa requerida utilizou indevidamente a marca da autora como palavra-chave para fins dos mecanismos de busca remunerados da Google, condenando-a ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 15 mil. O valor da indenização foi reduzido para R$ 10 mil no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

No Recurso Especial, em que pese a empresa ré tenha argumentado que a prática se trata de exercício da livre demanda e prática comum de captação de clientela no ­e-commerce, o STJ manteve a decisão de segunda instância.

O Ministro Relator Luis Felipe Salomão pontuou que a utilização indevida de nome empresarial e marca alheia perpetrado pela empresa ré configura crime de concorrência desleal, conforme condutas coibidas pelo artigo 195, incisos III e V, da Lei de Propriedade Industrial e pelo artigo 10 bis da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial.

O artigo 195 da Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.297/1996) traz rol de condutas tipificadas como crime de concorrência desleal, dentre as quais o emprego de meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem (inciso III); e usar expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos (inciso IV).

Para melhor entender o funcionamento do mecanismo dos sites de busca e como eles podem ser empregados para práticas de concorrência desleal a partir do uso indevido de marca como palavra-chave, destaca-se a definição dada pelo CADE, em Nota Técnica expedida no âmbito do Processo Administrativo n. 08700.005694/2013-19[2], em que é apontada a diferença entre a busca gratuita e a busca patrocinada:

[…] de um lado – os sites de busca permitem que internautas digitem palavras-chave e recebam – em troca e gratuitamente – uma lista de sites cujo conteúdo seja relacionado ao texto que o usuário digitou. Assim, a plataforma presta aos usuários da busca o serviço de coleta, ranqueamento e apresentação de resultados para uma determinada busca do internauta. Outro lado gratuito da plataforma é o lado que estabelece a relação entre os sites que são listados no Google e a própria plataforma, que presta e eles o serviço de exibi-los para potencial audiência, na página de busca do Google. Por sua vez, tais sites permitem que o seu conteúdo seja rastreado pelos crawlers do Google, que copiam o seu conteúdo, para então indexá-lo e ranqueá-lo, em seguida apresentando-o ao usuário do Google Busca. Esse lado é gratuito porque os sites listados no Google não pagam nem recebem quaisquer valores para serem listados no buscador. Por fim, há o lado pago da plataforma, conhecido como “busca patrocinada”, reservada à publicidade virtual. Os links pagos ou patrocinados são colocados em lugares estratégicos do site de busca, normalmente acima da busca orgânica, ou na sua lateral direita. Usualmente, os mecanismos de busca são remunerados quando os internautas clicam nos links patrocinados, forma de remuneração conhecida como CPC, ou custo por clique. Há também outras formas de remuneração pela publicidade e links patrocinados, utilizadas em menor escala. Por exemplo, os sites de busca podem receber uma “taxa de sucesso” (taxa de conversão) por vendas realizadas pelos anunciantes, se tais vendas forem decorrentes de tráfego do site de busca”.

Assim, utilizando o “lado pago” do mecanismo de busca da Google, a empresa requerida adquiriu palavra-chave equivalente à marca registrada / nome empresarial de sua concorrente, a fim de que os consumidores que buscassem por ela recebessem, em primeiro lugar da busca, o site da requerida.

No caso em tela, é possível observar que o ponto essencial para a configuração da conduta de concorrência desleal foi a existência de marca registrada / nome empresarial equivalente à palavra-chave cadastrada pelo concorrente no mecanismo de busca patrocinada. Tal parâmetro também foi adotado em decisões proferidas por outros tribunais, em casos semelhantes[3].

Diversas situações semelhantes à do Recurso Especial n. 1.937.989/SP vem sendo submetidas ao crivo do Poder Judiciário brasileiro. Ganhou destaque o caso de duas ações judiciais[4] envolvendo as empresas Magazine Luiza e Via Varejo (Casas Bahia e Ponto Frio) em que se discute suposto uso indevido do nome empresarial da concorrente como palavra-chave no Google Search.

Em primeiro momento, a Magazine Luiza ingressou com ação, apontando que a concorrente estava utilizando o nome exato de sua marca como palavra-chave remunerada no Google Search, às vésperas da Black Friday, o que lhe causaria sérios efeitos de desvio de clientela. Foi concedida liminar determinando à Via Varejo que se abstivesse de fazer uso dos termos “Magazine Luiza” ou “Magalu” no prazo de 2 horas após o recebimento da intimação, sob pena de multa fixada em R$ 5 milhões.

Já no caso da ação movida pela Via Varejo, ajuizado posteriormente, a autora alegou que a Magazine Luiz estaria utilizando termos semelhantes aos nomes empresariais do grupo, porém, com pequenas variações/erros de digitação: “pontu friu”, “casa baia”, “caza bahia”, entre outros.

Também foi concedida liminar determinando a abstenção do patrocínio de tais termos para fins de palavra-chave no Google Search, embora a Magazine Luiza tenha negado o emprego de tais práticas e a impossibilidade de controle, dada a incalculável probabilidade de variações diversas.

Ambos os casos ainda pendem de julgamento em primeira instância. Assim, ainda não há decisão que reconheça que a utilização de termos muito semelhantes à marca registrada / nome empresarial, ou com erro de digitação, configure crime de concorrência desleal previsto no rol do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual.

Como pontuado pelo Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento Recurso Especial n. 1.937.989/SP, “embora seja lícita a contratação do serviço de priorização de resultados de pesquisa, a inexistência de parâmetros ou proibições de palavras-chaves nas ações publicitárias pode resultar em conflitos relacionados à propriedade intelectual”[5].

No atual ambiente digital, cuja virtualização se intensificou a partir da pandemia, os mecanismos de busca online têm representado para as empresas importante meio de oferta, pois é a partir deles que o consumidor geralmente inicia a busca por produtos e serviços. Neste cenário, sistema de links patrocinados representa uma das mais importantes ferramentas do ­e-commerce que vem sendo cada vez mais utilizado pelas empresas como meio de propaganda e de competição.

É preciso considerar que, desde o ano de 2020, a Google ocupa o primeiro lugar na concorrência entre mecanismos de busca globais[6], sendo que, no ano de 2022, a empresa (Alphabet Inc.) está em 4º lugar mundial entre as companhias de maior valor[7], sendo, portanto, o mecanismo de busca online mais utilizado no Brasil e no mundo.

Logo, o uso de tais mecanismos, sobretudo o Google Search, por players com objetivo de prejudicar os concorrentes através do emprego de meios fraudulentos e/ou ilícitos é passível de acarretar efeitos negativos ao ambiente da livre concorrência.

Contudo, especificamente na questão do uso indevido de marca e/ou nome empresarial como palavra-chave nas buscas patrocinadas, há quem entenda pela impossibilidade de imputar responsabilidade civil à Google, na medida em que é apenas o prestador de serviço.

Neste sentido, recente decisão proferida pela 1ª Vara Empresarial do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo/SP[8], foi julgada improcedente a ação movida pela empresa autora em face da Google, sob alegação de que, a partir da busca de sua marca registrada no mecanismo de busca da Google, estaria ocorrendo o direcionamento para anúncios de empresas concorrentes a partir do Google Ads.

Inicialmente, o juiz monocrático havia concedido medida liminar para que a Google se abstivesse de veicular os anúncios. Contudo, proferida sentença, o magistrado modificou seu entendimento, ao entender que, no caso, não haveria verdadeira violação da marca da autora. Para além disso, pontuou que, na contratação de palavra-chave com terceiro, “[…] não compete à Google exercer o controle prévio ou a fiscalização do conteúdo (lícito ou ilícito) do anúncio do produto”.

A fundamentação da decisão cita o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), que determina:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

Sob tal entendimento, a responsabilidade da plataforma Google não é direta e só se iniciaria após a comunicação da existência de irregularidade no anúncio veiculado.

Assim, a partir da primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, não há dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização civil e penal da empresa anunciante pelo uso indevido de marca registrada ou nome empresarial de concorrente em links patrocinados, nos termos do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual. Já sobre a responsabilidade da Google, com a evolução das discussões sobre o tema, não tardará para que seja apreciada pelo Tribunal Superior.


[1] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.

[2] CADE. Nota Técnica nº 16/2018/CGAA2/SGA1/SG/CADE. Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?dz2uweayicburzefhbt-n3bfpllu9u7akqah8mpb9ypu6wevpqsd71wzh_uxehbwngimcevh_dwu20vj-yrkhn0rsauy_vzle-vw6lie0jkiptmdqrdz40fqukwedxd2>. Acesso em: 19 set. 2022.

[3] Por exemplo: Processo n. 0082836-06.2019.8.16.0014, julgado pela 9ª Câmara Cível do TJ/PR; Processo n. 1016104-20.2018.8.26.0196, julgado pela 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ/SP; Processo n. 0120484-07.2021.8.19.0001, julgado pela 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro/RJ; Processo n. 5630287-26.2020.8.09.0051, julgado pela 31ª Vara Cível de Goiânia/GO.

[4] Processo n. 1128548-85.2021.8.26.0100, movido por Magazine Luiza S/A contra Via Varejo S/A. e Processo n. 1130874-18.2021.8.26.0100, movido por Via Varejo S.A. em face de Magazine Luiza S/A, ambos em trâmite perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo.

[5] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.

[6] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2020. Statista, maio 2020. Disponível em: https://bit.ly/32A1hV2. apud LEURQUIN, P.; ANJOS, L. Condenações da Google pela aplicação do Direito da Concorrência da União Europeia. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 9, n. 1, p. 104-124, 2021. DOI: 10.52896/rdc.v9i1.903. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/903. Acesso em: 19 set. 2022, p. 104.

[7] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2022. Statista, abril 2022. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/263264/top-companies-in-the-world-by-market-capitalization/. Acesso em: 19 set. 2022.

[8] Processo n. 1105759-92.2021.8.26.0100, movido por CONSTRUCOLOR COMÉRCIO DE TINTAS LTDA. contra GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA., cuja sentença foi disponibilizada em 06 set. 2022. Disponível em: < https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?nuProcesso=1105759-92.2021.8.26.0100&cdProcesso=2S001H4H80000&cdForo=100&baseIndice=INDDS&nmAlias=PG5JM&tpOrigem=2&flOrigem=P&cdServico=190101&acessibilidade=false&ticket=AWXAW1RVACSqXqfRnHC1XAnusAIbAwRw%2F457agFUiTreBxdKdyk%2FYfy%2FDhiHd%2BmJdZxOn4AsukCSGF6nhVRpc%2BOiCmnwD082Bhwt7VI69S2iUEcHmbHPc5dZDXQxN9dhSSa%2FaaSwdKVZgUo3VY5mVJXav8I0xIIxnkJKU8XBAhT1vZtkMsMoTCfZC2FQSIsdpu5I0oERzG8vZnF6zX%2B3tUL81nfhQe%2FCT7MZM4YD4xJAiwSG8E4VI2hXBpD4DGoZBRcr3B2VjNyFT8loyDcfiVzfeXyiKKtZpGxBKXxfzJFvYQir7tuyYEYht%2F6Io9SuWwjS%2BbRTrNm8dOPywDY4kdEPAfFUiTSXwv4%2BER5J8N%2Br5IjtULuOkeL3cBEjmB2HOdvVvwzaRjstzQwL9VAcNqCy2IHiQDY9l5Ghi7KYm5sRIIHBahPxevP9h%2BMI%2FW5XvJY7qfv79NFB%2BQUdoj6TXI7fayeeA%2FMPN0uCqS9y7fo7SCIb2SFCyHJLhS8PmEWB98h%2F0eP%2Bfr6VKCi4ANP3bA%3D%3D>. Acesso em: 16 set. 2022.

Liberais? O caso da saúde e da educação públicas no Brasil: do mundo imaginário para o mundo imaginado

Elvino de Carvalho Mendonça

Quero falar sobre a mais importante frase do pai do liberalismo, Adam Smith, de que o Estado deveria se ocupar única exclusivamente das questões da saúde, da educação e da segurança. E por que Smith falou que o Estado somente deveria se dedicar a estas questões? Porque ele entendia que o mercado deveria ser o único agente nas outras atividades econômicas, tendo em vista que o agente privado era aquele que ao buscar o lucro fazia sempre o seu melhor e, se todos fizessem o seu melhor, o melhor geral estaria garantido.

É importante não esquecermos que Adam Smith era um oponente feroz do mercantilismo[1], situação em que o Estado definia quais deveriam ser as empresas exportadoras e importadoras, sempre buscando a famosa “balança comercial favorável”. Ele traz no livro “A Riqueza da Nações[2]” a ideia de que o mercado seria o fiel da balança e as alocações na economia seriam realizadas por uma “mão invisível” e não pela mão do Estado. O mecanismo de preços seria o motor da economia!!

É fato, o setor privado é um maximizador de riqueza e não poderia ser diferente, não é mesmo? Afinal, temos as nossas ambições legitimas individuais e todos temos o direito de maximizar riqueza, se assim o desejarmos e, principalmente, se assim conseguirmos.

É fato, também, que para aqueles que leram a obra prima de Adam Smith, que o Estado tem perfil e características para cuidar da saúde e da educação, ou, como diria o pai do liberalismo, este seriam os únicos setores em que o Estado deveria atuar.

Adam Smith é direto ao dizer que Estado deve se ater exclusivamente à saúde, à educação e à segurança pública, mas não fica claro, pelo menos para mim, que a atividade de saúde e de educação pode ser compartilhada com a iniciativa privada. Esta é uma questão muito importante e que norteia este artigo!!

No meu entendimento, a “Riqueza das Nações” queria delimitar as ações do Estado, mas não as do setor privado. Estes, a princípio, poderiam se dedicar a qualquer atividade, inclusive educação, saúde e segurança pública. Não sei!! Esta é uma interpretação, mas que precisa ser e será esmiuçada!!

Está certo!!! Talvez eu concorde que o Estado deva se dedicar a saúde e a educação, mas não só!! Recursos minerais, por exemplo!! Mas isto é um assunto para outro artigo. Mas tenho dúvidas se o setor privado deveria atuar em saúde e educação como concorrente do Estado.

É polêmico?

Caros liberais, não me crucifiquem antes de me escutarem!!! Também me considero um liberal!!! Eu explico!!!

O Brasil é um país que ocupa uma das piores colocações em termos de desigualdade de renda, sendo que grande parte desta desigualdade se concentra no último decil da distribuição, o que significa dizer que a diferença entre quem possui a maior e a menor riqueza no último decil é muitas vezes superior a esta diferença nos demais decis da distribuição. Infelizmente, a pobreza também é um dos nossos principais males!!!

Também não é novidade a existência de grupos de interesse, sendo mais poderosos àqueles que detêm maior poder econômico, pois riqueza e poder político caminham juntos desde sempre.

Por que tratar de desigualdade de renda para explicar que a presença do setor privado nas áreas de saúde e educação é geradora de ineficiência para a sociedade brasileira? Se não desistirem da leitura, entenderão os meus argumentos.

Vamos a resposta da pergunta!!!

Se considerarmos a saúde e a educação como sendo totalmente públicas, teríamos na mesma sala de aula e nos mesmos hospitais ricos e pobres convivendo no mesmo espaço e dividindo as mesmas dúvidas e preocupações.

Alguns diriam que estaríamos a nivelar por baixo, pois o pobre se beneficiária do convívio com o rico, mas o rico nem tanto. Discordo veementemente disto!! Conviver com as mazelas dos demais é a melhor forma de eliminá-las da sociedade. É exatamente aí que está o meu ponto!! Em geral, é muito difícil cuidar de uma estrada esburacada se não passamos por ela.

Colégios públicos e saúde pública onde ricos e pobres convivam provoca preocupações de grupos de interesse das mais variadas formas, o que garante, na média, maior pressão política pela melhoria da educação e da saúde, de maneira que a bandeira da saúde e educação na mão do Estado sai do “mundo imaginário” dos “liberais” para mergulhar definitivamente no “mundo imaginado” pelo verdadeiro liberal Adam Smith.

Portanto, ser liberal não é sinônimo de setor privado, como muitos apregoam por ai! Ser liberal é dar a “César o que é de César e a Deus o que é de Deus”!! Educação e saúde são elementos sociais e, como tal, devem ser tratados sob o ponto de vista social. Maximizar riqueza é bom e eu gosto, mas tem limite e o limite é a dignidade humana, coisa que, lamentavelmente, falta nos hospitais públicos e na educação pública.

Se tem algo que concordo com Adam Smith é que o Estado tem que cuidar de Saúde, Educação e Segurança Pública. Eis a minha face liberal!!!


[1]HUNT, E. K.; LAUTZENHEISER, M.. História do Pensamento Econômico – Uma Perspectiva Crítica. Editora Atlas. 2012.

[2] Smith, Adam (27 de agosto de 2010). The Wealth of Nations: An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (em inglês). Smith (1776)

Critério de apuração de haveres em dissolução parcial de sociedade limitada

André Santa Cruz & Henrique Arake

Na última semana, sites especializados em notícias do mundo jurídico informaram que, no julgamento do recurso de apelação 1000712-41.2015.8.26.0068, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo firmou um importante precedente sobre direito societário.

Em um processo de dissolução parcial de sociedade limitada, o juízo de primeiro grau determinou a apuração de haveres com base na metodologia do fluxo de caixa descontado[1], por entender “ser devida a inclusão do ‘fundo de comércio’ no cômputo dos haveres, visto que a apuração de haveres deve abranger todos os bens integrantes do patrimônio incorpóreo da sociedade: o fundo de comércio e aviamentos, a clientela, know-how dos funcionários, a aptidão da empresa para gerar lucros/riqueza, além de sua imagem de mercado, elementos estes que foram abordados na perícia por meio do critério da apuração da goodwill, nos moldes do art. 606 do CPC”.

Esse entendimento, porém, foi reformado pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento de recurso de apelação.

O relator do recurso, desembargador Azuma Nishi, ressaltou que, no caso, os sócios não estipularam critério específico de apuração de haveres no contrato social, limitando-se a definir que seria feito um balanço patrimonial extraordinário, algo que, na visão do desembargador, refletiu uma opção pelo critério legal, que privilegia o valor patrimonial, e não o “valor econômico” da empresa.

Vejamos o que dizem dois dispositivos legais relevantes para a solução de controvérsias como essa:

Código Civil

Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.

Código de Processo Civil

Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.

Continuando, o desembargador relator destacou que, no seu entender, o critério legal de apuração de haveres previsto nos dispositivos mencionados (balanço patrimonial) – que deve sempre ser aplicado quando os sócios não estipularem expressamente um critério específico no contrato social – é incompatível com uma avaliação baseada no “valor econômico da empresa”, que normalmente é feita por meio da conhecida metodologia do fluxo de caixa descontado. 

Transcrevo trecho do voto do relator:

Todavia, na espécie, não há previsão específica no contrato social a ponto de, por si só, definir o critério para apuração de haveres. O contrato social define (critério eleito pelas partes) como base para a apuração de haveres o balanço patrimonial extraordinário. Quanto o contrato social define balanço patrimonial, entendo prestigiar o patrimônio líquido constante da contabilidade da sociedade, ou seja, na linha do que dispõe o Código Civil, em que foi prestigiado o critério contábil e não o valor econômico da empresa.

Segundo o magistério de Fábio Ulhôa Coelho, “o valor patrimonial, e não o econômico, é o critério mais ajustado à avaliação das quotas da sociedade limitada, quando se trata de apurar haveres de sócio retirante, excluído ou dos sucessores do falecido, e também das ações da sociedade anônima heterotípica parcialmente dissolvida, na definição do reembolso devido ao acionista que se desliga.”

O termo ‘extraordinário’ entendo referir-se não ao balanço ordinariamente levantado por ocasião do encerramento do exercício social, mas aquele especialmente levantado para fins específico de apuração de haveres do sócio retirante.

Não havendo disposição específica no contrato social, aplica-se o critério da Lei, mais especificamente, aquele previsto no artigo 606 do CPC 2015, mesmo porque o disposto em tal diploma legal, não conflita com o ‘balanço patrimonial extraordinário’ referido em contrato social, sendo com ele harmônico. O critério previsto no CPC, e que já era o definido no CC 2002, considera a história da sociedade culminada no momento de sua dissolução, não contemplando os resultados futuros. Considera o valor contábil do patrimônio, apurado segundo princípios de contabilidade, notadamente os de conservadorismo e de escrituração pelo custo de aquisição, apurado em balanço especialmente levantado na data da dissolução, ajustado pelos valores de saída ou de realização. Ademais, o critério de avaliação baseado no valor econômico da empresa, que é aquele utilizado para dimensionar o valor do fundo de comércio, é incompatível com o critério legal. Tal critério de avaliação é alternativo e incompatível com o do valor patrimonial contábil levantado na data da resolução, tendo os itens de ativo e passivo ajustados aos preços de saída ou de realização, vez que partem de princípios ou partidos diferentes. O primeiro baseado na história construída da sociedade e, o segundo, baseado no futuro.

Entender que o critério do CPC 2015, quando fala da avaliação dos intangíveis, significa admitir a avaliação da empresa pelo valor econômico ou pelo fluxo de caixa descontado, é uma visão equivocada, respeitada a posição em sentido contrário que prevalecia na jurisprudência, como a seguir veremos. Equivocada, pois, além de contrariar o princípio da apuração do valor baseado na história da sociedade, acabaria por reconhecer uma participação do sócio retirante, ou excluído, nos lucros futuros da sociedade, ainda que não mais participasse do risco do negócio, o que é incompatível com a lógica da atividade empresarial, em que o lucro é a contrapartida direta do risco e do capital empregado em determinado negócio, que, com a saída do sócio, não mais subsistiriam.

Como o fundo de comércio constitui uma combinação de ativos, tangíveis e intangíveis, além de passivos gerados ou tomados no exercício da atividade empresarial, podemos dizer que a sua avaliação constitui a própria avaliação da empresa ou da sociedade, que detém esse composto organizado de ativos e passivos para desempenho de sua atividade empresarial. O fundo de comércio não constitui um item específico de qualquer conta do ativo, constante do balanço patrimonial da sociedade, nem corresponde a apenas os seus itens intangíveis, constituindo, sim, uma universalidade de fato que integra o patrimônio do empresário. Ou seja, o fundo de comércio não constitui um item intangível, tais como as marcas e patentes, mas o conjunto de todos os elementos, ativos e passivos organizados, dentre eles os intangíveis. Assim, quando a Lei se refere à avaliação de intangíveis (além dos tangíveis), não está se referindo à avaliação do fundo de comércio que é um critério de avaliação alternativo ao do valor patrimonial de mercado, que não tem previsão legal, por ser incompatível com o partido legal de avaliação da empresa baseada na sua história e não no seu futuro.

Por fim, o desembargador relator ainda citou um recente precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual prevaleceu o entendimento capitaneado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no sentido de que, sendo omisso o contrato social, o critério legal (balanço patrimonial – art. 1.031 do CC e art. 606 do CPC) deve ser aplicado, afastando-se a aplicação da metodologia do fluxo de caixa descontado.

Confira-se, a propósito, a ementa do acórdão do mencionado julgado do STJ:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. SOCIEDADE EMPRESÁRIA LIMITADA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. SÓCIO RETIRANTE. APURAÇÃO DE HAVERES. CONTRATO SOCIAL. OMISSÃO. CRITÉRIO LEGAL. ART. 1.031 DO CCB/2002. ART. 606 DO CPC/2015. VALOR PATRIMONIAL. BALANÇO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO. FUNDO DE COMÉRCIO. BENS INTANGÍVEIS. METODOLOGIA. FLUXO DE CAIXA DESCONTADO. INADEQUAÇÃO. EXPECTATIVAS FUTURAS. EXCLUSÃO.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. Cinge-se a controvérsia a definir se o Tribunal de origem, ao afastar a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado para avaliação dos bens imateriais que integram o fundo de comércio na fixação dos critérios da perícia contábil para fins de apuração de haveres na dissolução parcial de sociedade, violou o disposto nos artigos 1.031, caput, do Código Civil e 606, caput, do Código de Processo Civil de 2015.

3. O artigo 606 do Código de Processo Civil de 2015 veio reforçar o que já estava previsto no Código Civil de 2002 (artigo 1.031), tornando ainda mais nítida a opção legislativa segundo a qual, na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação.

4. O legislador, ao eleger o balanço de determinação como forma adequada para a apuração de haveres, excluiu a possibilidade de aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado.

5. Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema demonstram a preocupação desta Corte com a efetiva correspondência entre o valor da quota do sócio retirante e o real valor dos ativos da sociedade, de modo a refletir o seu verdadeiro valor patrimonial.

6. A metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente.

7. A doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, entende que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, tais como (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade.

8. Recurso especial não provido.

(REsp 1.877.331/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 13/4/2021, DJe de 14/5/2021)

Em suma: se os sócios querem um critério específico de apuração de haveres, precisam estipular isso de forma clara e expressa no respectivo contrato social; caso contrário, o critério legal (balanço patrimonial) será impositivo, valendo lembrar que, a depender do tipo de empreendimento, tal critério pode não ser o mais adequado. O próprio Desembargador Nishi, inclusive, trata da possibilidade de o juiz admitir outros critérios ou realizar ajustes se existirem distorções relevantes, caso aplicado apenas o critério legal. Em suas palavras, seria o caso:

[…] das empresas da nova economia baseada em tecnologia de informação, que possuem uma estrutura patrimonial totalmente diferente das empresas da chamada indústria tradicional ou convencional. Se tomarmos por base negócios como a Uber, Airbnb, Mercado Livre ou Google, que muitas vezes apresentam patrimônio líquido e resultados negativos, quase sem ativos fixos em seu patrimônio, o valor patrimonial, ainda que real ou a valores de mercado ou de saída, certamente não representará o valor dos respectivos negócios, sendo imperativo considera, na avaliação de tais empresas, o aviamento e outros elementos intangíveis, sendo plenamente justificável a avaliação destas empresas baseada no valor econômico […].[2] [3]

A mesma observação feita no parágrafo anterior vale para a forma de reembolso do sócio falecido/retirante/excluído, em caso de dissolução parcial: se o contrato social não determinar, de maneira clara e expressa, uma forma específica de reembolso das quotas (pagamento parcelado, por exemplo), aplica-se a forma prevista em lei, que é o pagamento em dinheiro no prazo de 90 dias (art. 1.031, § 2º do CC).

Tudo isso mostra a importância da construção estratégica do contrato social, por meio da contratação de advogados especialistas para a elaboração do documento, os quais saberão identificar, à luz do modelo de negócio explorado pela sociedade, que cláusulas são imprescindíveis e como elas devem ser redigidas, de modo a prevenir litígios e garantir a desejada segurança jurídica aos empreendedores e investidores envolvidos.


[1] Por meio do método do Fluxo de Caixa Descontado, o analista estuda o histórico dos resultados da empresa analisada e faz uma projeção dos resultados futuros. Depois, ele aplica uma taxa de desconto sobre esses resultados futuros, de maneira a trazê-los a valor presente. Para maiores detalhes, cfr. NETO, Alexandre A. Valuation – Métricas de Valor e Avaliação de Empresas. SP: Ed. Atlas, 2021.

[2] NISHI, Eduardo Azuma. Apuração de Haveres – Novos Paradigmas na Ordem Jurídica. SP: Quartier Latin, 2022. P. 170.

[3] Conquanto concordemos com a posição do autor, discordamos no que tange à possibilidade de o juiz da causa adotar critérios que não sejam os legais ou os contratuais, uma vez que esses são os estritos limites dentro dos quais o legislador o autorizou. Não é papel do magistrado corrigir o equívoco do empresário que, podendo construir contratualmente os critérios adequados para avaliação de sua própria empresa, se queda inerte e assume o risco de sua participação societária ser subavaliada.

Avanços no estabelecimento de metodologia pelo Cade para a dosimetria da pena de pessoas físicas envolvidas em condutas anticompetitivas

Polyanna Vilanova[1] & Catharina Araújo Sá[2]

A dosimetria da pena sempre foi um dos temas que gerou discussões ricas no Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Temas como estimação ou cálculo da vantagem auferida, metodologias adequadas para definir a multa, aplicação das atenuantes ou agravantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, dentre outros, são temas recorrentes discutidos no Plenário. Recentemente, o Tribunal Administrativo, em caso envolvendo cartel em licitação da Infraero[1], tratou sobre metodologia para cálculo da multa a ser aplicada para pessoas físicas considerando a capacidade econômica do infrator e é especificamente sobre este tema que o presente artigo abordará.

Antes mesmo deste caso em específico, é importante relembrar discussões anteriores que envolveram a consideração da capacidade econômica do infrator pessoa física a ser computada na dosimetria da pena em casos de condutas anticompetitivas. No julgamento referente ao “Cartel de Distribuidoras e Revendedoras de Combustíveis em Joinville/SC”[2], o Conselheiro Sérgio Ravagnani requisitou informações sobre renda e patrimônio de pessoas físicas Representadas à Receita Federal[3], com o objetivo de observar a situação econômica do infrator (inc. VII, art. 45 da Lei nº 12. 529/2011) no estabelecimento da pena, em respeito ao caráter dissuasório e à proporcionalidade da multa, considerando o momento da condenação, não o momento dos fatos ocorridos.

À época, o Tribunal Administrativo homologou, por maioria, a requisição de informações apresentada pelo Conselheiro Sérgio Ravagnani na 170ª Sessão Ordinária de Julgamento. Na ocasião, o ex-presidente do Cade, Alexandre Barreto, questionou se esse seria um procedimento adotado em todos os processos do Cade, mesmo aqueles com elevado número de pessoas físicas representadas no polo passivo, ao que o Conselheiro Sérgio Ravagnani respondeu afirmativamente, sustentando que seria fundamental verificar a capacidade de pagamento da pessoa física para fazer a calibração da alíquota, de modo a conservar o caráter dissuasório da multa.

Posteriormente, no “Cartel de Filtros Automotivos”[4], da mesma forma, o Conselheiro Sérgio Ravagnani também requisitou os informes de rendimentos de pessoas físicas representadas à Receita Federal[5], dando seguimento à sua tese de dosimetria da multa a ser aplicada para pessoas físicas representadas.

Recentemente, na 200ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica deu continuidade ao julgamento do caso envolvendo cartel em licitação da Infraero e voltou a discutir esta temática, que já vinha sido abordada em sessões anteriores contando com a atual composição do Conselho. No caso, o Tribunal Administrativo condenou as empresas e pessoas físicas por formação de cartel. No que se refere à dosimetria imposta às pessoas físicas, retomou-se a discussão sobre a capacidade econômica do infrator.

Na 196ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Conselheiro Gustavo Augusto apresentou voto vista[6] destacando a necessidade da elaboração de uma metodologia para o cálculo da multa de pessoas físicas envolvidas em condutas anticompetitivas, não necessariamente como “uma fórmula matemática”, mas observando a necessidade de dar uma sinalização para os agentes de mercado, no sentido de garantir previsibilidade e segurança jurídica.

Em seu voto, o Conselheiro destacou que o Cade já vem buscando uma sistematização para a aplicação de multas de pessoas físicas em casos de condenação por cartel, por meio da jurisprudência. Nesse sentido, citou os votos do Conselheiro Sérgio Ravagnani nos casos já indicados e do Conselheiro Luiz Hoffmann no Processo Administrativo nº 08700.003390/2016-60, no qual o Conselheiro abordou os padrões de dosimetria considerados em outras jurisdições.

O Conselheiro Gustavo Augusto destacou, contudo, que o Cade ainda não tem uma metodologia específica para o cálculo da multa de pessoas físicas, especialmente considerando os dados obtidos a partir da Receita Federal para aferir a capacidade econômica dos representados a ser considerada na dosimetria da pena.

Tendo em vista este contexto, o Conselheiro Gustavo Augusto propôs uma metodologia de cálculo da multa composta de duas fases. Na “Primeira Fase”, constatou que devem ser observadas as circunstâncias da conduta, as quais devem ser consideradas para a fixação da alíquota aplicável. Tomando como base os padrões de dosimetria que são aplicados pelo Cade, propôs as seguintes faixas de alíquota a serem aplicadas: (i) cartel clássico ou cartel em licitação (12 a 20%) e (ii) cartel difuso, paralelismo plus, demais condutas colusivas e condutas individuais de menor gravidade (1 a 12%).

Após a determinação das faixas, sustentou que a determinação da alíquota exata no caso concreto, ainda na “Primeira Fase”, deve ser definida com base nas circunstâncias agravantes e atenuantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, à exceção da “situação econômica do infrator” (inciso VII), pois esta deve ser considerada apenas na “Fase Dois”. Ainda na “Fase Um”, o Conselheiro destacou que eventual diferenciação entre a multa aplicada a administradores e não administradores deve ser ponderada de acordo com o caso concreto, pois a atuação de cada um depende do caso, de modo que não é possível afirmar que o administrador necessariamente atuará de forma mais gravosa em eventual conduta anticompetitiva.

Uma vez definida a multa na “Fase Um” (alíquota-base), com base nas circunstâncias da conduta, na “Fase Dois” (situação econômica), o valor da multa deverá ser adequado à situação econômica do infrator. Para tanto, o Conselheiro destacou que devem ser utilizadas preferencialmente as informações do Imposto de Renda da Pessoa Física com base em dados financeiros mais recentes, que deverão ser requisitadas à Receita Federal. Além disso, na visão do Conselheiro, também deve ser considerado o patrimônio do infrator.

Em seguida, estabeleceu que, em regra, a multa a ser aplicada não deve ser superior a 30% da renda bruta anual do infrator, tendo em vista ser este o percentual máximo que tem sido admitido no SuperiorTribunal de Justiça em face do superendividamento, somados a 6% do valor do patrimônio do infrator (valor que se refere aos juros legais da poupança). O Conselheiro ainda fez a ressalva de que se houver fontes de rendimentos ilícitos, considerando prova de lavagem de dinheiro ou participação em organização criminosa, o Tribunal Administrativo poderá deixar de aplicar os limites máximos da “Fase Dois”.

A proposta do Conselheiro Gustavo Augusto foi acatada pela maioria do Plenário e o caso ainda segue em discussão, tendo em vista a oposição de Embargos de Declaração.

O voto do Conselheiro Gustavo Augusto foi interessante para dar previsibilidade aos agentes que atuam em diferentes mercados, uma vez que criou uma metodologia com base na jurisprudência do Cade, tornando a aplicabilidade de eventuais multas às pessoas físicas representadas mais clara, no sentido de mostrar quais os critérios considerados e como estes critérios impactarão nas alíquotas.

Em 2020, o Cade havia submetido uma minuta de “Guia de Dosimetria de Multas de Cartel”[7] à Consulta Pública nº 02/2020, com o objetivo de apresentar uma metodologia geral para a aplicação de multas, tanto para empresas quanto para pessoas físicas representadas, com base na observância da jurisprudência do Conselho e com a sinalização de passos que devem ser seguidos. Apesar de não ter sido publicada uma versão final do Guia, o documento também demonstra um esforço da autoridade concorrencial para a consolidação de uma metodologia para a dosimetria da multa, com base em critérios mais claros que possam ser observados de forma mais objetiva por representados em processos administrativos.

Discussões no sentido de criar uma metodologia para a dosimetria da pena são relevantes para deixar claro quais as variáveis consideradas e como estão sendo aplicadas pelo Cade ao determinar a pena, além de revelarem uma preocupação do Conselho com o caráter dissuasório da multa, de modo a evitar que eventuais infrações concorrenciais voltem a ocorrer.


[1] Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[2] Processo Administrativo nº 08700.009879/2015-64.

[3] CADE. Processo Administrativo 08700.009879/2015-64. Ofício nº 8732/2020/GAB5/CADE. 2020. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yM9ekr5pABrXDr-Tets2h4mia_kmQzI_NNPh3hRBx_Z4hQIyZE6R2fguxNqEJ9P-a6WQG-G_YW1vUFWZMB2su0u. Acesso em 08 set. 2022.

[4] Processo Administrativo nº 08700.003340/2017-63.

[5] CADE. Processo Administrativo 08700.003340/2017-63. Ofício nº 955/2021/GAB5/CADE. 2021. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yO0waFRhaHmauOKJu42n9EEegAScI7KJ-9sJvcbtdi9flfaIQ0Ygnii2CGp2QNyJ9lqAlBNEtuhvvAOBhXWchz6. Acesso em 08 set. 2022.

[6] CADE. Processo Administrativo n° 08700.007278/2015-17. Voto do Conselheiro Gustavo Augusto. 2022. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddYyad9C33RKmYladycJWo-r_O6NbCYIRlLsLUt3N2D0XWXbveNECtAUoxpvM8U2xSH6kTAo8FUwiyHTdCxw5hoy. Acesso em 08 set. 2022.

[7] CADE. Minuta do Guia de Dosimetria de Multas de Cartel. 2020. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2020/Cade%20estende%20prazo%20para%20contribuições%20à%20versão%20preliminar%20do%20Guia%20de%20Dosimetria%20de%20Multas%20de%20Cartel__Minuta_Guia_de_dosimetria.pdf. Acesso em 08 set. 2022.


[1] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[2] Catharina Araújo Sá é advogada no escritório Vilanova Advocacia.

Inovação, fretamento colaborativo e o fetiche regulatório Brasileiro

Marcelo Nunes de Oliveira

Quem nunca se deparou com a seguinte situação: empresa inovadora/startup lança novo produto conferindo nova roupagem a algum serviço tradicional, atraindo a atenção do público e, ato contínuo, especialistas, legisladores e empresas do setor comentam sobre a necessidade de regulamentar o novo serviço?

Lembremos do caso Uber e a batalha jurídica para (i) regulamentar o serviço; e (ii) decidir quem regulamenta o serviço, até que, enfim, a Lei 13.640/2018 (que alterou a Lei de Mobilidade Urbana – 12.587/2012) regulamentou transporte remunerado privado individual de passageiros e o STF pacificou o entendimento acerca da obrigatoriedade de sua adoção pelos municípios Brasileiros na decisão da ADPF 449.

Passando pela polêmica fugaz dos patinetes elétricos, que surgiram e sumiram na mesma velocidade – não sem antes despertar os defensores da regulamentação pública, a bola da vez são os serviços de fretamento compartilhado, representado de maneira mais notória pela empresa Buser, também conhecida como “Uber dos ônibus”.

Em resumo, o fretamento colaborativo nada mais é do que a oferta de assentos em ônibus de fretamento por meio de um aplicativo da empresa em que os custos são divididos pelos passageiros.

Importante, no caso, diferenciar as linhas regulares do transporte de fretamento. O transporte regular, nos termos do Decreto 2.521/1998, é aquele delegado para transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros entre dois pontos terminais, com tarifas e esquema operacional aprovados pela Agencia Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. Ou seja, é o ônibus que o usuário pega nas rodoviárias e possui uma oferta contínua e regular de horários. O fretamento, por sua vez, é o serviço prestado a um grupo de pessoas, em circuito fechado (ou seja, ida e volta), em que o transportador precisa enviar uma lista prévia à ANTT para que seja autorizado. Cabe ressaltar que os conceitos acima também se aplicam, analogamente, ao transporte intermunicipal de passageiros, de competência dos Estados.

As empresas de fretamento colaborativo atuam por meio de parceiros – empresas de ônibus de fretamento, autorizadas pelas agências nacional ou estaduais, disponibilizando veículos dessas empresas para determinados trajetos, mas se utilizando da tecnologia de marketplace para formar os grupos de fretamento.

As empresas atuantes no serviço regular alegam que o serviço de fretamento colaborativo seria um serviço público, assemelhando-se ao serviço regular e, portanto, sujeito às regras do serviço regular. Sob esse argumento, diversas agências reguladoras estaduais e a própria ANTT têm autuado ônibus de fretamento colaborativo, impedindo-os de seguir viagem.

O debate traz consigo um elemento bastante comum nas discussões envolvendo tecnologias disruptivas: a necessidade de alguns agentes, públicos e/ou privados, de tentar encaixar a inovação nas caixinhas da regulamentação disponível, normas elaboradas, necessariamente, quando a tal tecnologia sequer existia.

Voltando ao caso Uber, os defensores da regulamentação à época, em geral também defensores dos taxis, alegavam ser o Uber e seus assemelhados serviços não regulados e que, portanto, ofereciam riscos aos usuários.

Ora, primeiramente, defender a regulamentação de um serviço como elemento fundamental para sua legalidade é uma completa inversão do princípio constitucional da livre iniciativa, assentado no artigo 170 da Constituição Federal e que, em seu parágrafo único, dispõe que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Em segundo lugar, a ausência de regulamentação jamais pode ser utilizada como argumento de segurança, pois, se assim o fosse, todos os serviços não regulados estariam colocando em risco a população. A regulação é exceção, não regra.

O que deve mover o intento regulamentador do Estado é a existência de falhas de mercado, falhas essas suficientemente relevantes que justifiquem uma intervenção do Poder Público. No caso dos taxis, o que um dia justificou a intervenção do Estado para regular a entrada no serviço e as condições de sua oferta são as assimetrias informacionais entre prestador e usuário, relativas ao preço cobrado, qualidade e segurança do serviço (manutenção do veículo, habilitação do motorista,etc).

Contudo, a inovação tecnológica promovida pelas tecnologias de plataformas não apenas reduziu as assimetrias informacionais como também aprimorou o produto de forma que nem a regulação seria capaz. Com um simples toque no aplicativo de celular o usuário consegue obter informações do preço exato (e não apenas o valor da bandeira), da nota do motorista e de seu serviço, aspectos que garantem ao usuário segurança e qualidade em nível superior àquele garantido pela regulação estatal. Considerando esses elementos, em vez de defender a regulação do Uber, não seria o caso de se protestar pela desregulamentação dos taxis? infelizmente, a discussão sobre desregulamentar o serviço de taxis passou longe da agenda pública.

No caso do fretamento colaborativo, a analogia é válida. Não se trata de defender a desregulamentação do transporte rodoviário – embora a tecnologia atual permita avançar sobre diversos aspectos da regulação; mas de se questionar se há necessidade real de regulamentar o novo serviço. Lembrando que as empresas parceiras, proprietárias dos veículos, já são devidamente reguladas. O que se questiona é se a mera intermediação da oferta de assentos em veículos fretados deve ser objeto de regulação e, especialmente, proibição por parte do Poder Público.

A tecnologia de plataformas hoje permite que usuários e consumidores sejam agrupados remotamente, o que de outra maneira não aconteceria, e se conectem a ofertantes do serviço de maneira simples, otimizando a formação de grupos aptos a fretarem um veículo para o mesmo destino. Trata-se de uma nova forma de fazer algo antigo, só que muito mais eficiente.

Outros serviços regulados hoje também se valem desses marketplaces para otimizar a oferta de serviços aos clientes, com significativo impacto na concorrência, como as plataformas de investimentos e empréstimos pessoais, que estão revolucionando o mercado financeiro no Brasil. Por meio dessas plataformas, ofertantes antes sem acesso a uma rede de atendimento capilarizada alcançam milhões de consumidores e esses, por sua vez, deixam de depender apenas dos grandes bancos para ter acesso e comparar serviços de dezenas de ofertantes distintos em um só aplicativo.

O surgimento de novos produtos e serviços ou novas formas de se ofertar produtos e serviços tradicionais deve provocar discussões para além da mera cobrança por regulamentar o novo. Mais do que isso, é imperativo a reflexão acerca das razões pelas quais aquilo foi regulado no passado e se as condições ainda subsistem ou não. Nesse sentido, um grande avanço pode ser notado na Instrução Normativa SEAE/ME nº 60/2022, que regulamentou o papel da SEAE nos processos de Análise de Impacto Regulatório – AIR das agências reguladoras federais e entrou em vigor no último 1º de setembro. Em seu artigo 8º a referida IN dispõe que, nos processos de AIR as agências reguladoras devem considerar alternativas regulatórias em número não inferior a 3 (três), devendo estar disponíveis, dentre as alternativas, necessariamente (i) a não intervenção regulatória adicional, ou seja, manter como está; e (ii) a desregulamentação do tema, revogando o normativo existente.

Trata-se de um primeiro e enorme passo no sentido de se provocar a discussão e a reflexão sobre desregulamentação, colocando-a como opção mandatória nos processos decisórios das agências reguladoras federais e um contraponto ao fetiche regulatório que usualmente domina o debate no país. Mais uma vez, não se trata de uma crítica à regulação em si, mas à forma como se faz regulação no Brasil, que, muitas vezes, coloca interesses privados e de determinados grupos acima do interesse público, como já defendia George Stigler lá na década de 1970[1]. Que um dia possamos, diante de uma inovação, nos questionar: “o que podemos desregulamentar”?


[1] The Theory of Economic Regulation. George J. Stigler. Source: The Bell Journal of Economics and Management Science, Vol. 2, No. 1 (Spring, 1971), pp. 3-21