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Uma discussão sobre proposta de imprescritibilidade dos pontos de programas de fidelização à luz da análise econômica do direito

Fernando Boarato Meneguin & Renata Bertolucci Ferreira

Introdução

Há várias proposições legislativas tramitando no Congresso Nacional cujo objetivo é, de alguma forma, prorrogar a validade ou tornar imprescritíveis os pontos referentes à bonificação recebida por programas de fidelidade vinculados às despesas realizadas por meio de cartões de crédito.

O presente texto, sob o prisma da Análise Econômica do Direito, pretende avaliar a racionalidade e as consequências dessas propostas legislativas. Os argumentos se aplicam a todas as proposições que pretendem de alguma forma estender o prazo para a utilização dos pontos. Para dar concretude à análise, consideremos o Projeto de Lei nº 5.549, de 2020, que objetiva estabelecer a imprescritibilidade dos benefícios e recompensas vinculados a cartão de crédito ou, em outras palavras, estabelece que as bonificações acumuladas em programas de benefícios e recompensas vinculados a cartões de crédito (pontos e milhas) não possuam prazo para utilização.

Quando se trata das bonificações oferecidas ao consumidor, vale destacar algumas definições. Segundo o código de autorregulação da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização – ABEMF[1], temos os seguintes termos:

  1. Benefícios – qualquer produto, serviço, desconto, vantagem, prêmio e/ou promoções resgatado com Pontos/Milhas pelo Participante nos Parceiros das Associadas;
  2. Ponto/Milha – unidade de medida utilizada pelas Associadas nas transações de acúmulo e/ou resgate juntos aos Parceiros;
  3. Programa de Fidelidade – programa de fidelização mantido por cada Associada que reúne, em único ambiente ou plataforma, diversos Parceiros e/ou outros programas de fidelização, permitindo que seus Participantes possam acumular Pontos/Milhas (transações de acúmulo), em virtude da utilização e/ou recorrência na utilização dos produtos e/ou serviços destes Parceiros.

Com base nessas definições, conclui-se que, sob a ótica do consumidor, os pontos e as milhas são moedas virtuais que permitem, por exemplo, usufruir do serviço de transporte aéreo ou adquirir eletrodomésticos, bem como o reembolso imediato do valor gasto na compra (cashback), pela empresa com a qual mantém uma relação consumerista através da sua adesão aos programas de benefícios e recompensas.

Os indicadores deste setor impressionam. A ABEMF informa que “o mercado de programas de fidelidade no Brasil registrou uma taxa de crescimento anual de 14,4% no período 2017 a 2021 e continuará crescendo nos próximos anos, com uma taxa anual de 13,8%. Saindo, assim, de US$ 2.679,9 milhões em 2021 para US$ 5.132,6 milhões em 2026”[2].

Feita essa contextualização, pretendemos, utilizando a base da avaliação de impacto legislativo, conforme descrito em Meneguin e Silva (2017)[3], e apresentar argumentação para avaliar se os dispositivos do PL nº 5.549, de 2020, poderão resultar em benefícios sociais.

Segundo a justificação do projeto, a norma pretende assegurar ao consumidor a ampla oportunidade de resgate de seus pontos. Para a correta análise da proposição, importante se faz levantar evidências empíricas sobre o tema alvo da intervenção pretendida. Nessa linha, temos na seção seguinte alguns indicadores importantes sobre os programas de fidelidade, de maneira a ajudar na avaliação do tema em questão.

Evidências empíricas

Primeiramente, cabe retratar o comportamento da adesão dos consumidores aos programas de fidelidade, ressaltando o crescente interesse nesse mercado.

Gráfico I. Número de inscritos nos programas 3º trim/2019 a 2º trim/2022 – (unidade: milhões)

Fonte: ABEMF

O número de inscritos nos programas de fidelidade saltou de 145,3 milhões no 3º trimestre de 2019 para 185,7 milhões no 2º trimestre de 2022, o que significa um incremento de 27,8%. A maior origem dos pontos vem do varejo (92,7% no 2º trim/22).

Um dado importante para a verificação da pertinência da imprescritibilidade dos pontos consiste na comparação dos pontos emitidos com os pontos resgatados. O Gráfico II abaixo mostra essa evolução trimestral a partir do 1º trimestre de 2019.

Gráfico II. Pontos/milhas emitidos x resgatados 1º trim/2019 a 2º trim/2022 – (unidade: bilhões)

Fonte: ABEMF

Perceba que a quantidade de resgate de pontos é bem próxima da emissão de novos pontos. Para ilustrar, no 2º trimestre de 2022, foram emitidos 115,4 bilhões de pontos e resgatados 96,4 bilhões, representando 83,5% da emissão.

Um último dado essencial para a análise é a taxa de breakage. Esta aponta o percentual de pontos ou milhas que os participantes de um programa de fidelidade não resgataram ou deixaram expirar. Ainda que não se traduza em gastos, é uma medida que aponta a falta de engajamento do cliente com o programa e, consequentemente, com a marca[4].

A ABEMF calcula a taxa de breakage considerando uma média dos pontos nos últimos doze meses. O Gráfico III a seguir traz a evolução desse indicador.

Gráfico III. Taxa de breakage 1º trim/2019 a 2º trim/2022 – (unidade: %)

Fonte: ABEMF

Perceba que, desde o final de 2020, a taxa de breakage está estável em torno de 15%.

Análise econômica da imprescritibilidade dos pontos

Após as evidências empíricas trazidas, ao analisar a imprescritibilidade dos pontos/milhas dos programas de fidelidade, conforme proposto no PL nº 5.549, de 2020, percebemos de início que não se verifica uma necessidade de se intervir nesse mercado para assegurar ao consumidor o direito de resgate de seus pontos, pois esse direito vem sendo exercido conforme ilustrado no Gráfico II. Os números demonstram que a população inseriu no seu hábito consumerista o resgate de benefícios e vantagens acumulados por meio do uso do cartão de crédito.

Além do mais, merece atenção para a presente discussão o fato de que o instituto da prescrição possui a função primordial de garantir segurança entre os sujeitos envolvidos na relação jurídica, evitando que situações consolidadas sejam revolvidas. Extinguir a prescrição geraria incertezas desnecessárias. A incerteza propaga insegurança jurídica à sociedade e, como consequência, temos incremento dos custos de transação, com prejuízo aos negócios e ao bem-estar social.

Em termos de incentivos, a possibilidade de utilização vitalícia dos pontos e milhas pode gerar um alto estoque de benefícios, sem haver previsibilidade sobre quando haverá o resgate desses pontos. O carregamento desse estoque traz embutido riscos e custos, que serão precificados em desfavor do consumidor, diminuindo seus benefícios. Pode haver também, por conta da incerteza, empresas que desistam de participar dos programas de fidelização, principalmente as empresas menores que teriam mais dificuldade em arcar com os custos extras. Esse movimento de saída das empresas menores pode acarretar concentração do mercado de fidelização nas grandes empresas, com nova geração de prejuízos para o consumidor.

Outro argumento a ser destacado reside no fato de que a mudança das regras de prescrição, de maneira unilateral realizada pelo Estado, resultaria em uma quebra contratual de pacto firmado entre os beneficiários dos programas de fidelidade e os gestores desses programas.

Nesse ponto, cabe lembrar que o contrato, juntamente com a propriedade, são dois instrumentos essenciais para o funcionamento do mercado. São eles que permitem aos agentes econômicos transacionarem. O contrato e a propriedade fornecem as bases para um jogo cooperativo em que ambas as partes de uma negociação se beneficiam. O benefício advém da criação de um valor adicionado que aumenta a riqueza dos envolvidos e, por conseguinte, da sociedade.

Apesar de a intenção do proponente da norma ser boa, a intervenção nos contratos por ação estatal pode, ao pretender ajudar o consumidor individual, afetar uma engrenagem complexa, e ações que deveriam beneficiar o consumidor individualizado podem acabar impondo riscos ou custos a todo o sistema, com prejuízo final para o próprio consumidor. Uma intervenção estatal desse tipo pode ser classificada como falha de governo.

Em artigo no qual se discute Análise Econômica do Direito e impacto regulatório, Meneguin (2020)[5] aborda o conceito das falhas de governo. Trata-se de intervenções governamentais incorretas que geram distorções maiores do que os problemas a que elas se propunham resolver. Esse efeito adverso é conhecido na literatura como “Efeito Peltzman”, situação em que a regulação tende a criar condutas não previstas para os regulados, anulando os benefícios almejados (Peltzman, 2007)[6].

Há que se ressaltar também que a ordem econômica brasileira é fundada, constitucionalmente, na livre iniciativa, conforme os arts. 1º, inc. IV, e art. 170 da Constituição Federal, consagrando um sistema econômico de mercado.

Conforme explica Timm (2007)[7], a livre iniciativa assegura aos agentes econômicos, a priori, liberdade de atuação no mercado, podendo comprar e vender bens e serviços sem interferências do Poder Público. Isso significa, portanto, que consumidores e empresas têm liberdade de participar do espaço público do mercado, ofertando produtos e serviços e consumindo-os livremente.

Uma nova regulação é necessária quando há falhas de mercado a serem resolvidas, como informação assimétrica, mercados incompletos ou pouco competitivos, custos de transação elevados, entre outras imperfeições de mercado que geram resultados ineficientes. Na proposição em estudo, não há falha de mercado a ser sanada. Se houve pontos não resgatados, isso aconteceu por decisão livre do consumidor.

Conclusões

Ante as evidências empíricas trazidas e as consequências antevistas da imprescritibilidade dos pontos e milhas nos programas de fidelização, entendemos que a medida, se aprovada, provocaria prejuízo a esse mercado e aos consumidores, promovendo queda de bem-estar social.  

É imperioso sempre lembrar que o Estado deve buscar a realização do interesse público e o aumento de bem-estar da sociedade na maior extensão possível. Nesse sentido, deve-se trabalhar para evitar desperdícios e para conseguir uma melhor alocação dos escassos recursos públicos. Um instrumento útil nesse sentido são as avaliações ex ante de potenciais normas e regulações, como a avaliação de impacto legislativo. Estando atento aos incentivos impostos pelas regras e à eficiência das ações governamentais, certamente damos um largo passo em direção ao interesse público e à justiça social.


[1] https://www.abemf.com.br/autorregulacao

[2] https://blog.abemf.com.br/setor-de-fidelidade-no-brasil-deve-continuar-crescendo-cerca-de-14-ao-ano-nos-proximos-cinco-anos/

[3] MENEGUIN, F. B.; SILVA, R. S. Avaliação de impacto legislativo: cenários e perspectivas para sua aplicação. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017.

[4] https://tudosobreincentivos.com.br/glossario/breakage-em-loyalty/

[5] Meneguin, F. B. A Análise de Impacto Regulatório e o Aprimoramento das Normas. In YEUNG, L. (org.). Análise Econômica do Direito – Temas Contemporâneos. São Paulo: Actual, 2020.

[6] Peltzman, S. Regulation and the Wealth of Nations: The Connection between Government Regulation and Economic Progress. New Perspectives on Political Economy, v. 3, n. 3, p. 185-204, 2007

[7] TIMM, Luciano. O direito fundamental à livre iniciativa na teoria e na prática institucional brasileira. In REVISTA DA AJURIS, vol. 107, p. 107 e ss, 2007.


FERNANDO BOARATO MENEGUIN. Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Consultor Sênior da Charles River Associates e Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

RENATA BERTOLUCCI FERREIRA. Mestranda em Resolução de Conflitos pela AMBRA University. Advogada. Gestora Jurídica na Procuradoria-Geral do Estado de Goiás.