Breves notas sobre a tributação da energia

Fábio Luiz Gomes

Introdução

           A Revolução Industrial foi a grande impulsionadora do ambientalismo e dos primeiros movimentos ambientais nascidos no Mundo (Europa), durante o século XIX. As alterações causadas em nível global levaram à necessidade do belo e do natural, preocupações com a melhor gestão dos recursos naturais.[1]

         Essa conscientização ambiental desenvolveu-se com força nas décadas de 50 e 60, sendo discutido na Conferência Intergovernamental sobre o Uso e Conservação dos Recursos da Biosfera (Paris, 1968), o tema sobre sustentabilidade.

         Verifica-se que o estudo energético permite uma complexa interligação entre os vários conhecimentos humanos, impondo, inclusive, o aprofundamento da convivência entre espécies, onde se busca o menor impacto possível no meio ambiente.

        Estabelece-se uma lógica racional na busca da maior eficiência energética que torne a dimensão ambiental siamesa à existência humana.

         Dessa forma, entender quais são as formas energéticas, sua natureza e como se intercedem com a existência humana.

         Salienta-se que a escassez dos recursos naturais já é um assunto conhecido mundialmente, e, ainda, que o ser humano consome mais do que aquilo que o planeta consegue repor.

         Buscam-se, então, instrumentos jurídicos que estabeleçam critérios de regulação, e, ainda, na tributação como forma de sustentabilidade ambiental.

1. Combustível – Conceito

         Inicia-se o presente estudo estabelecendo uma conceituação de combustível: “Que ou substância ou produto que produz combustão”[2], acrescente-se que produz calor na combustão. Os combustíveis podem ser sólidos, líquidos e gasosos.”[3]

        Observa-se que a definição de combustível incorpora características complexas, como a capacidade de reação com o oxigênio, a característica de ser exotérmica (a reação exotérmica é de combustão).

        Estabelece-se, portanto, a relação entre a química e os combustíveis.

        Para os objetivos do presente trabalho, pretende-se destacar dois grupos de combustíveis: a. os combustíveis fósseis e b. os combustíveis renováveis.

         Os combustíveis fósseis são considerados fontes de energia convencionais, encontrados na natureza em quantidades limitadas.       Acrescenta-se, ainda, que a sua incessante extração resulta na impossibilidade de regeneração das reservas naturais.

        De outro lado, as energias renováveis permitem uma possível alternativa, contudo não proporcionam a mesma estabilidade, em termos produtivos, quando comparadas ao combustível fóssil, uma vez que existe a tecnologia, mas a produção em massa ainda gera altos custos.

2. Tributação de Energia – Preço

       Observa-se que o preço deveria informar aos consumidores sobre o custo da produção de determinado bem, contudo na maior parte dos casos os preços não demonstram com precisão, como consequência ter-se-ia a sobre-exploração por parte dos agentes econômicos.

        Neste sentido, verificam-se distorções econômicas, nomeadamente no comportamento do contribuinte, seja ele destinatário final ou mesmo um dos agentes econômicos que fazem parte como intermediários.

        Constata-se que a exemplo da União Europeia, onde a justificativa para os altos preços dos combustíveis fósseis seria a de desestimular o seu consumo, na verdade é fonte de receita que para ser substituída seria necessário encontrar outra fonte.

        Neste sentido, a existência do tributo que incida sobre a eficiência energética estabelecerá influência no comportamento dos produtores/consumidores na utilização/consumo de produtos menos poluentes, ressaltando novamente que essa tributação represente importante fonte de receita.

3. Definição de Imposto Ambiental

          A formação da investigação e desenvolvimento de estudo comparado entre os diferentes sistemas tributários e correspondendo estruturação dos impostos no território dos Estados Membros.

           Define-se o imposto ambiental como um imposto, cuja base tributável assenta numa unidade física de algo que comprovadamente causa impacto negativo no ambiente.

Conclusão

         Ao tratarmos dos impostos sobre a energia, a Eurostat definiu os impostos em quatro categorias:

  1. Impostos sobre energia (incluem os impostos sobre o dióxito de carbono);
  2. Imposto sobre transporte;
  3. Imposto sobre a poluição;
  4. Impostos sobre os recursos (com exclusão do petróleo e extração do gás natural) com ou sem chumbo, o gasóleo, os produtos energéticos usados como carburantes, o flueóleo leve ou pesado, o gás natural, o carvão – estes são tributados por impostos sobre a energia.

         A nomenclatura dos impostos identificados pelo Eurostat estabelece a extensão objetiva: energia, transporte, poluição e recursos, como dito acima tenciona-se estabelecer uma natureza extrafiscal a esses tributos.

          Como sabido a energia é essencial a dignidade humana, e nos dias atuais com a grande quantidade de pessoas, não só o transporte, ou mesmo a luz, mas o aquecimento ou a refrigeração garantem a própria vida de diversas pessoas.

          Portanto, a busca por desenvolvimento tecnológico com o intuito a causar o menor impacto ambiental possível – desenvolvimento sustentável, acaba por corroborar no equilíbrio possível com o desenvolvimento econômico.

          Equivocadamente, busca-se atribuir de forma absoluta aos tributos ecológicos uma função a justificar o desestímulo do consumo a determinada fonte de energia, isto é, será tributado com maiores alíquotas.

          Na verdade, se não forem disponibilizadas outras fontes de energia, essa tributação mais severa acaba por penalizar a pessoa com maiores alíquotas, e que o intuito de racionalizar o consumo energético estabelece-se até certo limite.

            A existência digna, esta instransponível, que deve ser colocado nessa balança, a esse tipo de tributação, e a extrafiscalidade a elas inerente, também deverá considerar a pessoa humana dentro desse conceito.


[1] Convenção para a Preservação de Animais, Pássaros e Peixes de África – 1900.

[2] Minidicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Editora Nova Fronteira S/A: Rio de Janeiro, 1977, p. 113.

[3] PAPE – Programa Auxiliar de Pesquisa Estudantil. VolIII. DCL – Difusão Cultural do Livro Ltda: São Paulo, p. 778.

Nós, que aqui estamos, por vós esperamos. As premissas da teoria do direito como parâmetros de controle para introdução da teoria econômica no campo jurídico

Angelo Prata de Carvalho

A teoria do direito passou por diversas transformações e controvérsias no sentido de superar a utopia de objetividade proposta pelo positivismo do século XIX – formulada com o objetivo assegurar a independência do ordenamento jurídico das razões ético-valorativas que orientavam visões jusnaturalistas –, inclusive com vistas a mitigar o entendimento segundo o qual o direito deveria ser estudado segundo aquilo que ele realmente é, ou seja, sem que se fizesse permanente referência a um direito ideal[1]. Em outras palavras, a ideia de racionalidade que se atribuiu ao direito na atualidade em muito se afasta da objetividade cientificista pretendida, por exemplo, pela Escola da Exegese francesa e pela Pandectística alemã, que tiveram finalidades relevantes para a afirmação do pensamento jurídico em suas épocas e locais, porém vão radicalmente de encontro ao paradigma pós-positivista que governa a interpretação e a aplicação do direito na atualidade[2].

Em outras palavras, tanto não faria sentido atribuir ao direito um ideal de racionalidade descolado do contexto histórico em cultural do ordenamento em questão, quanto seria postura demasiadamente ingênua a que defendesse que o direito pudesse libertar-se da linguagem e dos mecanismos de interpretação em prol de uma objetividade aritmética ou mesmo de um raciocínio puramente consequencialista que desconsiderasse os bens tutelados pelas normas jurídicas. Pelo contrário, a dogmática jurídica é ideológica e historicamente localizada justamente em virtude da necessidade de manutenção de seu potencial persuasivo, tendo em vista que não faria sentido sustentar um direito descolado do ambiente social e cultural que o reproduz[3].

            Não é sem motivo que mesmo o positivismo normativista kelseniano, notadamente a partir da publicação da edição de 1960 da Teoria Pura do Direito, não deixa de levar em consideração o fato de que a interpretação e a aplicação do direito não constituem atos de conhecimento decorrentes da aplicação de método científico a um corpo de normas, mas sim atos de vontade consistentes na escolha fundamentada de uma conclusão dentre as várias possíveis sob a égide de determinado ordenamento[4]. Em outras palavras, mesmo os esforços de construção de estatuto de ciência ao direito não ignoram que, na prática – ou naquilo que Kelsen chamou de “política do direito” –, o direito é necessariamente marcado por elementos valorativos.

            Significa dizer que a busca por ideais de objetividade que são próprios das ciências exatas desafia a própria tentativa de descrição do estatuto epistemológico do direito, considerando que o pós-positivismo procurou justamente estruturar um conjunto de técnicas de interpretação e aplicação do direito que, conscientes da textura aberta[5] das normas jurídicas, oferecessem não um caminho para superar subjetividades e ideologias, mas sim soluções que adequadamente refletissem os acordos constitutivos da sociedade que originou determinado sistema de normas[6].

            Em outras palavras, o giro linguístico representa a superação, pelo próprio positivismo, do apego típico do modernismo do século XVII (isto é, em sentido cartesiano, representante por antonomásia do pensamento do pós-medievo) a tentativas de demonstração matemático-empírica de fenômenos associados à conduta humana. Não é sem motivo que Deirdre McCloskey assevera que a metodologia oficial da ciência econômica é este “Modernismo” (ou, ainda “positivismo”, apesar do esforço da autora em separar a postura dos economistas do positivismo que é próprio das ciências sociais, que, não obstante, tende a ser apontado justamente como ideal metodológico), no qual qualquer outro elemento distinto de hipóteses falsificáveis em sentido popperiano deve ser descartado, tendo em vista que a ciência, a partir dessa concepção, apresenta-se como axiomática e matemática, separando seu campo do reino das formas, valores, beleza, bondade e qualquer outro elemento que não possa ser medido[7].

            Tal comentário faz referência direta à parêmia de gustibus non est disputandum, título de artigo de George Stigler e Gary Becker que vem a tornar-se verdadeiro bordão da análise econômica do direito, destinado a neutralizar a análise econômica de quaisquer aspectos que digam respeito às individualidades dos agentes que compõem os mercados e à formação dessas individualidades, imputando aos sujeitos parâmetros de racionalidade abstrata que se descolam da realidade concreta não por ignorarem que há uma realidade subjacente à ação individual, mas por deliberadamente ignorarem aspectos essenciais dessa realidade em prol de uma empiria estatística[8] que, no afã de simplificar o mundo para explicá-lo, elege como instrumentos analíticos aqueles com suposto caráter de “cientificidade” – isto é, aqueles que são capazes de ser aferidos objetiva e matematicamente.

            É por essa razão que Pierre Bourdieu, ao tratar das teorias da escolha racional (com expressa referência à obra de Becker e Stigler), assevera que
“Esta filosofia atomista e mecanicista exclui puramente e simplesmente a história. Ela exclui, primeiramente, agentes cujas preferências, que não devem nada às experiências passadas, são inacessíveis às flutuações da história, a função de utilidade individual sendo decretada imutável ou, pior, sem pertinência analítica”[9].

                   Evidentemente que as reflexões a respeito da introdução de critérios da análise econômica no raciocínio jurídico não ficam infensas a esse tipo de crítica direcionada às abordagens de inspiração neoclássica, de tal maneira que em larga medida também se pretende trazer para o campo jurídico abordagens que procuram superar (ou ao menos mitigar) alguns dos dogmas da economia neoclássica, como é o caso da economia institucional – que, justamente, admite que as regras do jogo a serem observadas pelos atores econômicos podem advir das mais diversas fontes, o que inclui normas culturais e constrangimentos oriundos do contexto histórico-social em que se inserem os agentes. No entanto, não se pode deixar de notar que mesmo os conceitos que compõem a economia institucional podem se instrumentalizados no intuito de perpetuar a lógica neoclássica, substituindo-se a maximização de utilidade[10] por objetivos como a redução de custos de transação (que muitas vezes acaba por tornar-se verdadeiro sucedâneo daquilo que significa a eficiência alocativa para a economia neoclássica) [11].

                   O que se verifica, por conseguinte, é que, por mais que o direito contemporâneo tenha sido desenvolvido sobre sólidas bases metodológicas que resultaram da superação dos dogmas positivistas pelos pressupostos que marcam o chamado pós-positivismo – notadamente o giro linguístico e a assunção da postura hermenêutica segundo a qual o discurso jurídico é diretamente condicionado pela textura aberta da linguagem, de maneira a lançar à terra pretensões irreais de neutralidade ou absoluta objetividade –, o movimento de introdução de argumentos econômicos no discurso jurídico aponta para verdadeiro retrocesso no processo de amadurecimento da metodologia que é própria à ciência jurídica.

                   Isso porque o discurso da teoria econômica neoclássica tende justamente a eleger um método específico, baseado em presunções irreais de racionalidade, como resposta para problemas jurídicos que não conseguem ser resolvidos senão com uma abordagem abrangente, que leve em consideração tanto a textura aberta da linguagem quanto elementos sociais, políticos e culturais que invariavelmente moldam a normatividade que é própria do discurso jurídico. Curiosamente, a incerteza que advém das metodologias jurídicas – notadamente a hermenêutica jurídica – é justamente um dos pontos de crítica das abordagens que pretendem importar metodologias do campo econômico.


[1] Ver: BOBBIO, Norberto. O positivo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 136.

[2] É o que ensina, por exemplo, Miguel Reale: “Cada época, em verdade, fixa as normas e os limites de sua exegese do Direito, em função dos valores culturais dominantes, tendo representado grande avanço a compreensão de que a interpretação jurídica não constitui senão uma das formas constantes e fundamentais da Teoria Geral da Interpretação, ao lado da exegese filosófica, artística, histórica, etc. […] Posta a questão nesse contexto, preciso é convir que as Escolas da Exegese e dos Pandectistas corresponderam aos ideais de seu tempo. A atitude que, aos olhos atormentados do jurisconsulto ou do politicólogo de nossos dias parece ser passiva perante a lei, era antes a única posição correspondente aos anseios e aspirações da civilização individualista. Foi somente quando esta entrou em crise, em virtude de ter-se revelado” (REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 72, n. 1, pp. 81-91, 1977. p. 81.

[3] Ver: ROESLER, Claudia. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de uma prática jurídica. Quaestio juris. v. 8, n. 4, pp. 1-15, 2015.

[4] Nesse sentido: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo de cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 251).

[5] Nesse sentido: HART, H.L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.

[6] Ver: CARVALHO NETTO, Menelick; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

[7] MCCLOSKEY, Deirdre N. The rhetoric of Economics. 2.ed. Madison: The University of Wisconsin Press, 1998. p. 142.

[8] Para abordagem crítica da empiria estatística comumente adotada pela economia neoclássica, notadamente a respeito do conceito de significância, ver: ZILIAK, Stephen C.;MCCLOSKEY, Deirdre N. The cult of statistical significance: How the standard error costs us jobs, justice, and lives. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2011.

[9] BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Política e Sociedade. n. 6, pp. 15-57, abr. 2006. pp. 52-53.

[10] Ver: SKIDELSKY, Robert. What’s wrong with economics. New Haven: Yale University Press, 2021. pp. 115-118.

[11] Nesse sentido, para análise empírica sobre o uso das ideias de Coase no contexto do Judiciário norte-americano, ver: WHITE, Barbara Ann. Coase and the courts: economics for the common man. Iowa Law Review. v. 72, pp. 577-635, 1987.

FIAGROS e o radar concorrencial:  o papel do antitruste na expansão do agronegócio brasileiro

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Os conhecidos debates sobre os objetivos do antitruste normalmente se deparam com o clássico – e controverso – dilema da defesa dos campeões nacionais. No Brasil, as novidades jurídicas que visam estimular o agronegócio não deixam dúvidas sobre a aposta da vez – amplamente difundida com o jingle “agro é pop, agro é vida” e estatisticamente confirmada, uma vez que o agronegócio correspondeu a cerca de 27,4% do PIB brasileiro no ano de 2021[1].

De fato, as últimas iniciativas, tanto do poder legislativo, quanto do executivo, nos últimos meses não deixaram dúvidas sobre a prioridade de estimular o acesso ao crédito e a criação de um framework normativo que permitisse maior segurança jurídica às teias contratuais que sustentam o agronegócio brasileiro. Exemplos destas iniciativas incluem tanto a publicação do Plano Nacional de Fertilizantes e a instituição do Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas (CONFEF), ambos a partir do Decreto 10.991, de 11 de março de 2022, quando a aprovação da Lei 14.130/2011, que instituiu a figura dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagros).

Ora, no momento em que os holofotes do Brasil – e do mundo – voltam-se ao agro, trazendo consigo a necessidade de expandir as bases para o crescimento deste setor, a competitividade não poderia ficar de fora. De acordo com o último Caderno do Departamento de Estudos Econômicos do Cade (DEE/CADE)[2], mercados de insumos agrícolas passam periodicamente por ondas de concentração, seja pela forte competição por inovação, seja em função das altas barreiras à entrada, uma vez que grande parte das atividades destes mercados são intensivas de capital.

De fato, nas duas últimas décadas (isto é, no período compreendido entre 1990 e 2019), o DEE identificou cerca de 279 Atos de Concentração notificados ao Cade, além de condutas anticoncorrenciais que foram objeto de investigação na Autarquia, envolvendo a recusa de acesso à infraestrutura essencial e outros abusos de posição dominante, que poderiam ocasionar no fechamento destes mercados.

De acordo com a Lei 12.529/2011, há dois critérios que definem as operações notificáveis ao Cade: faturamento e tipo de operação. Com relação ao faturamento, o Art. 88 da lei traz valores mínimos de faturamento bruto anual dos grupos econômicos da Adquirente e da Adquirida – sendo que os patamares originalmente adotados pela norma já sofreram atualização e hoje consistem, respectivamente, em R$ 750 e R$ 75 milhões[3]. O segundo critério, por sua vez, remete ao tipo de operação que estaria originando a concentração econômica, o que, de acordo com o Art. 90 desta lei, abrange as hipóteses de fusão, incorporação, aquisição de ativos e participações societárias, celebração de contratos associativos, consórcios e contratos que originem joint ventures.

Contudo, para além dos critérios trazidos pela norma, o Cade regulou, através da Resolução 33/2022 (que consolida, dentre outros normativos da Autarquia, a antiga Resolução 2/2012 alterada pela Resolução 9/2014), o tratamento do que deveria ser considerado como grupo econômico para fins de cômputo do faturamento.

Em se tratando de fundos de investimento, o Art. 4º, §2º da Resolução 33/2022 entendeu que, com relação aos cotistas, deveria ser considerado apenas aqueles que detiverem participação (direta ou indireta) igual ou superior a 50% das cotas dos fundos envolvidos na operação via participação individual ou conjuntamente – através de acordos societários. Com relação às empresas investidas, por sua vez, entendeu-se que deveriam ser consideradas integrantes do grupo todas aquelas que detivessem participação (direta ou indireta) igual ou superior a 20% do capital social votante.

Ora, com critérios de notificação obrigatória tão abrangentes e consequências bastante indesejáveis em relação à falha de apresentar ao Cade uma operação que seria notificável – infração batizada, no Direito Concorrencial, como “Gun Jumping” – importa debater como seria o tratamento das operações realizadas a partir de um Fiagro pelo Cade e, para além do controle de estruturas, de que forma os demais instrumentos da caixa de ferramentas antitrustes podem auxiliar na manutenção do grau de competitividade desejável ao setor.

Como já mencionado, a constituição dos Fiagros foi regulada a partir da Lei 14.130/2011, que visa facilitar a qualquer investidor, seja ele nacional ou estrangeiro, o direcionamento de seus recursos ao setor do agronegócio, o que pode ser feito de forma direta, a partir da aquisição de imóveis rurais, por exemplo, ou indireta, com a aplicação em ativos financeiros atrelados ao agronegócio.

Assim, a classificação dos Fiagros dependerá das características de seus investimentos, podendo ser constituídos sob a forma de Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs), Fundos de Investimento em Participação (FIPs) e Fundos de Investimento em Direito Creditório (FIDCs). Em cada uma destas três hipóteses, há operações que se enquadram como atos de concentração, envolvendo não apenas a aquisição de participações societárias, como também de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis, podendo abranger, inclusive, ativos que não estejam mais operacionais[4].

Dessa forma, estas operações seriam notificáveis ao Cade, que, por sua vez, as analisaria através de seu controle de estruturas, podendo concluir que, a depender do grau de concentração gerado a partir da operação, a adoção de remédios concorrenciais se fizesse necessária – fossem eles estruturais ou comportamentais. Este controle preventivo é um mecanismo importante para garantir a competitividade nos diferentes elos da cadeia produtiva deste setor, especialmente em razão da recente tendência de concentração, bem como do grau de dependência entre os elos e do enorme impacto que o desequilíbrio da cadeia pode ocasionar ao consumidor final.

Como ressaltou o DEE/CADE (2020)[5], a exclusividade entre distribuidores e fabricantes de defensivos agrícolas e fertilizantes não é incomum e muitas vezes pode ser justificada em razão do apoio prestado pelos fabricantes para a prestação de serviços adicionais aos seus clientes. Contudo, a figura dos distribuidores parece ser bastante central nesta cadeia produtiva, uma vez que produtores rurais beneficiam-se tanto da variedade de produtos que possam atender sua ampla gama de necessidades, como também de serviços adicionais fornecidos através do elo de distribuição, o que inclui, no caso dos defensivos agrícolas, por exemplo, os serviços de assistência técnica, consultorias de agrônomos, entrega programadas de insumos, financiamento da compra de insumos, consultorias sobre seguros e operações cambiais, além de programas de fidelização de clientes e armazenagem de grãos.

Assim, ao passo que Fiagros poderão, de fato, aprimorar o acesso a crédito no setor, considerando o histórico de concentração econômica comumente capitaneado através destes veículos de investimento nos diferentes segmentos que compõem o agronegócio, bem como outros elementos que corroboram com esta tendência de concentração, tal injeção de crédito há que ser acompanhada de boas doses de competição, de modo que as bases para expandir o agronegócio brasileiro possam desenvolver raízes sólidas e sustentáveis.


[1] https://www.cepea.esalq.usp.br/br/releases/pib-agro-cepea-pib-do-agro-cresce-8-36-em-2021-participacao-no-pib-brasileiro-chega-a-27-4.aspx#:~:text=Diante%20do%20bom%20desempenho%20do,52%2C63%25%2C%20respectivamente.

[2] CADE. Cadernos do Cade: Mercado de Insumos Agrícolas. Fevereiro de 2020. Disponível em <https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-insumos-agricolas-2020.pdf>. Acesso em 20/05/2022, p. 90.

[3] Esta atualização foi realizada através da Portaria Interministerial MF/MJ nº 994, de 30 de maio de 2012.

[4] Para uma discussão mais completa com relação à evolução do posicionamento da Autarquia sobre a obrigatoriedade da notificação de ativos não-operacionais, leia o artigo “Ativos não-operacionais e a obrigação de notificação. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Ana Sofia Cardoso Signorelli. 10 de janeiro de 2022“.

[5] Op cit, págs. 18-19.

Mercados Secundários de Espectro no Brasil:Oportunidades e Desafios

       Luiz Alberto Esteves, Luciano Chalita Freitas & Ronaldo Neves Moura Filho

Os últimos anos foram marcados por uma série de reformas legais com desdobramentos sobre os mercados regulados no Brasil. A mais principiológica delas veio com a Lei nº 13.874/2019 – Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, centrada na racionalização da intervenção estatal. Para o caso do setor de telecomunicações, tal reforma trouxe aspectos especialmente interessantes. Destaca-se pela renovação do setor e a revisão da política de acesso a insumos escassos por particulares. Dentre as alterações, a possibilidade de estruturação de um mercado secundário de radiofrequências no Brasil foi um dos destaques.

A importância das radiofrequências se deve ao fato de serem insumo essencial para a prestação e uso de serviços de comunicação sem fio. Até a edição da Lei nº 13.879/2019, os prestadores de serviços detinham acesso exclusivo a partes do espectro. Tal distinção se justificava como contrapartida aos investimentos disponibilizados para aquisição das radiofrequências, obtidas em leilões primários conduzidos pelo regulador setorial. Nessas condições, não podiam negociá-las com terceiros, ou seja, transferi-las ou cedê-las para outros prestadores interessados. Com a reforma legal abre-se aos titulares do direito de uso de radiofrequências a possibilidade de transferência, ou de comercialização da parte ociosa do espectro, mediante anuência da administração pública e submissão a condicionantes de natureza concorrencial e regulatórias.

As bases legais para a criação desse novo mercado se sustentam no reconhecimento de seu potencial para lograr ganhos de eficiência e utilidade no uso de espectro a partir de configurações alternativas ao modelo de alocação tradicional. Sua vertente indutora de ganhos de eficiência alocativa e de aumento da competição no setor de telecomunicações já se encontra consolidada. Em regra, um mercado secundário maduro propicia maior agilidade na designação do espectro por permitir transações entre privados e, em países como o Brasil, pode representar uma oportunidade de ampliação da cobertura em regiões de menor atividade econômica, onde o uso desse recurso é potencialmente ineficiente.

A liquidez nesse novo mercado é um dos fatores críticos para alcançar os benefícios de eficiência, qualidade e ampliação da prestação de serviços móveis. Seu bom funcionamento permitirá elevar a confiança dos investidores para negociarem seus ativos de forma rápida e eficiente, promover a inovação e, inclusive, potencializar a utilidade das atividades nos mercados primários. Ademais, esse mercado também pode estimular o ecossistema financeiro do setor, visto que escalar o espectro a uma condição de ativo negociável gera implicações na composição patrimonial das empresas, com efeitos no custo de capital e no valor do negócio.

A despeito dos benefícios esperados, existem riscos de ordem técnica e concorrencial associados ao desenvolvimento do novo mercado. Aqueles relacionados a comportamentos anticompetitivos, especulativos e de criação de escassez artificial, bem como aspectos como interferências e custos de coordenação e harmonização são exemplos de ameaças comumente atribuídas ao mercado secundário.

Esses aspectos trazem desafios adicionais aos reguladores, visto que os mercados secundários de radiofrequências podem ser estruturados a partir de diferentes desenhos alocativos. Dentre tais possibilidades, a literatura especializada tem apontado três alternativas: (i) o laissez-faire, com mínima intervenção estatal; (ii) o de corretagem, com preços orientados a custos, e; (iii) o Licenciamento de Acesso Indireto Autorizado com incentivos (Leilões).

Um primeiro ponto a ser destacado é que estes mecanismos alocativos apresentam, sob determinadas circunstâncias, vantagens e desvantagens. Um segundo ponto é que o desenvolvimento de mercados secundários de espectro encontra-se em estado embrionário, até mesmo em economias com mercados de telecomunicações bastante sofisticados. Isso significa haver carência de evidência empírica que possa nortear a decisão do regulador.

Na ausência de evidência empírica, acadêmicos e especialistas estão recorrendo a simulações computacionais sobre a eficiência relativa desses mecanismos. Para tanto, faz-se necessária a formulação de modelos de economia computacional baseada em agentes (ACE), parametrizados para simular sistemas evolutivos, com agentes interativos autônomos no mercado secundário de radiofrequências.

Esse método de simulação tem o potencial de auxiliar no desenho normativo do novo mercado e oferecer intuições acerca do seu funcionamento e do comportamento dos agentes. Essa é uma agenda de pesquisa onde temos envidado esforços. O objetivo é buscarmos intuições econômicas que possam contribuir para o desenho de uma política regulatória para o setor de telecomunicações cada vez mais eficiente e menos invasiva.

Remédios antitruste – Conceito e aplicação

Fernando Boarato Meneguin

Sabe-se que os atos de concentração (AC) podem gerar tanto efeitos positivos quanto negativos para a economia. Entre os pontos positivos, pode-se citar ganhos de escala com aumento de produtividade, propiciando inovação e melhoria da qualidade dos produtos. No entanto, a concentração também pode gerar efeitos deletérios, como aumento dos preços finais aos consumidores em face de uma diminuição da competitividade.

Uma vez que podem existir ganhos de eficiência em determinada concentração, a autoridade antitruste, ao analisar um AC, deve sopesar custos e benefícios e decidir se aprova o ato incondicionalmente, se o rejeita integralmente, ou ainda se adota uma solução intermediária. Nesse caso, um meio termo entre aprovação e rejeição pode ser recomendado de maneira que se eliminem os aspectos negativos à concorrência, mas não se prejudiquem potenciais ganhos de eficiência. Essa solução intermediária é alcançada pelo uso de remédios antitruste.

Apesar de a expressão remédios antitruste não aparecer literalmente na Lei nº 12.529, de 2011, os remédios estão implícitos no âmbito das atribuições do Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), conforme art. 61 da Lei antitruste:

Art. 61. No julgamento do pedido de aprovação do ato de concentração econômica, o Tribunal poderá aprová-lo integralmente, rejeitá-lo ou aprová-lo parcialmente, caso em que determinará as restrições que deverão ser observadas como condição para a validade e eficácia do ato.

§ 1º O Tribunal determinará as restrições cabíveis no sentido de mitigar os eventuais efeitos nocivos do ato de concentração sobre os mercados relevantes afetados.

§ 2º As restrições mencionadas no § 1º deste artigo incluem:

I – a venda de ativos ou de um conjunto de ativos que constitua uma atividade empresarial;

II – a cisão de sociedade;

III – a alienação de controle societário;

IV – a separação contábil ou jurídica de atividades;

V – o licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual; e

VI – qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

Os incisos I, II e III do parágrafo segundo transcrito integram o que na literatura se convencionou chamar de remédios estruturais, pois implicam alterações permanentes na alocação de direitos e ativos. Há também outra classificação usual na literatura: são os chamados remédios comportamentais. Nesse caso, são determinações que se relacionam com a atividade interna da empresa, com obrigações de fazer e não fazer, como a adoção de compromisso de não discriminação nos negócios com outras empresas, proibição de assinatura de contratos com cláusula de exclusividade, medidas que incrementem transparência nos negócios, entre outras. Segundo o Guia Remédios Antitruste[1], publicado pelo Cade, os remédios comportamentais “consistem em obrigações de práticas comerciais, financeiras ou econômicas das partes envolvidas no AC, englobando ou não ativos diretamente afetados por ele, nos mercados relevantes relativos à operação”.

Há na doutrina internacional, algumas recomendações para que os desenhos de remédios antitruste sejam eficientes, no sentido de que mitiguem as preocupações concorrenciais sem custos de monitoramento alto e sem comprometer as sinergias geradas pelos ACs. O Merger Remedies Guide[2], publicado em 2016 pela International Competition Network (ICN), apresenta estudo detalhado sobre o tema. Em síntese, para uma perfeita adequação do remédio, primeiramente é necessário um completo entendimento do real dano à concorrência decorrente do AC. Essa fase preliminar é indispensável para se atingir remédio apropriado, que seja proporcional ao dano, de maneira que os efeitos colaterais e os custos impostos estejam no menor patamar possível. Para que o remédio seja efetivo, fatores como o impacto no ambiente competitivo, a tempestividade do remédio e a duração da sua vigência, a facilidade de sua aplicação e de seu monitoramento, bem como a avaliação dos riscos inerentes são itens fundamentais.

O Departamento de Estudos Econômicos do Cade publicou o Documento de Trabalho nº 02/2020 – “Remédios antitruste no Cade: uma análise da jurisprudência”[3], que apresenta profícua pesquisa sobre o tema. Nesse texto, apresenta-se levantamento realizado no período de 2014 a 2019 acerca dos casos cuja decisão final do Tribunal Administrativo estabeleceu restrições no sentido da adoção de remédios concorrenciais por meio da celebração de Acordos em Controle de Concentrações (ACCs). A constatação foi que, nesses seis anos, houve 36 atos de concentração nessa situação, conforme Gráfico I a seguir:

Cabe lembrar que, além dos remédios serem aplicados no âmbito de um ACC, eles também podem ser designados de forma unilateral pelo Tribunal do Cade ou ainda integrar um Termo de Compromisso de Cessação (TCC).

Um caso atual e bastante divulgado na mídia em que houve a aplicação de remédios antitruste foi a fusão da Localiza com a Unidas, primeira e segunda maiores empresas respectivamente de locação e gestão de frota de veículos do país.

O caso foi decidido pelo Tribunal Administrativo do Cade (Ato de Concentração nº 08700.000149/2021-46), em que houve maioria pela aprovação da incorporação das ações da Unidas pela Localiza.

Na análise, considerou-se a existência de três mercados relevantes: locação de veículos; gestão e terceirização de frotas; e venda de veículos usados. Uma das principais preocupações foi a sobreposição horizontal que seria resultante da operação no mercado de locação de veículos. Segundo terceiros interessados, a empresa resultante da fusão deteria uma escala significativa que lhe conferiria vantagens competitivas significativas frente aos demais concorrentes, inclusive quanto ao poder de barganha para aquisição de veículos.

Assim, considerando benefícios e custos da fusão para o ambiente concorrencial, a aprovação da operação, no âmbito do Tribunal Administrativo, se deu condicionada à celebração de ACC contendo um robusto pacote de remédios estruturais e comportamentais, que, segundo o Tribunal, afastam preocupações concorrenciais apontadas na instrução do ato de concentração e mitigam potencial exercício abusivo de poder de mercado.

Entre os compromissos acordados com o Cade, alguns pontos são os seguintes: desinvestimento em número de veículos para locação, considerando as características específicas de vários municípios e aeroportos; encerramento de cláusulas de não concorrência com outras marcas; comprometimento comportamental de não realizar novas aquisições para locação de veículos durante o período de três anos; e alienação da marca Unidas.

Percebe-se assim que as intervenções pactuadas procuram diminuir o exercício de poder de mercado pela empresa resultante do AC e, assim, diminuir a probabilidade de aumentos de preços após a operação.

Em conclusão, conforme explicitado pelo Guia Remédios Antitruste do Cade: “os remédios devem mitigar o potencial prejuízo ao ambiente concorrencial decorrente da operação, restaurando as condições de rivalidade e de entrada presentes no cenário pré-operação”.

Por fim, o Guia também deixa claro que não cabe aos remédios corrigir problemas concorrenciais pré-existentes e, se os remédios não conseguirem sanar potenciais prejuízos ao ambiente concorrencial em face de um AC, o recomendável é a reprovação da operação.


[1] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-remedios.pdf

[2] https://www.internationalcompetitionnetwork.org/wp-content/uploads/2018/05/MWG_RemediesGuide.pdf

[3] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n02-2020-remedios-antitruste-no-cade-uma-analise-da-jurisprudencia.pdf

FERNANDO BOARATO MENEGUIN. Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Consultor Sênior da Charles River Associates e Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

Algumas reflexões sobre o mercado relevante na economia digital: uma nova agenda de pesquisa

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Pensar nunca foi uma tarefa fácil. Temos sempre escrito e feito menção incansável ao ensinamento de Albert Camus no sentido de que “[p]ensar é reaprender a ver, a ser atento, a dirigir a própria consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado,”[1]de tal modo que toda vez que se identifica rupturas paradigmáticas que modificam totalmente a forma como a humanidade se vê no mundo, há um inegável impacto na sociedade, na economia e, também nas leis que compõem os ordenamentos jurídicos. Assim, tem ocorrido com o conceito de mercado relevante que foi elaborado no âmbito da teoria antitruste sob o prisma de uma economia analógica, bastante diferente da realidade econômica (digital) como a que vivemos hoje.

Diante dessa nova economia digital, muitos dos pilares do direito antitruste precisam ser repensados e analisados, de modo a verificar se as estruturas legais que existem hoje, criadas no âmbito de uma economia analógica, são suficientes e eficazes para lidar com os novos tempos.

Para relembrar, o mercado relevante é um conceito que envolve duas dimensões: dimensão produto e dimensão geográfica. A dimensão produto está associada com a substitutibilidade entre os bens e a dimensão geográfica é representada pelo locus geográfico onde a concorrência se dá.

Estas duas dimensões são clássicas e são muito bem aplicadas para bens e serviços maduros que são negociados em ambientes não influenciados diretamente pela economia digital. O exemplo clássico que vem à mente é o do cimento que, segundo a jurisprudência do CADE, tem a sua dimensão produto como sendo o próprio cimento não havendo substitutos, e tem como dimensão geográfica o raio de 500 km a partir da cimenteira.

No entanto, o que acontece quando a economia não é mais só física? Quais são os pilares que sustentam uma economia digital e como o direito antitruste deve se posicionar diante de uma economia mista – física e digital? Pensemos.

Atualmente, a economia digital está inserida em todos os mercados de produtos físicos existentes, e nos mercados de produtos da nova economia, que são produtos definidos por mudanças rápidas e contrastes acentuados[2], conforme definição apresentada por Charles Alexander[3].

A economia digital atua produzindo bens e serviços totalmente digitais e viabilizando a comercialização dos produtos físicos em lugares que não eram economicamente viáveis. Três situações distintas podem acontecer: (i) mercados de produtos físicos sem substitutos digitais; (ii) mercados de produtos físicos com substitutos digitais; e (iii) mercados de produtos somente digitais.

Adicionalmente, os produtos digitais e físicos podem ser vendidos por meio de: (i) plataformas digitais com centro de distribuição; (ii) plataformas digitais de produtos digitais; (iii) lojas físicas de venda de produtos digitais; e (iv) lojas físicas de vendas de produtos físicos.

No mercado de bens físicos que não encontram substitutos digitais, como é o caso de bens de engenharia pesada, as dimensões produto e geográfica dos seus mercados relevantes pouco se alteram, pois, ainda que o acesso à informação de novos produtos tenha se ampliado para os consumidores com a revolução digital, se este desenvolvimento não for capaz de reduzir os custos de transporte e/ou de internalização de forma significativa, não é o fato do consumidor identificar outras marcas de produtos em outras localidades que garantirá que este produto seja um substituto efetivo. Nesse caso, o custo do transporte da mercadoria é um fator determinante para a definição do mercado relevante.

No mercado em que os produtos físicos possuem substitutos digitais, o advento da economia digital pode afetar a dimensão produto quando os produtos da economia digital são substitutos dos produtos físicos tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta e, também podem afetar a dimensão geográfica quando o consumidor tem a possibilidade de consumir os dois bens em um determinado locus geográfico.

Diz-se que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da demanda quando o consumidor é indiferente entre consumir um ou outro bem. (ex. este é o caso do livro e do e-book) e se diz que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da oferta quando a empresa consegue intercambiar a produção de um bem pelo outro sem que isso se torne economicamente inviável.  Os produtos digitais e físicos serão consumidos dentro do mesmo locus geográfico sempre que o custo do consumidor para consumir um ou outro bem não inviabilize a demanda do consumidor pelo bem.

Define-se a dimensão geográfica dos produtos físicos como sendo o raio em que o consumidor está disposto a se deslocar a partir da sua origem para adquirir o bem. Vale mencionar que a disposição a se deslocar do consumidor está associada com o custo para a realização desta aquisição.

A dimensão geográfica dos produtos digitais, no entanto, não envolve qualquer raio para aquisição, pois o consumidor precisa apenas adquirir o produto instantaneamente em seu computador ou smartphone.

Portanto, para produtos físicos que tenham substitutos digitais, a economia digital ampliou as dimensões produto e geográfica, chegando o produto físico, em alguns casos, a ser eliminado do mercado. O mercado de formulários e darfs físicos é um exemplo de como um produto físico foi extinto em detrimento de um substituto digital. Isto aconteceu para todos os serviços públicos que exigem pagamentos e atestados públicos. Para estes mercados, a dimensão geográfica perdeu a sua efetividade, pois passou a ser todo o mundo onde houver internet e equipamentos eletrônicos que permitam a sua conexão.

Por fim, no mercado de produtos digitais que não encontram produtos físicos como substitutos, a única dimensão do mercado relevante que faz sentido analisar é a dimensão produto.

No limite, o que se verifica é que o avanço da economia digital tem tornado sem eficácia a análise da dimensão geográfica do mercado relevante quando os produtos digitais encontram ou não substitutos físicos.

No entanto, para os produtos físicos que não encontram substitutos na economia digital, as dimensões produto e geográficas continuam relevantes e as suas alterações dependerão do diferencial de desenvolvimento digital existente entre as regiões do mundo. Se os ganhos da economia digital em termos de custo afetarem igualmente todos os mercados físicos no mundo, as dimensões não se alteram, pois “pau que dá em Chico dá em Francisco”. No entanto, se a economia digital afetar mais algumas localidades do que outras, os mercados relevantes daquelas localidades em que se apropriarem menos do ganho digital tenderá a se ampliar comparativamente com as demais regiões.

A lição que fica é a de que em uma economia mista – analógica e digital – é inquestionável que as autoridades antitrustes do mundo devam avaliar em que mercado o produto, objeto de avaliação, está inserido (puramente físico, físico e digital ou puramente digital) e, conforme a sua substituibilidade, adotar um dos critérios, adequando os seus conceitos diante da nova realidade digital que se impõe. O direito antitruste não pode fechar seus olhos para as transformações sociais (novo paradigma da tecnologia da informação), sob pena de se perder a própria essência do que se busca proteger. Estejamos atentos!


[1] CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman. 9.ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 38.

[2] “Yet even as the lights are dimming in some old-line industries, technology is spawning boundless opportunities in such esoteric fields as microelectronics, lasers, fiber optics and genetic engineering.” [ALEXANDER, 1983].

[3] ALEXANDER, Charles P. The new economy. Time. May 30, 1983. Disponível em: The New Economy – TIME.

O controle empresarial externo no Direito da Concorrência

Angelo Prata de Carvalho

É uma grande alegria compor o corpo de colunistas do Web Advocacy, e, para a coluna de estreia, tratarei de um assunto de grande relevância para o controle de concentrações que conta com importantes intersecções com o Direito Societário: o controle empresarial externo. Não obstante a sua relevância tanto para o Direito da Concorrência quanto para o Direito Societário, o controle externo ainda carece de critérios dogmáticos consistentes que sejam capazes de identificar grupos econômicos e, ao mesmo tempo, não desnaturem modelos de negócio legítimos e que não instituam direção unitária.

Isso porque, diante da inventividade dos agentes econômicos e da acelerada dinâmica dos mercados, a efetividade do controle prévio de concentrações depende fundamentalmente da existência de ferramentas de análise capazes de dar efetividade ao pricípio da primazia da realidade sobre a forma no Direito da Concorrência. Diante desse cenário, é preciso que sejam desenvolvidos critérios capazes de minimamente verificar a ocorrência do fenômeno, sem que, de um lado, sejam prejudicados modelos de negócio baseados na cooperação interempresarial, e, de outro, se instaure verdadeiro ambiente de irresponsabilidade organizada[1].  

O poder econômico, nesse sentido, não está limitado formalmente aos contornos do Direito Societário, tendo em vista que arranjos societários tradicionais têm dado lugar a arranjos contratuais complexos por meio dos quais, não obstante a conformação aparentemente paritária da relação, são estabelecidos vínculos de dependência e virtude dos quais uma das partes detém fundamentalmente o controle sobre a atividade financeira da outra. Não é sem motivo que, no âmbito da Resolução n. 2/2012 do CADE, a definição de grupo econômico envolve “as empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo”.

            O próprio CADE reconhece, por conseguinte, que os grupos econômicos se estruturam por formas distintas daquela verificável na titularização de participações societárias, notadamente por meio do chamado controle não-societário ou externo. Daí dizer Fábio Konder Comparato que, nesses casos, “o controlador […] não é necessariamente membro de qualquer órgão social, mas exerce o seu poder de dominação ab extra[2]. É preciso, pois, verificar a partir de que momento a influência fática pode traduzir-se em poder de controle, com todos os efeitos jurídicos daí decorrentes, sobretudo no que diz respeito aos efeitos concorrenciais.

                   Evidentemente que nem toda autoridade ou influência externa causada por dependência se traduz em controle externo, na medida em que tais elementos podem fazer parte do próprio modus operandi de alguns negócios empresariais nos quais, não obstante, as partes mantêm suas esferas de autonomia. Por certo, o controle externo não consiste em mera influência ou mera autoridade, mas sim em poder de dominação por meio do qual um determinado agente econômico pode definir a política financeira de uma dada sociedade.

                   A convivência do fenômeno da autoridade com a autonomia das partes contratantes é fenômeno comum em contratos empresariais de colaboração (como a franquia, a distribuição, dentre outros), nos quais as partes se engajam em relação cooperativa bastante intensa, muitas vezes caracterizada pela dependência econômica e por certa ingerência administrativa de uma parte sobre a outra, porém ainda mantendo interesses contrapostos[3].

                   Acontece que, a partir do momento em que a dependência econômica se traduz em dominação sobre a política financeira da sociedade, pode-se obter situação típica de grupo econômico em que, diante da unidade da política financeira das contratantes, verifica-se verdadeira direção unitária[4]. Assim, o controle externo não se configura simplesmente em virtude da existência de ingerência de uma sociedade sobre a outra ou diante de situação de dependência econômica, mas sim quando uma das partes tem o poder de vincular as decisões sobre a política financeira da controlada, tendo em vista que: (i) a influência administrativa não necessariamente vincula a gestão financeira e, por conseguinte, pode modificar tão somente questões periféricas aos planos de ação mais centrais da sociedade; e (ii) a definição de estratégias administrativas não necessariamente importa em controle, mas tão somente pode levar a relação de dependência econômica que, como já se demonstrou, não é suficiente para instaurar controle externo e é parte integrante dos contratos empresariais de cooperação (nomeadamente os relacionais ou híbridos) de maneira geral[5].      

                   Observe-se, por conseguinte, que a identificação de controle externo para a finalidade de configuração de grupo econômico, por mais que dependa fundamentalmente da constatação de indícios concretos de dominação financeira, não deve ser pautada por análises casuísticas que eventualmente concluam pela existência de controle não-societário em qualquer relação que produza dependência econômica. Pontua Champaud, nesse sentido, que pode ser interessante a estruturação de um sistema de indícios de dependência destinados a evidenciar manifestações efetivas da dominação econômica. Isso porque, segundo o autor, a mera dependência ou a existência de algum grau de subordinação de uma sociedade perante outra deve no mínimo constituir indício para que se possa investigar se a sociedade “dominada” faz parte de grupo econômico, porém não se trata de elemento suficiente para tanto[6].

                   Dessa maneira, indício relevante de dependência econômica seria justamente a existência de arranjo contratual por meio do qual a sociedade dominante determina a escolha dos produtos ou condições de produção da sociedade dominada, situação que se confirma mediante a análise das origens, as condições de exercício e das perspectivas de implementação dessa sujeição. Acontece que a existência de contratos especificamente voltados à instauração de relação de dependência é apenas exemplo mais explícito de fenômeno que pode ocorrer no âmbito de cláusulas específicas que fixem margens de comercialização, regras de ação comercial, obrigações de recorrer a prestadores de serviço específico (como, por exemplo, a uma determinada instituição financeira), regras de conduta financeira específica e, em última análise, objetivos relacionados ao orçamento, aos investimentos e às finanças da sociedade subordinada[7].

                   Seja no Direito da Concorrência, seja no Direito Societário, é fundamental que se construa critério operacional de identificação e definição do controle externo, que deve consistir na definição da política financeira da empresa controlada, a refletir a dominação sobre as decisões verdadeiramente estratégicas. Assim, para além da menção ao controle externo na Resolução n. 2/2012 do CADE, faz-se necessária reflexão aprofundada sobre os critérios a serem adotados para a identificação de grupo econômico, de tal maneira que, para os efeitos pretendidos pelo Direito da Concorrência, é importante que no mínimo o controle externo seja constatado a partir de parâmetro claro que tanto seja capaz de constatar as diversas formas de dominação que possam vir a existir quanto seja sensível às funções econômicas dos negócios jurídicos analisados.


[1] TEUBNER, Gunther. Networks as connected contracts [edição eletrônica]. Oxford: Hart Publishing, 2011.

[2] COMPARATO, Fabio Konder SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio e Janeiro: Forense, 2005. p. 89.

[3] PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Os contratos híbridos como categoria dogmática: características gerais de um conceito em construção. Revista Semestral de Direito Empresarial, n. 19, pp. 181-229, jul./set. 2016.

[4] ANTUNES, José Engrácia. Os grupos das sociedades: estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. Coimbra : Almedina, 2002. pp. 116-117.

[5] Ver: PRATA DE CARVALHO, Angelo. Controle empresarial externo: a intervenção sobre a política financeira como critério de responsabilização do controlador. Rio de Janeiro: Processo, 2020.

[6] CHAMPAUD, Claude. Recherche des critères d’appartenance à um groupe. In: _______. Droit des groupes de sociétés. Paris: Librairies techniques, 1972. pp. 29-36.

[7] CHAMPAUD, Op. cit., 1972, pp. 29-36.