“Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio”[1]

Amanda Flávio de Oliveira & Sandro Leal Alves

Há quatro anos, a ANS revogava a então recentemente publicada Resolução Normativa nº433/2018, que estabelecia, entre outros, parâmetros para a cobrança de franquia e coparticipação. A norma entraria em vigor apenas no fim de dezembro daquele ano, mas foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A então Ministra Presidente, no exercício do plantão do mês de julho, atendeu o pedido de medida cautelar em Ação de Descumprimento Fundamental promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O tema “Mecanismos Financeiros de Regulação”, que engloba coparticipação e franquia, talvez seja um dos mais debatidos na história da saúde suplementar, ao longo das duas décadas de existência da ANS. Desde 2005 ele já foi objeto de duas Consultas Públicas, nos anos de 2006 e 2017, uma Câmara Técnica, no ano de 2012, um Grupo de Trabalho, em 2015, e um Grupo Técnico que deu origem à RN nº 433/18, que se reuniu desde julho de 2016. Todas as discussões foram públicas, com a participação de todos os agentes interessados no tema. Foram produzidos muitos estudos, notas técnicas e até mesmo Análise de Impacto Regulatório (AIR), prévia à publicação da Resolução Normativa n. 433/2018, mencionada. Sublinhe-se que apenas em 2019 a exigência de prévia AIR passou a ser conteúdo de determinação legal às agências, com a publicação das Leis n. 13.848 e 13.874. Mesmo sem obrigatoriedade de assim agir, a Agência do setor achou por bem empreender AIR sobre o tema.

Conhecer a trilha da produção e desfecho da então Resolução n. 433/2018, da ANS, é suficientemente frustrante para todos que se debruçam sobre o tema do aprimoramento regulatório em saúde.

Em primeiro lugar, porque debate não faltou. Tampouco abertura à contribuição dos interessados. Em segundo lugar, porque ele revela a verdade inquietante a todos os que vislumbram no instrumento da AIR um procedimento de racionalização e melhoria de normas regulatórias: de nada adianta fazê-lo, por melhor que ele seja, tecnicamente falando, se o Judiciário suspende os efeitos de seus resultados liminarmente, no caso, com efeitos definitivos, vez que essa decisão gerou como consequência a revogação da norma pela própria agência. Por fim, a decisão do STF colocou mais um obstáculo e ponto de insegurança no longo caminho de definição dos limites do poder normativo das agências: se elas foram criadas para serem braços independentes e técnicos do Poder, há que se definir com segurança se haverá ou não deferência às suas normas que não contenham fragilidade formal que as invalidem.

Do ponto de vista técnico, o assunto segue em aberto, e quem está perdendo são os excluídos do mercado (leia-se, as pessoas com menor poder aquisitivo). É que a falta da regulação, no caso, afugenta esses potenciais consumidores do mercado, dado o fato de que um produto mais acessível deixa de ser oferecido com maior vigor. A insegurança jurídica, em um país obcecado pela regulação, significa, em casos assim, redução de oferta.

Na trilha da história da regulação de coparticipação e franquia, a incompreensão vem ganhando de lavada. Trata-se de dois mecanismos comumente utilizados em outros ramos do seguro no Brasil, e o seguro de automóveis é um exemplo à mão. Transportado para o mercado de saúde, o argumento de que “saúde não é mercadoria” vem preponderando, superficializando o debate e revelando uma confusão jurídica e econômica importante.

É que a norma da ANS não regula saúde. Nenhuma norma da ANS regula saúde. A norma referida, assim como todas as normas administrativas por ela produzidas regulam a prestação do serviço de saúde suplementar, um mercado expressamente autorizado pela Constituição de 1988 e facultado à iniciativa privada. Nesse ponto, tem-se, sim, mercadoria, negócio, empresas, lucro. O exercício dessa atividade econômica, no entanto, não pode se dar de forma irrestritamente livre, nos termos do ordenamento jurídico. E é aí que entra a regulação, a Agência do setor, sua atribuição normativa.

Por outro lado, o plano de saúde funciona nas mesmas bases técnicas e atuariais que o seguro de automóvel, seguro de navio, seguro de plataformas de petróleo, seguro rural, seguro de crédito etc. Há uma mutualidade que se solidariza no risco. Muitos indivíduos contribuem com o pagamento de mensalidades para que aqueles que precisarem utilizar os serviços possam fazê-lo. Há necessidade de garantias financeiras das operadoras, reservas técnicas, ativos garantidores para garantir a solvência da operadora. Os preços são baseados em notas técnicas atuariais segundo critérios científicos para o cálculo de forma a garantir que sejam suficientes para honrar com os compromissos futuros. Os eventos devem ser aleatórios para que o sistema funcione. Caso contrário não seria seguro, mas financiamento.

Ainda na comparação entre o plano de saúde e os demais ramos do seguro, duas diferenças chamam a atenção. Em primeiro lugar, enquanto em todos os seguros é comum, e até mesmo indispensável, que a seguradora tenha liberdade para realizar a sua avaliação e aceitação de riscos, processo conhecido como subscrição, na saúde não há essa liberdade, desde que a Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998) determinou que ninguém pode ser impedido de participar de planos em razão da idade, ou da condição de pessoa portadora de deficiências, como prevê o art. 14. Em segundo lugar, outro instrumento muito utilizado no setor de seguros é a determinação da importância segurada no contrato. Essa limitação regula o risco a que a seguradora está disposta a correr. Na saúde suplementar, a Lei n. 9.656/1998, em seu art. 1º, determina que o Plano Privado de Assistência à Saúde é a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecidos, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde. Nos dois casos acima, os fundamentos do mutualismo, que fornecem a base técnica para o funcionamento do setor de seguros, foram rearranjados para acomodar a preocupação do legislador com a possibilidade de as operadoras de planos de saúde selecionarem os bons riscos (cream-skimming) ou interromperem a prestação do serviço ao longo de um tratamento ou internação, por exemplo.  Evidentemente, essa opção traz consequências para a precificação, realizada com base em critérios técnicos-atuariais, e para o negócio em si.

Nos Estados Unidos, país em que a prática do cost-sharing é mais difundido, as seguradoras voluntariamente reduziram ou eliminaram as coparticipações em diversos procedimentos associados à Covid19 e tratamentos relacionados.[1] Não custa lembrar que é do interesse da operadora manter seus beneficiários saudáveis, evitando complicações de saúde que evoluiriam para um cenário de maiores despesas. Muitas seguradoras utilizaram os mecanismos de incentivos à sua disposição para estimular a vacinação contra a covid19.

No Brasil, a coparticipação é uma tendência no mercado de saúde suplementar e está presente em praticamente 50% dos planos. Sua existência contribui para equilibrar as contas e os reajustes das despesas médicas, pois os custos são divididos entre as operadoras e os beneficiários. Ou seja, na coparticipação a mensalidade é menor, mas o usuário paga um valor à parte em cada procedimento, como consultas e exames. O uso mais consciente e o combate a fraudes são outras importantes vantagens. Mas a oferta de um produto mais acessível revela-se um valor importante pelo seu caráter inclusivo: mais pessoas podem se inserir no mercado consumidor.

A franquia agregada anual, muito comum nos EUA (deductibles), consiste na divisão de risco entre a operadora e o consumidor com base em um valor contratado. Até chegar a este valor, as despesas são de responsabilidade do beneficiário e a partir desse limite, ficam sob responsabilidade da operadora. No mercado americano, o limite máximo anual do dedutível é limitado a US$ 8.700,00. [2] No Brasil, o que inibe esse tipo de plano é o fato de estar previsto, na Resolução CONSU nº 08/1998, que a incidência de coparticipação e franquia não pode configurar um fator restritor severo ao acesso à cobertura, sem, contudo, definir ou conceituar o que seria esse fator restritor severo. A referida Resolução, feita há mais de duas décadas, restringiu-se a conceituar estes mecanismos e afirmar: i) que os mesmos não poderiam representar o custeio integral do procedimento; ii) que a coparticipação só poderia incidir em valor fixo nas hipóteses de internação, sem prever ou estabelecer qualquer limite.

A Resolução da ANS, de curta vigência, previa um limite máximo de 30% para incidência de coparticipação. O objetivo era conceder segurança e objetividade ao tema, estimulando o mercado e esse tipo de produto. Reitere-se, a medida concluiu longo processo de debate e uma AIR.

Se saúde não tem preço, ela tem custo. A oferta de planos de saúde no mercado agrega bem-estar e dignidade às pessoas e é, sim, mercadoria no sentido estrito do termo, ou seja, um produto ou serviço suscetível de ser comprado ou vendido no mercado. A saúde individual não é transacionável, por óbvio. Mas o acesso aos serviços de saúde por meio da saúde suplementar está sujeito à lei da demanda e da oferta. E não é possível revoga-la pois as pessoas desejam acesso aos planos, os médicos precisam ser remunerados por seus serviços e as operadoras precisam buscar lucro e não prejuízo. Ou seja, o conjunto de serviços que integra toda a cadeia produtiva está sujeito às forças de mercado, em um mercado já extremamente regulado. Na pressa das decisões oficiais, sacrifica-se o acesso a esse mercado. Ainda está em tempo. Retomemos, com racionalidade e parcimônia, um tema de interesse de todos que se indignam com a falta de acesso à prestação de saúde de qualidade a pessoas de padrão aquisitivo menor.

REFERÊNCIAS

Robert H. Brook, John E. Ware, William H. Rogers, Emmett B. Keeler, Allyson Ross Davies, Cathy Donald Sherbourne, George A. Goldberg, Kathleen N. Lohr, Patti Camp, and Joseph P. Newhouse. The Effect of Coinsurance on the Health of Adults: Results from the RAND Health Insurance Experiment. Santa Monica, Calif.: RAND Corporation, R-3055-HHS, December 1984.

Amitabh Chandra,A, Flack, E and Obermeyer, Z. (2022). The Health Costs of Cost-sharing. National Bureau of Economic Research Working Paper 28439


[1] https://www.ahip.org/news/articles/health-insurance-providers-respond-to-coronavirus-covid-19

[2] https://www.federalregister.gov/documents/2021/05/05/2021-09102/patient-protection-and-affordable-care-act-hhs-notice-of-benefit-and-payment-parameters-for-2022-and.


[1] As afirmações constam do voto da Relatora na ADPF 532-MC.

Licença Menstrual Remunerada: uma medida urgente de saúde das trabalhadoras brasileiras

Vanessa Vilela Berbel

Os direitos reprodutivos da mulher são pauta recorrente do Poder Judiciário e da política nacional e internacional. Em 2022, enquanto a Suprema Corte Americana, em contraposição ao entendimento consolidado desde 1973 a partir do caso Roe vs. Wade, declarou a inexistência de um direito constitucional ao aborto pautado na Décima Quarta Emenda e o chefe do Poder Executivo brasileiro vetava dispositivos da lei de criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (Lei 14.214/21), que autorizava a distribuição gratuita de absorventes pela rede pública de saúde, o governo espanhol, em caminhos opostos, propunha a criação de licença menstrual remunerada às trabalhadoras.

Por trás da proposta da criação da licença menstrual remunerada às trabalhadoras na Espanha há a organização político-partidária das mulheres do Unidas Podemos, associada a uma representatividade feminina do atual governo espanhol, composto por 14 (quatorze) mulheres e 08 (oito) homens em cargos ministeriais; o fato reforça a importância de temas que já abordamos em colunas anteriores, como o combate à violência política eleitoral e a importância da participação política das mulheres.

Em relação à licença menstrual remunerada, há também, por detrás desta decisão, um governo socialista, que alinhou, à sua pauta social-democrática, as bandeiras ecologistas e feminista, como afirmado durante o 40⁰ Congresso do Partido Socialista Operário Espanhol, ocorrido em Valência, no ano de 2021. Nenhum partido é obrigado a levar o socialismo em seu nome, mas, se o faz, precisa se alinhar a pautas protetivas do operariado e aceitar que compete ao Estado a missão de gerenciar as desigualdades sociais. O governo espanhol está, portanto, coerente com seu projeto.

Mas nada impede que pautas como a licença menstrual remunerada também caibam em governo não socialistas, ou seja, liberais. Como lembraram Amanda Flávio e Adriano Paranaíba na coluna “Liberalismo, esse desconhecido”, o liberalismo está longe de ser a ameaça do bem -estar social; trata-se de uma doutrina política em que se encontram diferentes escolas de pensamento, cujo ponto fulcral entre elas está “no enaltecimento da pessoa humana e a sua proteção contra os arroubos do Estado”. Neste conjunto, há diferentes matizes de pensamento sobre o quanto de Estado se é necessário aceitar.

Portanto, tudo é uma questão sobre quem deverá pagar a conta. O governo espanhol entendeu que as dores menstruais que, mensalmente, incapacitam para o trabalho diversas mulheres, devem ser repartidas pela sociedade. Segundo o Projeto de Lei Espanhol, caberia, à Previdência Social, remunerar o afastamento, em regra por três dias, às mulheres que precisam se ausentar durante o período menstrual. Poderia ser feita outra opção, obrigar o empregador a internalização este ônus, mas, a Espanha preferiu reparti-lo de outra maneira.

Hoje, no Brasil, os efeitos econômicos e sociais das dores menstruais são, via de regra, suportados exclusivamente pela trabalhadora, visto que a falta ao trabalho é apenas justificada por doença ou acidente e precisa ser sempre acompanhada de atestado médico. Menstruação não é uma doença e conseguir um atestado todo mês, além de certamente não ser bem compreendido pelo empregador acarretando sua demissão futura, será uma tarefa hercúlea em um sistema único de saúde congestionado. Repartir socialmente esse ônus parece ser uma boa medida para as mulheres e para toda a sociedade.

A Taxa de participação das mulheres no mercado laboral é baixa se considerarmos que somos nós a maioria da população brasileira. A parcela da população em idade de trabalhar (PIT) que está na força de trabalho, ou seja, trabalhando ou procurando trabalho e disponível para trabalhar, aponta a maior dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Em 2019, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade foi de 54,5%, enquanto entre os homens esta medida chegou a 73,7%.

São diversas as razões para a baixa incorporação da mulher ao mercado de trabalho: maternidade na adolescência ou pré-adolescência, carência de vagas em creches e pré-escolas, desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre os casais, dentre outras. Claramente, há que se pensar em medidas para integrá-las. Mas não só, essa internalização também deve ser acolhedora, proporcionando um ambiente de trabalho saudável e compatível com suas necessidades biológicas. E quem já teve o dissabor de ter que trocar de roupa após o vazamento de um absorvente ou sentir um quase desmaio durante o trabalho pelo cansaço absurdo dos sangramentos ou a contração da cólica, sabe bem o que precisa: ficar em casa.

É preciso avançar em uma incorporação e promoção menos segregada e estereotipada nos empregos e implantar medidas transversais voltadas para elevar a taxa de emprego feminino, incluindo condições mais favoráveis ao exercício e permanência no labor remunerado, dentre elas a licença menstrual remunerada.

MP do Ticket Alimentação: benefício para quem?

Marcelo Nunes de Oliveira

Na semana que passou o Congresso Nacional aprovou o texto da MP 1108/2022, que, dentre outras medidas, altera algumas regras do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, mais conhecido como ticket refeição ou alimentação.

A discussão do texto final foi cercada de polêmicas, em especial, quanto a três pontos: (i) possibilidade do trabalhador receber o valor em espécie; (ii) a proibição da chamada taxa negativa na negociação entre empregadores e empresas de meios de pagamentos eletrônicos; e (iii) a possibilidade do trabalhador efetuar a portabilidade do saldo do seu benefício para outra administradora.

O Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT foi instituído pela Lei 6.321/76 e regulado posteriormente pelo Decreto 05/1991, com o objetivo de melhorar as condições nutricionais e de qualidade de vida dos trabalhadores, a redução de acidentes e o aumento da produtividade, tendo como unidade gestora a Secretaria de Inspeção do Trabalho/Departamento da Saúde e Segurança no Trabalho.

Por meio do programa, os empregadores tributados com base no Lucro  Real podem deduzir do Imposto de Renda devido, a título de incentivo fiscal, entre outros, o valor correspondente à aplicação da alíquota do imposto sobre a soma das despesas de custeio realizadas no período em Programas de Alimentação do Trabalhador (PAT).

O Programa pode ser ofertado de diferentes formas: (i) manutenção de serviço próprio de refeições; (ii) distribuição de alimentos in natura; e (iii) convênios com entidades que fornecem ou prestam serviços de alimentação coletiva, desde que essas entidades sejam credenciadas pelo Programa e se obriguem a cumprir o disposto na legislação do PAT e na Portaria MPT 672/2021, condição que deverá constar expressamente do texto do convênio entre as partes interessadas. Nesta última categoria se enquadram as empresas emissoras de vales refeição e alimentação, geralmente ofertados por meio de cartões eletrônicos passíves de utilização nas redes credenciadas pelos respectivos arranjos de pagamento.

Contudo, a disponibilização do benefício por meios eletrônicos, formato prevalente no mercado, decorre de uma negociação entre empregadores e as empresas emissoras. Não raro – muito pelo contrário, nessas negociações as empresas emissoras dos cartões oferecem aos empregadores uma taxa negativa ou deságio sobre o valor do benefício contratado. Por exemplo, se um empregador possui um montante mensal de benefícios alimentação a pagar aos seus colaboradores de R$ 100.000 (cem mil reais), a administradora de cartões de benefícios pode oferecer esses benefícios por talvez R$ 95.000 (noventa e cinco mil reais), ou seja, com 5% de desconto sobre o valor nominal dos benefícios. Ora, como isso seria possível, considerando que a emissora ainda tem todos os custos administrativos e comerciais para emissão dos cartões, cadastramento da rede de estabelecimentos parceiros, dentre outros?

Simples: o custo de deságio, somado aos demais custos da operação e a margem dos emissores é repassada para a taxa de desconto cobrada dos estabelecimentos comerciais que aceitam esses cartões. Não por outro motivo as taxas de desconto para cartões de benefícios são consideravelmente mais elevadas do que as taxas de desconto de cartões de débito/crédito comuns. Segundo a nota Técnica nº 20/2019/DEE/CADE, que analisou aspectos concorrenciais em uma operação entre o Itaú e a Ticket Serviços S.A., enquanto a taxa média de débito e crédito girava em torno de 2,5%, nos vales alimentação/refeição esse desconto seria de aproximadamente 4,7%. Naturalmente, o custo da operação acaba sendo repassado para o preço dos alimentos adquiridos pelo trabalhador, ou seja, o desconto obtido pelo empregador na negociação com o emissor dos cartões de benefícios é compensado na forma de preços mais elevados aos trabalhadores, uma política “Robin Hood” às avessas.

 Essa é a falha de mercado que a MP 1108 busca endereçar, ao propor a proibição de “qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado” (art. 3º, I, da MP 1108/2022). O Texto aprovado pelo Congresso ainda acrescentou dois pontos adicionais: i) a possibilidade de saque do benefício em espécie após 60 dias do recebimento do benefício; e ii) a possibilidade de portabilidade do benefício para outra empresa administradora.

Sem dúvidas a proposta de proibição do deságio na contratação dos benefícios por parte dos empregadores tem potencial de reduzir o custo das taxas de desconto praticadas pelos arranjos de pagamento que atuam no mercado de benefícios alimentação/refeição. Contudo, são as mudanças inseridas pela Câmara dos Deputados – e também as que mais provocaram reações contrárias, aquelas que podem, de fato alcançar o objetivo de redução de custos via aumento da competição.

A primeira, que permite o saque integral dos recursos após 60 dias do crédito do benefício, viabiliza, ainda que via uma escolha intertemporal, uma competição entre o meio eletrônico e o dinheiro em espécie: usar o benefício imediatamente, com os custos embutidos; ou, aguardar um período de tempo para sacar o benefício em espécie e, com isso, ter maior barganha no momento da aquisição dos produtos de seu interesse.

A segunda medida, aquela que potencialmente mais interfere positivamente a competição no mercado, permite ao trabalhador fazer a portabilidade do benefício para outro cartão, como se fosse uma conta-salário. A portabilidade torna quase desnecessária a proibição da prática do deságio, já que a empresa emissora não tem a garantia de retenção do consumidor na sua rede – único meio de recuperar o deságio ofertado ao empregador. Além de inibir o deságio, a portabilidade fomenta a competição entre as administradoras dos benefícios por custo e também por qualidade, aspecto que abrange desde o atendimento ao usuário até a qualidade/diversidade da rede credenciada. Em sendo um mercado de dois lados, quanto maior a rede credenciada – fator que depende significativamente das taxas de desconto cobradas, mais atrativo é determinado emissor.

Contudo, ambas as medidas já são alvo de ataques, inclusive com menção a possibilidade de veto às duas alterações promovidas pelo Congresso.

A possibilidade de saque do valor em espécie após 60 dias é criticada pelo setor de comércio e serviços alimentícios, que teme a perda de até R$ 30 bilhões de recursos cativos para o setor. A portabilidade dos valores é atacada, de maneira genérica, como uma perda de direitos dos trabalhadores.

É importante se ter em mente que se trata de um direito e um benefício destinado aos trabalhadores, ainda que sujeito a críticas quanto à sua necessidade, já que poderia constituir parte do salário, embora não seja este o objetivo deste texto. Os interesses desse grupo de indivíduos deve nortear as discussões em detrimento de interesses de setores porventura “prejudicados” com a perda de demanda cativa ou com o aumento da competição, seja entre estabelecimentos comerciais, seja entre administradoras de benefícios.

Vale ressaltar, ainda, que os servidores públicos federais recebem o benefício, há muito anos, de maneira pecuniária. Ampliar as possiblidades de recebimento e administração dos benefícios alimentícios por parte dos trabalhadores é, antes de tudo, conferir maior liberdade para que possam utilizar um recurso que lhes é de direito, e com menor custo. O que for dito em sentido contrário tende a ser tão somente defesa de interesse corporativo travestido de virtude.

Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência? O caso da saúde suplementar

Sandro Leal Alves

  1. Introdução

O propósito desse artigo é avaliar a relação entre a regulação prudencial e a concorrência no mercado de seguros em geral, e o de saúde suplementar em particular. Busca-se apontar alguns caminhos e escolhas de políticas públicas quando dois objetivos são postos lado a lado. Como escolher entre objetivos igualmente desejáveis e aparentemente concorrentes entre si? Este parece ser o caso quando se pensa na regulação prudencial, que busca garantir a solvência de mercados que trabalham com riscos e a regulação da concorrência, que busca garantir diversidade e preços menores para os consumidores. A falta de regulação prudencial pode gerar insolvências e riscos sistêmicos enquanto a falta de concorrência leva a abuso de poder de mercado. Como escolher entre dois males?

Ao se criar licenças e requerimentos técnicos para entrada no mercado, elevam-se as barreiras à entrada, reduzindo a concorrência. Essa foi a opção adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar no início de sua regulação, no ano 2000. Naquele momento, com exceção das seguradoras, que já eram reguladas pela SUSEP, as demais operadoras não observaram regras prudenciais e tampouco se submetiam ao acompanhamento econômico-financeiro. Após 22 anos de regulação, o número de operadoras se reduziu de cerca de 2000 para algo em torno de 700 enquanto os preços dos planos de saúde seguem uma tendência crescente. Uma leitura rápida poderia levar ao entendimento de que preços elevados são consequência de uma concentração de mercado oriunda da regulação prudencial.  No entanto, para preservar a solvência do sistema é essencial que os preços sigam acompanhando a dinâmica peculiar da variação dos custos médico-hospitalares, acima dos índices de preços no Brasil e no mundo.[1]

O preço do plano de saúde depende evidentemente dos custos assistenciais e da própria estrutura do mercado. Tratei especificamente da precificação dos planos de saúde em coluna anterior.[2]Saindo das ciências atuariais e acrescentando microeconomia, sabemos que os preços de mercado dependem da estrutura do mercado, ou seja, das condições básicas (e elasticidades) de oferta e demanda. Um mergulho mais profundo vai nos mostrar que dependem também das características do produto, dos consumidores, da tecnologia (expressas na função de produção), da existência de economias de escala. Passaríamos então a uma análise do número de compradores e vendedores, o grau de diferenciação de produto, a estrutura de custos, integração vertical e as barreiras de entrada e saída. Não é objetivo deste artigo examinar as condições de organização industrial do mercado, mas chamar a atenção de que elas têm um papel fundamental na determinação do preço.

Nesse sentido, analisar as barreiras à entrada, em geral regulatórias, mas também derivadas das economias de escala, é fundamental para compreender a estrutura do mercado e a formação de preços. E dentre as barreiras regulatórias, as licenças e a regulação prudencial emergem como as principais formas de regulação de mercados que operam com riscos futuros como bancos, seguros e planos de saúde. Nesse segundo ponto que queremos focar.

  • Seguro e mutualismo

Uma breve exposição do mecanismo de funcionamento do seguro e da saúde suplementar é importante para compreendermos a importância da regulação prudencial. Sabemos que a exposição aos diferentes tipos de riscos faz parte da natureza humana. Antes mesmo do nascimento, já convivemos com o risco associado ao desenvolvimento do embrião até o momento do parto. Geralmente, os riscos geram “desutilidades” para os indivíduos na medida em que, na hipótese de sua materialização, impõem perdas físicas e monetárias para as pessoas. Desde a antiguidade, diante das incertezas e dos riscos, as comunidades desenvolveram maneiras de mitigar ou diluir este risco entre pessoas igualmente afetadas por sua ocorrência. Carregar o risco sozinho é um ato de coragem, mas não parece ser a atitude mais sensata sob o ponto de vista econômico, principalmente quando oportunidades de diluição se encontram disponíveis no mercado segurador.

O seguro é socialmente desejável por compartilhar riscos. Já que nem sempre é possível eliminá-los, muitas vezes é possível dividi-lo com outras pessoas que também se encontram na mesma situação. Diversificando o risco, ou seja, não colocando todos os ovos na mesma cesta, o indivíduo consegue reduzir a variabilidade da ocorrência do evento incerto tornando-o mais previsível. O mutualismo foi o termo cunhado da biologia para definir a cooperação entre indivíduos mediante a agregação de seus riscos. Na biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo.[3]

O alicerce para o funcionamento dos mercados securitários é o mutualismo. Neste mecanismo, há um grupo solidário com todos contribuindo com suas mensalidades/prêmios para um fundo mútuo comum. A contribuição individual custeia as despesas do próprio indivíduo (se necessário) e as de todas as pessoas do grupo que necessitarem. O seguro fornece, portanto, uma possibilidade de troca mutuamente benéfica ao reduzir o custo do risco para os segurados. Se a troca é voluntária, a sua efetivação é um jogo de soma positiva em que ambos os agentes ganham, melhorando sua situação inicial. O seguro permite que um agente avesso ao risco consiga transferi-lo, mediante o pagamento de um prêmio de risco, para um agente comprador de riscos que é a seguradora. [4]

Cabe ressaltar que o contrato de seguros é disciplinado no Código Civil dos artigos 757 a 802, estabelecendo as obrigações e direitos das partes que o subscrevem. No art. 757, é destacado que, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou à coisa, contra riscos predeterminados”. Ou seja, o segurador só se obriga pelos riscos que forem predeterminados no contrato, desde que receba o prêmio correspondente como condição fundamental para o atendimento do interesse legítimo do segurado (objeto do contrato de seguro) que incida sobre a pessoa ou a coisa (sobre bem material, patrimonial, de valor econômico).

A delimitação do risco é o DNA do seguro e fundamental para o equilíbrio financeiro da operação. Permite ao segurador medir o risco, taxar o prêmio, dimensionar sua responsabilidade e estabelecer as provisões técnicas pertinentes. Com isso, confere segurança jurídica e contratual, pois cabe ao gestor da mutualidade zelar para que os riscos cobertos sejam suscetíveis de indenização ou de pagamento do capital segurado. [5]

A relevância econômica do seguro é expressa em números. Em 2021, o mundo faturou US$ 6,8 trilhões em seguros, o Brasil estando na 17ª posição no ranking por países. A previsão é que o número mundial passe de US$ 7 trilhões em 2022. Mas, nesse ano, a taxa de inflação mundial e a queda do PIB vão trazer efeitos, sobretudo nas economias mais desenvolvidas.[6] A Tabela 1 apresentada a seguir mostra os dados de arrecadação do setor segundo ramos do seguro.

Fontes: DIOPS (ANS) – Extraído em 01/05/2022 SES (SUSEP) – Extraído em 14/07/2022. Elaboração CNseg.

  • O que é e a razão de ser da regulação prudencial

Guilaume e Rochet (2007) listam duas principais razões para que as seguradoras sejam submetidas à regulação prudencial. Em primeiro lugar, devido ao ciclo de produção invertido, ou seja, a seguradora recebe prêmios antecipadamente para posterior pagamento de indenizações, a gestão financeira da companhia pode ser incentivada a adotar comportamentos mais arriscados. Ocorre que o pagamento das indenizações contratadas pode ser prejudicado devido a imprudência da gestão, gerando externalidades negativas para os segurados.

O fluxo financeiro invertido acaba criando estímulo para um comportamento excessivamente arriscado na gestão. Em segundo lugar, a ausência de titulares de direitos (apólices) com poder de influência na gestão, faz com que essa dinâmica não termine até que um problema real de liquidez se revele. Neste caso, pode ser tarde demais para recuperar a empresa e honrar os compromissos contratados. Em suma, há uma dificuldade de os detentores de apólices controlarem o risco assumido pela gestão da seguradora.

Trata-se do conflito clássico de agência entre segurados e os proprietários de empresas seguradoras. O problema de assimetria de informação entre o agente e o principal suscita o comportamento típico de moral hazard. Nesse sentido, Jensen e Mackling (1976), definem a relação Principal-Agente como um contrato em que uma das partes (o principal) engaja a outra parte (o agente) a desempenhar algum serviço em seu nome, e que envolve uma delegação de autoridade para o agente. No caso em questão, o principal, que é o detentor da apólice (segurado), tem poucos mecanismos de monitoramento e incentivo para que o agente (seguradora) tome as melhores decisões sob o ponto de vista dele.

Diante dessa assimetria, o alinhamento de incentivos não ocorre e falências podem resultar da interação entre eles. Para controlar o risco de insolvência, surge a regulação prudencial que em síntese produz regras disciplinando o capital regulatório, as reservas, a alocação do capital da seguradora e de seus investimentos. Cada autoridade reguladora define suas regras de acordo com os objetivos de sua área de atuação.

No caso do sistema bancário, por exemplo, a regulação prudencial “estabelece requisitos para as instituições financeiras com foco no gerenciamento de riscos e nos requerimentos mínimos de capital para fazer face aos riscos decorrentes de suas atividades.  O gerenciamento de riscos e os requerimentos mínimos de capital contribuem para que eventual quebra de uma instituição financeira não gere um efeito dominó no sistema financeiro e, em última instância, perdas para a sociedade como um todo. Esse efeito dominó é conhecido como risco sistêmico”[7].

No setor segurador, a regulação prudencial “diz respeito ao estabelecimento de regras que visem a resguardar a solvência das sociedades e entidades supervisionadas pela Susep (ou seja, sua capacidade financeira para cumprir os compromissos assumidos junto aos segurados e beneficiários) mesmo em face de eventuais acontecimentos desfavoráveis. Seu objetivo é reduzir a probabilidade de eventos de insolvência (embora seja impossível garantir sua completa eliminação) e, caso estes ocorram, mitigar seus impactos para os segurados, o mercado segurador e o sistema financeiro como um todo. Alguns dos principais temas tratados no contexto da Regulação Prudencial são Provisões Técnicas, Ativos, Requerimentos de Capital, Governança, Gestão de Riscos, Controles Internos e Contabilidade”. [8]

No caso da ANS, conforme Serra (2016), “A regulação prudencial do mercado de saúde suplementar tem por objetivo a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do ente regulado como forma de garantir a continuidade e a qualidade do serviço contratado pelo consumidor. O ciclo invertido pode gerar falsa percepção de solidez, o que pode ocasionar decisões equivocadas e perigosas para a sustentabilidade do negócio.” Ainda segundo o autor, “a regulação prudencial, pretende que as operadoras reconheçam adequadamente as obrigações assistenciais a que estão sujeitas, minimizando a possibilidade de percepção irreal de liquidez, de forma que sejam mantidos recursos suficientes para a garantia de suas atividades. Como é mercado que envolve significativos riscos (a ocorrência do evento médico é imprevisível, tanto em termos de “quando” como principalmente em termos de “quanto”), traduzidos muitas vezes em prejuízos substanciais, é fundamental que haja, também, solidez patrimonial. A regulação busca, portanto, que sejam fortalecidos dois conceitos fundamentais: liquidez e solvência. Liquidez é o correto dimensionamento das obrigações assistenciais e a manutenção de uma estrutura de ativos suficiente para sua cobertura e solvência é manutenção de capital próprio em volume capaz de fazer frente a eventuais prejuízos, de forma que a operadora consiga atravessar períodos adversos sem comprometer a continuidade de suas operações.”

No caso da regulação prudencial da ANS, importante ressaltar que o mercado calcula seus riscos em modelos paramétricos e fórmulas padrões como a margem de solvência. No entanto, a regulação tem evoluído na direção de modelos de capital baseado em riscos. Até 2022 operam regras transitórias, mas a partir de 2023, entra em operação o capital baseado em riscos (RN 526/2022). Já foram regulados os riscos de subscrição, crédito, mercado e operacional. Adicionalmente, a comprovação da aderência às práticas mínimas de governança corporativa, permitem à operadora utilizar fatores reduzidos de capital (RN 518/2022). Há previsão inclusive da substituição do modelo de capital base regulatório pelo modelo interno, desde que aprovado pela ANS.

Os requisitos prudenciais não impedem necessariamente que uma instituição financeira enfrente dificuldades ou vá à falência, mas minimizam efeitos negativos de eventual encerramento das atividades de uma instituição financeira. A abordagem teórica padrão subjacente à regulação de seguros se origina em métodos atuariais e, mais especificamente, na teoria da ruína. De um modo geral, esta abordagem postula que o objetivo da regulação prudencial é garantir que a probabilidade de ruína das companhias de seguros esteja abaixo de um determinado valor “aceitável”. O segundo pressuposto é que a principal ferramenta de que o regulador dispõe para atingir este objetivo é a fixação de uma margem de solvência obrigatória, o montante mínimo de capital próprio de uma empresa que pode ser utilizado como buffer. O Gráfico apresentado a seguir mostra o volume de recursos alocados em termos de ativo, provisões e patrimônio líquido do setor.

  • Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência?

Feitas essas digressões sobre seguro e a regulação prudencial, cabe retornarmos à pergunta: Quanto a sociedade está disposta a sacrificar, em termos de menor garantia de solvência das empresas, para obter maiores ganhos de bem-estar resultantes de mais concorrência no mercado? Essa pergunta somente faz sentido se acreditarmos na existência de um trade-off entre esses dois objetivos. O primeiro certamente é tarefa primordial da autoridade reguladora dos mercados de riscos enquanto o segundo é o objetivo das políticas de defesa da concorrência. Evidentemente o custo regulatório não se limita ao esforço de cumprimento das exigências econômico-financeiras e de capitalização das empresas. Há que se considerar todos os demais custos de atendimento da regulação que encarecem a operação e reduzem a margem de lucro esperada e o retorno do investimento ao acionista. Mas para ficarmos apenas na questão prudencial, pode-se argumentar que há um nível ótimo em que a solvência fica preservada, mas ao mesmo tempo não cria barreiras à entrada a ponto de tornar-se o mercado não contestável, no sentido de Baumol.

O que se conclui neste artigo é que a agenda de elaboração de políticas de regulação e de defesa da concorrência precisaria ser colaborativa no sentido de atuarem em uma mesma direção. Se no curto prazo os objetivos parecem ser concorrentes, no longo prazo, com liberdade de entrada sujeita às regras prudenciais, a qualidade da concorrência tem dominância sobre a quantidade de concorrentes, permitindo uma agenda conciliatória entre as autoridades da concorrência e regulatória.

Não podemos deixar de considerar que em mercados de risco, a escala mínima viável, tradicional barreira à entrada, se submete à inevitável lei dos grandes números e a massa segurada é fundamental para a estabilidade dos resultados. No caso da saúde suplementar, o movimento em direção à concentração é impulsionado não somente pela melhoria das regras prudenciais, mas principalmente pelo risco assumido pelas operadoras que cresce a cada nova incorporação ao rol de procedimentos com inclusões de drogas cada vez mais caras.  

Nesse sentido, a regulação prudencial é a função de reação do próprio órgão regulador ao processo de inclusão vertiginosa de novas tecnologias que acrescentam custos ao setor de forma acelerada, nem sempre com a adequada verificação de sua custo-efetividade e, principalmente, da capacidade financeira da população suportar o aumento de custos da saúde, consistentemente acima dos índices oficiais de inflação. O Gráfico a seguir apresenta a redução da quantidade de operadoras no mercado de saúde suplementar. Muitas delas saíram voluntariamente, foram adquiridas ou foram retiradas do mercado pela ANS, após a decretação de liquidação extrajudicial ocasionada por problemas econômico-financeiros. Neste caso, a escolha tem sido sacrificar a concorrência em benefício da solvência do mercado. Com a aceleração nesse processo, a tendência é de redução ainda maior na oferta. Um bom ponto para discussão integrada entre os policy-makers regulatórios e concorrenciais.

Referências

ALVES, SL (2005). Regulação Prudencial e Concentração na Saúde Suplementar. Revista Cadernos de Seguro, Ed. Maio/2005, p. 52-54.

ALVES, SL (2022). Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos. Webadvocacy. Brasília. DF. Coluna de junho.

BAUMOL (1982). Contestable Markets and the Theory of Industry Structure, with J.C. Panzar and R.D. Wilig.

BERNSTEIN, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

CONTADOR, C.R. (2014). Economia do Seguro. Fundamentos e Aplicações. Versão revisada e ampliada. Ed. Atlas

CORIOLANO, M (2022). Nota: Há uma escala mínima de beneficiários para a operação segura de um plano de saúde regulado? https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6955907350318706688/

GALIZA, F (2011). Economia e Seguros: Uma Introdução. Ed. Funenseg, 3ª ed revisada e atualizada.

GUILAUME AND ROCHET, JC (2007). When Insurers go Bust. An Economic Analysis of the Role and Design of Prudential Regulation. Princeton University Press.

JENSEN, M.; MECKLING, W. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, v. 3, n. 4, p. 305-360, 1976.

SERRA, C. (2016). Entendendo a regulação prudencial no mercado de saúde suplementar. A operação em preço preestabelecido e o incentivo à descapitalização. Revista Cadernos de Seguro nº 186, p.27-33.


[1] A Variação do Custo Médico Hospitalar – VCMH/IESS – para um conjunto de 688,9 mil beneficiários de planos individuais atingiu 27,7% nos 12 meses terminados em setembro de 2021 relativamente aos 12 meses terminados em setembro de 2020. Nesse mesmo período, o IPCA foi de 10%. Fonte: IESS.

[2] ALVES, SL (2022).

[3] Alguns autores contam ter se originado durante a travessia de cameleiros no deserto. Como durante as longas travessias, alguns camelos morriam, havia um acordo entre os cameleiros de reporem as perdas do participante que sofreu o infortúnio. Bernstein, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

[4] Para informações mais técnicas sobre a economia do seguro, sugere-se consultar a obra de Contador (2014) e Galiza (2011).

[5] É comum dizer que o risco é uma medida da incerteza. São conceitos distintos, como proposto pelo economista Frank Knight.  Se não sabemos o que acontecerá, mas conhecemos as probabilidades, temos o conceito de risco. Se não conhecemos nem mesmo as probabilidades, estamos falando de incerteza.  A incerteza é não quantificável, com regras de formação e causas desconhecidas.

[6] World insurance: inflation risks front and centre. Swiss Re Institute, 2022.  Disponível em: https://www.swissre.com/institute/research/sigma-research/sigma-2022-04.html

[7] www.bacen.gov.br.

[8] www.susep.gov.br

“If you can’t buy the art, buy the artist”: efeitos da verticalização e considerações acerca da conduta de self-preferencing

Polyanna Vilanova & Matheus Carvalho

Na série Billions, o coprotagonista Bobby Axelrod, em dado momento, afirma que se você não pode comprar a obra de arte, compre o artista. Transplantando a premissa para a realidade empresarial, surge uma ideia sempre presente para qualquer agente em processo de expansão: o controle das etapas do processo produtivo.

Em outras palavras, melhor do que negociar, muitas vezes é mais vantajoso adquirir um outro agente que esteja no mercado verticalmente relacionado. Quando isso acontece, a tendência é que o ente verticalizado passe a dar tratamento preferencial aos seus próprios produtos ou serviços, prática conhecida como self-preferencing.

Nesses casos, argumenta-se que é normal (até esperado) que as empresas que controlem diversas etapas do processo produtivo deem preferência aos seus próprios produtos em detrimento daqueles produzidos por concorrentes[1]. Trata-se de uma conduta em tese previsível e que muitas vezes é a pedra angular de uma concentração econômica. Contudo, em algumas situações, é possível que preocupações concorrenciais surjam a partir desse arranjo.

A grande questão, portanto, é estabelecer parâmetros confiáveis que possam indicar quando a conduta deve ser objeto de reprovação pelo ordenamento jurídico e qual o teste a ser aplicável para aferir a ilicitude.

Linhas gerais, para a caracterização da conduta, dois pressupostos são necessários. O primeiro pressupõe a existência de dois mercados que podem ser horizontais ou verticalmente relacionados[2]. Em segundo lugar, é preciso que haja algum mecanismo pelo qual o agente que atua no mercado “A” favoreça as suas atividades no mercado “B”[3].

Trata-se, conforme exposto, de uma estratégia pela qual um agente utiliza a posição dominante que dispõe em um mercado para alavancar sua posição em outro. Esta prática, conforme reconhecido pela OCDE, pode gerar eficiências para o consumidor além de proporcionar uma recompensa para o agente que inovou ou que adotou diferenciação competitiva[4].

Contudo, é possível que ao agir desta forma, o self-preferencing seja utilizado como instrumento de distorção do processo competitivo, comprometendo a livre concorrência e a contestabilidade do mercado.

Por esta razão, seguindo o que sugere a literatura econômica, a OCDE recomenda que a análise mais adequada de uma conduta de self-preferencing seja feita por efeitos, justamente por ser necessário analisar o que levou à conduta, quais os efeitos da prática no mercado analisado e quais as justificativas econômicas associadas à prática[5].

A grande questão é: quando a conduta é lícita e quando não é? Qual a teoria do dano aplicável? Nesse ponto, há quem diga que self-preferencing carece de balizas suficientemente claras na medida em que se sobrepõe a categorias legais distintas sujeitas a testes distintos, o que macula a justificativa econômica por trás da conduta[6][7].

Assim, advoga-se que não é propriamente o self-preferencing que deveria ser coibido – porque não haveria uma conduta autônoma a ser censurada – mas a consequência prática que ele traz no caso concreto (refuse to deal, tying, bundling etc.).

Ainda em termos de identificação da conduta, para alguns autores, o self-preferencing seria uma expressão da competição por mérito e que somente em hipóteses muito específicas, como no caso de essential facilities, é que haveria a obrigação de não discriminar[8][9]. Há, contudo, quem discorde frontalmente desta afirmação[10].

Na jurisprudência, o tema não é menos controverso. Na Europa, caso paradigmático foi a multa imposta ao Google por suposta violação ao artigo 102 do TFUE em razão do abuso de posição dominante (investigação semelhante foi instaurada nos EUA[11] com resultado diametralmente oposto).

No Brasil, recentemente, a Superintendência-Geral debruçou-se sobre o tema em, ao menos, 3 oportunidades no ano de 2022 (duas no setor portuário e uma no mercado de plataformas de delivery de refeições)[12].

De tudo quanto exposto (e não exposto), nota-se que há um vasto oceano a ser desbravado quando o assunto é self-preferencing. Longe do consenso, os debates são sofisticados e a tendência é o aprofundamento da discussão (para mercados tradicionais e digitais) no campo acadêmico e jurisprudencial.

Considerando que há efeitos pró-competitivos com a conduta, o desafio será identificar as exatas circunstâncias em que a conduta é anticompetitiva e qual a melhor forma de endereçar a discussão (via autoridade concorrencial ou regulação[13]) sem desestimular o incentivo à inovação e à diferenciação.


[1] No original: “Self-preferencing is an expected – if not inevitable – consequence of the integration of different activities under common ownership”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[2] No original: “First, the case involves two markets, which may be horizontally (for instance, two applications running on an operating system) or vertically related (for instance, an application and the operating system on which it runs). In: COLOMO, Pablo Ibañez. Self-Preferencing: Yet Another Epithet in Need of Limiting Principles (July 17, 2020). Forthcoming in (2020) 43 World Competition. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3654083

[3] No original: “Second, there must be a (unilateral or contractual) mechanism through which a firm favours its activities on one of the markets at the expense of others.” In: COLOMO, Pablo Ibañez. Id. Ibid.

[4] No original: “Like vertical integration, leveraging can generate efficiencies for consumers and provide legitimate rewards for innovation or competitive differentiation”. In: OECD. Abuse of dominance in digital markets. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/abuse-of-dominance-in-digital-markets.htm

[5] No original “As with the other theories of harm associated with leveraging and refusals to deal, economic intuition suggests a need for a case-by-case approach to abusive leveraging.”. In: OECD. Op. cit.

[6] No original: “It follows from the analysis above that self-preferencing, as a label, overlaps (partially or totally) with several existing legal categories – including tying and refusal to deal. What is more, the latter apply to conduct that varies widely in its nature and effects and that, for the same reason, is subject to legal tests that are also different”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[7] No original: “As already explained, self-preferencing lacks clear boundaries. It overlaps with well-established categories which are, moreover, subject to different legal tests. However, the single most important problem with self-preferencing as a label is that it might lead to the abandonment of the case law without an appropriate examination of the rationale underpinning it and without evaluating the consequences of departing from it”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[8] No original: “It follows that favouring one’s own business or product is not anti-competitive even if it leads to the marginalization or even disappearance of certain individual competitors, so long as the favouring is competition on the merits”. In: VESTERDORF, Bo. Theories of Self-Preferencing and Duty to Deal – Two Sides of the Same Coin? (January 31, 2015). Competition Law & Policy Debate, Volume 1, Issue 1, February 2015, p.4-9. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2561355

[9] No original: “There can therefore be no obligation on a dominant undertaking to treat its competitors in downstream or related markets in the same or substantially the same way as its own operations in such markets […] without establishing the existence of an “essential facility”. VESTERDORF, Bo. Id. Ibid.

[10] Ver: PETIT, Nicolas. THEORIES OF SELF-PREFERENCING UNDER ARTICLE 102 TFEU:

A REPLY TO BO VESTERDORF. Competition Law & Policy Debate 1 CLPD (2015). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2592253 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2592253

[11] “One of the first of these investigations internationally was the FTC’s inquiry into whether Google’s search results were “biased” towards its own “properties” and, if so, whether such self-preferencing was an unfair method of competition under Section 5 of the Federal Trade Commission Act. After a 19-month investigation, the FTC closed the investigation. In its strongly-worded closing statement, the FTC went well beyond saying that Google’s behavior did not violate U.S. competition law. Rather, it asserted that the behavior at issue was the sort of competitive behavior that competition statutes encourage”. In: SALINGER, Michael A. Self-Preferencing (November 11, 2020). The Global Antitrust Institute Report on the Digital Economy 10. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3733688 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3733688

[12] Ver NT nº 20/2022 (IA nº 1797/2022-09); NT nº 9/2022 (IA nº 3945/2020-50); Parecer nº 12/2022 (AC nº 7341/2021-63).

[13] A União Europeia largou na frente e tornou-se a primeira jurisdição a regular o tema. Para maiores aprofundamento, ver: COUTINHO, Diogo R. GONÇALVES, Priscila Brolio. KIRA, Beatriz. As big techs e a nova onda de regulação digital: o caso União Europeia. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-big-techs-e-a-nova-onda-de-regulacao-digital-o-caso-uniao-europeia-21072022.

Regulação de novas tecnologias

Amanda Flávio de Oliveira

Em 1800, 95% da população mundial encontrava-se em situação de extrema pobreza. Atualmente, esse número encontra-se abaixo de 10%. Certamente que o principal responsável por essa mudança expressiva não pode ser indicado como um grande líder global, que teria idealizado e implementado uma política vitoriosa de combate à pobreza. Tampouco decorreu de um conjunto de atuações oficiais/governamentais em convergência, sendo certo que ao longo desse período mais impactaram a esse título as divergências políticas entre países que suas convergências.

O que propiciou essa reviravolta mundial na qualidade de vida das pessoas foi a inovação consistente, sucessiva e cumulativa que proveio da mente criadora das pessoas, da força motriz das empresas, da iniciativa privada no exercício da liberdade econômica. E o resultado fascinante e auspicioso desse movimento global e convergente de autointeresse de pessoas – naturais e jurídicas – enseja reconhecimento e renovação, não contenção. Afinal, ainda temos quase 10% da população a acudir.

Entretanto, a duração da vida humana individual é um curto recorte dessa evolução, desse espaço de tempo. Para nascidos no atual cenário, os 10% remanescentes incomodam, e isso é bom. É bom porque os mobiliza a resgatá-los, dever de todos aqueles que se indignam com a indignidade. O problema surge quando são utilizadas premissas erradas nesse esforço, partindo do pressuposto de que os 90% atuais são garantidos, ou são históricos, e se atribui a iniciativas governamentais o encargo de acabar com a extrema pobreza, quase sempre, à custa de medidas que desencorajam o pleno vigor da livre iniciativa, que nos trouxe até aqui.

A bola da vez do ímpeto regulatório está no mercado digital. Na Europa, muito recentemente, dois instrumentos normativos surgiram com esse propósito: o Digital Service Act (DSA) e o Digital Market Act (DMA), divulgados como instrumentos jurídicos preocupados com a proteção de direitos individuais e com a concentração inédita de market share das plataformas digitais.

Os argumentos são sedutores, mas não resistem a uma análise desapaixonada ou racional. As normas que restringem liberdade econômica podem ser tudo, menos uma expressão de proteção de direitos individuais. Tampouco o padrão de concentração das plataformas é inédito na história das atividades econômicas essenciais e sobre isso já se escreveu e exemplificou em outro texto, ao qual se remete o leitor[1].

Mas é um dado relevante notar que a preocupação europeia volta-se a algumas poucas empresas quase todas americanas: Google (Alphabet), Facebook (Meta), Apple, Microsoft, e mais umas duas ou três. Inevitável constatar que não há empresas europeias na lista de preocupação. Certamente, portanto, a Europa não está sabendo promover a inovação.

No Brasil, a produção regulatória, tanto em mercados tradicionais quanto em mercados de inovação, segue a todo vapor. Tampouco nossas empresas estão na lista das motivadoras da produção normativa europeia. Aparentemente nossas empresas não estão conseguindo incomodar fora das nossas fronteiras. Mas, sim, nós também estamos correndo atrás de regular empresas de outros países, além das nossas mesmas.

No amplo rol de iniciativas legislativas em tramitação no Brasil, o mercado digital tem ensejado debates acadêmicos e muito estímulo à sua regulação por meio de normas. Os argumentos giram em torno dos mesmos tópicos: defesa dos indivíduos e controle do poder econômico.

O Projeto de Lei n. 21/20 busca estabelecer o Marco Legal de Inteligência Artificial no Brasil. Há o propósito de regular as plataformas digitais, dos quais o PL 2630/2020 é um exemplo. Há projetos de lei para regular criptoativos, curiosamente com o apoio ativo das empresas do setor. Há movimentos no sentido de produzir algo na linha do DMA europeu para o Brasil, e por aí vai.

Se os propósitos das regulações em mira aparentam ser nobres, sua capacidade de gerar os resultados desejados podem ser questionados. Quase sempre atualiza-se o setor em mira, mas os erros de iniciativa oficial seguem históricos: estabelece-se uma mesma régua para todos os regulados, são aumentadas ou instituídas barreiras à entrada, fecha-se o mercado.

No caso específico do mundo digital, o risco da ineficácia da norma é ainda maior. É que está-se diante de um ambiente anárquico por excelência, e os vazamentos de dados, inclusive de importantes Tribunais, apesar da LGPD e da ANPD, persistem; a Deep e a Dark Web resistem…

Precisamos aprender com a História. Regulação não promove inovação. Ou, pelo menos, não foi o que aconteceu ao longo dos dois últimos séculos. Quem inovou foi a mente humana, livre e autointeressada. Se não conseguimos abrir mão da regulação, por alguma razão política ou de escolha pública, que o façamos de forma a não confrontar esse movimento.

A conclusão é de Thomas K. McCraw. A história da regulação da atividade econômica nos revela um cenário amplo de frustrações e uma importante lição: reguladores e legisladores, se querem promover objetivos públicos por meio da intervenção estatal na economia, precisam sempre explorar os incentivos naturais dos regulados e convergir suas ações com os interesses deles. Caso contrário, ter-se-á apenas ineficácia e/ou ineficiência. Pagarão o preço por mais equívocos estatais os pouco menos de 10% ainda resistentes na linha da extrema pobreza. Ou, na pior das hipóteses, a eles se juntarão pessoas que já não estavam aí[2].


[1] Confira em: https://webadvocacy.com.br/2022/03/31/10824/

[2] MCCRAW, Thomas K.. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984.

Um duelo entre direito e economia? Desmistificando o Guia de Análise de Preços*

Juliana Oliveira Domingues

Houve um pequeno engano, [….] numa comprida complicação”.[1]

No conto “Duelo”, de Guimarães Rosa (de onde se extraiu o trecho, acima) há duas histórias de vingança correlacionadas: de um lado, a do marido buscando o amante da esposa e, de outro, a do homem buscando o assassino do irmão.

O conto foi rememorado em uma conversa com um ex-orientando, professor e amigo diante de outro “duelo” mais sofisticado entre articulistas experientes: de um lado, um economista e, de outro, um advogado. Surpreendentemente, o referido duelo envolveu recorte de argumentos do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços[1] numa espécie de réplica do segundo artigo para o primeiro. A divergência entre os autores poderia ter se dado de diversas formas, como em todo espaço em que se discutem ideias, mas chama a atenção a utilização, in casu, do referido “Guia”. 

Explico, pois estive na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), entre janeiro de 2020 e março de 2022, ou seja, no ápice da pandemia. “Fora da cadeira”, não posso me furtar a trazer luz ao debate. 

Para essa finalidade, não preciso entrar no caso concreto que motivou o “duelo”. Também não discutirei outras questões sensíveis ainda que, como professora de Direito, eu me preocupe com o uso de espaços acadêmicos para defesas de teses sem o chamado full disclosure. Aliás, essa não é uma particularidade da academia brasileira[2].

Voltemos ao foco: o histórico do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Como responsável à época (desde o início da pandemia) explicarei, de forma sintética, a gênese, a motivação e os objetivos centrais que culminaram no Guia, construído com esmero, ao longo da pandemia. 

Como Secretária Nacional do Consumidor, eu fui a primeira presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), composto por representantes de entidades públicas estaduais e municipais de defesa do consumidor, do CADE, do Ministério da Economia, do Banco Central, de agências reguladoras, de entidades civis de defesa de consumidores, entre outros, promovendo um ambiente plural para debater temas desafiadores. A ideia central da criação do CNDC é meritória, proporcionando um foro de debate institucional para a redução de insegurança jurídica e a proposição de recomendações aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

Vale lembrar que a Secretaria Nacional do Consumidor atua diante da atração das competências que envolvem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Portanto, não se discute – e muito menos se coloca em dúvida – o interesse da Senacon em analisar supostas condutas que possam afetar os consumidores, por diversos motivos. O CDC traz um rol extenso de possíveis práticas lesivas/abusivas aos consumidores: falta de transparência, publicidade enganosa ou abusiva, venda casada, entre outras. Mas, o grande debate que antecedeu e motivou a elaboração do guia foi, especificamente, a dificuldade de definição do que seria “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços” (art. 39, X, do Código de Defesa do Consumidor), popularmente chamado de “preço abusivo” [3], especialmente em um livre mercado[4] durante uma grande pandemia.

Afinal, como aferir os tais preços arbitrários, leoninos ou abusivos? E o que pode configurar “abusividade”?

Pois bem, o tema é desafiador “per se”: logo, poderia se fazer nada (caminho mais simples) ou buscar mínimos denominadores comuns (caminho mais desafiador). Houve esforço do CNDC para estabelecer parâmetros mínimos, garantindo previsibilidade, segurança jurídica e um padrão uniforme de análise caso a caso.

Ou seja, pensando na defesa do consumidor compatibilizada com outros princípios constitucionais da ordem econômica, a orientação que o guia traz é analisar a cadeia produtiva a fim de identificar: i) o produto que se quer verificar abusividade; ii) as empresas que atuam como concorrentes nesse mercado; iii) a cadeia produtiva, incluindo a matéria-prima do produto; iii) racionalidade econômica no aumento de preços. Todas essas etapas são analisadas antes de qualquer conclusão. Em nenhum momento, o guia foi pensado ou direcionado à avaliação de uma relação puramente comercial, visto que cada análise depende de dados relacionados a cada produto e serviço individualizado e seu efeito (e preço final) na relação de consumo[5].

Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços é resultante dos 02 (dois) anos de debates e de relatórios de uma comissão presidida pela Senacon, que também contou com tripla relatoria: do Cade, da Seae/ME e de Procons. Foram colocados atores que possuíam entendimentos diferentes para um esforço inédito de padronização que decorreu das diversas demandas surgidas e que subsidiaram as atividades dos órgãos de proteção e defesa do consumidor, em um período desafiador[6]. Nesse sentido, foi salutar a experiência adquirida na pandemia.

No referido “Guia Prático”, houve cuidado ao explicar as competências de cada órgão (i.e. Senacon, Procons, SEAE, CADE, Ministério Público, Defensorias Públicas etc.) e princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica foram destacados[7]. Por esse motivo, há explicações sobre os efeitos deletérios das tentativas artificiais de controle de preços[8] (como o tabelamento) vividos nos anos 80: experiências malsucedidas que geraram o desabastecimento de produtos à população, mercados informais e o aumento da cartelização[9]

Assim, o roteiro apresentado descreve quatro etapas[10]: i) a identificação dos possíveis indícios de comportamento abusivo, envolvendo o exame dos índices de inflação e, também, a definição do mercado. É preciso separar, por exemplo, setores regulados dos não-regulados; ii) encaminhamento de acordo com essa identificação (diante de uma possível atração da regulação setorial e concorrencial) avaliando-se os choques de oferta/demanda. Quando forem identificadas práticas anticoncorrenciais, encaminha-se, por exemplo, para a análise do CADE ou da Seae/ME; iii) exame de especificidades do período (i.e. casos de emergência ou de calamidade) e a especulação de preços dos fornecedores; iv) análise econômico-jurídica das causas dos aumentos, com base em critérios técnicos e objetivos, com possível identificação de falhas de mercado.

O Guia tem caráter de soft law e é orientativo. Seu lançamento como uma cartilha didática trouxe referenciais que reforçam que o Brasil é uma economia de mercado onde há liberdade para que as empresas estabeleçam seus preços. Abusividades devem ser analisadas de forma adequada para evitar interferências desnecessárias, ou medidas desproporcionais.

Portanto, o Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços sintetiza as orientações aprovadas no âmbito do CNDC, com um passo a passo, facilitando a sua correta aplicação, com base sólida constitucional, consumerista, regulatória e também com fundamentos tradicionais da Análise Economica de Direito. Pensando na imprescindível segurança jurídica, é preciso destacar: o guia se baseou em uma construção jurídica racional, baseada em dados e evidências, sempre voltada a avaliar preços finais de produtos e serviços ao consumidor.

As relações estabelecidas na cadeia produtiva são capazes de gerar externalidade negativas ao consumidor e ao bem-estar social? Sim, claro! Essas externalidades geradas por relações comerciais podem ser analisadas de outras formas, com base nos instrumentos jurídicos/regulatórios que existem para essa finalidade. “Nem tudo que reluz é ouro”, assim como nem todas as condutas com potenciais reflexos na relação de consumo atraem a aplicação do guia.


[1] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[2] Veja-se, nesse sentido, o documentário “Inside Job”, vencedor do Oscar em 2011 que retrata, também, as atividades dos acadêmicos.

[3] Sobre o conceito de preço, veja-se: GABAN, Eduardo M.: “O preço reflete o valor de um bem ou serviço, sendo este o resultado da interação simultânea do comportamento de todos os agentes econômicos (ofertantes e demandantes) em uma economia livre, isto é, em um ambiente concorrencial. Nessa linha, se posicionam desde os clássicos como Adam Smith (1776) e Stuart Mill (1848), aos neoclássicos Vilfredo Pareto (1909), John Hicks (1939) e Samuelson (1945). Preço é um sinal de quão desejado e disponível é um determinado bem ou serviço em um dado momento e localidade. Quanto maior a procura e maiores as dificuldades de acesso, maiores são os preços. Quanto maior o ganho, mais agentes se dispõem a ofertar o bem ou serviço. Essa é a ideia subjacente ao conceito de equilíbrio geral, o qual resulta da constante e dinâmica interação dos agentes econômicos no mercado. Em sentido similar, podemos empregar o conceito de eficiência potencial de Pareto, ou mais conhecido como critério Kaldor-Hicks de bem-estar, em alusão aos seus precursores Nicholas Kaldor – Welfare Propositions in Economics and Interpersonal Comparisons of Utility – (1939) e John Hicks – The foundation of welfare economics – (1939).” In: Coronavírus, preços abusivos e a deterioração do Estado Democrático de Direito, Coluna da ABDE do JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/coronavirus-precos-abusivos-e-a-deterioracao-do-estado-democratico-de-direito-31032020 Acesso em: Julho de 2022.

[4] Sobre esse tema e a Lei da Liberdades Econômica, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SANTACRUZ, A; GABAN, E. M. (coord). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – Comentários À Lei 13.874/2019 (2020). 1. Ed.Juspodvum. 2020, 640 p.

[5] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[6] Cf. JOTA. Economia. Disponível em https://www.jota.info/jotinhas/senacon-institui-comissao-para-tratar-do-aumento-de-preco-em-itens-da-cesta-basica-15092020 Acesso em 30 de julho 2022.

[7] Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SILVA, B. F. M.  A liberdade econômica tem limites? – Reflexões sobre a aplicação do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência. In. RODAS, João Grandino; ATTIÉ JUNIOR, Alfredo (Org.). 30 anos da Constituição Federal. São Paulo: CEDES, 2019, p. 279-300.

[8] Parece não haver divergência sobre o tema entre PRATES TEIXEIRA, C; e MATTOS, C. “Os problemas de se interferir nas estruturas de preços”: “[…] Para além do dilema entre o Código de Defesa do Consumidor e a lei de Liberdade Econômica, o conceito pouco objetivo do que seja aumento abusivo de preços ou arbitrário dos lucros colocam sérias dificuldades analíticas. Muitas vezes o que pode se entender que seria algo abusivo não é mais do que o reflexo natural de mudanças de oferta e demanda. Devemos lembrar que preços são sinais na economia que definem o comportamento do consumidor e, principalmente, das empresas.” Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precos-problemas-interferir-estrutura-08102020. Acesso em 30 de julho de 2022. E, também, em um passado recente: […] liberdade econômica ou livre iniciativa significa a liberdade de atuar e de participar do mercado (produzindo, vendendo ou adquirindo bens e serviços, alienando sua força de trabalho). Dito de outro modo é um princípio que estabelece, a priori, uma liberdade econômica, que antecede a sua regulação pelo Estado. Cf. TIMM, L. B. “O direito fundamental à livre iniciativa (ou à liberdade econômica)”. In. JOTA, Coluna da ABDE, 2019. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/o-direito-fundamental-a-livre-iniciativa-ou-a-liberdade-economica-22052019> Acesso em julho de 2022.

[9] Cf. DOMINGUES, J. O.; GABAN, E. M. Direito Antitruste. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[10] Vale a pena conferir todo Guia: “BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

 


[1] […] “E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas.” Cf. ROSA, João Guimarães. Duelo. Sagarana. 7a ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.

* Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.