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Regulação e Empreendedorismo: as duas faces de uma mesma moeda

José Américo Cajado de Azevedo*

Abrem-se as cortinas. Cena 1. Frédéric Bastiat, um expoente entre os economistas franceses, com um viés liberal e intimamente associado à defesa da liberdade do indivíduo contra toda espécie de autoridade, especialmente a estatal, em 1850, alguns meses antes de sua morte, escreveu[1]:

Os órgãos sociais também são constituídos de modo a se desenvolver harmonicamente ao ar livre. Fora com os curandeiros e organizadores! Fora com seus anéis, suas correntes, seus ganchos e suas tenazes! Fora com seus métodos artificiais! Fora com suas obras públicas, seus falanstérios, seu governamentalismo, sua centralização, seus impostos, suas escolas públicas, suas religiões oficiais, seus bancos gratuitos ou monopolizados, suas regras, suas restrições, sua moralização e sua equalização pelos impostos.

Na mesma toada vociferou: “[q]ue se rejeitem os sistemas; que se coloque, por fim, a liberdade à prova”. Eloquente manifestação para um tema que, embora garganteado outrora, ainda encontra insistente eco no pensamento contemporâneo em relação ao papel do Estado e da sociedade nas definições econômicas. Fim do ato.

Cena 2. O Governo Federal brasileiro criou, em 1962, uma autarquia, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), vinculada ao Ministério da Justiça, com atribuições mais modernamente definidas pela Lei nº 12.529/2011, cuja missão é “zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência[2]. Cai o pano.

Como conciliar a livre iniciativa extrema pregada nos grotões ultraliberais com a ação intervencionista estatal que fiscaliza a concorrência? Esse é, ao fim e ao cabo, o dilema que se apresenta, em estado bruto, para se buscar o ponto de equilíbrio entre a ação privada e governamental, no que se refere ao empreendedorismo nos dias atuais.

É senso comum, apoiado em evidências, que empreender em nosso país atrai, per si, uma carga de responsabilidades e compromissos que somente alguns poucos players estruturados terão condições de suportar e superar as agruras que serão submetidos nas questões concorrenciais, tributárias, trabalhistas, dentre tantas outras que se apresentarão no deslinde das atividades.

Inovações legislativas, muitas vezes imbuídas de um aspecto de proteção aos direitos fundamentais, aparecem descontextualizadas, trazendo, não obstante o valor social, e porque não humanitário, uma oneração desmesurada para o empreendedor, em boa parte das vezes, modesto trabalhador que busca uma forma de realizar uma legítima atividade profissional.

Neste condão, projetos de lei são apresentados com o fito de proporcionar ao cidadão benefícios pontuais, eventualmente importantes, mas que não têm uma visão sistêmica da estruturação econômica em que estão inseridos. Transformam-se, dessa forma, em extravagâncias demagógicas que, diversamente de trazer proveitos ao cidadão, penaliza-o, indiretamente, ainda mais.

Assim, por exemplo, traz-se à lume os projetos de lei: (i) PL 2637/2011[3], que “[i]nstitui a obrigatoriedade de ascensorista em edificações comerciais e prédios públicos não residenciais com elevador”; ou (ii) o PL 1838/2020[4] que “[d]ispõe sobre a obrigatoriedade de higienizar ambientes fechados de acesso coletivo e áreas públicas e privadas, para reduzir o risco de transmissão de doenças infectocontagiosas e dá outras providências”.

Ainda mais acentuada a imisção de parcela do Legislativo na livre iniciativa, chega ao ponto de propor um esdrúxulo projeto de lei que visa a proibir o uso de nome de empresas em expressões de língua estrangeira (PL 5632/2020)[5].

Na via inversa, no entanto, setores liberais, inclusive com representação no Congresso Nacional, se organizam a fim de “desregular a regulação”, ou seja, instituir ordenamentos que desonerem os que empreendem em uma atividade econômica. Exemplo disso é o Projeto de Lei Complementar 217/2020 institui o Código de Defesa do Empreendedorismo[6], que estabelece direitos e deveres para o microempreendedor no desenvolvimento da atividade econômica, de modo a modificar o Estatuto da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006).

A proposta estabelece como direitos básicos das empresas a interpretação mais favorável das normas relativas ao poder de polícia; a presunção de baixo grau de risco para todas as suas atividades econômicas; a disponibilização de canal de atendimento na internet para a realização de todos os atos necessários à legalização, inclusive para obtenção de protocolos, certidões, licenças, permissões e alvarás, dentre outros.

Com o propósito de fomentar a discussão sobre o tema, congressistas se organizam em frentes parlamentares como a da Micro e Pequena Empresa, a do Setor de Serviços, a do Comércio, Serviços e Empreendedorismo, para o Desenvolvimento Regional Sustentável, de Apoio ao Mercado de Varejo e E-Commerce, em Defesa da Desoneração da Folha de Pagamento, do Brasil Competitivo, do Empreendedorismo, dentre tantas outras. É a maneira, por conceito, mais democrática de construção de esforços, uma vez que cada parlamentar foi eleito diretamente pela população com um propósito programático e ideológico que irá perseguir dentro do Congresso.

É possível observar o interesse que o assunto desperta, já que se trata de matéria que afeta intrinsecamente toda a economia do país. Poder-se-ia discutir, interminavelmente, a respeito do liberalismo extremado versus o intervencionismo estatal, sob a ótica dos sistemas econômicos que deveríamos estar inseridos ou do tamanho do Estado na vida dos cidadãos. Porém, o que se extrai de uma análise desapaixonada é que – mais uma vez – o ideal é perseguir o conceito budista do caminho do meio.

O viés liberal, confiando nos impulsos capitalistas do mercado, e adotando a cultura estadunidense do self made man – que em tradução livre pode ser compreendido como o homem que se fez por si mesmo, por conta própria –, pressupõe que a meritocracia irá sobrepujar todas as condicionantes estruturais adversas que serão apresentadas ao empreendedor, mesmo ao se deparar com barreiras, pernósticas especialmente para os de menor poder concorrencial. Não leva em consideração, portanto, as desigualdades preexistentes ou mesmos as assimetrias, informacionais ou procedimentais, que permeiam o ambiente econômico.

Assim, não se pode ter a ilusão de que exista, em qualquer local do universo social e econômico, uma possibilidade de igualdade de oportunidades, onde o empreendedor encontrará terreno fértil para o estabelecimento de suas premissas comerciais, em iguais condições com todos os players do mercado. Esse é o mundo real, distante da utopia da plena concorrência e do livre mercado!

Em outro sentido, deleitam-se os defensores do Estado protetor, com tendências intervencionistas, imaginando que é possível, tal como fantasiado por George Orwell em seu clássico 1984, um Grande Irmão comandando os andares da economia e, por fim, da ampla iniciativa.

O porto seguro, mais uma vez e sempre, é o equilíbrio!

A liberdade empreendedora, e aqui vale o reforço à palavra liberdade, deve ser constantemente perseguida. Não é admissível, dentro de um sistema democrático, o tolhimento àqueles que buscam empreender, e que trazem, sem qualquer dúvida, benefícios para a sociedade e para o mercado em sentido lato.

Por outro lado, porém, a adequada estruturação do sistema concorrencial não permite prescindir da atuação estatal, coibindo práticas anticompetitivas que poluem o ambiente de negócios e afetam, prejudicialmente, a economia do país. Deste modo, a visão regulatória refreando ações anticoncorrenciais, eliminando barreiras a novos entrantes, estimulando práticas comerciais que beneficiem o consumidor final, deve ser amplamente adotada e encorajada, pois, em sua essência, o Estado é responsável por propiciar o melhor ambiente para o desenvolvimento de negócios, atuando ou se abstendo de atuar diretamente.

A partir da perspectiva atribuída a Voltaire de que “quand je peux faire ce que je veux, voilà la liberté” (quando posso fazer o que quero, eis a liberdade), F. A. Hayek[7], clássico economista liberal alemão, ponderou:

A questão, pois, é como garantir a maior liberdade possível a todos. Isto pode ser feito restringindo uniformemente a liberdade de todos por meio de regras abstratas que evitem a coerção arbitrária ou discriminatória de ou por outras pessoas e impedem cada um de invadir a esfera de liberdade de qualquer outro. Em suma, fins concretos comuns são substituídos por regras abstratas comuns. O governo é necessário apenas para fazer valer essas regras abstratas e, por meio delas, proteger o indivíduo contra a coerção, ou a invasão da sua esfera de liberdade, por outros.

Humberto Ávila[8] complementa com uma interessante análise sobre o papel do Estado:

(…) o Estado também assume a tarefa de induzir o comportamento dos cidadãos para que se conformem às finalidades públicas. Ultrapassa-se, pois, uma concepção de Estado Liberal, passa-se pelo Estado Providência (gerador de prestações), pelo Estado Propulsivo (fixador de planos) e pelo Estado Reflexivo (fixador de programas), para se chegar ao Estado Incitador (produtor de influências), em cujo âmbito estão estabelecidos vínculos de coordenação e de cooperação.

Remetendo a uma perplexidade praticamente existencial, temos as reflexões acerca de quem é o Estado; o que esperamos dele; e qual deve ser seu tamanho. Essas perguntas, comumente respondidas de acordo com as oportunidades e as conveniências, são fulcrais para a percepção do que se quer para o futuro do nosso país.


[1] BASTTIAT, Frédéric (1801-1850). A lei: por que as esquerdas não funcionam? As bases do pensamento liberal. Trad.: Eduardo Levy.Barueri-SP, Faro Editorial, 2016.

[2] Disponível em https://www.gov.br/pt-br/orgaos/conselho-administrativo-de-defesa-economica#:~:text=O%20Cade%20tem%20como%20miss%C3%A3o,a%20cultura%20da%20livre%20concorr%C3%AAncia. Acessado em 12.10.2021.

[3] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/526012. Acessado em 12.10.2021.

[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2248001. Acessado em 12.10.2021.

[5] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2267965. Acessado em 12.10.2021.

[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2260548. Acessado em 12.10.2021.

[7] HAYEK, Friedrich A. von (1899-1992). Os erros fatais do socialismo. Trad.: Eduardo Levy. Barueri: Faro Editorial, 2017.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

O Sistema de Relevância no STJ: uma evolução ou mais do mesmo?

José Américo Cajado de Azevedo*

O Senado Federal aprovou no último dia 03 de novembro em dois turnos, a PEC 10/2017, conhecida como PEC da Relevância, que cria um filtro para a admissão dos recursos especiais que serão julgados pelo STJ.

Em 23/08/2012, os deputados Rose de Freitas e Luiz Pitiman apresentaram à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012 acrescentando o § 1º no artigo 105 da Constituição Federal, que trata da competência do Superior Tribunal de Justiça, enunciando a necessidade de demonstração da relevância de questões de direito federal infraconstitucional para admissibilidade de recurso especial.

No ano seguinte, o Senado Federal apresentou uma PEC, com idêntico teor, inclusive referenciando-se à proposta da Câmara em sua justificação, que recebeu o nº 17/2013. Em 2017, a PEC da Câmara foi aprovada naquela Casa, subindo para o Senado sob o nº 10/2017. Ao final de 2018 a PEC nº 17/2013 foi arquivada devido ao encerramento da legislatura, não afetando, porém, a tramitação da PEC nº 10/2017.

Uma primeira ponderação que merece ser examinada se refere à razoabilidade da iniciativa, uma vez que o STJ se encontra abarrotado de processos, devido à facilidade de acesso ao julgamento do tribunal e à ausência de filtro que selecione as demandas realmente pertinentes que merecem uma nova análise. Somente em 2019 o STJ recebeu mais de 384 mil processos, tendo sido proferidas quase 504 mil decisões terminativas. Em uma aritmética elementar, dividindo-se as decisões pela quantidade de ministros, tem-se a disparatada média de mais de 15 mil decisões por ministro somente em um ano, sem se considerar eventuais vacâncias ou ausências de ministros, posições de direção no Tribunal, dentre outros fatores, o que elevaria este número.

Assim, merece atenção a necessidade de implementação de um instituto que desafogue esse ônus, permitindo uma prestação jurisdicional de melhor qualidade, em benefício da coletividade. Neste aspecto, o Supremo Tribunal Federal, bem como o Tribunal Superior do Trabalho já possuem ferramentas para a otimização da carga laboral.

No TST, o instituto da transcendência foi instalado a partir de lei ordinária, inicialmente através da Medida Provisória nº 2.226/2001 e regulamentada pela Lei nº 13.467/2017. Não foi necessária uma Emenda Constitucional para criar o filtro utilizado na corte trabalhista. Ficou assim definida:

§ 1º São indicadores de transcendência, entre outros:

I – econômica, o elevado valor da causa;

II – política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal;

III – social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado;

IV – jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista.

Observa-se a intenção do legislador em deixar expressa sua proposta, definindo, com clareza, o que deve ser verificado na análise. Ainda assim, por razões ideológicas ou pela falta de entendimento do fundamento do artigo, subverte-se a essência do comando, não sendo aplicado de maneira uniforme nos 27 gabinetes do Tribunal.

A louvável iniciativa de inserção do instituto da justiça trabalhista, próximo ao writ of certiorari estadunidense, esbarra em questões operacionais que pervertem seu sentido, empobrecendo a prestação jurisdicional e, ao contrário de trazer alguma segurança jurídica, se transforma, muitas vezes, em uma loteria, cujo ganhador é aquele que tem seu recurso de revista admitido.

Somente à guisa de exemplo, existem ministros que defendem que a hipossuficiência de um empregado reclamante é suficiente para impulsionar o recurso de revista sem a análise do valor da causa como quer a lei, ou seja, todo empregado que ingressar com uma reclamação trabalhista, que tiver reconhecida a hipossuficiência (ao contrário do “elevado valor da causa” como disposto na legislação) e que, porventura, tenha seu processo alçado em sede de recurso de revista, este terá sua transcendência econômica e social reconhecida. Põe-se por terra a existência do instituto da transcendência.

No STF, a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário inserida constitucionalmente através da EC nº 45/2004 foi, ainda, regulamentada pelo CPC em seu artigo 1035, que se encontra transcrito, secundado pelo regimento Interno do STF no artigo 322.

Código de Processo Civil

Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.

§ 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.

Observa-se que, embora diga quais são os aspectos – em sentido amplo – que devem ser analisados como expressivos, o regulamento não define parâmetros objetivos dos critérios para essa verificação, deixando à discricionariedade da Corte a admissibilidade do recurso. Ocorre que, após essa primeira avaliação, alguns temas são alçados a outro patamar – também denominados como afetados em repercussão geral – que irá criar uma maior vinculação à decisão proferida, ou seja, temas com menos ou mais repercussão geral ou, de outra forma, decisões erga omnes.

Tal sistemática cria uma gradação de importância nas decisões emanadas pela Corte Suprema. Não obstante estes dois patamares, algumas decisões ainda se transformam em súmulas, e aquelas mais relevantes em súmulas vinculantes. Esta metodologia acaba por enfraquecer, lato sensu, a força dos julgados do STF, pois, todos os recursos admitidos como extraordinários deveriam possuir o condão de se tornarem vinculantes horizontal e verticalmente. Neste sentido, o Regimento Interno do STF estabelece, em seu artigo 187, que “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”. A hierarquização das decisões acaba por não ser saudável à autoridade do STF como Corte Constitucional.

Demais disso, cabem algumas reflexões a respeito do procedimento proposto na PEC da relevância. Duas questões de importância fulcral saltam aos olhos. A primeira diz respeito à forma como o legislador ordinário irá definir e delimitar o conceito de “relevância”. A segunda é a inaplicabilidade automática e autônoma do comando, na medida em que, ao colocar a expressão “nos termos da lei”, transfere à esfera infraconstitucional a estruturação do regramento. Estes dois pontos são de fundamental pertinência para se implementar o almejado filtro que irá possibilitar desafogar o STJ, permitindo que a Corte se debruce sobre as questões realmente significativas, não se tornando somente um tribunal de terceira instância de temas subjetivos.

Caso o Superior Tribunal resolva aplicar diretamente o comando legislativo, sem que haja uma regulamentação, a possibilidade de uma catástrofe se anuncia. Serão trinta e três cabeças utilizando de uma norma imatura, não em uma reunião colegiada para definir sua aplicação, mas em entendimentos jurisdicionais que darão azo a trinta e três entendimentos, na maioria das vezes díspares.

Há que se refrear o afã da aplicação imediata da norma para que se tenha uma regulamentação que atenda à exegese da PEC, trazendo segurança jurídica e a consequente pacificação social.

Um aspecto de essencial interesse decorrente da aprovação da emenda constitucional, é a definição do que deve ser considerado “relevante”. No STF existe a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. No TST, por sua vez, foi instituída a transcendência, não como requisito formal de admissibilidade, mas como pressuposto prévio necessário ao seguimento do recurso de revista. Além disso, as formas de emprego dos filtros diferem, quer no conceito, quer no procedimento de sua aplicação.

A delimitação do sentido do termo “relevância” para a observância do pretendido instituto é fundamental para a recepção do comando e para seu pleno e satisfatório aproveitamento. Os aspectos a serem analisados, como a relevância econômica, social, política e jurídica, para ombrear aos critérios estabelecidos pelo STF e pelo TST, devem estar plena e objetivamente definidos, de forma a não permitir o conflito de avaliação na admissibilidade do recurso.

Não está a se encouraçar a liberdade de julgamento do magistrado, encapsulando sua autonomia decisória. Porém, como balizador para o filtro, devem ser estabelecidos, claramente, os limites de admissibilidade dos recursos especiais, sob pena de a iniciativa decair por imperfeição em sua utilização. Sem embargo, será, de toda forma, atribuição dos Ministros, em análise de admissibilidade, o pleno acatamento do comando para a obtenção de resultados efetivos.

Há que se observar, porém, que a inação ou a morosidade no procedimento legislativo poderá retardar ou até inviabilizar a ideia. Para se ter um parâmetro a respeito desse assunto, como já mencionado, o instituto da transcendência foi inserido na Consolidação das Leis Trabalhistas em 2001, quando, em seu artigo 896-A, caput, definiu que “[o] Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”. No entanto, somente com o advento da Reforma Trabalhista, em 2017, é que se regulamentou a matéria, ou seja, mais de uma década e meia para que se pudesse dar concretude a uma instrução. Corre-se o risco de se repetir a história, de maneira perniciosa e prejudicial ao Judiciário brasileiro e à sociedade em geral.

Se se analisar que somente para definir que deverá existir o critério de relevância já se transcorreram mais de oito anos, e não se tem uma previsão de quando chegará a termo, pode-se inferir o tempo que será necessário para que o Legislativo apresente e discuta um regramento consolidado e aplicável, capaz de gerar efeitos concretos no mundo da prestação jurisdicional. Há, ainda, um longo caminho a ser percorrido no interior dos salões verde e azul do Congresso Nacional, até que o STJ possa obter a ferramenta necessária para descarregar seus escaninhos de matérias irrelevantes que visam somente a procrastinar o trânsito em julgado de uma decisão, muitas vezes sabidamente desfavorável.

Pode-se observar que cada Tribunal procurou, e vem procurando, dispositivos para desafogar suas prateleiras. Desafortunadamente, essas ferramentas são totalmente diferentes estre si, não havendo uma coordenação para uniformizá-las, fazendo com que em cada Tribunal haja diferentes procedimentos, trazendo a impressão de que, quando se está nos corredores dos tribunais superiores em Brasília, existem vários e distintos Poderes Judiciários. Este, porém, é um tema que merece um capítulo próprio.

A questão da relevância, no STJ, deverá fugir das armadilhas que podem surgir no caminho de sua criação. O diálogo entre os Poderes, de forma institucional, é saudável e em nada afeta os princípios republicanos. O acompanhamento mais próximo da tramitação da PEC junto ao Senado Federal, podendo utilizar-se, inclusive, da isenção do Conselho Nacional de Justiça devido à sua diversificada composição, poderia ser uma medida proativa em benefício do Judiciário.

Além disso, poderia o CNJ enviar ao Congresso Nacional, após a aprovação da PEC, uma sugestão de Projeto de Lei que pudesse balizar os parlamentares quanto aos anseios do Poder Judiciário em relação à aplicação do instituto. Ocorreria uma interação saudável entre os Poderes, visando ao mesmo fim, qual seja, o melhor atendimento à sociedade brasileira.

De toda forma, o ajuste fino das questões procedimentais poderá estar contido no Regimento Interno do STJ, que possui a prerrogativa de detalhar os aspectos operacionais e tornar aplicável uma determinação legal.

O que não se pode perder de vista é que existe, ainda, um longo caminho a ser trilhado, não se vislumbrando, em um horizonte próximo, a aplicação do instituto da relevância. Está a se falar em anos, quiçá décadas, até que o STJ possa lançar mão de uma importante ferramenta que, ao fim e ao cabo, irá beneficiar a justiça brasileira.

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JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

A (in)disponibilidade da expectativa do direito ou a (im)possibilidade de transacionar o próprio direito

José Américo Cajado de Azevedo

A Constituição de 1988 é habitualmente reconhecida como uma Carta garantista e protecionista dos direitos individuais e sociais insculpidos, essencialmente, em seus artigos 5º e 7º. Não por outro motivo é conhecida pela alcunha de Constituição Cidadã. A partir dessa premissa, formou-se um entendimento doutrinário e jurisprudencial que visa a proteger todos aqueles albergados sob sua égide de ameaças aos direitos e às liberdades.

Na esteira desse entendimento, o Estado avoca para si o papel de defensor dos direitos dos cidadãos, tratando-os, inúmeras vezes, como seres hipossuficientes e carecedores da proteção estatal. Como consequência, intervém nas relações entre particulares estabelecendo, muitas vezes, normas e procedimentos para convivência interpartes, como no caso dos regramentos a respeito da disponibilidade de direitos.

A impossibilidade de dispor do próprio direito busca, conceitualmente, proteger o cidadão de situações em que deve existir uma atuação do Estado no sentido de salvaguardar os interesses de seus abrigados. Estes interesses são indeclináveis, e sua perda pode significar um malefício maior, ou seja, o bem tutelado possui um predomínio sobre um eventual aniquilamento de sua garantia.

O Estado, com o intuito de satisfazer sua precípua missão de organizar a sociedade, busca identificar situações em que a perda de direito pode significar um dano irreparável, comprometendo a pacificação social. Como exemplo, pode-se imaginar uma hipérbole jurídica em que uma falha ocasionada por um advogado, como um prazo processual perdido, comprometa a satisfação por alimentos a um menor. Neste caso, embora haja revelia do infante, em razão da inércia de seu patrono, não são produzidos os efeitos jurídicos decadenciais para a parte, como anotado no Código Civil, permitindo a persecução dos interesses do desvalido[1].

O Estado acaba por ter a missão de ser o garantidor dos vulneráveis, uma vez que as desigualdades – sociais, econômicas, profissionais, etc. – são parte inerente à condição humana. Cabe ao governo – e está a se falar em sentido lato – a administração desse imbróglio, buscando atenuar as diferenças e criando modos de compensação para prejuízos circunstanciais.

É importante buscar o entendimento do conceito para avançar na análise das consequências. A palavra “indisponível” pode ser compreendida como (i) um qualificador que impede a perda ou a restrição de um direito ou, por outro lado, compreendida como (ii) impeditivo de renúncia (MARTEL, 2010, p. 337).

Enquanto o primeiro conceito oferece a possibilidade de tutela àquele que possui a expectativa do direito, como, exemplificativamente, nos casos de reconhecimento da paternidade biológica quando o pleiteante pode a qualquer momento de sua vida buscar a satisfação de seu direito, o segundo apresenta-se como uma tutela obrigatória, impositiva, fundada em uma premissa de hipossuficiência da parte, obstando a faculdade de negociar ou mesmo renunciar àquele eventual benefício, como se observa mormente na justiça trabalhista.

A disponibilidade, em sua essência, diz respeito ao direito ou ainda se estende às relações jurídicas subjacentes? Caso assim seja, à guisa de proteção, fica o cidadão impedido de beneficiar-se amplamente de sua liberdade, na medida em que é tolhido na coordenação de seus interesses. No entanto, nota-se forte tendência doutrinária defendendo a impossibilidade de transacionar direitos indisponíveis, entendimento este que é compartilhado por tribunais (COSTA e SANTOS, 2019, p. 219).

A indisponibilidade possui o condão de atrair a imprescritibilidade, daí porque se transforma em direito passível de ser exercido a qualquer tempo. A intenção de transacionar em relação ao direito, no entanto, deve ser analisada como real possibilidade e não como impeditivo do exercício pleno da vontade. No afã de criar uma proteção ao tutelado pode se produzir amarras ao integral desempenho da liberdade individual.

No caso de preservação de interesses difusos, a indisponibilidade do direito salvaguarda a coletividade, justificando a tutela estatal para proteger parcela da sociedade atingida em suas prerrogativas. Há que se ponderar, no entanto, em relação às questões relativas a direitos individuais, onde não há hipossuficiência econômica, social ou mesmo cognitiva, podendo a parte se posicionar favoravelmente quanto à transigência, especialmente em relação a uma expectativa de direito, quando ainda se mostra necessária a prestação jurisdicional para sua efetiva consumação.

O exercício de um direito e a impossibilidade de dele dispor ou transacionar são conceitos excludentes entre si. A indisponibilidade, no sentido de não se poder renunciar, transforma o direito em uma obrigação, sem que seja dada a opção de não querer exercê-lo, conflitando com a acepção mais elementar do verbete direito.

O debate adquire feições práticas se se tomar como exemplo a transação e, portanto, a disponibilidade de créditos trabalhistas. A possibilidade de se negociar esses créditos em discussão judicial pode representar aspectos positivos para os litigantes em ambos os polos, a depender do arranjo. A Justiça do Trabalho sempre foi resistente a essa espécie de acordo pelo risco de lesividade ao empregado, considerado a parte frágil da relação contratual. Tal entendimento está sedimentado em decisão do TST, de 2009, que afirma que “[a] cessão do crédito trabalhista decorrente da presente ação, (…), não interfere no andamento do processo ou na solução do litígio, uma vez que, a teor do art. 100 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho (DEJT de 30/10/2008), ‘a cessão de crédito prevista no art. 286 do Código Civil não se aplica na Justiça do Trabalho’[2]. Neste sentido, não está resguardada a hipótese de um trabalhador, para receber imediatamente determinados valores, veladamente renunciar a direitos certos (COUTINHO, 2000, p. 15).

No entanto, brisas de modernidade parecem soprar no tribunal trabalhista, apontando novas possibilidades para negociação dos direitos laborais. Em recente julgamento, o Ministro Douglas Alencar exarou voto com o entendimento de que “(…) cabe afirmar que a cessão de crédito trabalhista é plenamente possível (CF, art. 5º, II c/c os arts. 286 a 298 do CC. 8º da CLT e 83, § 5º, da Lei 11.101/2005), disso resultando que os cessionários de eventuais créditos trabalhistas estão legitimamente habilitados a ingressar nas lides judiciais correspondentes, como sucessores ou assistentes litisconsorciais (CPC, art. 109, §§ 1ºa 3º c/c o art. 5º, LIV, da CF)[3].

A inflexão demonstrada se reveste de especial importância na medida em que se tem um país ávido pela recuperação a partir de um modelo mais moderno e dinâmico que possibilite novas interações no campo econômico. A possibilidade de transação de créditos não afeta somente as partes sinalagmaticamente. Permite ainda que outras facetas de uma negociação mais abrangente sejam favorecidas.

Tome-se como exemplo uma empresa com potencial atrativo de mercado, porém com significativos débitos, inclusive trabalhistas. Ela pode estar apta a se inserir em um processo de turnaround[4], tendo, no entanto, dificuldades negociais devido ao seu passivo. A possibilidade de transacionar seus débitos pode ser vantajosa tanto para sua própria recuperação, quanto para os trabalhadores em litígio que, ao passarem a ser credores de uma outra pessoa jurídica, de maior capacidade financeira, inserida em uma negociação mais ampla, têm aumentada a probabilidade de recebimento de seus créditos. Dessa forma, a inserção de um novo player no processo aumenta as condições favoráveis para o satisfatório deslinde de uma situação contenciosa, possibilitando o almejado resultado “ganha-ganha”.

É com essa visada que se deve contemplar as novas nuances das relações econômicas nos dias atuais. Se a proteção pretendida para o trabalhador fez sentido, na década de 1940 quando foi implantada a Consolidação das Leis Trabalhistas, pelo quadro histórico em que o país vivia ou, ainda, se foi necessária, em algum momento, uma intervenção do Estado para a proteção do cidadão nos casos de relações desproporcionais de poder, atualmente essa interferência deve ser mitigada e ponderada, de forma a possibilitar arranjos contratuais mais adequados às modernas relações negociais.

A indisponibilidade de um direito fundamental para impedir sua extinção e garantir sua persecução em qualquer momento da vida é regramento louvável e necessário, que irá asseverar a pacificação social. A vedação de transacionar um direito, no entanto, encontra-se em diferente diretriz, na medida em que obsta o pleno exercício da liberdade, especialmente nos casos em que não haja prejuízo para nenhuma outra parte.

Como encerramento, é importante refletir se o objetivo desejado pelo Estado, ao defender o cidadão em relação aos seus direitos, não está criando uma proteção – ou ainda pior, uma barreira – contra ele mesmo, impedindo-o de dispor de um direito, em prejuízo aos seus próprios interesses. A superproteção nesses casos pode, ao contrário do pretendido, deixar de ser um remédio, para tão somente ser o próprio causador do mal.

COSTA, Nilton César Antunes da; SANTOS, Rebeca Barbosa dos. A transação de direitos indisponíveis na mediação. Revista DIREITO UFMS, Campo Grande, MS, v.5, n.1, p. 208 – 232, jan./jun. 2019

COUTINHO, Aldacy Rachid. A indisponibilidade de direitos trabalhistas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 33, 2000.

MARTEL, Letícia de Campos Velho. Indisponibilidade de direitos fundamentais: conceito lacônico, consequências duvidosas. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, p. 334-373, jul./dez. 2010.


[1] Com a maioridade civil, ao completar 18 anos de idade, quando cessa o poder familiar, em relação aos alimentos passa a correr o prazo prescricional de dois anos para cobrar judicialmente os alimentos inadimplidos (artigo 206, § 2º do Código Civil).

[2] RR 632923-19.2000.5.04.5555. Publicado em 13/11/2009.

[3] ED-ED-AIRR – 820-23.2015.5.06.0221. Publicado em 17/08/2021.

[4] Turnaround é um processo de recuperação empresarial visando à restauração do equilíbrio financeiro e a volta à competitividade, buscando o restabelecimento de seu valor e a ressurreição da performance, por meio da implementação de uma reestruturação profunda e sem limites na empresa.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

O convívio entre o poder regulatório setorial e a análise de conduta anticoncorrencial: o caso da cobrança de valores sobre a movimentação de cargas nos portos brasileiros.

José Américo Azevedo*

Catharina Araújo Sá**

Como preâmbulo da análise que se pretende, importante visitar algumas asserções:

i) a agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegura a autonomia em face da Administração direta e que é investida de competência para a regulação setorial[1]. Sua instituição é justificada não apenas pela necessidade de regulação dos serviços públicos concedidos aos particulares, mas também pela necessidade de controle de determinadas atividades privadas relevantes, destacadas pela lei[2];

ii) a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq – tem como competência regular, supervisionar e fiscalizar as atividades relacionadas à prestação de serviços de transporte aquaviário e de exploração da infraestrutura aquaviária e portuária[3];

iii) o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade – tem como atribuições analisar e posteriormente decidir sobre as fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência, além de investigar, em todo o território nacional, e posteriormente julgar cartéis e outras condutas nocivas à livre concorrência[4]; e

iv) o direito concorrencial e o direito regulatório possuem atuações complementares: enquanto o direito concorrencial abrange todos os setores da economia, a regulação atua de maneira mais restrita em mercados específicos, as agências reguladoras atuam no âmbito de cada setor em que receberam atribuições[5].

Para compreensão e contextualização dos conceitos, peregrinemos pela planície da realidade prática.

O setor portuário brasileiro movimentou em 2020 mais de 1,15 bilhão de toneladas em carga, sendo os principais produtos o minério de ferro, petróleo e derivados, soja, contêineres e milho. Desta movimentação, 810 milhões de toneladas são relativas à navegação de longo curso, divididas em 80% em exportações e 20% em importações[6]. É possível verificar, portanto, a relevância do modal na matriz logística do país.

Com esses números superlativos, a operação portuária, no que diz respeito à movimentação intraportos de cargas, adquire uma importância financeira tamanha que se torna pertinente a avaliação dos impactos decorrentes da cobrança das atividades de estiva.

A cobrança de “THC2” (terminal handling charge 2) ou “SSE” (serviço de segregação e entrega) é um tema famoso referente ao mercado portuário discutido no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

O THC é preço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas desde o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário no caso da importação e entre o portão do terminal portuário e o costado da embarcação na exportação. O SSE/THC2, por sua vez, incide somente nas importações e diz respeito ao valor cobrado pela movimentação da carga que sai do contêiner na pilha do terminal portuário até outro terminal retroportuário, onde estão os armazéns – de propriedade do operador portuário ou independentes – nos quais a carga será armazenada. Tal serviço está previsto na Resolução Antaq nº 34/2019, que revogou a Resolução Antaq nº 2.389/2012, a qual não deixava claro se o SSE/THC2 já estaria sendo remunerado pelo THC e, portanto, ao ser cobrado novamente, estaria ocorrendo uma dupla cobrança, de onde surgiu a sigla THC2.

A principal mudança trazida pela Resolução Antaq nº 34/2019, foi a previsão para a cobrança de SSE/THC2 de forma expressa, além de afirmar, em seu art. 9º, que na importação o SSE/THC2 “não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daquelas cujas despesas são ressarcidas por meio de THC”.

Nesse sentido, a nova resolução buscou demonstrar que o serviço de segregação e entrega ou THC2 não seria remunerado pela THC e, portanto, sua cobrança seria legítima, apesar de muitos entenderem que na prática se trata do mesmo serviço e o operador portuário não foi capaz de demonstrar que o THC e o THC2 são serviços distintos. Ademais, a norma legal também aborda sanções às práticas consideradas abusivas ou ilegais e, nesse sentido, prevê um preço máximo a ser cobrado pelo SSE/THC2.

Após a publicação da Resolução Antaq, ocorreu apenas um julgamento de mérito pelo Tribunal Administrativo do Cade envolvendo a cobrança do referido título[7]. Os processos administrativos em andamento no Conselho discutem se a cobrança em função do serviço de segregação e entrega pelo operador portuário tem o condão de gerar efeitos anticoncorrenciais.

O operador portuário é a pessoa jurídica pré-qualificada para execução de operação portuária do porto organizado. Atua, no que concerne à movimentação de cargas no porto, em duas etapas. A primeira delas é descarregar os contêineres dos navios para colocar na pilha e ao realizar este serviço, o operador portuário cobra um valor a título de THC, que não é questionado no Cade. Em um segundo momento, o operador portuário movimenta a carga da pilha até o seu próprio armazém ou armazéns de terceiros. É justamente este segundo momento que é alvo de cobrança do SSE/THC2 e de questionamentos levados ao Cade por empresas que atuam no setor.

Para se compreender a dinâmica adotada pela autarquia, importante se faz abordar alguns posicionamentos proferidos no Processo Administrativo envolvendo a cobrança de SSE/THC2 julgado pelo Tribunal Administrativo em 2021, a fim de verificar como o Conselho se posicionou após a publicação da Resolução Antaq nº 34/2019.

O Conselheiro Relator Luiz Hoffmann, cujo voto apresentado foi o vencedor[8], se manifestou no sentido que os valores da cobrança do SSE/THC2 já estariam sendo remunerados por meio do THC. Destacou que é incontroverso que o operador portuário não cobra quando presta o serviço de armazenagem, ou seja, quando leva a carga para o seu próprio armazém, atuando de forma verticalizada. Ademais, destacou que o operador portuário não demonstrou que incorre em custos adicionais para poder fazer a cobrança de SSE/THC2 dos armazéns de terceiros (recintos alfandegados).

Nesse sentido, concluiu que o operador portuário abusa da posição dominante que detém, uma vez que é monopolista na cobrança de THC e aproveita dessa posição para fazer outra cobrança em duplicidade com caráter discriminatório – o SSE/THC2, sem qualquer justificativa econômica razoável. Ou seja, para o Relator, a Resolução Antaq nº 34/2019 não apresentou fato novo apto a ensejar a mudança de entendimento do Conselho, que já vinha condenando a cobrança de SSE/THC2 antes da vigência da referida Resolução.

Sobre este mesmo julgamento, o voto do Conselheiro Luis Braido[9] acompanhou o Conselheiro Relator Luiz Hoffmann apenas em suas conclusões. O Conselheiro comparou os arts. 9º das Resoluções Antaq nº 2.389/2012 e nº 34/2019[10] e concluiu que os dispositivos permitem as mesmas práticas, ou seja, permitem que o operador portuário abuse de sua posição dominante ao cobrar pelo SSE/THC2. Também destacou que o operador portuário, que atua em posição de monopolista, cobra pelo valor de SSE/THC2 apenas quando presta este serviço para concorrentes e não cobra quando atua de forma verticalizada e essa situação gera efeitos anticoncorrenciais.

Cabe salientar a posição divergente levantada pela Conselheira Lenisa Prado[11]. Para ela, o THC e o THC2 são diferentes tipos de serviço e englobam duas relações jurídicas distintas. Enquanto o primeiro trata de uma contraprestação exigida para todos os contêineres que são retirados dos navios, o segundo se refere à movimentação horizontal de cargas apenas para contêineres solicitados e não indiscriminadamente como ocorre com a THC. Assim, para a Conselheira, por se tratar de serviços diferenciados, não ocorre cobrança em duplicidade. Há que se ressaltar, no entanto, que esse posicionamento ficou vencido por não restar comprovada a distinção e individualização das atividades, nem justificativa econômica razoável para a realização da cobrança.

Apesar dos posicionamentos contrários ao Relator apresentados no Tribunal Administrativo, a maioria entendeu que a cobrança do SSE/THC2 pelo operador portuário é uma conduta anticoncorrencial, uma vez que o operador portuário abusa de sua posição dominante para realizar a cobrança. Pode ser observada uma completa assimetria de oportunidades, na medida em que o operador lança mão de estratégia heterodoxa, cobrando a tarifa para transportar a mercadoria para um armazém concorrente e não o fazendo quando suas instalações serão utilizadas, majorando, artificialmente, o custo para a concorrência.

O caso narrado evidencia com clareza a linha tênue que divide as competências da agência reguladora e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Existe, e é indubitável, uma interseção entre as atribuições de cada órgão, uma vez que a regulação setorial, na maior parte das vezes, impacta diretamente na esfera concorrencial, podendo ser o Cade instado a dirimir conflitos causados por ações anticompetitivas.

A priori, doutrinariamente, caberia às agências reguladoras a prevalência em relação à regulamentação da atividade econômica, em homenagem ao princípio da especialidade, como afirma OLIVEIRA:

Em razão da especialidade, deveria ser reconhecida, em princípio, a competência das agências reguladoras para promoção da concorrência nos setores econômicos regulados, salvo previsão legal em contrário ou celebração de instrumentos jurídicos específicos (ex.: convênios) entre o CADE e as autarquias. Em relação aos serviços públicos, em que não há livre-iniciativa e incidem exigências distintas daquelas encontradas nas atividades econômicas em geral (ex.: exigência de solidariedade etc.), não haveria que falar em atuação do CADE, mas, sim, das agências reguladoras.[12]

Outros exemplos de esbarros entre os órgãos podem ser encontrados na dinâmica da economia contemporânea. Vale dizer, à guisa de paradigma, que deve permanecer claro que enquanto as agências tratam de regulação setorial, inclusive em mercados que carecem de concorrência, o Cade, imbuído do espírito de autoridade em defesa da concorrência, deve agir de forma transversal, permeando todos os setores, porém, tão somente, nas circunstâncias em que a competitividade econômica se mostrar ameaçada por uma conduta anticoncorrencial.

Como alento e demonstração de crença no respeito à estrutura institucional do país, merece destaque o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 firmado entre o Cade e Antaq, que objetiva a cooperação e atuação integrada entre as autarquias para estabelecer procedimentos que possibilitem a análise de indícios de abusividade e condutas anticoncorrenciais na cobrança de SSE/THC2. A assinatura deste Memorando sugere a possibilidade de eliminar ou, pelo menos, mitigar os conflitos entre decisões das autarquias, trazendo maior segurança para os agentes envolvidos. A estabilidade sobre essa questão, por sua vez, poderá conferir maior equilíbrio ao setor como um todo, tornando-o mais atrativo para investidores e granjeando um maior número de interessados.

Pode-se concluir que a insegurança jurídica, proveniente do conflito de entendimentos entre o Cade e agências reguladoras, pode ser reduzida quando for estabelecida a metodologia para divisão de atribuições, o que facilitaria a caracterização dos casos nos quais se faz necessária a regulação técnica e operacional, bem como aqueles que estariam sujeitos à análise de defesa da concorrência.

Não obstante a existência de competências concorrentes, o que deve ser buscado é a interação e o diálogo interinstitucional, determinando, de forma conjunta, a amplitude da intervenção do Estado na atividade econômica. A partir de uma meta alinhada não somente com as atribuições de cada órgão, mas também – importante – com a política econômica estatal, devem ser estabelecidas ações individuais e/ou conjuntas com vistas à persecução de um mesmo fim, qual seja, o estabelecimento de um ambiente onde prospere a livre iniciativa e a ampla concorrência visando ao impulso da economia do país.


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

[3] Disponível em:
<https://www.gov.br/antaq/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/copy_of_competencias>
Acessado em 22.12.2021.

[4] Disponível em:
<https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias>
Acessado em 22.12.2021.

[5] FARACO, Alexandre Ditzel. Direito concorrencial e regulação. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. Disponível em: <https://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=98881>.
Acessado em 22.12.2021.

[6] Estatístico Aquaviário 2.1.4 – 2020. Disponível em:
<http://anuario.antaq.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=painel%5Cantaq%20-%20anu%C3%A1rio%202014%20-%20v0.9.3.qvw&lang=pt-BR&host=QVS%40graneleiro&anonymous=true>
Acessado em 22.12.2021.

[7] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Decisão publicada no DOU de 10 de fevereiro de 2021.

[8] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto do Relator Conselheiro Luiz Hoffmann. 2021.  Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yPyE8wIxrlV2F7dRUaYhWER3Tf7h6wP-LpvbXxH26q5AgMNpgrFhzVd8_xrzShRwUMxl4ziJ2GP0OL_znsaIdkq>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[9] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista Conselheiro Luis Braido, 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yP3O0a1GMZdlGqMAhNzTD2ftrt02zuieE4WDcb19wfaFhNjif7D9gKvFAiLFK1oICa5MoJsHYmd1VZPbkNNCu90>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[10] “Resolução Antaq 2389/2012 […] Art. 9º Os serviços de recebimento ou de entrega de cargas para qualquer outro modal de transporte, tanto dentro quanto fora dos limites do terminal portuário, não fazem parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso” e “Resolução Antaq 34/2019 […] Art. 9º O SSE na importação não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso. Parágrafo único. No caso em que restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal na cobrança do SSE, a Antaq poderá estabelecer o preço máximo a ser cobrado a esse título, mediante prévio estabelecimento e publicidade dos critérios a serem utilizados para sua definição”.

[11] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista da Conselheira Lenisa Prado. 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yMtn-M9J6Btqm0_LpFfVrdZH0lf5FszZFutDobaLvg_VoUdm9mcJjWs-h9cOl2c-VwC6x76hsqZtw4X4I1RI6yQ>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[12] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

** Catharina Araújo Sá é trainee do escritório Vilanova Advocacia, graduada em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB). Cursou o XVIII Curso de Extensão em Direito da Concorrência (UnB). Ex-estagiária da Coordenação-Geral de Análise Antitruste 8 (CGAA8) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Atuou na área de concorrencial e compliance em uma das maiores bancas de advocacia do País.

A síndrome do avestruz: o (des)comprometimento parlamentar com a atividade legislativa em ano eleitoral

José Américo Azevedo*

Ana Lúcia Pascon Araújo**

Bem amigos, estamos em ano de eleição para presidente, governadores, senadores e deputados. Da mesma forma que sabemos que de quatro em quatro anos temos a Copa do Mundo, pelo menos desde o período pós-redemocratização temos a certeza (?) de que teremos eleições estaduais e federal.

No entanto, embora o país fique – de certa forma – paralisado nesses anos, os problemas infelizmente não sabem que existem eleições, e continuam aparecendo e assombrando a vida de todos. São necessárias, e vamos para a frequente ladainha, reformas estruturais para reorientar o país e colocá-lo, minimamente, no rastro do século XXI.

O que se observa é que as reformas tributária, administrativa e política (verdadeira, não casuística), para ficarmos nas mais discutidas, além da necessária criação de regulamentação nos mais diversos setores para fazer frente às demandas contemporâneas, ficam tramitando morosamente na burocracia, quando não estão acumulando poeira nos escaninhos legislativos. Importante destacar que essas iniciativas são imprescindíveis para destravar não somente a economia, mas todo o funcionamento da máquina estatal e possibilitar um reencontro com o caminho do desenvolvimento.

Está a se falar, sabemos, de processos complexos, nos quais haverá a necessidade de robusta alteração no texto constitucional e na legislação complementar e ordinária. Além disso, o espectro ideológico que encontramos no Congresso Nacional é amplo – benéfico reflexo da democracia –, o que dificulta o consenso e prejudica a celeridade do processo decisório.

Mas essa é a regra do jogo e não uma novidade. O que queremos trazer à reflexão é o empenho e o comprometimento dos parlamentares com as mudanças em ano eleitoral e buscar a verdadeira razão desse comportamento lançando uma provocação: o problema não é o calendário eleitoral e sim a falta de comprometimento parlamentar com mudanças em ano de eleições.

A página eletrônica da Câmara dos Deputados nos brinda com interessantes informações referentes ao processo legislativo e à atuação parlamentar, não personificada, evidentemente, mas através de dados que permitem elaborar singelas análises estatísticas.

A escolha da Câmara do Deputados se deveu à necessária delimitação de espaço para efeitos do artigo, além de ser considerada a Casa representativa do povo brasileiro, ao passo que o Senado Federal, em nosso sistema bicameral, abriga os representantes dos interesses de cada Unidade da Federação. Ademais o universo de 513 parlamentares, muitos em uma primeira experiência eletiva, e representativo do mais amplo espectro da sociedade, nos parece mais compatível com o espírito do texto.

Além disso, quando se fez a análise das proposições que tramitam na Casa, os tipos foram limitados a projetos de lei, projetos de lei complementar e propostas de emendas constitucionais, por se tratar da essência da atividade legislativa, havendo, no entanto, outras modalidades de proposições – administrativas de maneira geral –, não consideradas nos números apresentados.

De partida, há uma percepção de que, em ano eleitoral, a atividade legislativa fica comprometida, devido ao rearranjo político necessário para o enfrentamento das eleições que se avizinham, especialmente se se considerar que cada eleição é regida por uma legislação substancialmente diversa da anterior. Por esta trilha, tem-se a necessidade de definições como partidos, federações, coligações, alianças políticas, nominatas, recursos financeiros para as campanhas, reaproximação com as bases eleitorais nos rincões interioranos, e mais uma gama de temas que preencheriam algumas laudas.

Ocorre que para comprovação de uma hipótese – o que a academia nos ensina com propriedade, embora não se tenha qualquer pretensão acadêmica com este artigo –, é necessária a verificação, através de pesquisas e coleta de informações que trarão consistentes subsídios. Assim, como já dito, a sítio eletrônico da Câmara dos Deputados reúne valiosos elementos de investigação que permite alcançar interessantes conclusões.

Para a análise pretendida, foi determinada a amplitude temporal de 1990 a 2021, pelo fato de ter sido, em 90, a primeira eleição legislativa após a escolha direta do presidente da República após quase três décadas. Dessa forma, imagina-se estar abarcando o período pós redemocratização quando se faz possível extrair comparações verossímeis.

Além disso, imperioso destacar que a atividade parlamentar não se esgota quando da apresentação de um projeto de lei, mas, essencialmente, quando há uma produção legislativa, ou seja, transforma-se em regramento legal ou constitucional uma ideia ou uma intenção tramitada pelas Casas.

Neste aspecto, podemos observar que a parte propositiva da ação parlamentar teve um aumento exponencial, como se verifica no gráfico a seguir:

Fonte: Portal da Câmara dos Deputados

O que está representado são os projetos em tramitação a cada ano na Câmara dos Deputados. Assim, se em 1990 tramitaram 45 (entre PL, PLC e PEC), em 2019 este número chegou ao inacreditável patamar de 5.156 projetos, demonstrando um afã propositivo que, pela própria quantidade de processos, põe em xeque sua qualidade, o que deve ser ponderado pelo leitor, mas, antes e, principalmente, pelo eleitor.

A curva desenhada pela estatística traz alguns indicativos de extrema importância para o tema abordado. Embora haja uma tendência indiscutível de crescimento do número de propostas em tramitação na Câmara ao longo do tempo, pode-se segmentar o gráfico por legislaturas.

Os desenhos apresentados pelos gráficos são sintomáticos em relação à atuação parlamentar ao longo da legislatura. Pode-se observar que no primeiro ano o número de propostas tramitando é o mais significativo do período, demonstrando que os parlamentares, especialmente os eleitos pela primeira vez, demonstram uma produção dinâmica, apresentando projetos de lei e de emendas à Constituição de maneira profusa. No terceiro ano, pode-se observar que há uma espécie de “veranico”, ou seja, um pequeno aumento na tramitação legislativa. Isso se deve ao fato de que vários deputados são eleitos para as prefeituras de suas cidades e uma pequena renovação ocorre no Congresso. Assim, repete-se o fenômeno do primeiro ano da legislatura de forma abrandada.

Porém, e é o tema central do artigo, o último ano do mandato é marcado pelo descompromisso do parlamentar com a tramitação dos projetos, ficando a pauta política dominada pelas eleições, sem que uma atividade legislativa robusta seja levada a cabo.

O que se infere das informações trazidas é que, em geral, o parlamentar considera cumprido seu papel após a apresentação do projeto de lei, fazendo uma devolutiva ao eleitorado acerca de sua atuação, porém responsabilizando o burocrático trâmite processual pelo insucesso na aprovação da proposta apresentada.

Mirando essa argumentação, é possível desconstruí-la ao se verificar o percentual de aprovação dos projetos. Essa proporção é inversamente proporcional ao aumento das propostas colocadas em tramitação, como pode ser observado a seguir:

Fonte: Portal da Câmara dos Deputados

Fica evidente que a concreta produção legislativa, é dizer, a lei ou emenda efetivamente aprovada, não depende do número de propostas apresentadas. Pelo contrário! Percebe-se que o parlamento é obrigado a se debruçar cada vez mais sobre temas desimportantes, devido à necessidade de cumprimento dos trâmites processuais, perdendo, de maneira transluzente, qualidade no atendimento à sociedade e atraindo a pecha da ineficiência a tão importante Poder.

Buscando efetivar uma análise onde não se incorra em sofismas estatísticos que obscureçam uma realidade, pode se argumentar que o aumento significativo do número de propostas no primeiro ano ao longo das diversas legislaturas se deve, essencialmente, ao índice de renovação na analisada Câmara dos Deputados.

Verificando essa possibilidade, observa-se que a assertiva não reflete a realidade. Como pode ser verificado, esse índice, ao longo das eleições não se apresentou significativamente variável.

É o que aponta o gráfico seguinte:

Fonte: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap)

A eleição de 1990, por motivos óbvios, já aventados no texto, trouxe uma significativa mudança na composição da Câmara dos Deputados. A partir daí, a despeito de que em 1994 o índice tenha sido pouco maior, tem-se que a variação no percentual de renovação acompanha um patamar praticamente uniforme, não havendo falar, portanto, que o aumento do número de propostas e a diminuição do percentual de aprovação sejam frutos da renovação da composição legislativa.

Com essa reflexão, o que se objetiva é ponderar a respeito do comportamento que a sociedade espera em relação aos parlamentares. É certo, e se enquadra dentro de um ambiente político-democrático, que as atribuições de um parlamentar não se resumem ao cumprimento de horário de trabalho na Câmara dos Deputados, em horário denominado como comercial.

É necessária a visita às bases, o acompanhamento, em seus Estados, das necessidades da população e da interação, corpo a corpo com a sociedade. E isso não se faz somente aos sábados e domingos. O deputado, parlamentar foco do artigo, tem que dividir seu tempo, muitas vezes em jornadas extenuantes entre Brasília e sua região eleitoral.

O que se busca trazer à lume é se há a necessidade da sanha propositiva, como que para somente dar uma satisfação aos eleitores, sem que o necessário acompanhamento e movimentação sejam realizados, especialmente em ano eleitoral, quando os problemas não deixam de existir aguardando os próximos representantes.

Há que, por fim, deixar claro que esta é uma análise baseada em dados fornecidos pela própria Câmara dos Deputados, sem qualquer intuito de personificar – ou fulanizar, para usar expressão da moda – comportamentos de parlamentares.

Sabemos, todos, que numa Casa cuja principal missão é representar o povo, o povo estará representado em sua proporção com os variados matizes ideológicos e comportamentais que refletem a sociedade. Embora haja aqueles que não valorizam o mandato concedido pelo cidadão, agindo como avestruzes que enfiam a cabeça na areia deixando o resto do corpo de fora, existem inúmeros parlamentares que honram a distinção conferida, atuando de maneira sóbria e cidadã, participando efetivamente de atividades construtivas como frentes parlamentares, grupos de trabalho, comissões interdisciplinares e outras diversas formas.

No entanto, como última reflexão, é preciso lembrar que cada deputado ou cada senador só está ocupando essa posição a partir de uma procuração que lhe foi outorgada através da mais legítima ferramenta da democracia, perseguida por todos, o voto popular.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações. Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

** ANA LÚCIA PASCON ARAÚJO. Possui graduação em Administração pelo Centro Universitário de Brasília, graduação em Direito pela UDF Centro Universitário e mestrado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Possui experiência em direito material e processual do trabalho, tendo atuado como assessora jurídica em gabinete de ministro do TST.

Políticas de concorrência e de acesso a mercados para o fortalecimento de pequenos negócios no pós-covid 19

Fernando de Magalhães Furlan

O Brasil não é exceção quanto aos graves impactos econômicos e sociais da pandemia do COVID-19. Neste contexto, muitas micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) ficaram à beira do fechamento ou foram forçadas a sair do mercado. Além disso, um grande número das que permanecem está altamente vulnerável. Duas questões cruciais e complementares para lidar com a atual pandemia e no esforço de recuperação das economias nacionais são a política de concorrência e o acesso a mercados para as MPMEs.

Quanto à política de concorrência, muitas Jurisdições adaptaram temporariamente uma série de disposições em relação às suas legislações e procedimentos. Algumas estão se concentrando, pela primeira vez, no impacto de suas decisões sobre as MPMEs e até as orientando a reter ou obter acesso a mercados e consumidores.

Ainda que ninguém possa considerar o momento atual positivo, é preciso reconhecer que a pandemia, e a consequente crise dela derivada, trouxe também a oportunidade de, por força da necessidade, alavancar a inclusão digital dos pequenos negócios.

A capacidade de uma empresa de oferecer livremente seus bens ou serviços a consumidores, atuais e potenciais, é essencial à sua sobrevivência, e, portanto, uma questão incontornável para a política de concorrência. Essa interação entre a política de concorrência e o acesso a mercados tem um papel ainda mais crucial para garantir a sobrevivência das MPMEs, tanto durante, quanto após o COVID-19.

Em muitos setores onde as MPMEs são preponderantes, como serviços pessoais, serviços de saúde e afins, viagens e turismo, a restrição de movimentação física de consumidores nega às MPME o acesso a esses mercados de consumo.

Estudos têm demonstrado que a maioria das MPMEs tem um conhecimento muito limitado de seus direitos e obrigações em relação às leis de concorrência, e ainda menos inclinação para utilizá-los em seu benefício, a menos que seja assistida por uma associação comercial ou organismo semelhante[1].

Isso também se aplica quando uma MPME é vítima de uma violação da lei de concorrência por outra empresa. Muitas sequer têm ciência de tais violações ou conhecimento das medidas protetivas e corretivas disponíveis. Além disso, o sistema legal, na maioria dos países, é lento, caro e raramente oferece um resultado comercialmente viável para as MPMEs.

Consequentemente, em questões de concorrência, as pequenas empresas estão efetivamente tendo dificuldades de acesso à justiça e a políticas públicas econômicas eficazes[2].

Para as economias em desenvolvimento, onde o conhecimento das leis e políticas de concorrência pode ser ainda mais limitado, as associações representativas têm um papel fundamental a desempenhar, tanto educando suas MPMEs sobre a existência de leis de concorrência, quanto auxiliando no seu cumprimento e na sua aplicação[3].

As associações empresariais de MPMEs, portanto, têm um papel essencial de conscientização e compliance em relação aos mecanismos disponíveis nas leis de concorrência para isentar ou autorizar condutas. É natural que as MPMEs, individualmente, tenham receio de represálias ou de danos à reputação com fornecedores e consumidores, sendo crucial a representação por meio de associações.

Porque as MPMEs, e até mesmo suas associações, podem ter conhecimento e compreensão limitados das leis de concorrência, a advocacia da concorrência, a educação e o treinamento se tornam importantes instrumentos para melhorar o seu acesso a mercados e permanência saudável neles.

No Brasil, ainda que a atuação do CADE tenha sido rápida em relação a dúvidas sobre a aplicação da lei de concorrência durante a pandemia do COVID-19, seja emitindo orientações em seu sítio na Internet, seja instruindo e julgando casos, não há um guia específico, do CADE ou da SEAE/ME, para MPMEs ou qualquer atividade de advocacia da concorrência voltada para o setor ou para as suas associações representativas.

Esta carência foi recentemente apontada por representante da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Distrito Federal, que assinalou que:

“É preciso fortalecer o lado advocacy do conselho. O Cade é bastante esclarecedor para quem trabalha diretamente com o tema, mas precisa se voltar mais para as pequenas empresas. Alguém que não conta com uma estrutura especializada tem muitas dificuldades, inclusive, para encontrar informações no site”[4].

Acesso a mercados digitais por pequenas empresas no pós-COVID-19

A pandemia contribuiu radicalmente para “empurrar” a transformação digital para os pequenos negócios. Recente pesquisa publicada demonstra que consumidores em economias emergentes, mais do que em países desenvolvidos, optaram por compras online. Essa tendência é prevista para continuar no futuro pós-COVID-19[5].

         A inovação tecnológica representa uma importante estratégia de competitividade e muitas MPMEs se digitalizaram durante a pandemia para sobreviver, modificando sua forma de fazer negócios.

No entanto, há falta de preparação digital entre muitas pequenas empresas. As MPMEs em países em desenvolvimento enfrentam desafios específicos, como a qualidade da infraestrutura de TI e dos serviços relacionados nessas regiões, o que coloca suas empresas em desvantagem competitiva em relação às empresas baseadas em países industrializados e, em comparação, às empresas nacionais maiores, que geralmente possuem mais recursos online.

Pode haver acesso desigual às TIC (tecnologias de informação e comunicação) dentro do mesmo país (ou seja, barreiras de última milha), o fornecimento de energia geralmente é caro e não confiável, muitos gerentes e funcionários não possuem alfabetização digital e em algumas comunidades pode haver baixos níveis de familiaridade do consumidor com ferramentas online. Além disso, as MPMEs normalmente estão menos protegidas contra-ataques cibernéticos do que suas contrapartes maiores.

Não obstante, o acesso às plataformas digitais é vital para a diversificação das MPMEs e tornou-se essencial para a competição durante (e após) a pandemia. A crescente dependência da digitalização levanta preocupações concorrenciais em uma série de facetas diferentes, como, por exemplo, a instituição de políticas por provedores que restringem a liberdade de seus usuários de também negociar com concorrentes, ou estipulam taxas e condições não razoáveis.

De acordo com recente documento da OCDE[6], os mercados digitais merecem priorização na recuperação pós-pandemia, pois as plataformas digitais estão entre as poucas vencedoras da crise. O gasto total online nos EUA, por exemplo, aumentou 76%, ano a ano, em maio passado[7]. Como resultado, o poder de mercado de algumas dessas empresas, que já trazia preocupações em certos mercados antes, podem continuar a se expandir e justificar o escrutínio por parte das autoridades de concorrência.

Uma tendência evidente entre as MPMEs em todo o mundo é a migração, em grande escala, da atividade comercial para o ambiente online. Seja por meio de páginas da web, mídia social, funções de chat ou uma combinação dessas, muitas empresas agora estão usando essas ferramentas para vender produtos e serviços.

Diferentes abordagens estão sendo usadas pelas MPMEs. Em alguns casos, as pequenas empresas estão criando ou reformulando sites para torná-los mais atraentes e para permitir compras diretas pelos consumidores pela primeira vez. Algumas empresas estão vendendo diretamente, por meio de várias plataformas de mídia social. Outras estão usando plataformas agregadas em grande escala, como eBay, Amazon e similares. O governo chinês, por exemplo, está incentivando as empresas de plataforma a reduzir as taxas de entrada[8].

Muito embora o comércio online tenha sido um grande facilitador de acesso a mercados de clientes novos e existentes para empreendedores de pequena escala, em muitas economias em desenvolvimento, como visto, o acesso ao mercado digital é limitado pela falta de infraestrutura de comunicação adequada, pelo acesso precário à internet, pela capacidade limitada de wi-fi e, principalmente, pela falta de habilidade digital.

O COVID-19 impulsionou as compras online na globalmente, e a América do Sul não foi diferente. Por exemplo, 7,3 milhões de brasileiros fizeram compras online pela primeira vez durante a pandemia. Na Argentina, o número de compradores online pela primeira vez durante a pandemia foi equivalente a 30% da base de compras online de 2019.

Evidente, portanto, a necessidade de treinamento digital amplo, simples e prático para pequenos empreendedores. Como exemplo, a China adotou várias políticas para incentivar as MPMEs a usar ferramentas online para trabalho remoto, ajudá-las a expandir seus canais de marketing e, assim, acelerar a transformação digital[9]. Nas Filipinas, o Congresso está propondo um projeto de lei com uma série de medidas destinadas a estimular a economia e promover a continuidade dos negócios, incluindo a aceleração do comércio online e a digitalização das MPMEs[10].

Por fim, há a questão do acesso igualitário ao comércio digital. Empresas maiores geralmente têm maior capacidade de obter acesso ao ambiente online que as empresas menores. Por exemplo, empresas maiores podem empregar estratégia de proteção de várias URLs[11] e otimização de mecanismos de pesquisa para evitar o acesso de outras empresas – uma estratégia que não é ilegal, mas improvável de estar disponível para pequenas empresas, sem os recursos financeiros ou tempo para realizar tal atividade.

Várias plataformas também foram acusadas ​​de empregar práticas supostamente anticoncorrenciais que prejudicam empresas menores. Por exemplo, a Comissão Europeia multou a Google  em 2,42 bilhões de euros, em 2017, por abuso de sua posição dominante ao dar preferência ao seu próprio site, na comparação de preços em seu mecanismo de pesquisa/busca[12].

Melhores práticas internacionais selecionadas de políticas de concorrência para MPMEs durante e pós-COVID-19

Algumas das tendências globais estão afetando positivamente as MPMEs, na medida em que se relacionam a questões de concorrência e acesso a mercados na era COVID-19 e pós:

  1. Ampliação da comunicação entre as autoridades de concorrência e representantes do setor das MPMEs:

Autoridades de concorrência têm sido proativas no fornecimento de informações às MPMEs e outras partes interessadas em relação à abordagem do COVID-19. Por exemplo, a Comissão de Concorrência das Filipinas publica e atualiza FAQs (“perguntas frequentes”) em seu sítio na Internet e em redes sociais, como parte de suas soluções para a crise do COVID-19[13].

Na Austrália, a ACCC opera uma rede de informações para pequenas empresas, com milhares de assinantes MPME, e envia e-mails regularmente com informações sobre questões relevantes.

  • Maior proximidade entre os formuladores de políticas públicas de concorrência e acesso a mercados e as entidades representativas e de apoio a MPMEs

        
Uma tendência encorajadora entre muitas autoridades, reguladores e formuladores de políticas públicas tem sido a crescente interação com organizações representativas e/ou de apoio às MPMEs. Por exemplo, uma autoridade de concorrência da Ásia tem realizado webinars direcionados a educar associações empresariais, MPMEs individuais e cooperativas sobre seus direitos em relação às leis de concorrência[14].

Outras autoridades[15] consultam regularmente associações representativas de MPMEs, como parte de seu trabalho de defesa de direitos e reconhecem que essa consulta contínua será importante também no pós-pandemia.

No entanto, a maior parte das autoridades de defesa da concorrência não está familiarizada com a realidade das MPMEs e o funcionamento de suas associações representativas. Poucos de seus funcionários e membros/comissários tiveram experiência direta na operação de uma pequena empresa, desconhecendo as restrições, problemas e desafios cotidianos do mundo real das MPMEs.

Por outro lado, muitas entidades representativas de MPMEs pouco conhecem do funcionamento dos poderes públicos e limitada capacidade e recursos para exercer influência. Em contrapartida, as grandes empresas têm capacidade sofisticada e desenvolvida de influenciar decisões públicas. Este desequilíbrio pode ter efeitos deletérios para os pequenos negócios.

Entidades representativas de MPMEs com maior capacidade para trabalhar com o governo, entidades públicas e servidores; que de sua parte possuem bom entendimento do mundo prático das MPMEs, significam políticas públicas de maior qualidade e melhores resultados, pois os formuladores de políticas desenvolverão estratégias mais direcionadas e eficazes para melhorar as condições de acesso a mercados para as MPMEs.

Conclusões:

O papel das autoridades nacionais de defesa e advocacia da concorrência na recuperação das MPMEs no pós-pandemia será especialmente importante no aumento da proximidade e, assim, na interação e influência recíproca com as entidades representativas e de apoio às MPMEs; na constante advocacia da concorrência para o aumento das condições competitivas no mercado financeiro, especialmente no acesso ao crédito para as MPMEs e, por fim, mas não menos importante,  na garantia de acesso e utilização igualitários, justos e razoáveis a plataformas e mercados digitais.

É certo que o trabalho do CADE, da SEAE/ME e a cultura da concorrência evoluíram e se difundiram no país. Contudo, não é possível, ainda, considerar que o conhecimento da legislação e a tradição da concorrência estejam plenamente maduros no país.

Neste contexto, a entidade e o órgão integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) devem, não somente orientar a sociedade e o mercado por meio de suas decisões e estudos, mas também pelo cotidiano contato e interface com essa mesma sociedade, orientando-a e esclarecendo-a sobre a legislação antitruste, sua interpretação e aplicação.

Quanto ao acesso de pequenos negócios aos mercados digitais, as autoridades de concorrência têm um papel fundamental em garantir que plataformas digitais com participações de mercado estratosféricas não abusem de suas posições dominantes, provocando efeitos anticompetitivos.

Por fim, uma maior proximidade entre autoridades de defesa e advocacia da concorrência, agências de apoio a MPMEs e entidades representativas do setor será sempre benéfica e sem “contra-indicações”. Iniciativas para educar associações empresariais e cooperativas de MPMEs sobre os seus direitos em relação às leis de concorrência[16], criar e manter mecanismos permanentes de consultas recíprocas e permitir a familiaridade das autoridades de concorrência com a realidade das MPMEs e vice-versa garantem o cumprimento da Lei da Concorrência (Lei nº 12.529/11) e não trazem qualquer efeito negativo ao mercado e à atuação das autoridades, ao contrário.


[1] Schaper, M. (2016) “Small Business, The Law and Access to Justice: Issues and Challenges” in Clark, D.; McKeown, T. & Battisti, M. (eds) (2016) Rhetoric and Reality: Building Vibrant and Sustainable Entrepreneurial Ecosystems, Melbourne: Tilde Press, pp.21-35.  Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[2] Australian Small Business & Family Enterprise Ombudsman (2018) Access to Justice: Where Do Small Businesses Go? Canberra: ASBFEO; Burgess, R. (2016) “SMEs and Private Enforcement of Competition Law: Achieving Redress” Global Competition Law Review, No. 3, pp.85-88. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[3] Burgess, R. Trade Associations: Competition Law Advocates or Offenders? in Schaper, M. and Lee, C. (eds) (2016) Competition law, Regulation and SMEs in the Asia-Pacific: Understanding the Small Business Perspective, Singapore: ISEAS – Yusof Ishak Institute. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[4] “OAB critica atuação do Cade junto às pequenas e médias empresas”. Disponível em: https://diariodocomercio.com.br/legislacao/oab-critica-atuacao-do-cade-junto-as-pequenas-e-medias-empresas. Acesso em 10/01/2021.

[5] UNCTAD (2020), ‘COVID-19 and E-commerce – Findings from survey of online consumers in 9 countries’, 8 October 2020. Disponível em: https://unctad.org/news/COVID-19-has-changed-online-shopping-forever-survey-shows. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 14/01/2021.

[6] OCDE (2020), O papel da política de concorrência na promoção da recuperação econômica. DAF / COMP / WD (2020) 78. Disponível em: www.oecd.org/daf/competition/the-role-of-competition-policy-in-promoting-economicrecovery-2020.pdf. Acesso em 03/04/2021.

[7] Adobe Analytics (2020), Digital Economy Index. Disponível em: https://www.adobe.com/experiencecloud/digital-insights/digital-economy-index.html. Apud OCDE (2020), O papel da política de concorrência na promoção da recuperação econômica. DAF / COMP / WD (2020). Disponível em: www.oecd.org/daf/competition/the-role-of-competition-policy-in-promoting-economicrecovery-2020.pdf. Acesso em 03/04/2021.

[8] UNCTAD, 2020. “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 28/02/2021.

[9] World Bank (2020) Map of SME-Support Measures in Response to COVID. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/data/interactive/2020/04/14/map-of-sme-support-measures-in-response-to-COVID. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 18/01/2021.

[10] Aquende, E. (2020) “Balancing Competition Law and the Preference for Filipino Businesses” Business Mirror. Disponível em: https://www.phcc.gov.ph/column38-bm-ceba-balance-complaw-filipino-businesses/. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 18/01/2021.

[11] Uma URL é, basicamente, o endereço virtual de uma página ou website. A sigla tem origem expressão inglesa “Uniform Resource Locator”.

[12] Google LLC and Alphabet Inc. v. European Commission (Case T-612/17). Disponivel em: http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=en&td=ALL&num=T-612/17. Acesso em: 18/01/2021.

[13] PCC (2020) COVID19 Questions. Disponivel em:  https://phcc.gov.ph/wp-content/uploads/2020/07/PCC-COVID-Resources-Frequently-Asked-Questions.pdf. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 14/01/2021.

[14] Philippines Competition Commission. PCC (2020). Facebook post. Disponível em:  https://www.facebook.com/competitionph/posts/3420606798003815Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 18/01/2021.

[15] Cingapura, Austrália e Reino Unido. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 18/01/2021.

[16] Philippines Competition Commission. PCC (2020). Facebook post. Disponível em:  https://www.facebook.com/competitionph/posts/3420606798003815Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020. Acesso em 18/01/2021.

O Projeto de Lei das Criptomoedas

Fernando de Magalhães Furlan

No início de outubro de 2021 foi publicado parecer favorável[1] da Comissão Especial destinada a analisar o Projeto de Lei nº 2303/2015, que “dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais (…) na definição de ‘arranjos de pagamento’, sob a supervisão do Banco Central do Brasil”.

A Comissão Especial, que discute a regulação de criptoativos no país, já havia aprovado, em 28/09/2021, o substitutivo apresentado pelo relator da matéria. O texto aprovado apresenta conceitos gerais e deixa aos reguladores (Banco Central do Brasil[2] e Comissão de Valores Mobiliários – CVM[3]) a normatização infralegal da matéria.

A proposta legislativa agora segue à votação pelo plenário da Câmara dos Deputados e, se aprovado, vai a votação no Senado Federal para posterior sanção do presidente da República.

Em sua análise de constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do Projeto de Lei nº 2303/2015, o parecer aprovado pela Comissão Especial assim consignou:

(…) Não se verificam máculas na proposição quanto aos princípios constitucionais e legais que regem a possibilidade de regulação das chamadas moedas virtuais (…). De fato, além da falta de dispositivo contrário na Carta Magna, a norma tem como pressuposto atender o princípio basilar da Ordem Econômica, assentado expressamente no inciso V do artigo 170, ou seja, a defesa do consumidor”.

Outrossim, o artigo 170 da Constituição Federal, em seu inciso IX, também elege o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte como princípio geral da atividade econômica. Além disso, a Carta Magna erige a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput) e da própria República (art. 1º, IV).

Em síntese, a proposta legislativa pretende: a) tipificar o crime de “fraude em prestação de serviços de ativos virtuais”; b) inclusão das prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol constante do art. 16 da Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986, caracterizando crime a situação em que a prestadora opere sem que estar devidamente autorizada; c) aumento da pena para os crimes de lavagem de dinheiro, com o uso de ativos virtuais; e d) regras transitórias para as prestadoras de serviços de ativos virtuais em atividade na data da publicação do novo regramento, dispondo que estas terão o prazo de cento e oitenta dias, para ajustarem-se às normas emanadas pelos órgãos reguladores sobre as atividades realizadas.

O art. 2º da proposta prevê que as prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no país mediante prévio registro, podendo ser exigida autorização de órgão ou entidade da Administração Pública Federal a ser indicado em ato do Poder Executivo.

Além disso, o parágrafo único do art. 3º estipula que competirá a órgão ou entidade da Administração Pública Federal, definido em ato do Poder Executivo, estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei.

De acordo com o art. 4º, a prestação de serviços de ativos virtuais deve seguir os parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública Federal, consoante os arts. 2º e 3º, além de observar as seguintes diretrizes: a) livre iniciativa e livre concorrência; b) boas práticas de governança e abordagem baseada em riscos; c) segurança da informação e proteção de dados pessoais; d) proteção e defesa de consumidores e usuários; e) proteção à poupança popular; f) solidez e eficiência das operações; e g) prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais.

Praticamente todos os incisos do artigo 4º da proposta são programáticos e, no mais das vezes, até mesmo redundantes, visto que enfatizam a aplicação de legislação já em vigor a situações, atos e fatos já regulamentados, seja pela perspectiva da defesa do consumidor, da proteção de dados, da proteção à poupança popular, da governança e mesmo do combate ao terrorismo e às armas de destruição em massa.

Aliás, esta última orientação soa um tanto hiperbólica, já que não é o meio que determina o ilícito, mas a sua própria essência. Ou seja, não é porque alguns utilizam ativos digitais para a prática de crimes que esses ativos se tornam ilegais por si sós. Assim fosse, o papel-moeda circulante também deveria ser considerado ilícito em seu cerne, visto que é amplamente utilizado para a prática de atos ilegais.

 Ainda, consoante o art. 7°, compete ao regulador indicado em ato do Poder Executivo Federal: a) autorizar o funcionamento, a transferência de controle, fusão, cisão e incorporação da prestadora de serviços de ativos virtuais, na hipótese de autorização mencionada no caput do art. 21; b) estabelecer condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais em prestadora de serviços de ativos virtuais e autorizar a posse e o exercício de pessoas para cargos de administração na hipótese de autorização mencionada no caput do art. 21; c) supervisionar a prestadora de serviços de ativos virtuais e aplicar as disposições da Lei n° 13.506, de 13 de novembro de 2017, em caso de descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação; d) cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações de que tratam os incisos 1 e II, quando exigidas; e) dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações de que trata o art. 5º serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão se submeter à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.

Em tempos de propalada liberalização da economia, com a edição da chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019[4]) e outras[5], dentro do mesmo contexto, parece atitude farisaica aquela de restringir, condicionar, limitar e, até mesmo, cancelar o funcionamento de empresas de um setor altamente inovador, em sua maioria, de pequeno ou médio portes.

É certo que alguma regulação do setor de criptoativos era esperada, mas se supunha que seria direcionada a criar um ambiente legal e regulatório propício ao desenvolvimento dessas inovações no mercado financeiro, não partir do pressuposto de que as empresas do setor já nascem suspeitas, simplesmente porque manejam ativos financeiros não lastreados pelo Estado.

Infelizmente, o viés político-eleitoral, acima do legislativo, parece haver contaminado, tanto a iniciativa, quanto a discussão e eventual aprovação da proposta. Há redundância com atos normativos já existentes, inclusões desnecessárias na legislação, criação de situações específicas que já se encontravam incluídas nas hipóteses genéricas da legislação em vigor, enfim, uma série de aspectos que revelam interesses secundários, ainda que legítimos do ponto de vista parlamentar.

O art. 10 estipula a inclusão do artigo 171-A ao Decreto-Lei n° 2.848/1940 (Código Penal), nos seguintes termos:

Fraude em prestação de serviços de ativos virtuais.

Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais, com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa.”

Quanto ao dispositivo acima, impressiona o fato de haver passado ileso pela análise de juridicidade da Comissão Especial. O que se propõe é a criação de um novo tipo penal, com artigo específico no código, quando o tipo penal já existe e está previsto no caput do artigo 171.

O que o projeto de lei pretende é simplesmente incluir a expressão “organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais” ao texto já em vigência e que lê:

obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

Como já dito, não parece correto criminalizar o meio, a tecnologia ou a inovação, mas, ao contrário, é preciso concentrar esforços na persecução àqueles que se utilizam dela para a prática de crimes.

A proposta, ademais, ao pretender criar tipo penal, também se propõe a aumentar a pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa (crime de estelionato) para 4 a 8 anos de reclusão e multa (fraude com ativos virtuais), como se o simples fato de serem utilizados “ativos virtuais” no ilícito, teria o condão de ampliar a sua antijuridicidade ou punibilidade.

Já o art. 11 altera a redação do art. 16, da Lei n°7.492/1986 (Lei dos Crimes contra o SFN), que passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio, bem como a prestadora de serviços de ativos virtuais”.

Pois bem, o projeto de lei busca inserir a expressão “bem como a prestadora de serviços de ativos virtuais” na redação do atual art. 16.  Novamente, a alteração do dispositivo parece retórica, eis que a própria Lei nº 7.492/86 já dispõe em seu artigo 1º, parágrafo único que:

Parágrafo único. Equiparam-se à instituição financeira:

I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;

II – a pessoa natural que exerça qualquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual”.

Ora, se a própria lei já equipara à instituição financeira qualquer pessoa jurídica que capte ou administre (…) recursos de terceiros, bem como qualquer pessoa física que exerça qualquer das atividades referidas, ainda que de forma eventual, desnecessária a adição do termo ao artigo 16 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro. Mesmo porque o próprio caput do art. 1º também inclui a custódia de valores nas atividades típicas das instituições financeiras e equiparadas.

O art. 12 acrescenta o termo “ou por meio da utilização de ativo virtual” ao § 4º do artigo 1º da Lei n° 9.613/1998 (Lei de lavagem de Divisas), que passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. 

§ 4º A pena será aumentada de um a dois terços se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual“.

Dito de outra forma, o que o legislador aqui almeja é equiparar a utilização de “ativo virtual” à organização criminosa, para fins de aumento de pena de um a dois terços. Ou seja, para a Comissão Especial, o uso de “ativos digitais” é, por si só, tão reprimível e condenável quanto a “associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente (…) para a prática de infrações penais(…)”.

Além disso, o art. 12 também acrescenta o inciso XIX ao parágrafo único do artigo 9º da mesma Lei nº 9.613/98 (Lei de Lavagem de Divisas), verbis:

9º. Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:

(…)

Parágrafo único. Sujeitam-se às mesmas obrigações:

XIX – as prestadoras de serviços de ativos virtuais.”

Aqui também caberiam os mesmos comentários já feitos sobre o artigo 12 do projeto de lei. Contudo, como nisto o espírito do legislador parece ter sido, ao longo do tempo, o de identificar novas modalidades e incluí-las no texto legal, mister reconhecer a adequação de mais este adendo às situações previstas no art. 9º da Lei nº 9.613/98, ainda que o caput do art. 9º, e seus incisos, já abranjam, de forma genérica, todas as possibilidades descritas no parágrafo único.

E, finalmente, o art. 12 também acrescenta a expressão: “ativos virtuais” ao inciso II do art. 10 da Lei nº 9.613/98:

Art. 10 As pessoas referidas no art. 9º:

(…)

II – Manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ativos virtuais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas;”.

Mais uma inovação legislativa desnecessária, já que a expressão “ou qualquer ativo possível de ser convertido em dinheiro” abarca os “ativos virtuais”.

Mas nem tudo são críticas, se há um reconhecimento que deve ser feito em relação ao projeto de lei, é que ele tem a modéstia de endereçar aos entes reguladores a regulamentação desse mercado.

Esperemos que o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) busquem uma regulamentação[6] inclusiva, desburocratizada, orientada por bases técnicas, e não apenas financeiras. Também se espera desses reguladores que desenhem formas de consulta ao setor privado e prestação de contas à sociedade.


[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1555470. Acesso em: 08/11/2021.

[2] Sobre BACEN e criptoativos, vide: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso em: 08/11/2021.

[3] Sobre a CVM e os criptoativos, vide: https://www.investidor.gov.br/publicacao/Alertas/alerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf. Acesso em: 08/11/2021.

[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 08/112021.

[5] Entre outras, a Lei nº 13.848/2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13848.htm. Acesso em: 08/11/2021.

[6] Ver: https://www.seudinheiro.com/2021/economia/presidente-do-bc-revela-conversa-com-cvm-sobre-regulacao-de-bitcoin-e-outras-criptomoedas/. Acesso em: 08/11/2021.

O dia em que o Bitcoin virou moeda soberana

Fernando de Magalhães Furlan

Na semana passada, El Salvador, menor país da América Central continental e 3ª maior economia daquela região (PIB de US$ 25 bi, em 2020)[1], aprovou lei que oficializa a adoção do Bitcoin como moeda de curso oficial (moeda fiat ou moeda soberana) naquela jurisdição. Antes do Bitcoin, El Salvador já havia aberto mão de sua soberania monetária ao adotar o dólar estadunidense, em 2001.

Assim, a iniciativa de El Salvador de incluir o Bitcoin como moeda de curso forçado, uma “moeda” sobre a qual não terá qualquer controle sobre emissão ou circulação, não parece tão radical, se considerarmos que há duas décadas isso já acontece lá em relação ao dólar.

Ou seja, El Salvador não tem qualquer controle sobre a sua própria política monetária. Desta forma, qualquer medida anticíclica, para frear ou acelerar a economia, só pode ter caráter fiscal ou pelo aumento do nível de endividamento público (já alto)[2].

Lightning Network Strike[3], uma plataforma de processamento de pagamentos por criptografia, desenvolvido pela startup Zap Solutions, com sede em Chicago, é a tecnologia operacional por trás do anúncio de El Salvador.

Mas além da jogada política de um jovem presidente em primeiro mandato, a iniciativa tem também razões pragmáticas. Aproximadamente 20% a 25% do PIB do país são formados por remessas que emigrantes (cidadãos salvadorenhos vivendo no exterior) enviam de volta para o país. Isto representa 5 a 6 bilhões de dólares ao ano, uma quantia que não pode ser desprezada.

Além disso, historicamente esse montante transacionado internacionalmente pode ser tarifado em até 10% pelos serviços bancários/financeiros tradicionais e demorar vários dias para chegar a El Salvador. Em alguns casos, o destinatário tem até mesmo que realizar fisicamente a coleta da remessa.

Neste contexto, estamos falando de uma economia de 500 a 600 milhões de dólares ao ano, tanto para o cidadão, quanto para o país, pois a oficialização do Bitcoin será benéfica para as movimentações financeiras internacionais de salvadorenhos, pois a criptomoeda descentralizada/distribuída cobra uma taxa de cerca de apenas US$ 5 por transação.

Outro motivo por trás do anúncio, é o potencial que o Bitcoin pode ter em seu uso cotidiano, como meio de troca em transações pequenas, criando uma rede financeira aberta, que beneficiaria os cidadãos e empresas salvadorenhos. Lembrando que em El Salvador predomina o uso do dinheiro físico nas transações diárias, cerca de 70% das pessoas não têm conta bancária ou cartão de débito/crédito[4].

Contudo, há o grande desafio da volatilidade do preço do Bitcoin, que dificulta o seu uso cotidiano. Somente em 2021, o ativo mais que dobrou de valor e atingiu o recorde de US$ 64 mil, sendo negociado “atualmente” a US$ 37 mil, aproximadamente. Em 19 de maio deste ano, por exemplo, no espaço de algumas horas, o preço do Bitcoin caiu 30%.

Para evitar essas oscilações, foram criadas as chamadas stablecoins, que rastreiam moedas emitidas pelos governos (moedas fiat ou soberanas).

Além disso, uma série de criptomoedas menores está surgindo. No total, 10.000 estão listadas no CoinMarketCap[5], quase o dobro de um ano atrás. O Bitcoin ainda é responsável por 40% do valor total negociado em criptomoedas, em comparação a 70% em janeiro deste ano.

Além de adotar a criptomoeda como moeda oficial, o presidente de El Salvador informou que também instruiu a companhia estatal de eletricidade geotérmica do país a apresentar um plano para oferecer instalações para a mineração de Bitcoin com energia limpa e renovável, proveniente dos inúmeros vulcões do país[6].

As reações da comunidade financeira internacional, entretanto, já começaram. Kenneth Rogoff, professor de Harvard e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) afirmou que “os governos vão regulamentar e vencer o Bitcoin[7]. Na mesma linha, o diretor de comunicações do FMI, Gerry Rice, disse que a adoção do Bitcoin como moeda de curso legal em El Salvador “levanta uma série de preocupações jurídicas e econômicas”, sem, contudo, identificá-las. Para o presidente do banco central da Suécia, Stefan Ingves, “o Bitcoin se tornou um ativo grande demais para escapar da regulação[8]. Ele acredita que, à medida que o setor das criptomoedas crescer, naturalmente atrairá mais regulação. Isto porque a rápida expansão das criptomoedas no ano passado – US $ 2,4 trilhões em seu pico – atraiu a atenção jurídica e regulatória dos bancos centrais mundo afora.

Neste contexto de “estatização” do Bitcoin, também acompanhamos, recentemente, o prenúncio das moedas digitais soberanas, ou CBDCs (Central Bank Digital Currencies), moedas digitais dos bancos centrais que combinam a funcionalidade dos pagamentos eletrônicos com a acessibilidade universal do dinheiro, e prometem facilitar pagamentos e promover inclusão financeira. As CBDCs podem ser programadas, permitem maior controle sobre os fluxos financeiros no país e ajudam a reduzir os custos envolvidos na emissão de papel-moeda. Pelo menos 41 bancos centrais já se manifestaram sobre a possibilidade de emitir alguma forma de moeda digital até o fim de 2020, segundo registro do Banco de Compensações Internacionais (BIS).

A China desponta com testes que já somam dezenas de milhões de yuans digitais. O Brasil também faz parte do movimento e pode ter sua própria moeda digital nos próximos anos.

A moeda digital emitida por banco central (CBDC) é um passivo do banco, ao contrário das criptomoedas, que não são emitidas por nenhuma autoridade monetária, e tem conversibilidade garantida com as moedas nacionais convencionais. Além de funcionarem como reserva de valor, as moedas digitais de varejo podem ser utilizadas para realizar transferências via celular/tablet ou pagamentos off-line, por meio de dispositivos próprios, nos pontos de venda (points of sale – PoS).

As CBDCs podem ser uma alternativa segura, barata e eficiente para realizar pagamentos – domésticos e internacionais. Durante a pandemia, as medidas de isolamento social aceleraram a mudança de hábitos em direção aos pagamentos digitais. Ela acompanhou o aumento do e-commerce e outras formas de compras remotas, bem como a opção do público por métodos “sem contato”, nas transações financeiras.

Com a moeda digital, todos os cidadãos poderão ter uma conta junto ao banco central (ou receber uma espécie de token, código que equivale a uma quantia de CBDCs, para utilizar em qualquer estabelecimento). Assim, a CBDC pode vir a ser uma alternativa para incluir populações vulneráveis no sistema de pagamentos e reduzir o uso do dinheiro físico nos países em que o sistema bancário atual não atinge boa parte da população, como é o caso brasileiro.

As políticas emergenciais de distribuição de renda em resposta à crise do COVID-19 em vários países, confrontaram os governos com a necessidade de transferir dinheiro para o público de maneira rápida, segura e inclusiva, sem que as pessoas precisassem sair de casa.

As cédulas e moedas físicas não vão “sumir” imediatamente. Os bancos centrais devem seguir emitindo notas suficientes para atender à demanda daqueles que preferirem utilizar a moeda em meio físico. A ideia dos bancos centrais é que, conforme as pessoas se habituem às formas eletrônicas de guardar e transferir valores, a opção por uma moeda digital se torne natural. O papel dos bancos centrais será oferecer as duas opções para que empresas e indivíduos gradualmente substituam o papel-moeda pela moeda digital.

Por fim, um outro assunto relevante sobre o mundo cripto das últimas semanas foi o anúncio do Federal Bureau of Investigations – FBI relativo à recuperação de US$ 2,3 milhões de um resgate pago em Bitcoin aos hackers que fecharam a Colonial Pipeline, maior sistema de oleodutos para produtos petrolíferos refinados dos EUA, após identificarem a carteira virtual que haviam usado. Como todas as transações de Bitcoin são registradas em sua Blockchain, que é pública, deixam um rastro que permitiu identificar as IPs[9] de onde foram feitas as transações. Há, porém, criptomoedas que buscam fornecer maior anonimato, usando tecnologia de mascaramento. A Monero, por exemplo, tenta dificultar a vinculação de fluxos a uma identidade fixa, rastrear fundos ou observar o tamanho da transação.


[1] Fundo Monetário Internacional. Dados do país. El Salvador. Disponível em: https://www.imf.org/en/Countries/SLV. Acesso em: 17/06/2021.

[2] Fitch Ratings. Fitch Wire. El Salvador Budget Highlights Debt Risks, Funding Challenges. 06 Oct, 2020. https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/el-salvador-budget-highlights-debt-risks-funding-challenges-06-10-2020. Acesso em: 17/06/2021.

[3]  Lightning Network Strike. Zap Solutions. Disponível em: https://strike.me/. Acesso em: 17/06/2021.

[4] UOL Economia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2021/06/09/congresso-aprova-lei-para-transformar-bitcoin-em-moeda-de-curso-legal-em-el-salvador.htm. Acesso em: 17/05/2021.

[5] CoinMarketCap. Disponível em: https://coinmarketcap.com/. Acesso em: 17/06/2021.

[6] Disponível em: https://exame.com/future-of-money/criptoativos/el-salvador-quer-minerar-bitcoin-com-energia-produzida-a-partir-de-vulcoes/. Acesso em: 17/06/2021.

[7] Disponível em: https://br.investing.com/news/cryptocurrency-news/governos-vencem-bitcoin-na-briga-por-liberdade-diz-professor-de-harvard-824171. Acesso em: 17/06/2021.

[8] Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/presidente-do-banco-central-da-suecia-afirma-que-o-bitcoin-nao-ira-escapar-da-regulacao/. Acesso em: 17/06/2021.

[9] Sigla para Protocolo da Internet, ou (Internet Protocol) Esse protocolo funciona de forma semelhante ao CPF de uma pessoa física, permitindo que conexões e dispositivos sejam identificados a partir de uma sequência numérica. O IP que reconhece a comunicação entre dois dispositivos distintos, o TCP/IP ou o OSI. Já o protocolo que identifica conexões, ou seja, o CPF de um dispositivo conectado a internet é chamado de IP Address, ou endereço de protocolo da Internet. Cada aparelho ou dispositivo possui um IP fixo, enquanto a conexão com a internet gera IPs dinâmicos, também conhecido como IP externo.

Governança e accountability no sistema financeiro nacional

Fernando de Magalhães Furlan

A melhoria do ambiente concorrencial no sistema financeiro do país também passa pelo aumento no nível de governança no setor. Questões como accountability[1] e transparência devem se aplicar tanto às instituições financeiras, públicas e privadas, quanto aos próprios reguladores.

Uma boa e relevante notícia, nesse contexto, foi a recente promulgação da lei[2] que concede autonomia formal para o banco central, transformando-o em autarquia de natureza especial. O texto também prevê mandatos não coincidentes para o presidente e diretores da entidade, novas regras para suas demissões e apresenta novas atribuições para a autoridade monetária, como, por exemplo, “suavizar as flutuações do nível de atividade econômica” e “fomentar o pleno emprego”.

Hoje, a autarquia tem como objetivos principais garantir o poder de compra da moeda e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Com a mudança, o BC atuaria também para baixar o nível de desocupação e para perseguir o pleno emprego.

No Brasil, o órgão de cúpula do SFN é o Conselho Monetário Nacional (CMN)[3], a quem cabe, dentre outras funções, a formulação da política da moeda e do crédito no país. O CMN hoje é composto pelo ministro da Economia, que o preside, pelo presidente do Banco Central e pelo secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia. É também o mesmo ministro que indica, e o presidente da República nomeia e demite, a qualquer tempo e conforme os humores das conveniências políticas, os presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, ambos grandes bancos comerciais. O chefe da Pasta da economia também nomeia os presidentes dos conselhos de administração do BB e da Caixa. Ou seja, no sistema financeiro, o Brasil não parece ser um bom exemplo de governança, onde os poderes se concentram nas mãos de poucos, não há supervisão ou ela é inócua, e interesses comerciais se confundem com o interesse público.

O único dispositivo da novíssima Lei Complementar 179/2021, que trata do que se pode considerar um arremedo de governança e accountability é o artigo 11, que prevê que: “o presidente do Banco Central do Brasil deverá apresentar, no Senado Federal, em arguição pública, no primeiro e no segundo semestres de cada ano, relatório de inflação e relatório de estabilidade financeira, explicando as decisões tomadas no semestre anterior”.

Contudo, essa singela e tímida disposição não parece ser suficiente para endereçar todas as incontáveis repercussões que as deliberações estratégicas do CMN e as decisões executivas do Banco Central podem ter nos mais diversos aspectos da vida cotidiana dos brasileiros: desde o controle da inflação, até condições favoráveis à geração e manutenção de empregos e postos de trabalho.

Afinal, consoante o artigo 192 da Constituição Federal, o sistema financeiro nacional deve servir aos interesses da coletividade, não das instituições financeiras ou de seus acionistas, sejam eles o próprio governo ou investidores estrangeiros.

Para ilustrar a questão, por meio de recente acontecimento, vejamos a representação[4] do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União que pede o afastamento e a investigação, por suposto uso político das entidades públicas, dos presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal), no episódio do manifesto da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) pela harmonia entre os Poderes.

No pedido, o Ministério Público afirma que ambos os presidentes “demonstraram que o motor das decisões tomadas na condução das instituições que dirigem possui forte viés político, em afronta ao esperado zelo pelo interesse público e não do governo de plantão”.

Existem três princípios básicos[5] que devem sustentar avanços na governança e accountability do Sistema Financeiro Nacional (Conselho Monetário Nacional e Banco Central do Brasil):

1) Promover mais discussão e diversidade de opiniões:

Embora os tomadores de decisão estejam obrigados a explicar as suas ações, tal obrigação se limita a uma simples publicação de dados e alguma informação genérica. O que está faltando é o registro e divulgação dos autênticos debates e deliberações. Banqueiros centrais e ministros da Economia não são oráculos. Deve haver mais espaço para divergências – tanto entre aqueles com o poder de definir políticas públicas, quanto na sociedade, diretamente afetada por essas políticas.

2) Garantir que as autoridades monetárias respondam ao público em geral:

Os impactos de decisões do CMN ou do BCB são difusos, isto é, atingem o conjunto da sociedade, sendo impossível identificar, isoladamente, todos os afetados e raramente se tornam evidentes o suficiente para mobilizar o público. Nesse contexto, é preciso encontrar maneiras criativas de garantir que o Banco Central do Brasil e o CMN prestem mais contas ao público em geral.

3) Ampliar os objetivos a partir dos quais suas ações serão avaliadas:

Uma forma de garantir que os formuladores das políticas monetária e financeira prestem contas ao público é garantir que as questões que afetam os cidadãos sejam refletidas nos padrões que as orientam. Atualmente, a maioria dessas questões não está oficialmente na agenda, o que é limitado pelo objetivo de atingir um nível de inflação muito baixo.

Afinal, as metas de inflação de hoje podem não ser mais apropriadas. Um documento de trabalho recente do Federal Reserve[6], por exemplo, sugere que aumentar a meta de inflação atual e complementá-la com uma meta de PIB nominal faz sentido, do ponto de vista econômico.

À medida em que os bancos centrais e autoridades monetárias assumem um papel cada vez mais influente em nossa vida política e econômica, também, em contrapartida, devem garantir a sua própria transparência, governança e mecanismos de mensuração de sua responsabilidade e performance.


[1] Accountability está relacionada com a prestação de contas e com a responsabilização por atos praticados.

[2] Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021.

[3] Junto ao CMN também funciona a Comissão Técnica da Moeda e do Crédito (COMOC), que atua como órgão de assessoramento técnico na formulação da política da moeda e do crédito do Brasil. A COMOC manifesta-se previamente sobre assuntos de competência do CMN. Membros da COMOC: presidente do Banco Central (coordenador); presidente da Comissão de Valores Mobiliários; secretário-executivo do Ministério da Economia; secretário de Política Econômica do Ministério da Economia; secretário do Tesouro Nacional do Ministério da Economia e diretores do Banco Central do Brasil.

[4] Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar/procurador-pede-ao-tcu-afastamento-de-chefes-do-bb-e-da-caixa/. Acesso em: 19/09/2021.

[5] BEST, Jacqueline. Why we need better central bank accountability. Ethics & International Affairs – EIA, junho de 2016. Disponível em: https://ethicsandinternationalaffairs.org/2016/need-better-central-bank-accountability/. Acesso em 19/09/2021.

[6] ENGLISH, William B. et al. The Federal Reserve’s Framework for Monetary Policy–Recent

Changes and New Questions. Finance and Economics Discussion Series. Divisions of Research & Statistics and Monetary Affairs. Federal Reserve Board, Washington, D.C., 2013. Disponível em: https://www.federalreserve.gov/pubs/feds/2013/201376/201376pap.pdf. Acesso em: 19/09/2021.

Advocacia da concorrência e acesso a mercados financeiros

Fernando de Magalhães Furlan

Em 2018, CADE e Banco Central do Brasil publicaram o Ato Normativo Conjunto nº 01[1], que estabeleceu procedimentos para harmonizar e tornar mais eficientes as respectivas ações em atos de concentração e na defesa da concorrência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (SFN).

O art. 3º, III, do Ato Normativo Conjunto n° 01/2018, dispõe que o BCB e o CADE, observado o dever de sigilo, manterão comunicação e intercâmbio de dados e informações que permitam, dentre outros, a apuração de indícios de infrações concorrenciais verificadas, inclusive com disponibilização de documentação comprobatória.

Já o art. 40 do mesmo ato normativo conjunto, prevê que o BCB e o CADE reunir-se-ão, sempre que necessário, para discussão de temas que possam ensejar ação normativa com impactos concorrenciais em mercados e instituições submetidas à supervisão ou vigilância do BCB; e cooperação técnica no âmbito de processos administrativos no controle de atos de concentração e na apuração de infrações à ordem econômica, envolvendo instituições supervisionadas pelo BCB, inclusive com a participação dessas.

A boa cooperação entre o regulador do sistema financeiro e a autoridade da concorrência foi considerada tão crucial, que o Senado Federal tomou a iniciativa e aprovou projeto de lei complementar (PLP)[2] que dispõe sobre a defesa da concorrência no âmbito de atuação das instituições financeiras e demais instituições sujeitas à supervisão ou à vigilância do Banco Central do Brasil e sobre a cooperação e a partilha de competências entre o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em matéria concorrencial. A proposta legislativa, que ora tramita na Câmara dos Deputados, está parada na Coordenação de Comissões Permanentes há mais de três anos[3].

O parágrafo único do artigo 2º do PLP prevê, inclusive, que o Banco Central do Brasil e o CADE mantenham fórum permanente de comunicação, por meio de acordo de cooperação técnica.

Em que pese a importância e essencialidade do trabalho da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE), do Ministério da Economia, o CADE, enquanto autarquia federal, dotada de poder de polícia, e, portanto, com capacidade de intervenção ou sanção a agentes econômicos, públicos ou privados, é responsável último pela advocacia da concorrência no país.

Assim, ainda que a SEAE possa desempenhar papel de grande relevância na relação entre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e o Sistema Financeiro Nacional (SFN), é ao CADE que cabe a palavra final quanto à Lei de Defesa da Concorrência e à aplicação da política pública respectiva, ressalvados casos de ilegalidade ou desproporcionalidade que poderão ser revistos pelo Poder Judiciário[4].

O certo é que a advocacia da concorrência perante o Sistema Financeiro Nacional tem sido tímida, em que pese iniciativas louváveis do próprio Banco Central do Brasil e do Congresso Nacional, que incluem, por exemplo, o Cadastro Positivo[5] de usuários, o Open Banking[6] e o PIX[7].

Políticas de acesso ao crédito, transparência e desregulamentação do mercado financeiro são cruciais para o incremento da concorrência e, consequentemente, do crescimento econômico sustentado. Sem a capacidade de financiar o seu desenvolvimento e crescimento, as empresas estariam fadadas a permanecerem pequenas, sem acesso ao natural processo de evolução econômica.

A garantia de acesso rápido a crédito e a transações financeiras de baixo custo tem, assim, o potencial de multiplicar a atividade econômica, aumentando a eficiência e a competitividade.

O caso dos Meios de Pagamento (Maquininhas)

Inquérito administrativo[8] instaurado pelo CADE buscou inicialmente averiguar indícios de que novas credenciadoras de cartões de crédito, recentemente estabelecidas, estariam enfrentando dificuldades impostas pelos incumbentes (instituições financeiras) para o seu desenvolvimento.

As investigações do CADE tinham por objeto inicial as relações de exclusividade remanescentes entre bandeiras de cartões de crédito e as credenciadoras líderes de mercado[9]. O CADE procurava analisar a ocorrência de possíveis condutas anticompetitivas praticadas por agentes já estabelecidos e que estariam limitando ou impedindo o acesso de novos concorrentes ao mercado.

Neste caso dos meios de pagamento, ou das “maquinhas”, com o reconhecimento pelo Banco Central do Brasil dos arranjos de moeda eletrônica, baseados na concepção de uma conta digital de pagamento, que possibilita aos pontos de venda receber valores, independentemente de uma conta bancária, o país afirma uma cultura da concorrência, da inovação e da inclusão financeira, já que, no Brasil, calcula-se haver 15 milhões de “desbancarizados”[10].

As contas digitais, em razão de seus custos reduzidos em relação às contas bancárias tradicionais, permitem que os estabelecimentos recebam pagamentos por meio de cartões, boletos e transferências, aumentando as opções de recebimento, sem qualquer vinculação à atividade de credenciamento.

Além disso, as contas digitais pré-pagas são operadas sem passar pela rede bancária, por meio de arranjos de pagamento das próprias fintechs, exatamente por não envolverem risco monetário, já que, ao contrário dos bancos, não podem captar depósitos de clientes ou atuar no mercado financeiro. 

Os resultados dos acordos firmados pelo CADE com as empresas investigadas foram imediatos e expressivos: com a quebra da exclusividade credenciadora/bandeira, a taxa cobrada pelos cartões de crédito caiu 20%, segundo a Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços).

Foi um caso emblemático porque resultou na possibilidade de qualquer vendedor ambulante receber, por meio de uma “maquininha”, via cartão de débito ou crédito, de qualquer bandeira ou credenciadora.

Com isso, incontáveis pequenos negócios, mesmo informais, foram incluídos financeiramente e tiveram os seus negócios fortemente alavancados.

O caso WhatsApp Pay

No Brasil, apesar da institucionalização da cooperação entre o CADE e o Banco Central[11], são visíveis, contudo, os limites de atuação da autoridade da concorrência no sistema financeiro, a exemplo do caso WhatsApp Pay[12].

Uma semana depois do anúncio do lançamento do WhatsApp Pay pelo Facebook, em junho de 2020, o Banco Central do Brasil determinou a suspenção da operação da solução tecnológica, sob a alegação da necessidade de avaliar questões de competição e privacidade. O CADE fez o mesmo, mas depois de avaliar informações enviadas pelos interessados, voltou atrás de sua decisão, ainda no fim de junho de 2020, permitindo a continuidade da operação no Brasil.

Somente em outubro de 2020, o Banco Central do Brasil aprovou a constituição de uma nova modalidade de instituição de pagamento, denominada “iniciador de transação de pagamento”, em que o agente iniciador não participa do fluxo financeiro, categoria na qual o WhatsApp Pay poderia se encaixar.

Assim, finalmente, depois de cinco meses, o WhatsApp Pay pode começar a operar no Brasil, em novembro de 2020.


[1] Disciplina os procedimentos aplicáveis à análise de atos de concentração econômica envolvendo instituições financeiras; e à apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições sujeitas à supervisão ou vigilância do Banco Central do Brasil.

[2] PLP (Projeto de Lei Complementar do Senado) nº 499/2018. Em tramitação na Câmara dos Deputados.

[3] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2173211. Acesso em: 11/08/2021.

[4] Ver Tema de Repercussão Geral 485 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307111179&ext=.pdf. Acesso em: 11/08/2021.

[5] Os dados utilizados pelos Bureau de Crédito passam a informar a pontualidade do consumidor no pagamento de suas contas e registra compromissos e hábitos de pagamentos, listando os bons pagadores e aqueles que cumpriram seus compromissos em dia. Com o cadastro positivo pode-se verificar, por exemplo, que o atraso é apenas um problema pontual diante do histórico de bom pagador (adimplência) do consumidor. Pessoas que podem ser bons pagadores começam a contratar empréstimos com juros mais baixos ou prazos maiores, deixando de pagar pelo risco de maus pagadores, incentivando o crescimento econômico.

[6] O Open Banking, que entrou em funcionamento em 2021, considera que os dados bancários pertencem aos clientes e não às instituições financeiras. Assim, desde que autorizadas pelo correntista, as instituições financeiras compartilharão dados, produtos e serviços com concorrentes e fornecedores, por meio da abertura e integração de plataformas e infraestruturas de tecnologia. Clientes bancários poderão, por exemplo, visualizar, em um único aplicativo, o extrato consolidado de todas as suas contas bancárias e investimentos. Também será possível realizar transferências de recursos ou pagamentos, sem a necessidade de acessar diretamente site ou aplicativo do banco. 

[7] PIX é o meio de pagamento eletrônico instantâneo brasileiro, de baixo custo e segurança. A iniciação de um PIX para uma pessoa física é gratuita. Foi lançado oficialmente em outubro de 2020, com início de funcionamento integral em novembro de 2020. O PIX funciona 24 horas, sete dias por semana, entre instituições financeiras, fintechs e instituições de pagamento. A chave PIX permite que o sistema (SPI) identifique os dados da conta transacional (que é uma conta de depósito à vista, conta de poupança ou conta de pagamento pré-paga) que o usuário mantém na instituição de sua escolha e que foram associados à chave PIX e realize a transação imediatamente. SPI (Sistema de Pagamentos Instantâneos) é a infraestrutura centralizada onde são liquidadas as transferências de fundos comandadas pelos usuários do PIX e pelas próprias instituições participantes do ecossistema PIX quando resultam em transferências de fundos que afetem as contas de pagamentos instantâneos (conta PI) mantidas pelas instituições junto ao Banco Central do Brasil (BC). Conta PI (conta pagamentos instantâneos) é a conta mantida no BC por um participante direto do SPI.

[8] Inquérito Administrativo nº 08700.000018/2015-11. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei//modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxjDSl_Nxq63HwR03xJFy9I7_2aEZKTuxj3WRclfAJqL-. Acesso em 03/03/2021.

[9] Cielo, credenciadora Visa para o Banco do Brasil e o Bradesco; e Rede, credenciadora Mastercard para o Itaú-Unibanco.

[10] O Cade, o Banco Central e a guerra das maquininhas. Priscila Brólio Gonçalves. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/05/o-cade-o-banco-central-e-a-guerra-das-maquininhas.shtml?loggedpaywall. Acessado em 27/06/2019.

[11] Ato Normativo Conjunto CADE/BCB n° 01/2018 e Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 499/2018.

[12] Lançado em 6 de novembro de 2020, é um meio de transferir dinheiro e que está disponível para todos os usuários do WhatsApp. É mais um recurso para as pessoas fazerem transações financeiras (transferências ou pagamentos). No Brasil, segundo país a contar com esse serviço, calculam-se 120 milhões de usuários, cerca de 60% da população brasileira. O primeiro país a acessar o novo sistema de pagamentos e transferência P2P foi a Índia.