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Para além da anterioridade e da base de cálculo: o que mais a LC 190 pode ter feito?

Fabio Luiz Gomes

Rodrigo Tomiello da Silva

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa

Com o advento da Lei Complementar nº 190/2022 (LC 190)[1], publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 05/01/2022, foram promovidas as necessárias alterações na Lei Complementar nº 87/1996 (LC 87 ou “Lei Kandir”) para adaptá-la à previsão constitucional instituída pela Emenda Constitucional nº 87/15 (EC 87).

Tratava-se, como muito já se escreveu sobre o tema[2], de cumprimento de condição imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para instituição do diferencial de alíquota nas operações interestaduais dirigidas a consumidores finais (sejam eles contribuintes ou não).

Diversas polêmicas surgiram, como a questão do respeito à anterioridade[3] e a aparente antinomia entre a LC 190 e o recente Convênio CONFAZ nº 236/2021[4] no que diz com a fixação da base de cálculo para o DIFAL – se simples ou dupla[5].

Essas questões, naturalmente, têm levado os contribuintes à justiça, e o chamado “manicômio tributário”[6] segue a todo vapor, agora já em sua faceta mais terrível: o da insegurança na busca da tutela jurisdicional que, pela falta de linearidade em suas decisões – ora favoráveis a uns, ora desfavoráveis a outros[7] –, pode gerar distorções concorrenciais de imensa monta.

Já tentamos ofertar nossas contribuições para as discussões sobre anterioridade da LC 190[8] e acerca da arbitrariedade no exercício da função jurisdicional (que não se confunde com a sagrada independência funcional diga-se)[9].

Nesta oportunidade, interessa-nos deflagrar conversas a respeito de se houve, com a LC 190, a alteração do conceito de “contribuinte de ICMS” desenhado pela jurisprudência do STF[10] e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para efeitos de aplicação do DIFAL, especialmente na tese repetitiva nº 261[11] e na súmula STJ nº 432[12].

A jurisprudência da Corte Superior caminhava mansamente na direção de que não bastava, para configuração de “contribuinte”, que dada pessoa jurídica tivesse um cadastro no sistema de ICMS estadual (inscrição estadual); era necessário averiguar se, de fato, havia a prática mercantil reiterada das hipóteses de incidência do ICMS[13].

A Constituição desta aspirante a República (CRFB/88), em seu artigo 155, §2º, XII, “a”, indica que, para o ICMS, “cabe à lei complementar definir seus contribuintes”. Por óbvio, não se trata de um cheque em branco; a definição deverá observar os aspectos naturais da matriz de incidência tributária.

Sob pena de desnaturar a hipótese de incidência e a elementos basilares de sujeição passiva fiscal, não podemos admitir a definição, como contribuinte de ICMS, contemplando alguém que não demonstre capacidade contributiva e/ou não pratique nem tenha qualquer conexão razoável e concreta com a prática efetiva do fato gerador do referido imposto.

Feito o disclosure, assumamos, neste momento e para fins do iminente debate, a plena viabilidade de uma lei complementar definir os contribuintes de ICMS. Partindo dessa premissa, temos que a LC 190 alterou a LC 87 (esta, a lei geral sobre ICMS à qual faz referência a regra constitucional).

Em seu artigo 4º, a LC 87/96, elenca os contribuintes de ICMS sob o caput de ser “qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

A LC 190/22, ao trazer uma nova redação ao §2º do referido artigo, atende ao suscitado pelo STF e amplia/reestrutura, aparentemente consoante os moldes da EC 87/15[14], o conceito original e informa o seguinte acerca dos contribuintes de DIFAL em operações interestaduais a consumidores finais:

§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:

I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;

II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto.”

Com a reconstrução desse conceito e a necessidade de tratamento integral ao tema DIFAL, foi ainda editado o Convênio CONFAZ 236/21. Ao cabo, cada unidade federativa (UF) deve disciplinar, por lei própria, a questão. Entende-se, majoritariamente, que apenas a construção final desse bloco permitirá a legítima cobrança do DIFAL introduzido pela EC 87/15.

Com tamanhas alterações normativas, é – lamentavelmente – justo presumir que poderá se reinstalar toda a discussão que outrora havia sido pacificada no STJ e no STF: quais os requisitos, além dos normativos de cada UF, para que se configure dada pessoa como contribuinte de ICMS?

Será possível, nessa circunstância de tão profundas modificações, que cada UF legisle sobre o tema a seu bel prazer e, eventualmente, entender que para ser contribuinte basta a inscrição estadual, como parece indicar a cláusula sexta do Convênio 236/21?

Cláusula sexta A critério da unidade federada de destino e conforme dispuser a sua legislação tributária, pode ser exigida ou concedida ao contribuinte localizado na unidade federada de origem inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS.”

Essa redação, nos parece, viabiliza que de modo unilateral cada UF de destino possa gerar o problema original e, pela via da exigência de cadastro estadual, colocar novamente em xeque se esse cadastro bastaria à qualificação como contribuinte, ainda que na UF de origem a pessoa em questão não seja considerada como tal.

Aqui, soaria fundamental, e preferencialmente instituídos em Convênio CONFAZ, que se construíssem critérios objetivos e lineares para tanto. O primeiro deles, em apoio à segurança jurídica, seria o de que uma determinada pessoa não pode – como no conhecido caso das empresas de construção civil – ser considerada contribuinte pela UF “A”, mas não o ser pela UF “B”.

Assentada essa base, outros elementos de objetividade seriam muito bem-vindos para evitar que toda a discussão se dê tendo como paradigma apenas a jurisprudência correlata às empresas de construção civil.

É certo que a resposta outrora dada pelo STF e STJ ao tema considerava um arcabouço constitucional diferente[15] e um bloco de qualificação de contribuinte gramaticalmente diverso do que se avizinha, mas a leitura conferida parte de elementos de realidade e de adequação à regra matriz de incidência do imposto – que, materialmente, entendemos seguem hígidos; não sofreram alteração substancial.

Compreendemos, portanto, que (i) o entendimento do STJ deve prevalecer, pois se ampara em elementos da regra matriz de incidência tributária e (ii) certamente, sob o pálio da cláusula sexta do Convênio, poderá a ocorrer uma nova onda conflitos federativos em que uma UF considera o mesmo perfil de pessoa contribuinte em seu território e não contribuinte no território de outra UF.

Temos que a extensão subjetiva de contribuinte para pagamento de ICMS envolve inexoravelmente três conceitos: “operação”, “circulação” e “mercadoria”, e possui como elemento de interseção os seguintes requisitos: habitualidade e intento lucrativo.

Neste sentido, a projeção é que de um lado tenhamos um alienante praticando atividade mercantil e do outro haja um adquirente, em conjunto coordenados de atos dentro inseridos no contexto de um circuito econômico, por ser um tributo plurifásico.

Esse delineamento jurisprudencial, como dito, parte da própria Constituição quando estabelece que se trata, o ICMS, de um imposto sobre circulação, dado que esse conceito é fixado no direito empresarial. Em uma análise interpretativa semiológica sobre o destinatário padrão-contribuinte, o legislador ordinário não pode fugir aos conceitos estabelecidos na CRFB/88.

Essa bilaterialidade legislador-contribuinte em relação aos conceitos impõe o dever de coadjuvação, isto é, não haver qualquer alteração conceitual constitucional por parte do legislador ordinário, sob pena de contrariedade ao princípio da confiança. A obediência à lógica constitucional se impõe na medida em que se trata aqui de conjunto de normas oriundo do poder constituinte originário, que fixa limites materiais ao legislador derivado e aos infraconstitucionais. Afinal, os textos ainda dizem algo, pois não?

Foi nesse sentido que caminhou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ao exigir os requisitos da habitualidade e onerosidade para conceituar o contribuinte de ICMS.  No caso vertente, caso se tente extrair ideia diversa de uma legislação infraconstitucional, tal leitura se mostraria incuravelmente inconstitucional.

Entre tantos problemas, dúvidas e desafios trazidos pela LC 190/22, chamamos atenção a esse risco acerca da própria condição de contribuinte, eminentemente para pessoas jurídicas que tenham cadastros estaduais por motivos – muitas vezes – apenas procedimentais/instrumentais.

Se fossem verdadeiros os argumentos das autoridades fiscais estaduais[16], nascidos da inconformidade com a não conversão do PLP 32/21 até 31/12/2021, apontando que a EC 87/15 promoveu apenas uma repartição de receita tributária[17], a solução seria verdadeiramente mais simples.

As palavras “e se” ganham um contorno pueril, haja vista a necessidade de se viver em apenas uma realidade e tratar dos problemas efetivamente existentes. Mas, ao abrirmos essa porta, a curiosidade nos estimula a seguir.

Em primeiro lugar: considerando a estrutura da EC 87/15 e o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5469/DF e no Tema de Repercussão Geral (TRG) nº 1093, seria possível demandar da LC 190 alguma regulamentação dando tratamento apenas financeiro, isto é, de repartição de receita entre as UFs?

Parece-nos inexoravelmente negativa a resposta, na medida em que o STF, ao conhecer do tema, entendeu que a EC 87/15 trabalhou no plano tributário (isto é, entre contribuintes e UFs), e não apenas no plano financeiro (ou seja, entre UFs), gerando uma nova relação entre o não contribuinte e a UF de destino.

Da mesma forma, e ainda ancorados no decidido pelo STF, se não podemos conviver com uma leitura diferente da EC, por princípio normativo hierárquico simples certamente não podemos aceitar que convênios, lei complementar federal ou lei de cada UF trate do tema como se fosse apenas uma repartição de receitas.

O único “e se” normativamente admissível, portanto, seria a EC 87/15 trazer consigo uma carga axiológica nuclear totalmente diversa, estatuindo – como fez em seu artigo 2º, acrescendo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – um artigo 99 com teor meramente financeiro.

Para o argumento dos fiscos ser verdadeiro, a EC não poderia promover a alteração da sujeição ativa e passiva de ICMS como fez; deveria manter intacta a norma original e tão somente dispor quanto ao compartilhamento das receitas quando de operações interestaduais destinadas a consumidores finais – fossem eles contribuintes ou não.

Nossa pretensão, ao trabalhar nesse cenário hipotético, é reforçar a inadequação total dos argumentos das Secretarias Estaduais de Fazenda. Reforçamos e insistimos, que textos dizem algo e não cabe a intérpretes ocasionais fixar novos sentidos às palavras em um mesmo contexto.

Evitemos, pois o efeito Humpty Dumpty, pois se regressarmos à essência do Direito Tributário, perceberemos, sem maior esforço, que as limitações ao poder de tributar são originadas e mantidas como direitos e garantias fundamentais a serem exercidas contra o arbítrio e o abuso de poder estatal. A fixação livre do sentido pelo intérprete, seja autêntico ou não, é a queda da primeira barricada contra o despotismo, atentemo-nos, pois.

Se queremos tornar o Brasil um país sério, devemos trabalhar da base para o ápice; a lição número um está em irrigar a responsabilidade política e gerar coordenação hábil e eficiente de todos os poderes e entes da Federação para dar nascimento a normas que sejam efetivamente cumpridas.

Sem isso, seguiremos sendo este país pouco apegado à retidão e à boa técnica; uma terra das oportunidades… mas apenas para os oportunistas

FABIO LUIZ GOMES. Mestre e Doutorando em Direito Público, Advogado Corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Autor, Co-autor, Prefaciador de diversas obras jurídicas.

 

Rodrigo Tomiello da Silva

Paulo Henrique Garcia D’Angioli

José Guilherme Fontes de Azevedo Costa


[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp190.htm

[2] https://www.migalhas.com.br/depeso/357455/sem-a-publicacao-de-lc-em-2021-difal-fica-para-2023

https://www.conjur.com.br/2022-jan-11/miguel-aprovacao-tardia-plp-322021-polemica-icms

[3] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/difal-de-icms-regra-valeria-2022-04012022

[4] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2021/cv236_21

[5] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/difal-de-icms-empresas-planejam-ir-a-justica-contra-a-cobranca-em-2022-07012022

[6] https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/fernandes-icms-difal-manicomio-juridico-tributario-brasileiro

[7] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/empresas-conseguem-no-tjsp-direito-a-nao-recolher-difal-do-icms-de-imediato-12012022

[8] https://www.migalhas.com.br/depeso/357698/por-que-o-difal-nao-pode-ser-cobrado-pelas-ufs-de-destino-em-2022

[9] https://www.conjur.com.br/2022-jan-06/opiniao-boate-kiss-temas-tributarios-quem-guarda-guardiao

[10] RE 559.936 AgR / CE – Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Julgamento: 09/11/2010 – Publicação: 25/11/2010 – Órgão julgador: Primeira Turma

EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. AQUISIÇÃO DE MATERIAL. EMPRESA DA CONSTRUÇÃO CIVIL. EMPREGO EM OBRA. INSUMOS. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I – As empresas da construção civil – por serem, em regra, contribuintes do ISS – que adquirirem materiais em Estado com alíquotas de ICMS mais favoráveis, ao empregarem essas mercadorias como insumos em suas obras, não estão obrigadas a satisfazer a diferença da alíquota maior do Estado destinatário. Precedentes. II – Agravo regimental improvido.

A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski.

[11]As empresas de construção civil não estão obrigadas a pagar ICMS sobre mercadorias adquiridas como insumos em operações interestaduais.” https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1135489

[12] https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2154491/nova-sumula-432-do-stj-dispoe-que-as-empresas-de-construcao-civil-nao-estao-obrigadas-a-pagar-icms-sobre-insumos-adquiridos-em-operacoes-interestaduais

[13] https://www.conjur.com.br/2011-mai-29/construtoras-nao-pagar-icms-insumos-obras-terceiros

[14] https://taxpratico.com.br/pagina/lc-190-2022-regulamenta-cobranca-do-difal-nao-contribuinte

[15] REsp 1.851.300/RJ – Relator: Min. Francisco Falcão – Julgamento: 02/03/2020 – Publicação: 04/03/2020 – Decisão monocrática

REsp 1.135.489/AL – Relator: Min. Luiz Fux – Julgamento: 09/12/2009 – Publicação: 01/02/2010 – 1ª Seção

[16] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anterioridades-difal-de-icms-muito-barulho-por-nada-25012022

[17] http://www.sefaz.am.gov.br/noticias/ExibeNoticia.asp?codnoticia=25311

Os algoritmos e a discriminação de preços: qual é o papel do direito antitruste na sociedade do capitalismo de vigilância?

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça*

A lógica antitruste desenvolvida por Louis Brandeis no final do século XIX, o julgamento dos casos “Standard Oil Company e U.S. Steel Coorporation” pela Suprema Corte norte-americana e a criação da primeira lei antitruste no mundo pelo Senador John Sherman em 1890 nos Estados Unidos da América (assim chamada “Sherman Act”), tinham por finalidade evitar a formação de monopólios com a concentração do poder econômico e garantir o livre mercado, tendo como expoentes, à época, John D. Rockefeller e John Pierpont Morgan. Constituiu-se o primeiro movimento contra os “trusts”, daí chamar-se de “anti-trust”, momento em que se vivia num período de modificação paradigmática com a revolução industrial.

Um pouco mais de um século após, a humanidade está diante de uma nova revolução paradigmática – da tecnologia da informação -, cuja “nova” organização da sociedade em redes provoca burburinhos sobre o novo movimento “populista”, “neobrandesiano” ou “hipster” da atualidade”.[1]Tais mudanças também espraiam seus efeitos no antitruste do século XXI e já provocam, em grande parte do mundo, reflexões sobre o “fim da concorrência como a conhecemos”[2], dada a necessidade premente de repensá-la.

Relatório das autoridades de concorrência Alemanha-França chama à atenção para a distinção entre a mera interação dos computadores, o que pode até causar o paralelismo de preços e a incerteza da comunicação entre os algoritmos, discutindo frequentemente a autoaprendizagem das black boxes.[3] O mencionado relatório faz recomendações a serem seguidas no contexto antitruste, seja no controle de estruturas seja no controle de condutas.[4]

No entanto, importante registrar que há autores contrários e favoráveis a uma adaptação à legislação antitruste. Juliana Domingues traz uma revisão da literatura colacionando autores favoráveis e contrários a alguma adaptação no modelo adotado. Autores como Hovenkamp, Orbach, Rebling, Whrigt e Ginsburg defendem não apenas as premissas da Escola de Chicago e as orientações a partir de Bork, mas também a manutenção de uma análise baseada em critérios mensuráveis e objetivos, onde o “tamanho das empresas” – too big – não deve ser o fio condutor da análise.” Por outro lado, também reporta autores da linha “neo-brandesiana”, como Pitofsky, Bogus, Wu, Khan entre outros que defendem novos paradigmas.[5]

Apesar dos posicionamentos doutrinários divergentes, é certo que a extraordinária concentração econômica vivida na era digital em diversos setores da economia mundial associado à eficácia irracional dos dados[6] acendeu um novo alerta sobre a gravidade da concentração do poder econômico e sobre os efeitos desses monopólios e oligopólios para os consumidores, na medida em que o poder econômico dessas empresas associado ao acesso privilegiado de dados e informações privadas, agora geridos por máquinas dotadas de inteligência artificial, permitem a discriminação de preços de primeiro grau, cobrando de cada cliente o preço máximo (preço de reserva) que ele está disposto a pagar. Nesse caso, o vendedor maximiza seus lucros pela captura de todo o excedente do consumidor.”[7]

A combinação entre o desenvolvimento tecnológico e a detenção de informações sobre os consumidores acabaram por permitir que as empresas que detém os robo-sellers possam fazer a precificação dos produtos, conforme a utilização das informações de consumo detidas pelas black boxes algorítmicas[8], praticando a cobrança pelo preço de reserva dos indivíduos e não pelo preço de equilíbrio, capturando o excedente do consumidor e modificando a lógica da concorrência perfeita.

É fato que os robôs formulam os preços de forma imediata e autônoma, assim como não resta dúvidas de que toda a responsabilidade antitruste e toda a estrutura de enforcement prevista nas legislações nacionais e internacionais (art. 36 da Lei nº 12.529/2011, art. 101 TFEU e arts 1º e 2º Sherman Act) somente alcançam os seres humanos. Também parece indubitável que o fato de um robô “abaixar” imediatamente o preço de um produto quando ciente de que o seu concorrente rival o diminuiu, em última ratio, fará com que não haja quaisquer incentivos em se diminuir os preços dos produtos por quaisquer dos concorrentes. A tendência natural, se não houver qualquer intervenção por parte da autoridade de defesa da concorrência, é a de que os preços fiquem cada vez mais distantes dos preços competitivos, haja um aumento excessivo dos lucros por aqueles que se beneficiam da ação dos robôs e que se aumente expressivamente a desigualdade social entre ricos e pobres.

No âmbito desse contexto, surge a infração à ordem econômica de discriminação de preços, onde se extrai o excedente do consumidor, na medida em que os algoritmos, baseados nas informações dos consumidores (big data), conseguem processar e alcançar o preço de reserva do consumidor.

Parece inegável, portanto, que as mudanças tecnológicas operadas pela revolução digital nas economias mundiais exigirão, num futuro não tão longínquo, a atualização das legislações antitruste, do ponto de vista material e processual, a fim de permitir que a colusão operada via robôs possa ser efetivamente punida pelas autoridades concorrenciais.

A questão não está, a princípio, na previsão de tipos legais de infração à ordem econômica, mas na combinação entre o exercício abusivo do poder econômico via precificação dos algoritmos com a identificação da responsabilidade antitruste, seja de quem criou o algoritmo seja de quem se beneficia da cobrança do preço de reserva, extraindo o excedente do consumidor.

Desse modo, nos parece que o grande desafio do antitruste do século XXI, pois, é o de identificar se a inteligência artificial e as machine learnings, de fato, provocam um dano ao consumidor[9]; em segundo momento, verificar como a precificação por algoritmos (lineares ou black boxes) tem a potencialidade lesiva de causar danos ao consumidor com  a cobrança do preço de reserva ou de preços semelhantes aos praticados por monopolistas, em terceiro lugar, avaliar quais seriam os caminhos ou as possibilidades para se evitar ou contornar essa prática e, em um quarto momento, analisar se a legislação antitruste poderia prever a responsabilização daqueles que, de fato, se beneficiam da captura do excedente de recursos cobrados pelo preço de reserva ou equivalentes aos preços de monopólio. Há muito trabalho pela frente.


[1] Como escreveu o sociólogo Manuel Castells, a “revolução a tecnologia da informação” representa um raro intervalo na história da vida entendendo-a como “uma série de situações estáveis pontuadas em intervalos raros por eventos importantes que ocorrem com grande rapidez e ajudam a estabelecer a próxima era estável”. Prossegue, aduzindo, que “(…) no final do século XX estamos vivendo um desses raros intervalos da história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação. A Sociedade em Rede/Manuel Castells; tradução: Roneide Venâncio Majer; – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 49.

[2] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência in Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade/coordenação Ana Frazão; Caitlin Mulholland – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, pp. 433-455.

[3] Algorithms and Competition. November 2019. Autorité de la concurrance e Bundeskartellamt. Disponível em https://www.autoritedelaconcurrence.fr/sites/default/files/algorithms-and-competition.pdf. Acesso em: 27 mai 2021.

[4]Disponível em  https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2020-0022_PT.html em 27/05/2021Adaptar a concorrência à era digital:  (…) 23. Exorta a Comissão a rever as regras relativas às fusões e aquisições e a reforçar a ação «antitrust», bem como a ter em conta os efeitos do poder de mercado e da rede associados aos dados pessoais e financeiros; insta, em particular, a Comissão a tratar o controlo desses dados como um indicador da existência de poder de mercado em conformidade com as suas orientações sobre o artigo 102.º do TFUE; convida a Comissão a retirar ensinamentos da fusão entre o Facebook e o WhatsApp e a adaptar os seus critérios em conformidade; propõe, por conseguinte, que todas as concentrações no mercado desses dados estejam sujeitas a uma declaração informal prévia; 24. Solicita à Comissão que reveja o conceito de «abuso de posição dominante» e a doutrina das «infraestruturas essenciais» para garantir que cumpram a sua finalidade na era digital; sugere que se efetue uma análise mais ampla do poder de mercado no que se refere aos efeitos de conglomerado e de guardião do acesso, para combater o abuso de posição dominante dos grandes operadores e a falta de interoperabilidade; insta a Comissão a realizar uma consulta das partes interessadas para refletir sobre a evolução da economia digital, incluindo a sua natureza multifacetada;

[5] DOMINGUES, Juliana; GABAN, Eduardo (2019). Direito Antitruste e Poder Econômico: o movimento populista e “neo-brandeisiano” in, Revista Justiça Do Direito33(3), 222-244. Disponível em: https://doi.org/10.5335/rjd.v33i3.10429. Acesso em: 24 mai 2021.

[6] FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 29.

[7] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência, cit., 2019, p. 449.

[8] [a]s black boxes algorítmicas são o resultado da aplicação crescente da tecnologia de inteligência artificial combinada ao tratamento de grande volume de dados in FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 32.

[9] Isso porque as práticas de geopricing e geoblockin violam o princípio da neutralidade da Internet. Por essa prática – geoprincing – tem se entendido que “[a]s empresas de tecnologia da informação se valem dos algoritmos para processar grande quantidade de dados, sendo certo que a estrutura de código dos algoritmos contém instruções programadas para que a tecnologia facilite a disponibilidade das ofertas adequadas aos consumidores conforme seu perfil. Já o geoblocking é definido como o conjunto de práticas comerciais que impedem que determinados consumidores possam acessar e/ou comprar determinados bens ou serviços oferecidos por intermédio de uma interface online, com fundamento na localização on line do cliente.[9]

* RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA. Doutoranda em direito pelo IDP, mestre em direito público pela UNB, pós-graduada em direito econômico e regulatório pela  PUC-RIO, pós-graduada pela EMERJ, advogada, sócia fundadora do Mendonça Advocacia e sócia fundadora da WebAdvocacy.

Bigtechs: qual a novidade?

Amanda Flávio de Oliveira*

José Américo Azevedo**

Volta e meia algum analista de fatos da contemporaneidade nos adverte para a “complexidade” inédita de um fenômeno qualquer. Da forma como avaliam fenômenos atuais, alguns intelectuais parecem crer que as relações econômicas, contratuais, sociais aparentemente sempre foram muito simples, e a vida vai se complicando com o tempo.

O enredo é trágico: se as coisas da vida vão se tornando sempre cada vez mais complexas, aonde é que vamos parar? Mas geralmente esses analistas sempre têm também uma solução para nos propor, enfrentando fatos mais complexos do que nunca com saídas que eles próprios nos indicam com base na “razão”.

Thomas Sowell, em Os Intelectuais e a Sociedade, faz uma ácida crítica contra esses pensadores, que privilegiam a suposta “razão” em detrimento da experiência, “permitindo que tenham uma impetuosa confiança em assuntos sobre os quais têm pouco ou mesmo nenhum conhecimento ou experiência[1].” Segundo Sowell, chavões como “os tempos mais simples de outrora” são expressões típicas dessa parcela de intelectuais.

As Big Techs se tornaram, nos dias atuais, alvo preferencial a esse título, sobretudo no campo jurídico. É que, conforme se diz corriqueiramente, nunca houve um poder econômico com essas características, o que significa dizer que há uma complexidade inédita a ser enfrentada, e esse enfrentamento é dever do Estado.

Defina-se, a princípio, o que se entende por bigtechs, essas empresas “contemporâneas” desenvolvedoras de produtos com grande adesão pela população em geral. Bigtechs podem ser consideradas grandes empresas com alta sofisticação tecnológica, responsáveis pela criação e desenvolvimento de produtos e/ou serviços inovadores, que alcançaram parcela significativa do mercado nos últimos anos. São empresas líderes, que em certa medida têm ditado tendências, criado protagonismos e determinado orientações.

Aderindo à advertência de Sowell para considerar a “experiência” no trato dos fatos atuais, convém analisar outras fases históricas tentando compreendê-las a partir do seu tempo: e logo se percebe que empresas com parcelas consideráveis de mercado, inovadoras, fornecedoras de produtos ou serviços essenciais para aquele tempo, com sofisticação e tecnologia de ponta para o momento em que surgiram são uma constante da história do mundo capitalista. Ou seja, os tempos de outrora parecem não ter sido tão simples assim.

Se hoje se fala em Amazon, uma bigtech de logística de bastante projeção, que iniciou suas atividades em 1994 com vendas e distribuição online de livros e hoje tem seu principal negócio na entrega de produtos ao consumidor final, certamente que as ferrovias do século XVIII cumpriam esse propósito, especialmente nos EUA.

A expansão ferroviária americana iniciou-se a partir de 1827, quando foi fundada a Baltimore and Ohio Railroad, que inaugurou seu primeiro trecho em 1830. Nas décadas de 1850 e 1860, o transporte ferroviário viveu seu apogeu naquele século, tendo como principal expoente Cornelius Vanderbilt (1794-1877) que, ao morrer, era considerado o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em cerca de 2,5 bilhões de dólares em valores atualizados. Na década de 1860, o empresário Jay Gould (1836-1892) se interessou pelo mercado ferroviário, avançando de forma hostil sobre o controle acionário da ferrovia, no episódio que ficou conhecido como Erie War. Embora Gould tenha adquirido a liderança, por meio de disputas judiciais e procedimentos pouco ortodoxos de ambas as partes, Vanderbilt entregou a ele uma empresa descapitalizada e depauperada. A partir daí, Gould iniciou uma estratégia de captação de mercados e clientes, por meio de uma política agressiva de tarifas e de procura de novos territórios e outras ferrovias. Nesse cenário, erigiu um império que controlava as rotas para oeste da Pennsylvania e metade das linhas de conexão da New York Central. Em 1869, Gould se viu envolvido em um escândalo gigantesco, conhecido como Gold Corner, por ter tentado interferir de maneira fraudulenta no mercado de ouro norte-americano, o que comprometeu, irreversivelmente, sua reputação e sua posição na economia do país. Anos mais tarde, Gould ressurgiu das cinzas comandando a Union Pacific, uma das maiores ferrovias americanas e atuando em sua ocupação predileta: avançar sobre o mercado, especialmente atacando a família Vanderbilt, desta vez tendo como antagonista o filho Willian, que assumiu os negócios com a morte do pai em 1877. Gould continuou atuando até seu falecimento em 1892. Os herdeiros dos impérios assumiram o setor com a morte de Gould e de Willian Vanderbilt. Mas, à essa altura, o mercado ferroviário já estava consolidado e pujante.

As empresas de telégrafos de outrora talvez possam ser considerados os “avós” das empresas de internet de hoje em dia, todos vocacionados a permitir a comunicação em grande escala e distância. Se hoje Facebook, Google, Apple e outras assustam por seu “poder”, em 1881, a Western Union Telegraph Company, responsável por permitir, àquele tempo, uma comunicação sem precedentes entre a Europa e a América, passou por um processo de fusão com a Atlantic and Pacific Telegraph Company, criando uma monopolista do setor. Vale dizer que a Western Union existe até hoje, evidentemente sob outros moldes, sendo atualmente uma empresa multinacional que oferece serviços financeiros e de comunicação.

No setor financeiro, as recentes fintechs e crescentes criptomoedas encantam ao passo que amedrontam atualmente pelo “novo” que representam: nos EUA, John Pierpont Morgan (1837-1913) e sua família detiveram incontestável poder e influência nesse e em outros mercados, por um longo período. A influência exercida por Morgan no setor ferroviário o levou a ser conhecido como o “banqueiro das ferrovias” – ele por diversas vezes chegou a interferir no setor, a ponto de impedir, em uma ocasião, a continuidade da construção da linha West Shore, mesmo após vários trechos já estarem adiantados, inclusive com túneis e viadutos concluídos, jogando por terra muitos milhões de dólares de investimento. Além disso, o banco Morgan chegou a patrocinar a General Eletric de Thomas Edison, cuidou da venda da empresa de telégrafos Baltimore & Ohio e tinha uma vaga no conselho administrativo da Western Union de Jay Gould. Na siderurgia, depois de financiar a criação da Federal Steel Company, providenciou a fusão com a Carnegie Steel Company, em 1901, formando a U.S. Steel Co. que chegou a possuir dois terços do market share do setor. Ele deteve participação parcial ou total em empresas dos setores da construção civil, equipamentos agrícolas, bebidas, transporte aquaviário, dentre outras. O poderio de Morgan foi tamanho que ele chegou a protagonizar uma intervenção direta nas finanças do governo americano em duas ocasiões. A primeira, quando uma alienação excessiva dos papéis ferroviários lastreados em ouro causaram um crash da Bolsa em 1893, comprometendo as reservas do governo. Morgan organizou a venda de títulos americanos, inclusive com aporte pessoal de cerca de 10 milhões de dólares, debelando a crise. O segundo momento, em 1907, quando uma queda repentina e descomunal do índice Dow Jones – até hoje a segunda maior da história – fez o mercado entrar em pânico. Morgan foi chamado para, pessoalmente, coordenar as ações interagindo entre o mercado e o governo para o afastamento do colapso.

Para além dos paralelos entre as empresas consideradas “bigtechs” hoje em dia e suas possíveis antecessoras, convém destacar que muitas outras empresas com poder econômico considerável e importância central na vida do momento já se fizeram presentes na história da humanidade: relembre-se de Andrew Carnegie (1835-1919), criador da Carnegie Steel Inc., empresa cuja estratégia de negócios propiciou o surgimento da maior siderúrgica do mundo, responsável pela metade da produção britânica e um quarto da americana.

Recorde-se, também, de John D. Rockefeller (1839-1937), que, juntamente com Henry Flager (1830-1913), fundaram a Standard Oil Co., que se transformou na maior empresa petrolífera do mundo e uma das primeiras e maiores multinacionais da história. A partir de sua criação, Rockefeller iniciou um incisivo processo de verticalização das atividades, atuando desde a extração e produção, refino, transporte e comercialização de petróleo. O tamanho e a importância da Standard Oil causou preocupação a ponto de, em 1911, a Suprema Corte dos Estados Unidos, baseando-se no Sherman Act, de 1890, determinar a que a Standard Oil fosse dividida em 34 novas empresas, a fim de diminuir o monopólio da corporação original. Interessante notar que após essa decisão, os valores das ações das empresas separadamente tiveram uma alta significativa, trazendo enormes lucros adicionais. Segundo estimativas, a fortuna pessoal de Rockefeller era equivalente a 1,53% do PIB anual total dos Estados Unidos na época. Até hoje, sob as mais diversas formações e nomenclaturas remanesce parte do conglomerado.

Tudo isso nos mostra que a história está repleta de antecedentes tão “complexos” quanto os que hoje se apresentam no que se refere ao tema do poder econômico privado. Tudo isso também nos leva a admitir que há já uma experiência acumulada no tratamento pelo Estado dessas realidades – e suas consequências, boas e ruins, já podem ser avaliadas com sobriedade.

Grandes corporações existem há muito e estratégias variadas já foram empregadas para o atingimento desse estágio. Medidas variadas para “contê-las” ou não também já foram experimentadas. Se se considera “bigtech” como um agente econômico que se vale de tecnologia e se transforma, por alguma razão, em um player dominante em um segmento de mercado, será preciso admitir que elas já povoam a economia mundial há quase dois séculos.

Não há nada de tão novo assim, não é preciso desenvolver saídas novas, tendo por justificativa a ideia de que seria mais complexa a realidade atual. O que urge é resgatar o valor da experiência, evitando-se cometer os mesmos erros, mais uma vez. É que a história nos indica que por vezes, no afã de conter estruturas aparentemente perigosas para o bem-estar social, o Estado se atrapalhou, e prejudicou o seu objetivo final.

Por fim, uma palavra precisa ser dita sobre o valor das instituições. Não por acaso, estruturas empresariais disruptivas nascem e se desenvolvem nos EUA… antes como agora. Inevitável tentar entender o que leva o país a ser um incubador da inovação. Sabe-se que a obsessão pela eficiência é um dado cultural americano, somado à valorização da liberdade econômica e à existência de instituições estáveis, além de um federalismo real e não fictício. Ao invés de nos preocuparmos com os instrumentos a serem desenvolvidos com base na razão para o enfrentamento dos grandes agentes econômicos, talvez o foco de nossos pensadores deveria se voltar para o estabelecimento de condições para o desenvolvimento, por aqui, de empresas inovadoras e disruptivas. Para isso, a experiência aponta caminhos seguros[2].

[1] SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. São Paulo: Realizações Editora, 2011, p. 59.

[2] Para entender um pouco mais do efervescente cenário americano no séc. XIX, duas obras são indicadas: o livro Os Magnatas[2], de Charles Morris; e a série/documentário de TV “The men who built America”[2], dirigida por Patrick Reams e Ruán Magan. Neles, pode-se perceber o impacto que certas invenções causaram na sociedade da época: e perceber, igualmente, como as instituições interagiram com essas formas econômicas.

* AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

** JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

A interface entre blockchain e Direito Antitruste: condutas anticompetitivas

Polyanna Vilanova[i]

Isabel Jardim[ii]

Ana Flávia Napoli[iii]

Em nosso artigo anterior desta coluna, buscamos apresentar, de forma sintética, um pequeno panorama histórico do desenvolvimento da tecnologia blockchain, bem como das discussões sobre sua inter-relação com o Direito Antitruste.

Conforme expusemos, muito se tem discutido sobre os impactos e transformações que esta tecnologia vem causando e ainda poderá causar na ordem econômica e social. Por este motivo, a partir de 2018, agências de defesa da concorrência e organizações intergovernamentais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), passaram a lançar luz às discussões sobre a interface entre blockchain e defesa da concorrência por meio da publicação de diversos estudos, bem como a publicação de diversos papers sobre o assunto[1].

No presente artigo, pretende-se apresentar, de forma um pouco mais detalhada, alguns desdobramentos e conclusões extraídas desses recentes estudos, os quais abordam esta inter-relação entre blockchain e concorrência.

Em geral, nota-se que estas produções tratam de análises teóricas sobre o tema, sem conclusões definitivas das possíveis condutas implementadas por meio da tecnologia blockchain e dos demais efeitos de seu uso e aplicações no ambiente concorrencial, uma vez que a atuação das autoridades de defesa da concorrência em relação à tecnologia ainda é incipiente.

Se, por um lado, a tecnologia blockchain parece “compartilhar a mesma ambição[2]” que o Direito Antitruste, por outro, também pode gerar preocupações para as autoridades de defesa da concorrência.

No que diz respeito às condutas coordenadas, as quais englobam acordos e práticas concertadas entre concorrentes, como cartéis, além de práticas verticais, diversas preocupações já foram lançadas por estudiosos do tema, como se verá adiante.

Schrepel (2019), no artigo “Collusion by blockchain and smart contracts“, busca responder, dentre outras, a seguinte indagação: a tecnologia blockchain mudará a natureza ou a forma como se organizam os conluios? Para respondê-la, o autor primeiramente propõe a distinção entre dois tipos de acordos, sendo do primeiro tipo aqueles que dizem respeito às condições de acesso, uso e/ou saída do blockchain, enquanto os do segundo são os acordos criados fora do blockchain, mas que usam a tecnologia para torná-los mais eficientes.

Schrepel (2019) também propõe a diferenciação, dentro das categorias de acordo citadas acima, entre aqueles que dizem respeito i) à blockchains públicas, ii) blockchains privadas e iii) a mecanismos que podem ser utilizados independentemente da blockchain ser pública ou privada.

Sobre o primeiro tipo, relacionado às blockchains públicas, o autor afirma que “The fact that several companies create a blockchain, or share information on it, could therefore be seen as an agreement because by doing so, they are expressing their joint intention to conduct themselves on the market in a specific way” (Schrepel, 2019, p. 130). Para ele, também parece possível que a criação de blockchains para fins anticompetitivos e para o compartilhamento de informações seja compreendida como uma prática que induz os participantes à conduta uniforme.

Sobre acordos colusivos relativos às blockchains privadas, o autor defende que a decisão de excluir um agente de mercado da blockchain a qual outros concorrentes façam parte pode ser compreendida como uma prática exclusionária e/ou como uma recusa concertada de negociar. Ressalta que as informações compartilhadas poderão ser utilizadas para adaptação de estratégias de mercado pelos agentes que as acessam.

Prosseguindo seu exame para além de acordos colusivos dos quais as análises dizem respeito às condições de acesso ou uso da blockchain, o autor argumenta que as empresas também podem usar a tecnologia para facilitar a criação e/ou o funcionamento de acordos de conluio sobre suas estratégias no mercado, incluindo preços, níveis de produção, estratégias de inovação e similares (Schrepel, 2019, p. 140).

Nesse sentido, Schrepel conclui que as blockchains podem funcionar como meios para prevenir e corrigir comportamentos desviantes de participantes de um conluio, o que, por consequência, poderia gerar ainda mais efetividade e estabilidade a estes arranjos anticompetitivos. Ainda, expõe como a blockchain pode proteger os conluios da detecção de suas atividades pelas autoridades antitruste.  Por fim, o autor destaca que os contratos inteligentes (“smart contracts”) “teriam a potencialidade de fazer com que o número de pedidos de leniência venha a ter uma diminuição, tendo em vista que a blockchain reforça a confiança durante a vigência da colusão”[3].

Nesse mesmo sentido, Lin William Cong e Zhiguo He (2018) argumentam que os smart contracts – que figuram na segunda geração de blockchain[4] – podem mitigar a assimetria de informações e melhorar o bem-estar do consumidor por meio do implemento de competição e abertura de maior espaço para negociação, ao mesmo tempo, também podem encorajar comportamento colusivo justamente em razão dessa distribuição de informações comerciais.

Por sua vez, Peder Østbye, Conselheiro Especial do Norges Bank, explica que há riscos de conluio e exclusão como resultado da tecnologia blockchain; no entanto, ele sugere que as ferramentas antitruste tradicionais podem ser usadas para lidar com esses riscos[5].

No que diz respeito à atuação das agências antitruste, Ajinkya Tulpule defende que a tecnologia poderá ajudar as autoridades a coletar mais dados, os quais permitirão que as agências executem análises mais sofisticadas e explorem teorias do dano mais complexas[6].

À vista dos entendimentos apresentados acima, conclui-se que a tecnologia blockchain e suas aplicações são capazes de gerar efeitos em duas direções distintas, sendo uma benéfica à concorrência e a outra prejudicial.

Por um lado, as blockchains podem promover condições mais igualitárias, reduzir a assimetria de informações entre agentes de mercado e entre estes agentes e os consumidores e ofertar novos meios de coleta de dados e monitoramento de mercados para as agências de defesa da concorrência, porém, ao mesmo tempo, a tecnologia pode encorajar comportamentos colusivos, tornar mais laboriosa sua detecção pelas autoridades e ser utilizada como meio para implementação de condutas exclusionárias.

Por sua vez, as condutas anticompetitivas unilaterais, isto é, aquelas praticadas por uma única empresa que detém posição dominante, têm ganhado cada vez mais os holofotes e sido objeto de preocupação das autoridades antitruste nesse cenário de constantes inovações tecnológicas. Isso porque, inserida no contexto digital, a ilicitude nem sempre é latente, requerendo, assim, uma atenção ainda maior por parte das autoridades de defesa da concorrência.

É certo que a formação de ecossistemas digitais torna a análise antitruste ainda mais desafiadora, principalmente em se tratando de casos que envolvam as blockchains privadas, que contam com o “efeito da opacidade”[7] e, por isso, podem encorajar o surgimento de novas práticas anticompetitivas, além de facilitar a manutenção de práticas já conhecidas pelas autoridades.

As blockchains privadas, como visto em nosso artigo anterior, possuem peculiaridades que as tornam mais preocupantes sob a ótica concorrencial, como, por exemplo, a existência de governança própria e a possibilidade de serem modificadas a qualquer tempo, sem a necessidade de aprovação dos usuários.

As características da tecnologia blockchain, especialmente as de natureza privada, tem gerado preocupações concorrenciais também no que diz respeito às condutas unilaterais, uma vez que por meio da tecnologia é possível que elas sejam implementadas e gerem efeitos de difícil detecção.

Há mais. Em uma blockchain privada, os ganhos decorrentes do efeito de rede são tão somente atribuídos à uma plataforma, potencializando, assim, o aumento do poder de mercado e gerando a preocupação acerca do surgimento de novas condutas.

Dessa forma, é notório que as blockchains privadas podem viabilizar  a implementação de diversas condutas anticompetitivas de difícil detecção por estarem além do alcance das autoridades antitruste[8], sendo essencial haver reflexão por parte destas autoridades sobre condutas unilaterais inseridas no universo das criptomoedas e demais tecnologias baseadas na blockchain.

Por outro lado, as blockchains públicas são menos suscetíveis de serem utilizadas como meio para práticas anticompetitivas, tendo em vista que, diferentemente das privadas, podem dificultar a adoção de estratégias similares por parte dos agentes sem que haja detecção, não possuem governança própria, contam com uma maior dificuldade para modificação do seu modo de funcionamento e garantem ampla visibilidade das ações aos usuários, pois são disponibilizadas a todos, indistintamente[9].

Da análise desse aparente paradoxo traçado entre o Direito Antitruste e a tecnologia blockchain, surgem algumas inquietações: De que forma tais condutas poderiam ser evitadas pelas autoridades, de modo a proteger a concorrência? Caso sejam detectadas condutas unilaterais anticompetitivas no sistema da blockchain privada, como responsabilizar o agente, em se tratando de uma tecnologia que possui o anonimato como característica? As métricas tradicionais adotadas para proceder à análise das condutas anticompetitivas tradicionais são suficientes? E quanto aos remédios aplicados, seria o caso de adotar remédios tradicionais mesmo em operações que envolvam a tecnologia blockchain?[10]

A dificuldade de compreensão das características dessa nova tecnologia e suas implicações para a análise antitruste são frutos desse novo contexto de rápido e amplo desenvolvimentos dos serviços digitais. Desse modo, é essencial que o enforcement antitruste acompanhe o desenvolvimento tecnológico, estimule a inovação e a competitividade, mas, ao mesmo tempo, proteja os consumidores e o mercado de possíveis abusos dos players

Para isso, é fulcral que haja um amadurecimento e melhor entendimento por parte das agências sobre esta tecnologia, de modo a estreitar o diálogo entre os operadores do direito antitruste e os desenvolvedores das blockchains, para que aqueles possam compreender, a fundo, o que são as blockchains, como elas funcionam e quais tipos de condutas podem estar inseridas nesse contexto, para, só então, passarem a desenhar possíveis formas de atuação que não impeçam ou desestimulem o desenvolvimento tecnológico e a inovação.


I Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade.  Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV

iii Advogada Antitruste no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Trabalhou como assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.

iiii Advogada no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).

[1] VILANOVA, JARDIM e NAPOLI. 2022. A interface entre blockchain e Direito Antitruste. WebAdvocacy. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/polyanna-vilanova/>

[2] Schrepel, T. (2019) Collusion by Blockchain and Smart Contracts. Harvard Journal of Law and Technology (33 Harv. J.L. & Tech. 117).

[3] ​​​​ RESENDE apud SCHEREPEL, 2021. Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin>  Acesso em: 16 de fevereiro de 2022. 

[4] VILANOVA, JARDIM e NAPOLI. 2022. A interface entre blockchain e Direito Antitruste. WebAdvocacy. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/polyanna-vilanova/>

[5] Østbye. Peder. OECD Competition Division.Blockchain and competition: Peder Østbye on the use of antitrust tools to address risks of collusion. Youtube, 27 de ago. de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fXytrHCeUI0>

[6] Tulpule. Ajinkya. Blockchain and competition: Ajinkya Tulpule and how blockchain might change the way agencies work. Youtube, 4 de set. de 2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=oM-NhHb4ngA >

[7] RESENDE. Guilherme. (2021) Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin . acesso em: 16 de fevereiro de 2022. 

[8] Schrepel, T. (2019) Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox (June 11, 2018). Georgetown Law Technology Review / 3 Geo. L. Tech. Rev. 281

[9] Schrepel, T. (2019) Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox (June 11, 2018). Georgetown Law Technology Review / 3 Geo. L. Tech. Rev. 281

[10]ATHAYDE. Amanda. (2019) Blockchain, Comércio Internacional e Concorrência. Disponível em:<https://www.amandaathayde.com.br/single-post/2019/04/15/blockchain-com%C3%A9rcio-internacional-e-concorr%C3%AAncia>


[i] Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade.  Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV

[ii] Advogada Antitruste no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Trabalhou como assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.

[iii] Trainee no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).

A entrada em vigor do Digital Markets Act (DMA) na Europa: uma primeira aproximação.

Lucia Helena Salgado*

Professora Titular de Ciências Econômicas da UERJ

Neste mundo sacudido por turbulências e dilemas de toda ordem, observa-se um raríssimo consenso, a unir no mesmo entendimento lideranças e analistas da China, Europa e Estados Unidos. Refiro-me à constatação de que algo precisa ser feito para deter o poder econômico das Big Tech, que na última década vem revelando efeitos nefastos sobre bem-estar. Extrema concentração de renda, precariedade de condições de trabalho, injustiça tributária, ameaça à estabilidade do poder político (às democracias no Ocidente e na versão chinesa, ao poder do Partido Comunista Chinês), a lista de danos é portentosa.

            Chama atenção a similaridade entre as questões que afligiam sociedades de ambos os lados do Atlântico há cem anos e as presentes hoje na agenda; naquele tempo, preocupava a concentração de poder econômico nos setores mais dinâmicos da economia: energia, transportes, metalurgia, quando o dinamismo hoje é representado pela economia digital, a precarização das condições de trabalho e a apropriação do excedente por um conjunto diminuto de empresas e seus acionistas.

            Naquele tempo, a insatisfação manifestada em greves, protestos, organização de partidos radicais e pressão sobre legisladores, punha sob ameaça o sistema econômico e social assentado sobre o mercado e a busca de lucro, razão porque, de um lado e de outro do Atlântico, foram arquitetadas inovações institucionais que apaziguassem ânimos e gerassem estabilidade social[1].

            Nos EUA, a inovação marcante do antitruste, na Inglaterra, e não menos marcante introdução do imposto de renda progressivo, na Alemanha a previdência social, além do paulatino reconhecimento de direitos trabalhistas requeridos pelos sindicatos nas economias industriais[2].

            Um século depois, além de uma pandemia equivalente em tragédia a que se espalhou pelo mundo ocidental após a então denominada Grande Guerra, os mesmos problemas de extrema concentração de renda, condições de trabalho e remuneração precárias e concentração de poder econômico sobrepondo-se ao poder político ameaçam romper o tecido social em vários pontos do planeta.

            A questão central que se propõe para reflexão é: serão os mesmos instrumentos criados naquele período para evitar o acirramento de conflitos sociais nas nações capitalistas suficientes para acomodar interesses e apaziguar ânimos?

            Respeitando os limites desta curta nota, vamos ater a discussão aos instrumentos desenvolvidos na colaboração da Economia com o Direito para a análise antitruste. A metodologia padrão de identificação e mensuração de poder de mercado, por mais que tenha evoluído significativamente com a inclusão do instrumental de teoria dos jogos e da econometria, instrumental esse potencializado pelo crescente acesso a microdados e capacidade computacional para operacionaliza-los, não parece adequada para dar conta de mercados de múltiplos lados, onde os principais agentes são mediadores entre oferta e demanda e variáveis típicas da análise econômica – como preços, custos e elasticidades – parecem ausentes da economia de plataformas.

            Nas duas décadas deste século, a dificuldade em aplicar o instrumental analítico disponível para identificar, mensurar e simular a concentração de poder de mercado na economia digital, somada ao perfil predominantemente conservador[3] do Judiciário norte-americano, redundou no reduzido número de firmas que hoje dominam o espaço virtual onde cidadãos ao redor do planeta interagem, informam-se, movem-se e realizam transações econômicas.

            A Comissão Europeia não se rendeu a essa realidade e, mesmo diante da dificuldade para lidar com operações de aquisição de potenciais rivais pelas Big Tech ocorridas nos EUA, tem sido incansável no combate nos anos recentes a abusos de posição dominante por parte dessas empresas em seu território; foram três, na última década, as investigações concluídas contra a Google por práticas abusivas, redundando em multas da ordem de € 10 bilhões. Tais processos, contudo, não foram capazes de induzir qualquer mudança no modo de operação da companhia. Atualmente a Comissão Europeia investiga a tecnologia de publicidade da Google, assim como suas práticas de coleta de dados; os sistemas de pagamento da Apple em sua loja de aplicativos; a coleta de dados pelo Facebook e seu sistema de monetização de publicidade, assim como as práticas da Amazon em seu marketplace.

             Mudança significativa é a lei proposta pela Comissão Europeia em 2020 e que agora em 2022 entra em vigor na Europa – Digital Markets Ac (2020/0374)[4]; vem a ser inovação institucional intensamente debatida nos anos recentes, que pode se assemelhar em impacto às inovações lançadas há coisa de um século: a lei Sherman (1890), seguida da lei Clayton e do FTC (1914). A nova lei incorpora elementos regulatórios: restrições e orientações ex ante, fortalecendo a função preventiva da Comissão Europeia como autoridade antitruste, reconhecendo a baixa eficácia da intervenção ex post (repressiva).

            Em outros pontos do planeta, a leniência com relação ao acúmulo de poder por parte das grandes empresas da economia digital parece também ter ficado no passado: enquanto na Europa se debatia a introdução de uma lei com instrumentos híbridos (ex ante e ex post), reforçando a autoridade da Comissão Europeia, também nos Estados Unidos o Congresso comandava investigação, que redundou em portentoso relatório sobre a concorrência em mercados digitais, concluindo com propostas de fortalecimento dos instrumentos antitruste do Poder Executivo. O governo Biden abraçou esse conjunto de propostas para fortalecer os mecanismos de combate à monopolização dos mercados digitais no Decreto[5] publicado em julho de 2021.

            Em uníssono, a autoridade antitruste chinesa multou a gigantesca empresa de comércio eletrônico Alibaba no montante equivalente a US$ 2.8 bilhões por requerer exclusividade dos comerciantes operando em sua plataforma (proibindo-os de vender em plataformas rivais). Acordos de exclusividade da Tencent (conglomerado de tecnologia) assinados com gravadoras globais de música foram proibidos, assim como foi bloqueada a aquisição pretendida pelo conglomerado dos dois maiores sites de streaming de jogos na China, Huya e DouYu[6]. Em paralelo, o governo chinês trabalha no reforço de regras antitruste para conter a expansão das empresas na economia digital. O recado tem sido claro: nenhuma empresa pode ousar concentrar poder econômico a ponto de desafiar o poder político, enquanto este encontra-se firmemente atado ao compromisso de longo prazo de garantir o compartilhamento dos frutos do progresso entre todos, compromisso esse denominado “prosperidade comum”[7].

            As iniciativas europeia e chinesa, assim como a disposição do governo norte-americano, reforçada pelo legislativo (onde a desconfiança acerca do poder acumulado pelas Big Tech encontra eco republicanos e democratas) deverá levar a mudanças no modelo de negócios nas plataformas digitais, abrindo espaço para novas soluções de mercado que, com maior transparência, devolvam poder de decisão e barganha tanto a consumidores  como a trabalhadores. Certo é que o pressuposto da eficiência econômica (redução de custos) como motivação das operações de fusão e aquisição de concorrentes (e potenciais rivais em mercados adjacentes), um mantra hipnótico consagrado pela Escola de Chicago[8], já não detém a hegemonia que manteve por décadas entre autoridades antitruste, políticos e a acadêmicos. Espera-se que o que Anu Bradford, professora da Columbia Law School, denominou “o efeito Bruxelas”[9] somado ao “efeito China” despertem do torpor induzido pela hipnose “chicaguista” também os tomadores de decisão no Brasil, para que consumidores e trabalhadores brasileiros não fiquem para trás nesse ambiente econômico global que se redesenha.


[1] A respeito, vale a pena consultar o recente trabalho de Matt Stoller, Goliath – The 100-Year War Between Monopoly Policy and Democracy, Simon & Schuster Paperback, New York 2020, que refaz em detalhes o surgimento e a evolução do antitruste nos EUA e recupera seu significado para aquela nação.

[2] Sobre a inovação institucional denominada Previdência Social, recomendo a leitura do capítulo 1 de O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão de Celia Lessa Kerstenetzky, Campus, Rio de Janeiro 2012. Sobre o imposto de renda progressivo, Thomas Picketty reconta sua gênese e evolução em vários países, em Capital and Ideology, Harvard University Press, 2020 (versão em inglês do original em francês). Vale lembrar que essas inovações institucionais tinham como contraponto as lutas operárias que levaram à  revolução bolchevique em 1917.

[3] Cuidadosamente desenhado, desde o governo Reagan, por administrações republicanas com a indicação à Corte Suprema e às Cortes Recursais de juízes treinados no modelo da Escola de Chicago, avesso à intervenção estatal sobre negócios.

[4] A respeito leia-se o Press Realease de 24/03/2022 do Parlamento Europeu “Deal on Digital Markets Act: EU rules to ensure fair competition and more choice for users” (Press Releases IMCO 24-03-2022 – 23:24).

[5] Executive Order on “Promoting Competition in the American Economy” de 09/07/2021, disponível em www.whitehouse.gov

[6] Anu Bradford, “A Reckoning for Big Tech” in Project Syndicate, Reckonings: The Year ahead, 2022, 2021 p 86-89.

[7] Note-se que, mais do que uma iniciativa isolada do governo comunista chinês, o compromisso “prosperidade comum: encontra raízes milenares na cultura chinesa, na qual a legitimidade do poder estatal repousa no compromisso deste com o bem-estar da sociedade. Darus Acemoglu e James Robinson descrevem na obra State, Society and the Fate of Liberty (Penguin Group, 2019) como o Estado na China sempre deteve poder absoluto sobre a sociedade, mas a contrapartida do reconhecimento do “Mandato vindo dos Céus” do Imperador era a confiança de que seus poderes seriam empregados em favor do bem-estar dos súditos. Ao longo da milenar história chinesa, quando isso não ocorreu, houve revoltas e deposição de governos. Os preceitos morais de Confúcio, na busca da harmonia social, longe de serem substituídos por novos preceitos a partir de 1949, seguem profundamente arraigados na relação entre Estado e sociedade. Acentuam os autores que, conforme dita a filosofia confuciana, a conduta moral do governante o obriga a ter como parâmetro de suas decisões o bem-estar de seus súditos.

[8] Nas conhecidas leituras de Posner, Stigler, Bork, Eastenbrook e seguidores.

[9] The Brussels Effect: How the European Union Rules the World – Anu Bradford, Oxford University Press, 2020.

* LÚCIA HELENA SALGADO. Professora Titular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.