Sobre construções, desmontes e oportunidades: o ataque do governo Trump às agências reguladoras e o papel que cabe ao Brasil

Lucia Helena Salgado

Nas últimas semanas, poucos temas são mais comentados do que a condução errática e irracional das políticas públicas estadunidenses. Desse debate sobressai uma constatação comum, a inviabilidade de construção de cenários diante da radical incerteza gerada por políticas sem fundamentação econômica que as sustente. Ver os Estados Unidos minarem os próprios fundamentos da hegemonia que vinham exercendo há 80 anos tem colocado o mundo em um estado misto de perplexidade e receio diante das possíveis consequências geopolíticas.

No Brasil, as reflexões sobre possíveis impactos do repentino abandono das crenças que sustentaram o processo mais recente de globalização – livre comércio, livre fluxo de capitais, divisão internacional do trabalho visando redução de custos, harmonização de legislações entre jurisdições, menor intervenção do governo na economia – tem se centrado nos impactos das medidas tarifarias tomadas pelo governo Trump.

Com isso, pouca atenção tem se voltado para o processo de desmonte da engenharia institucional nos primeiros anos do século XX no governo Ted Roosevelt, engenharia esta consolidada nos anos 30, no governo Franklin Roosevelt: trata-se da compatibilização de interesses públicos e privados mediante o desenho de agências reguladoras. Foi um desenho institucional totalmente inovador, um aparato executor de políticas regulatórias, criado no Legislativo, formado por corpo técnico estável, corpo decisório também técnico e formado por indicações políticas equilibradas entre os partidos Democrata e Republicano e lideradas por indicados pelo Executivo, sendo todo o corpo decisório submetido nas indicações à apreciação do Legislativo, a quem periódica e rotineiramente lhe cabe prestar contas. Ainda, decisões regulatórias – e aqui inclui-se também as decisões antitruste, de natureza regulatória, lato sensu – são contestáveis diante do Poder Judiciário e decisões finais sobre questões controversas cabem às Cortes de Apelação ou, em última instância, à Suprema Corte.

Assim, a engenharia institucional que deu origem às agências reguladoras, como mecanismos para compatibilizar os interesses privados da atividade econômica com o interesse da sociedade, fundou-se nos mesmos pilares dos pesos e contrapesos entre os poderes da República tal como desenhada pelos Federalistas, a partir dos ensinamentos de Montesquieu, que alertou em seu “O Espirito das Leis” de que a separação e contraposição de poderes era a chave para afastar-se o risco da tirania resultante da concentração de poder. Determinados a instituir um aparato de Estado infenso a regimes que guardassem semelhança ao superado domínio monárquico inglês, os Federalistas desenharam a República sobre os pilares de poderes que se contrabalançam sustentando o Estado de Direito, de modo a jamais sufocarem a sociedade.

Este desenho compõe o Ethos estadunidense e confere, com as regras do Estado de Direito, consistência e legitimidade à democracia naquele país, foi replicado por toda a América e adotado pelo Brasil desde a sua 1ª República. Com exceção do período do Estado Novo varguista, o desenho de República amparado sobre os pesos e contrapesos de três poderes, vigorou até mesmo durante os 21 anos de ditadura militar, em que a formalidade da coexistência dos Três Poderes encobria o esvaziamento de competências do Legislativo e do Judiciário.

 Assim como na constituição da 1ª República, nos anos 1990 o Brasil procurou modelar seu aparato estatal a partir da experiência estadunidense. Em linha com as diretrizes apontadas por Washington e disposto a integrar-se à dinâmica do processo de globalização, novamente espelhamos internamente o desenho institucional das agências reguladoras dos Estados Unidos – acompanhando o movimento de privatização, não discriminação do capital estrangeiro e concessão de serviços públicos, em substituição ao modelo de intervenção direta do Estado na economia.

 Ao longo das ultimas duas décadas, o modelo vem sendo aperfeiçoado no Brasil e robustecido por iniciativas como o programa de melhoria regulatória e capacitação técnica (ProReg), a incorporação dos instrumentos de análise de impacto regulatório (AIR), resultado regulatório (ARR), agenda regulatória, os esforços de racionalização e simplificação regulatória e, mais recentemente, a introdução do instrumento de regulação experimental (sandbox regulatório), seguindo as diretrizes mais atualizadas de gestão e avaliação regulatória.

Enquanto isso, o atual governo dos Estados Unidos resolve desmontar o modelo de agências que, lembremos, assenta-se sobre um cuidadoso tripé de contraposição de poderes. Decreto (Ordem Executiva 14215)[1] publicado em fevereiro deste ano foi, agora em abril, enviado a todas as agências reguladoras, todas desenhadas como comissões, incluindo, portanto, a FTC (Comissão Federal de Comércio) que faz valer, juntamente com a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, a legislação antitruste, que todas devem agora subordinar-se à órgão da Casa Branca, o OIRA, assim como já o fazem desde o governo Reagan os departamentos que compõe o aparato do Poder Executivo. O OIRA (Escritório de Informação e Avaliação Regulatória) foi criado nos anos 1980 com a missão de rever, com base em análise de economicidade (custo-benefício) propostas regulatórias de departamentos do Executivo, antes de enviadas ao Congresso. Mantida por todos os governos seguintes e aperfeiçoada com a experiência, aplicava-se obrigatoriamente apenas aos órgãos do Poder Executivo, sendo tão somente recomendações às agências reguladoras, posto que essas são subordinadas ao Legislativo. O novo decreto estabelece que qualquer decisão das agências deve seguir estritamente as instruções advindas da Casa Branca, além de serem obrigadas a criar um cargo de diretor regulatório, que devera se reportar diretamente ao OIRA.

Acrescente-se a esse evento a inédita demissão de dois comissários da FTC, indicados pelo Partido Democrata e no curso de seus mandatos (como no Brasil, esses comissários só poderiam ser afastados por justa causa associada ao descumprimento de suas funções ou ao cometimento de crimes). Não obstante o fato de que as demissões estão sendo contestadas na Suprema Corte pelos comissários, são mais do que claros os sinais de que a administração Trump não reconhece a limitação mútua entre os poderes que fundamenta o Estado de Direito.

Esse quadro, se consolidado, aponta para o ocaso da liderança estadunidense também no campo do desenho institucional, deixando um vácuo que, com perspicácia e consistência, pode ser ocupado pelo Brasil, que vem demonstrando ao mundo o quão consistente é seu compromisso com o Estado de Direito amparado no desenho de pesos e contrapesos dos Três Poderes. Ademais, o pais tem investido esforços, também de forma consistente no fortalecimento do desenho de agências, que tem resistido às turbulências da vida politica, como é exemplo a promulgação da Lei Geral das Agências, que conforma o modelo de governança formado por decisões técnicas apoiadas em transparência, prestação de contas e responsabilização

Fica aqui o recado: o atual quadro de anomia estadunidense abre espaço para que o Brasil assuma liderança também no campo do desenho institucional, apresentando seu compromisso com a boa governança na condução de politicas regulatórias como modelo para outras jurisdições, sobretudo no Sul Global

Tomara que essa oportunidade não se deixe passar.


[1] [1]https://public-inspection.federalregister.gov/2025-03063.pdf


Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


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O bem-estar que nos prometemos

Adriana da Costa Fernandes

A vida humana evolui de forma cíclica. Entre avanços e recuos, o mundo e o homem seguem construindo, aprimorando e destruindo para, então, reconstruir em diferentes bases.

Era um tempo de ainda maiores desigualdades do que as tantas testemunhadas nos dias atuais. No pós-segunda guerra mundial, em meados do século XX, impactada pelos efeitos do capitalismo industrial iniciado no século XIX, a cidadania foi ampliada com ênfase em proteção social. Pela primeira vez, os Estados passaram a exercer a soberania por meio de uma integração social considerada mais estável.

Surgia o Estado de Bem-Estar Social, o Welfare State, imediatamente consagrado em Democracias mais consolidadas, como o Reino Unido e a Escandinávia, e introjetado, em diferentes graus, em outros Estados.

A Carta do Atlântico (1941) influencionou muitas sociedades, defendendo o compromisso transnacional de melhoria dos direitos trabalhistas, através do desenvolvimento econômico e da proteção coletiva e individualizada. Esta carta e o Relatório Beveridge estavam intimamente ligados. O último, visando a aplicação prática da Carta e definindo a seguridade social como parâmetro de segurança do indivíduo.

Ainda que o aparecimento do Estado de Bem-Estar Social não tenha significado o fim efetivo de todos os conflitos nas relações entre governos e sociedades, o contexto mudou. O catalizador foi, sem dúvida, a desvinculação da cidadania e da obtenção de direitos e deveres, da guerra, gerando, assim, maior pacificação das sociedades.

Era o começo do reconhecimento dos direitos sociais e de seu enraizamento nas culturas políticas internacionais. O Princípio da Inclusão fora considerado fundamental para a integração da chamada sociedade mundial.

Divisões sociais apareceram e novos sujeitos coletivos passaram a representar as classes. Grupos de Interesse, dotados de posição de influência, começaram a interagir diretamente com o Estado por meio de negociações coletivas. O mundo começava a adquirir uma conformação mais próxima da atual.

A partir de 1945, os orçamentos de proteção social começaram a superar os gastos militares e o mundo parecia estar entrando em uma rota democrática finalmente consistente e madura. No período de 1950 a 1970, testemunhou-se o aumento das matrículas escolares de 60 (sessenta) para 84% (oitenta e quatro por cento) globalmente e, na África, de 27 (vinte e sete) para 54% (cinquenta e quatro por cento). Nos anos 80, em muitos países, com a redemocratização e o término dos regimes ditatoriais, a mobilização política relativa à proteção social foi intensificada. Mesmo assim, antagonicamente, em vários Estados, os gastos sociais regrediram e as estruturas foram precarizadas.

Se, ao parar no meio de uma linha do tempo, o olhar se deslocasse para trás, para o que ficou e para frente, direcionado ao futuro que vem lá, altamente afetado por severas questões climáticas e pelo crescimento exponencial da tecnlogia, não há como não se antever um novo complexo ciclo humano despontando.

Em tempos atuais, o mundo voltou a se dividir, a vivenciar a intensificação de conflitos e a afirmar posicionamentos dicotômicos, populistas e negacionistas acerca de temas considerados técnica e academicamente inquestionáveis. Do que parece estar se enfrentando agora é justamente da repactuação do Estado de Bem-Estar Social, sob critérios mais avançados. É inquestionável, por exemplo, a necessária integração dos avanços tecnológicos e de ações eficazes de mitigação climática aos direitos humanos e sociais globais.

Do que se debate agora é da ecologização dos direitos sociais e da transmutação dos Estados de Bem-Estar Social para o Eco-Social.

Trata-se, portanto, do surgimento de um direito global, um tanto mais uníssono e integrativo, representativo e preocupado com critérios como o Princípio da Justiça Intergeracional. Além de apto a enfrentar, até mesmo, o esperado incremento do volume de refugiados, em especial, provenientes de áreas costeiras. Sobre isto, a expectativa é de que o impacto se verifique sobre aproximadamente 745 (setecentos e quarenta e cinco) milhões de pessoas em todo o mundo.

Espera-se, então, que seja definida, em breve, uma eficiente transversalidade das políticas ambientais globais, afetas às decisões colegiadas de organismos internacionais, sem dúvida, mas de forma um tanto vinculativas. Aptas, até mesmo, a prever sanções, em caso de descumprimento, em seara comercial e econômica internacional.

Assim, as questões que pairam no ar e na mente dos que estudam e se preocupam são:

– Onde o homem se perdeu nesta jornada?

– O que realmente gerou a profunda mudança de paradigma entre um tempo de intensa preocupação com os direitos sociais, humanos e coletivos para esse tempo de profundo individualismo e egocentrismo?

– Por quê e o quê não foi possível aprender?

– Até onde irá o homem nessa toada, até que curva de sua estrada?

Mas, acima de tudo:

– Onde, afinal, foi parar a promessa que nos fizemos sobre a crença em um Estado de Bem-Estar Social enquanto ponto de partida de uma estrada rumo ao mais alto?


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com expertise em Direito Público e em Direito Privado, com foco especial em Regulatório, Administrativo, Conatitucional e Ambiental, mas igualmente em Cível Estratégico, Consumidor e RELGOV, tendo atuado em mercados e segmentos relevantes, em grandes empresas, nacionais e multinacional, em associação setorial, em agências reguladoras, em escritórios AA e consultoria. Mestranda em Direito Constitucional, Pós-graduanda em Direito Civil, com MBA em Marketing, Especializações em Energia Elétrica, RELGOV, Processo Civil e Fundamentos da Arbitragem, além de contar com várias Certificações em instituições de renome em Legal, Finanças, Marketing, Business, Gestão e Liderança e Bioética.


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Adriana da Costa Fernandes

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