Regulação Econômica

Democracia e Regulação: a importância da participação direta para um novo pacto dos agentes sociais.

Cristina Vargas

Dentre os dois modos de produção antagônicos propugnados pelas definições das economias liberais e socialistas, a constituição de um Estado Regulacionista vem se apresentando cada vez mais como uma solução instrumental. A abordagem regulacionista parte do princípio de que a economia capitalista está sujeita a crises cíclicas, que no entanto podem ser amenizadas pelo aparato regulatório, permitindo a continuidade de reprodução do sistema. No entanto, para o funcionamento eficaz desse aparelho regulador é necessária a sua aceitação pelos diversos agentes sociais. O processo de destruição criadora envolvido na constituição desse aparato vem acontecendo de forma dinâmica, em que o novo surge antes mesmo que o velho esteja suplantado. Entre o extremo de uma sociedade produtiva totalmente estatal ou aquela na qual os meios de produção são totalmente apropriados e gerenciados pelo mercado, a regulação sobre quem pode gerir com maior eficiência os meios de produção pode tornar-se cada vez mais participativa. Os novos instrumentos tecnológicos de informação e comunicação estão cada vez mais facilmente acessíveis pela sociedade. A estrada da informação, como era chama a internet no início dos anos 1990, era anunciada como um futuro lócus de comércio e interação cultural. Embora tenha nascido como resultado de pesquisas do departamento de defesa dos EUA durante a guerra fria, isto é, fruto do conflito entre os regimes econômicos antagônicos, cada vez mais a internet oferece a possibilidade de maior participação da sociedade acerca dos processos de fiscalização da coisa pública. A exemplo disso podemos citar as consultas públicas feitas pelas agencias reguladoras, e a própria definição dos projetos nos quais serão aplicados os recursos públicos orçamentários. Sabemos que com a tecnologia atual disponível poderíamos ter um mundo completamente diferente. A participação social atuando conjuntamente `a atividade de regulação dos recursos públicos pode representar um importante avanço na resolução dos conflitos, e contribuir para conciliação social necessária para a retomada do crescimento econômico. A história da humanidade nos mostra que o amadurecimento da democracia aconteceu entre avanços e retrocessos. Robsbawn (1996) já afirmara categoricamente que “a Revolução Francesa começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado”, e no entanto o resultado foi o avanço obtido com a declaração dos direitos dos homens e cidadãos. Mais recentemente Piketty (2016:79) afirmou que estamos ainda muito longe das luzes do século, e a resposta precisa ser dada a seguinte pergunta: “que formas de governança alternativas devemos criar no século XXI para escapar da ditadura do proprietário todo-poderoso e finalmente permitir um controle democrático e participativo do capital e dos meios de produção?” Numa perspectiva inspirada nas revoluções pacíficas da história mundial, como a Marcha do Sal ou a Primavera de Praga, a pergunta pode ser estendida ao conceito de democracia cidadã: como escapar de qualquer tipo de ditadura dos meios de produção, estatal ou de mercado, e ainda conciliar os interesses individuais e coletivos em uma sociedade que promova o crescimento econômico e uma política de paz?

A Teoria da Captura preconiza a possibilidade de que as Agências Reguladoras sofram captura por parte dos agentes regulados, e que em conseqüência os interesses desses agentes sejam atendidos em detrimento dos interesses dos consumidores, ou em outras palavras, que serviços de interesse público repassados à atividade privada obtenham ganhos não por aumentos de eficiência, mas por desfrutarem de alguma situação de proteção ou beneficiamento, que por fim indicaria a perda de autoridade e de comprometimento com o interesse público por parte da Agência.

“A doutrina cunhou a expressão ‘captura’ para indicar a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados. A captura se configura quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos de um, alguns ou todos os segmentos empresariais regulados. A captura da agência se configura, então, como mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidades dos setores burocráticos estatais.” (Justen Filho, 2002: 369).

Aparentemente, o agente que pratica a captura está bem definido, conquanto a forma como o Estado constitui-se em capturado tem sido objeto de estudos e pesquisas. Dificilmente enxergaremos os mecanismos pelo qual o Estado torna-se o agente capturado se o enxergarmos de forma mítica, isto é, uma entidade sem rostos e sem personalidade. Stigler (1971) por exemplo, aponta a importância da pressão de grupos de interesse que financiam partidos políticos cujos projetos regulacionistas são de seu interesse para auferir renda que deveria ser revertida em benefícios dos consumidores. A partir da concepção institucionalista de causação circular, em que as instituições e os

indivíduos se influenciam reciprocamente podemos tentar compreender como se constituem os valores que irão determinar quais regramentos irão reger a sociedade.

Enfatizando o poder da captura em nível de política nacional Cagé (2020) afirma que “o dinheiro compra eleições”, estimando para a França o preço do voto em 35 euros, e apontando uma influencia decisiva do investimento privado sobre os resultados das eleições. Cagé (2017) afirma que não é só no Brasil que a democracia está em crise. O fenômeno de desencanto com a política, também observado nos países avançados, provém de um sentimento de desapropriação sentido pela maioria dos eleitores. Eles têm a impressão de que suas escolhas são confiscadas por uma minoria com forte poder econômico.”

Além do sentimento de ausência de poder emanado diretamente do povo, por melhores e mais racionais que possam ser as escolhas dos indivíduos, devemos considerar também a influência do ao auto-engano nas escolhas, ainda que feitas por mecanismos de participação direta.

“ mentimos para nós mesmos o tempo todo, lembramos e esquecemos de acordo com nossas convicções. O auto-engano permeia grande parte das escolhas que fazemos. Ao nos auto iludirmos geramos implicações éticas na vida publica e pessoal.” (Giannetti: 2005)

Como então garantir que a concorrência será devidamente regulada e não influenciada pela relação por vezes perniciosa entre agentes do Estado e entidades privadas? De acordo com Aktouf (2004) o fato que está latente na atual conjuntura econômica é que a administração pública não pode ser o braço armado da captura por diferentes grupos ou pessoas na definição das políticas públicas.

Alguns exemplos de boas práticas e avanços na administração pública tem se verificado pelo uso de instrumentos que possibilitam o acesso da sociedade civil ao planejamento e à execução das políticas públicas.

A administração pública brasileira dispõe de um rol de instrumentos que podem auxiliar na elaboração de seus regulamentos por meio da participação social, tais como: audiências públicas, consultas regionais, consultas públicas, consultas para revisão de Guias, canais eletrônicos para recepção de denúncias, tomada pública de subsídios, realização pública de Webinars, consultas dirigidas, diálogos setoriais, criação de grupos de trabalho e conselhos participativos. A criação de tais instrumentos tem

contribuído para democratizar o processo de regulação, mas para ser eficaz depende de publicidade eficaz e transparência na fiscalização da gestão.

Assegurar as condições de transparência que garantam a concorrência de fato em processos de regulação, ou mesmo licitatórios, dada a conjuntura recente brasileira passa a ser pré-requisito obrigatório para a manutenção de uma estrutura social pacifica.

Em pleito eleitoral recente no Brasil, parte das campanhas apresentavam uma escolha entre democracia ou corrupção, como se ambos fossem eventos mutuamente exclusivos, quando na verdade nunca o foram. As mídias sociais eram inundadas de acusações que salientavam a idéia de polarização entre denúncias de corrupção e denuncias de autoritarismo. No entanto, o combate efetivo à corrupção depende diretamente de assegurar transparência e efetividade na participação social sobre os processos públicos. Quanto maior a participação social direta na avaliação da eficiência acerca da prestação dos serviços públicos concedidos, menores serão os incentivos para a implementação de práticas de capturas e relações público-privada permeadas por atos de corrupção. Entre 1990 e 2021 o número de indivíduos que utilizam a internet no Brasil passou de zero para 81% da população. A administração pública federal já deu passos significativos para impulsionar a digitalização da economia, buscando oferecer diversos serviços públicos por meio de plataformas digitais. No entanto, conforme Ruess et al.(2021) as pesquisas sobre participação política on line (PPO) ainda são escassas, e por vezes, limitadas a aspectos relacionados a facilidades de acesso técnico. Dois fatos já foram observados: o primeiro é que os mais jovens tendem a ter maior confiança na prática da participação política on line, e a segunda é que diferentes plataformas atraem diferentes perfis de usuários. Além disso, comportamentos adotados on line, como marcar e encaminhar postagens sobre políticas públicas por exemplo, por vezes não apresentam um equivalente direto off line. A discussão sobre a definição do que são atos políticos por via digital ainda é muito ampla, mas os conceitos embrionários parecem estar relacionadas à capacidade de engendrar uma mudança social efetiva. Embora o debate acadêmico sobre a conceituação de OPP tenha sido intenso – particularmente sobre a distinção entre comportamentos políticos passivos e ativos – pouco se sabe sobre seu impacto nas abordagens empíricas do fenômeno. O que já se vislumbra em alguns estudos é que plataformas de mídias sociais estão intrinsecamente ligadas com as manifestações de participação on line. Os resultados das eleições de 2010 e 2014 nos EUA coincidiram fortemente com as estratégias de mídia social das campanhas.

Assim parece estar claro o grande poder de alcance e influencia que a PPO pode produzir na promoção de um ambiente mais ético, tanto na esfera da regulação quanto das contratações e políticas públicas em geral. Alguns economistas acreditam que uma retomada do crescimento econômico associado a investimentos diretos públicos, bem como, o abandono das políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1990 seriam o primeiro passo para retomada de um ambiente social mais estável. No entanto, esse caminho parece conduzir ao acirramento do processo de polarização instaurado nos últimos anos, e por si só não resolveria o problema da captura ou da corrupção. Assim, parece uma atitude sábia buscar uma solução via caminho do meio, dando continuidade aos projetos inclusivos e redistributivos, ao mesmo tempo em que a atuação de regulação e fiscalização do Estado nos casos de concessão ao setor privado deve ser aprimorada. A ampliação da participação on line sobre os destinos dos recursos públicos pode conduzir a uma transformação institucional, capaz de levar a relação entre a liderança empresarial e as lutas sociais a um novo patamar. Mesmo em economias fortemente centralizadas como a China, foi preciso encontrar um caminho do meio entre a atividade estatal e as atividades e aspirações individuais privadas no livre mercado, em que pese não tratar-se de um regime democrático. O fato é que não se pode impedir a inovação, ela faz parte do lema jurássico ‘a vida sempre encontra um meio’, então o que nos resta é avançar na atividade de regulação a fim de melhor distribuir os ganhos entre os diversos agentes sociais.


Referências:

AKTOUF, Omar. Pós-globalização, administração e racionalidade econômica. A Síndrome do Avestruz. São Paulo: Atlas, 2004.

CAGÉ, Julia. The price of democracy. How money shapes politics and what to do about it. Cambridge,Massachusetts, London, England: Harvard University Press: 2020.

CGU-Controladoria Geral da União, Revista da CGU, Brasilia/DF, out, 2007. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/34468/10/V2.n2_Democracia.pdf

GIANNETTI, Eduardo. Autoengano. Companhia de Bolso:2005.

HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.

PIKETTY, Thomas. Às urnas cidadãos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

RUESS, Christina et al. Participação política online: a evolução de um conceito

Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Christian-Hoffmann-14/publication/357176371_Online_political_participation_the_evolution_of_a_concept/links/61dc12b93a192d2c8aee01e7/Online-political-participation-the-evolution-of-a-concept.pdf

SCHUMPETER Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

STIGLER, George J. The theory of Economic Regulation. Bell Journal of Economics and Management Science, 1971.

WORLD BANK. Individuals using the Internet (% of population). Disponível em https://data.worldbank.org/indicator/IT.NET.USER.ZS?locations=BR

O que a obra “Intermitências da Morte” de José Saramago tem a ver com a soberania econômico-orçamentária brasileira no contexto da transformação digital?

Editorial

José Saramago na sua obra “Intermitências da Morte” traz reflexões muito importantes a respeito do custo e do benefício de algo que chega para alterar o status quo. De maneira breve, o autor apresenta a alegria da cidade ao saber que a morte não se fazia mais presente entre eles. No primeiro momento a imortalidade foi vista com regozijo, mas em pouco tempo os conflitos começaram a surgir. 

A ausência das mortes colocou em xeque, por exemplo, a existência das funerárias e das seguradoras de vida. O desajuste dos setores econômicos resultou em soluções criativas e um dos principais efeitos colaterais apontados por José Saramago foi o surgimento da clandestinidade, da contravenção e da criminalidade. 

A descoberta de que a morte não estava extinta nas cidades que faziam fronteira foi o estopim para o surgimento de empreendimentos para fazer o transporte dos enfermos moribundos para as cidades vizinhas, onde estes poderiam alcançar a morte tão desejada, com o retorno da sociedade ao equilíbrio social anterior.

A extinção da morte no Estado era um fenômeno repentino e o Estado, com as suas leis e regras administrativas, não encontrava ajuste ao novo. Na presença de tamanha rigidez legal e de hábitos, o resultado foi o crescimento das atividades clandestinas e do envolvimento do próprio Estado nestas atividades. A existência de policiais de fronteira complacentes com a prática do transporte de moribundos para além da fronteira vizinha é um exemplo de como as alterações na sociedade caminham de avião supersônico e o Estado de carroça.

Pois então, o novo atropela, desafia e causa transtorno e o Estado somente se acautela quando o novo fica velho, mas é entre o novo e o velho que surgem o oportunismo e o descaminho.

A partir da reflexão de José Saramago coloca-se a seguinte pergunta para reflexão: o que está por surgir no Estado brasileiro como resultado da avassaladora transformação digital? 

Bem, parece que ainda estamos “abestalhados” com toda esta transformação digital, tal como foi a atitude dos moradores da cidade mediante a extinção da morte. Os órgãos públicos mergulham de cabeça nestas tecnologias e, ao se deliciarem com as maravilhas virtuais, transferem informações relevantíssimas do Estado para bancos de dados, se não suspeitos, pelo menos bastante obscuros. 

Tá bem, o discurso sempre é de que não podemos perder o bonde etc etc etc!!!

Sim, não podemos perder o bonde, mas também não podemos viajar pendurados na porta, pois a chance de cairmos dele é uma questão de tempo.

Estaria a soberania econômico-orçamentária brasileira em perigo?

A soberania do Estado é um tema constitucional, ela está em tudo aquilo que diz respeito a uma nação e a soberania econômico-orçamentária faz parte da soberania nacional. Alguns autores têm afirmado que a sociedade tem experimentado conjuntamente as transformações econômicas, sociais, jurídicas, políticas e morais, ao contrário do que acontecia anteriormente.

Como tratar a soberania econômico-orçamentária de um país frente aos contratos internacionais de transferência de tecnologia, em que empresas poderosas como as big techs (Microsoft, Apple, Google etc), que possuem PIBs superiores ao de muitos países, estão enraizadas em todos os continentes e detêm acesso a todas as informações fiscais relevantes dos países a velocidades inimagináveis. 

Talvez porque o saudoso romancista José Saramago seja português, a Europa já luta como nunca para proteger as suas fronteiras do avanço destas transformações digitais sobre a sua soberania, mas e o Brasil? Para onde vamos?

A OCDE e o Novo Mercado de Gás: O Ponto Virtual de Negociação como Mercado Relevante no setor de Gás Natural

Felipe Fernandes Reis

Os desafios do setor de gás natural no Brasil vem sendo objeto de iniciativas em prol de boas práticas regulatórias e de defesa da concorrência, a Web Advocacy ostenta importantes publicações nesse sentido, dentre os quais destaco a coluna da Dra. Daniela Santos, profunda conhecedora da matéria[1]. Com esse intuito, a proposta deste artigo é defender o conceito e dinâmica de um dos pilares desenhados para o novo modelo do setor, “o mercado de comercialização atacadista de gás”, especialmente no indispensável papel do CADE em suas análises de atos de concentração ou controle de condutas.

Aliás, aproveita-se que a OCDE incluiu a delimitação de mercado relevante nos setores de Oil & Gas (“O&G”) entre os temas tratados na “Latin American and Caribbean Competition Forum”[2], como oportunidadede também considerar as recomendações desse importante órgão a respeito desse tema. No paper que endereça as principais questões encaminhadas no aludido Forum[3], é destacado a importância de boas práticas na delimitação do mercado relevante, reforçando o entendimento que tal exercício consiste em valioso instrumento de análise, mas não sendo “um fim em si mesmo” ou o único meio de análise da autoridade antitruste para apurar os possíveis efeitos anticompetitivos de uma conduta ou ato de concentração. O CADE, inclusive, vem adotando essa premissa, reconhecendo o papel da delimitação do mercado relevante como instrumento de análise e importante mecanismo para apurar probabilidade de condutas anticompetitivas e seus respectivos efeitos[4].

No referido paper da OCDE, também é mencionado o desafio da delimitação de mercado relevante em setores objetos de transformação, seja em razão de inovações tecnológicas ou pela própria regulação, como é o caso do setor de gás natural no Brasil, que nos últimos anos vem sendo objeto de reformas legais e regulatórias, alterando a sua estrutura e dinâmica, com o objetivo de promover concorrência, eficiência e liquidez no setor de gás natural, conforme proposto pelo Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural[5] e estruturado pelo novo modelo desenhado pela ANP[6].

Além disso, vale citar a orientação da OCDE sobre a necessidade da interação entre a agência reguladora com a autoridade antitruste, para melhor compreensão do setor, redução de assimetrias de informação e outras formas de colaboração na adoção de medidas de preservação e promoção da concorrência. Ressalta-se, também, o reconhecimento, no referido paper, acerca da evolução das análises do CADE na delimitação do mercado relevante no setor de gás natural, especialmente a partir do ato de concentração envolvendo a aquisição do controle da GASPETRO pela Compass Gás e Energia S.A, que antes era detido pela Petrobras[7]. No documento, essa evolução é atrelada à importante separação entre os mercados de comercialização e distribuição de gás natural[8].

Nesse sentido, vale citar que a referida operação foi objeto de análise tanto pela Superintendência Geral (“SG/CADE”) como pelo Tribunal do CADE. A SG/CADE[9] e o Conselheiro Relator definiram o mercado relevante da distribuição de gás canalizado de forma separada da Comercialização, a qual foi segmentada em dois mercados distintos:

  • Comercialização para atender ao Consumidor Livre;
  • Comercialização para fornecimento ao Consumidor Cativo (ou seja: Comercialização para atender as Distribuidoras de Gás Canalizado).

Por outro lado, apesar de acompanhar o Relator em suas conclusões quanto à aprovação da operação, o Conselheiro Victor Fernandes divergiu no tocante à delimitação dos mercados relevantes acima mencionados. No que se refere aos mercados de Comercialização de gás, o Conselheiro o definiu em “Comercialização Atacadista”, segmentado em dois níveis: a montante (i.e. entre produtores e importadores) e a jusante (que ocorre a partir da rede de transporte), aliás, também tratou do mercado de comercialização varejista, que consiste no fornecimento aos usuários do mercado cativo, atualmente de exclusividade das Concessionárias do serviço público de distribuição gás canalizado (Distribuidoras/CDL).

Entre as diferenças dos entendimentos acima, é importante principalmente destacar a opção de incluir as distribuidoras no lado da demanda juntamente com os consumidores livres, conforme delimitado pelo Conselheiro Victor no denominado “mercado de comercialização atacadista à jusante”, enquanto o entendimento da SG/CADE e do Conselheiro Relator seria apenas incluir os consumidores livres na demanda do mercado de comercialização, sem considerar, portanto, o volume adquirido pela Distribuidora e seu papel enquanto adquirente de gás nesse mercado.

É importante destacar que o presente artigo não tem por objeto analisar os fundamentos e motivações alcançadas no referido ato de concentração, o que poderá ser feito em oportunidades futuras. Contudo, é importante apenas mencionar que durante a análise dessa operação, os debates a respeito da dinâmica do setor, em especial sobre a comercialização de gás (se seria apenas uma atividade; um elo e/ou um mercado relevante) acabou por prejudicar, a meu ver, a adequada compreensão da comercialização, sua definição como um mercado relevante, bem como a sua dinâmica concorrencial.

Feito esse breve resumo acerca dos diferentes entendimentos recentemente adotados pelo CADE, entende-se de suma importância defender o mercado de comercialização atacadista de gás à jusante (nos termos propostos pelo Conselheiro Victor), isso porque, no atual momento e de forma geral, é possível e provável que os ofertantes atuem e rivalizem para atender tanto o consumidor livre como as distribuidoras, as quais, além de representarem a maior parcela do volume comercializado no país, desempenham significativo papel no acesso dos comercializadores ao consumidor livre, na medida que esses precisam contratar seu serviço de distribuição de gás no nível downstream para então migrarem como demandante nesse mercado de comercialização atacadista à jusante. Aliás, são vários os casos de comercializadoras que já celebraram contratos com ambos[10].

As recentes reformas do setor buscaram instituir o mercado de comercialização atacadista à jusante[11], a partir do Ponto Virtual de Negociação (“PVN”) ou “Hub” atrelado à respectiva área de capacidade de transporte- como o ambiente propício à competição entre os diferentes ofertantes (comercializadoras de produtoras, importadoras, do grupo econômico das distribuidoras e traders) para atender a demanda das CDL’s, dos consumidores livres e das distribuidoras a granel (GNL/GNC), de modo que as relações comerciais não sejam necessariamente atreladas ao fluxo físico da molécula, gerando, desse forma, liquidez, concorrência e flexibilidade, com aumento da oferta e entrada novos agentes. Por tais razões, o CNPE, através da Resolução n.03 de 2022, estabeleceu como de interesse da Política Energética Nacional que os agentes identifiquem nos contratos de comercialização o Ponto Virtual de Negociação como o ambiente de troca de titularidade do gás, conforme modelo estruturado nas reformas do setor:

Sugere-se, portanto, que o mercado relevante de comercialização atacadista à jusante seja delimitado à luz do Ponto Virtual de Negociação, adotando, inclusive, essa terminologia, de modo a evitar que esse seja confundido com outras atividades e segmentos adjacentes que também envolvem a compra e venda de gás, por exemplo: comercialização de gás não processado entre produtoras (upstream) ou o fornecimento de gás pelas Distribuidoras ao usuário cativo (downstream).

Em sua esfera geográfica, até a completa integração entre as diferentes áreas de transportes, sugere-se a segmentação do mercado conforme cada uma das áreas de capacidades de transporte, uma vez que a sua contratação (no formato de entrada e saída) é necessária para a atuação do agente em cada mercado, conforme assim delimitado pela ANP:

Reita-se que a definição do PVN como um mercado relevante permite a melhor identificação de sua dinâmica competitiva e os riscos de eventuais atos anticoncorrenciais, em especial a partir da sua integração vertical, seja com o elo upstream (comercialização atacadista à montante) como a partir do downstream (Distribuidoras Locais de Gás Canalizado).

No que se refere ao elo upstream, cita-se, como hipótese, o caso dos concorrentes da Petrobras que constantemente necessitam contratar capacidade de escoamento e processamento de suas infraestruturas à montante para então ofertarem gás junto aos consumidores livres e distribuidoras no mercado Ponto Virtual de Negociação. Sob a perspectiva concorrencial, a adequada delimitação do PVN como mercado relevante, permite avaliar riscos de eventuais estratégias para criação de custos, dificuldades e outras condutas restritivas verticalizadas a partir do elo upstream contra esses concorrentes na contratação de de gás e de acesso às suas essential facilities, prejudicando a concorrência no Ponto Virtual de Negociação.

Em relação à integração vertical entre o mercado de Ponto Virtual de Negociação com as distribuidoras de gás canalizado (monopólio natural), os riscos decorrem especialmente no caso do grupo da distribuidora também atuar como comercializadora no PVN, ou seja, concorrendo com outros comercializadores para atender a sua demanda ou a dos usuários cativos aptos para migrarem para o ambiente livre. A definição do PVN como mercado relevante independente, permite, assim, identificar quaisquer tentativas de práticas restritivas a partir do elo da distribuição, as quais devem ser efetivamente apuradas, para fins de preservar um ambiente competitivo, no qual os agentes tenham condições reais de concorrerem para atender às CDL’s e aos potenciais consumidores livres.

Por fim, importante destacar que a nova Lei do Gás (Lei Federal 14.134/2021) instituiu mecanismos importantes para preservação da concorrência nesse mercado, e, assim, evitar condutas anticompetitivas. Contudo, a aplicação dessas medidas requer a constante atuação e cooperação entre as autoridades competentes, em especial do CADE com os respectivos reguladores, à luz das boas práticas internacionais e conforme destacado pela OCDE.


[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/daniela-santos/

[2] Para mais informações sobre o Latin American and Caribbean Competition: https://www.oecd.org/competition/latinamerica/2022forum/

[3] Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2022)12/en/pdf

[4] Nesse sentido, ver: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2010/documento-de-trabalho-n01-2010-delimitacao-de-mercado-relevante.pdf

[5] Instituído pela Resolução n.:04 de 2022 do CNPE.

[6] Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/cp/2020/cp01/cp1-2020-modelo-conceitual.pdf

[7] Ato de Concentração: 08700.004540/2021-10.

[8] Entendimento da OCDE desde os anos 2000, disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sectors/1920080.pdf

[9] Em seu parecer, a SG consignou a possibilidade da revisão desse entendimento conforme as mudanças da dinâmica do setor, nos moldes pretendidos pela regulação

[10]  Nesse sentido, ver: https://epbr.com.br/abertura-do-mercado-de-gas-natural-ja-tem-dez-novos-fornecedores/

[11] Nessa linha, sugere-se o estudo da CNI sobre a organização do mercado atacadista: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/22/4d/224de293-bec6-455d-8b9f-dc5a69e30e14/id_237108_organizacao_do_mercado_atacadista_de_gas_web1.pdf

“Data is the new oil”. Algumas reflexões na área da saúde

Sandro Leal Alves

A famosa cunhada pelo matemático e cientista de dados inglês Clive Humby já é de reconhecimento amplo na sociedade da informação: Dados são o novo petróleo.  A discussão das possibilidades e consequências dessa nova economia digital vai muito além do setor de saúde, foco deste artigo. Há uma crescente literatura em desenvolvimento se dedicando ao estudo do impacto dessas mudanças sobre as práticas concorrenciais e estruturas dos mercados e sobre o impacto dessas novas tecnologias sobre as decisões judiciais (Mendonça 2022)[1]

O volume de dados gerados no setor de saúde é enorme e crescente. No entanto, ainda são usados de forma pontual em decisões individuais de tratamento. Há um enorme potencial para o aumento da eficiência dos sistemas público e privado. Alguns exemplos ajudam a ilustrar a utilidade dos dados organizados, estruturados e disponíveis para o setor de saúde.

Conhecer a história clínica do paciente logo na admissão no hospital revela se ele já foi internado previamente, seus antecedentes clínicos, eventuais alergias a medicamentos. Com essas informações disponíveis, a qualidade da prática médica e a segurança aumenta, evitando efeitos adversos sobre a saúde e geram volumosos custos evitáveis ao sistema. Estima-se que ocorrem cerca de 421 milhões de internações/ano no mundo e que aproximadamente 42,7 milhões de pacientes são prejudicados por eventos adversos durante essas internações, provocados por procedimentos inadequados e/ou ineficazes de cuidados de saúde. Segundo a OCDE, 15% dos gastos em saúde são usados para cobrir todos os aspectos dos eventos adversos. São externalidades produzidas diariamente que aumentam o custo global da saúde para quem financia: governos, famílias e empresas. O uso de dados de maneira mais eficiente poderia melhorar esses indicadores gerando economias ao sistema que poderiam ser mais bem alocados em outras atividades. [2]

Evidentemente, os incentivos no setor de saúde, particularmente o moral hazard (estímulo ao uso excessivo do plano) e o sistema de pagamento fee-for-service (pagamento por procedimento realizado) ampliam o estímulo à maximização do volume e não da qualidade assistencial. O uso de dados de mundo real poderia contribuir para evitar muitos procedimentos desnecessários. Evidentemente, a parte da cadeia de valor que lucra com o modelo atual vê com certa reticência a essas inovações tendo em vista que a repetição de exames e procedimentos significa mais receita para seus negócios. Faço esse comentário pois o compartilhamento de dados na saúde deve ser pensado sob o ponto de vista da política pública da saúde para além dos interesses particulares que no setor de saúde são divergentes em grande medida.

Uma segunda possibilidade virtualmente benéfica são as negociações de preços de medicamentos inovadores baseado em valor agregado à saúde do paciente. Para tanto, é fundamental ter dados de mundo real possibilitando compartilhamento de riscos entre a indústria farmacêutica e o comprador (governo ou plano de saúde), melhorando a eficácia do tratamento e, novamente, a eficiência no uso dos recursos, preocupação central dos economistas.

Esses exemplos mostram que nem sempre o interesse individual e coletivo está bem alinhado na saúde e o desafio regulatório para coordenação é crítico. No caso da saúde suplementar, a ANS regula as operadoras, mas não os prestadores de serviços assistenciais sejam eles hospitais, laboratórios, médicos, dentistas e outros profissionais de saúde responsáveis pelas decisões de cuidado terapêutico e pela alocação dos recursos no sistema. Como conciliar interesses particulares com regulação assimétrica?

Acrescente-se a isso outras dificuldades operacionais que precisam ser endereçadas para uma melhor integração de dados. Sabemos que as bases de dados foram construídas com premissas diversas a fim de atender objetivos específicos. A disparidade geográfica e econômica no Brasil também dificulta o acesso às melhores tecnologias. Não podemos desconsiderar as dificuldades para pareamento e vinculação (identificador único) a fim de eliminar duplicidade e a proteção dos dados.

Saúde Suplementar

Em meio à pandemia, as healthtechs receberam aportes financeiros e ficaram na mira de investidores. O que se viu foi a busca acelerada das operadoras por processos tecnológicos para atender os beneficiários durante o isolamento social instalado no país como o fortalecimento de canais digitais, a telessaúde, a interação eletrônica. Essas tecnologias diminuíram distâncias, reduzindo a necessidade da presença física em hospitais ou laboratórios e consequentemente auxiliando no bem-estar dos seus clientes. Nesse sentido, reduziu o custo de oportunidade do tempo das pessoas devido a deslocamentos que passaram a ser desnecessários. Uma consulta digital economiza muito o tempo das pessoas em deslocamentos nos trânsitos das grandes cidades principalmente e amplia o acesso a pessoas que vivem em locais remotos, mas para isso é fundamental a infraestrutura tecnológica e ausência de barreiras regulatórias que produzam reservas de mercado.

Todos os participantes do sistema de saúde contribuem de certa forma para gastos desnecessários, mas em graus diferentes. Médicos podem solicitar a repetição redundante dos exames que se fossem de propriedade do paciente e estivessem disponíveis (não em papel, mas em um aplicativo), não teriam necessidade de novas solicitações. Os médicos podem escolher um procedimento de tratamento desnecessário e caro, mesmo que exista uma alternativa mais barata. Em 2019 o número de exames de ressonância magnética por pessoa com plano de saúde privado no Brasil (179 por 1 000) foi 2,3 vezes maior do que a média da população na OCDE (79 por 1 000) e consideravelmente acima da taxa da Áustria (148 por 1000), que foi a mais alta da OCDE naquele ano.[3]

Mas que tecnologias são essas que podem criar grandes benefícios sociais ao mesmo tempo em que suscitam discussões regulatórias e concorrenciais? Me refiro a tecnologias utilizadas pelos profissionais de saúde e pacientes que ajudam a melhorar a saúde das pessoas. Envolve uma ampla gama de dispositivos inteligentes e conectados, incluindo a Internet das Coisas, computação avançada, big data, inteligência artificial, incluindo machine learning, e robótica. Também incluem os registros eletrônicos de saúde, vestíveis (wearables), dentre outros.

Esse conjunto de tecnologias contribui para digitalizar a economia da saúde. De acordo com o relatório da consultoria Precedente Research,[4] o gasto global em 2021 em produtos e serviços digitais em saúde superou US$ 270 bilhões e cresce a uma taxa de 20% a.a. Os serviços vão muito além como a computação e armazenamento em nuvens, que reduzindo o custo da infraestrutura tecnologia. A saúde conectada propicia o desenvolvimento de programas de alertas terapêuticos para populações específicas como diabéticos, idosos, monitoramento em tempo real de comportamentos de indivíduos podendo estimulá-los a mudanças positivas na saúde com maior qualidade de vida e prática de exercícios. O número de healthtechs cresceu 16,11% no Brasil entre os anos de 2019 e 2022, de acordo com dados da Liga Ventures em parceria com a PwC Brasil. Provavelmente, o boom se deu por conta do avanço da telemedicina, do crescimento das clínicas médicas populares, do custo dos planos de saúde, da saturação do SUS e do interesse da população em cuidar mais de sua saúde e bem-estar físico e mental. Atualmente, estão cadastradas no site Startup Scanner 545 startups na área da saúde.[5]

Gráfico 1 – Distribuição de Startups na área da saúde (Total=545)

Fonte: startups scanner.com

Mercado Global

Artigo muito interessante de Guilherme S. Hummel[6] aponta que a “ByteDance, empresa chinesa controladora da gigantesca plataforma TikTok, adquiriu em agosto/2022 a Amcare Healthcare, uma luxuosa cadeia hospitalar que conta com 7 unidades, 2 Centros Ambulatoriais e outras 5 unidades emergenciais. Localizada em Pequim, Xangai e Shenzhen, a Amcare existe desde 2006 e foi adquirida pela ByteDance por US$ 1,5 bilhão. Trata-se de outro passo significativo da empresa (avaliada em US$ 300 bilhões) na direção da Saúde, seguindo o cortejo dos “grandes players de tecnologia” (Big Techs) na direção de aquisições dentro do mercado privado de assistência médica. O portfólio da ByteDance na saúde cobre várias áreas, incluindo consultas digitais, clínicas offline, labs de diagnósticos, tratamentos hospitalares, bem como pesquisa e desenvolvimento de medicamentos”. O autor ainda esclarece que as “Big Techs são movidas pelo “futuro”. … Só o mercado de saúde dos EUA supera gastos de US$ 4 trilhões anuais(…) Se Amazon, Apple ou Google abocanharem 2% desse gasto, cada uma adicionaria US$ 80 bilhões de receita anual (…) O que as big techs ocidentais ou orientais trazem a mesa? Possivelmente alguns itens que o mercado de saúde tradicional só enxerga por luneta: (1) uma colossal base de consumidores, dados e análises, com know-how para entender a colossal escala de demanda deles (elas já fazem isso em outros setores); (2) são campeões de “experiência do usuário”, um elemento crítico na adoção de tecnologias digitais, (3) são versados e hábeis em tecnologias complementares, como wearables, que estão impulsionando rapidamente a consumerização da saúde; (4) possuem enorme expertise nas cadeias de suprimentos (delivery), constantemente otimizadas por novas ferramentas interoperáveis (blockchain); (5) como “moram” no futuro, não têm medo de errar no presente, não se intimidam com os “experimentos equivocados”; e o mais importante: (6) todas suas estratégias gravitam em torno do consumidor e não do influenciador (comunidade médica) ou do financiador (seguradoras)”.

A partir dessa visão do autor, pode-se ter uma ideia de como a economia digital na saúde trará uma nova configuração impondo desafios adicionais para as autoridades antitruste para a caracterização do mercado relevante nas dimensões tradicionais de produto e geográfica. Mais do que a configuração da estrutura industrial, atenção especial deve ser dada às práticas para se evitar problemas de discriminação tendo em vista que os dados da saúde são sensíveis e devem estar sob o escrutínio das autoridades públicas como a ANPD e ANS para garantir a sua privacidade sem desestimular a inovação.

Dados Abertos

Em abril de 2019, o Banco Central anunciou as diretrizes para implementação do Open Banking no Brasil. As medidas seguem a LGPD, que entrou em vigor em agosto de 2020. A premissa básica é que os dados bancários pertencem ao indivíduo e não à instituição financeira da qual ele é cliente, podendo, portanto, ser compartilhados com outras empresas, desde que com autorização do titular dos dados. As instituições participantes do Open Banking deverão compartilhar informações sobre diferentes produtos e serviços financeiros disponibilizados em sua rede, entre os relacionados a seguros, previdência aberta complementar e títulos de capitalização. Com o intuito de ampliar a disponibilidade de informações sobre produtos de seguros, previdência e capitalização em um sistema aberto foram publicadas em 20 de julho de 2021 a Resolução CNSP 415 de 2021 e a Circular Susep 635 de 2021, que dispõem e regulamentam o Sistema de Seguros Aberto (Open Insurance) no Brasil.

Em 19.1.22, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em entrevista ao jornal Valor Econômico, afirmou que pretende criar o open health, compartilhamento de dados de beneficiários entre as empresas de planos de saúde, com o objetivo de “ampliar a concorrência no setor de saúde suplementar”.[7] Segundo o ministro da Saúde, a proposta é de que o sistema seja autorizado por meio de Medida Provisória (MP). A ideia é seguir um modelo semelhante ao do Open Banking, implementado pelo Banco Central em 2021. A proposta foi elaborada a partir da    Portaria GM/MS nº 392, de 23 de fevereiro de 2022 que criou um Grupo de Trabalho (GT) coordenado pelo Ministério da Saúde e com a participação do Ministério da Economia, BACEN e ANS. O Relatório Final para o Aprimoramento do Setor de Saúde Suplementar divide o tema em dois pilares sendo o primeiro assistencial, via aprimoramento das informações disponibilizadas na Rede Nacional de Dados em Saúde e disseminadas pelo Conecte SUS, dentro dos preceitos da LGPD, e o segundo pilar financeiro, com o objetivo de estimular a concorrência entre operadoras de planos de saúde e diminuir o custo de transação, através de propostas que possibilitem que o beneficiário encontre um plano de saúde adequado a suas necessidades.

O GT definiu como escopo do plano de ação o compartilhamento de dados cadastrais de consumidores de planos de saúde, mediante consentimento e de forma segura, e de dados de operadoras de planos de saúde com registro ativo na ANS, e dos produtos por elas ofertados, com a finalidade de simplificar e facilitar a contratação de planos de saúde e aprimorar a portabilidade de carências na troca de plano. Com isso, objetiva estimular a inovação e a concorrência no setor, criando condições para melhorias na qualidade dos seus respectivos produtos e serviços, em benefício da sociedade. Deixa claro que a proposta estará em consonância com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o marco regulatório do setor (Lei 9.656/98), em especial no que diz respeito ao impedimento de acesso de tais dados por operadoras, de forma a proteger os cidadãos de práticas nocivas que levem à discriminação seja no acesso a planos de saúde, seja no ambiente de trabalho.  Há preocupação com a possibilidade de seleção de risco no qual as operadoras podem utilizar informações pessoais (saúde) para fazer discriminar e escolher a clientela (cream skimming), o que contraria a Lei 9.656/98 (Art. 14) e a LGPD (Art. 11).

No Brasil, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) é uma iniciativa do Departamento de Informática do SUS (DATASUS), da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, e teve como base importantes diretrizes: a Política Nacional de Informática e Informações em Saúde (PNIIS, 2021), a Estratégia da e-Saúde (CIT,2017), o Plano de Ação, Monitoramento e Avaliação de Saúde Digital  para o Brasil (PAM&A,2019) e a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 (ESD28).  Em maio de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 3.814/2020, que obriga o SUS a criar uma plataforma digital para unificar as informações de pacientes da rede pública e privada e que possibilitará a formação da RNDS. Pelo PL, a plataforma digital deverá centralizar nacionalmente os dados sobre prescrições, procedimentos ambulatoriais e hospitalares, encaminhamentos, prontuários médicos, laudos de exames e dados demográficos. O paciente deverá autorizar a inserção dos seus dados na plataforma, que continuarão protegidos por sigilo e serão acessíveis pelo próprio paciente ou por profissionais de saúde diretamente envolvidos em seu atendimento. Atualmente, o PL tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. Até 2028, a RNDS será a plataforma digital de inovação, informação e serviços de saúde para todo o Brasil, em benefício de usuários, cidadãos, pacientes, comunidades, gestores, profissionais e organizações de saúde. Na saúde suplementar esses dados serão extraídos da TISS, troca de informações entre operadoras e prestadores, que as operadoras encaminham regularmente para a ANS.

Diversos países estão avançando na estratégia de compartilhamento de dados de saúde, entre os prestadores assistenciais, alavancando grandes investimentos e healthtechs. Em todos há legislação específica, recomendada pela OECD, que permitem uso de dados secundários para pesquisa com privacidade garantida. [8] Nos EUA a legislação (21st Century Cures Act) foi publicada em 2016 para incentivar o desenvolvimento, descoberta e entrega de produtos para levar inovações e avanços para os pacientes. A Lei regulamentou o uso de dados para experimentos como clinical trial, dados de mundo real e resultados clínicos. Também projetou o programa de registro eletrônico de dados para pagadores (planos), prestadores (hospitais, médicos), dentre outros, e estabelece inclusive a criação de redes de compartilhamento de dados. A lei também estipulou um cronograma para que os dados reportados sejam eletrônicos (até 2023) dentro do Padrão estabelecido (United States Core Data for Interoperability standard). No mercado americano há empresas que certificam o compliance das empresas sujeitas à regulação (Health IT Certification Program). Até o API deve ser padronizado – standardized application programming interfaces (APIs). A legislação impõe penalidades para aqueles players que obstruírem a troca eletrônica de informações – Electronic Protected Health Information (ePHI).

Segundo pesquisa da OCDE, a disponibilidade, a maturidade e o uso do conjunto de dados são calculados por parâmetros que medem o grau de desenvolvimento de cada país nesses aspectos. O Brasil relatou desempenho muito bom em alguns desses parâmetros, como a porcentagem de conjuntos de dados disponíveis que compartilham o mesmo identificador único do paciente; e conjuntos de dados de saúde onde os códigos padrão são usados para terminologia clínica. Para outros parâmetros, o desempenho do Brasil é próximo à média dos membros da OCDE, como porcentagem de conjuntos de dados de saúde nacionais importantes disponíveis; conjuntos de dados de saúde com cobertura de 80% ou mais da população; conjuntos de dados de saúde onde os dados são extraídos automaticamente de registros clínicos ou administrativos eletrônicos; conjuntos de dados usados para informar regularmente a qualidade da saúde ou o desempenho de seu sistema; e conjuntos de dados vinculados regularmente para pesquisa, estatísticas e/ou monitoramento.

Gráfico 2 – Distribuição do desempenho geral dos países no desenvolvimento, na maturidade e no uso dos dados de saúde e na governança dos conjuntos de dados de saúde

Aspectos Econômicos da Privacidade de Dados

Sob o ponto de vista econômico, a privacidade não é o oposto ao compartilhamento. Na verdade, ela significa o controle individual sobre o compartilhamento.[9] A maioria dos modelos econômicos teóricos tratam a privacidade como um bem intermediário. Do ponto de vista individual, a escolha envolve alguma avaliação de custos e benefícios de manter o dado sob seu controle ou compartilhá-lo. Dependerá de como antecipar o efeito desses dados sobre os resultados econômicos futuros. Se, por exemplo, os dados levam uma empresa a cobrar preços mais altos com base no comportamento que observar nos dados, o consumidor pode desejar a privacidade. Se a empresa poderá se intrometer em seu tempo (enviando ofertas, ligações), então, novamente, o consumidor pode desejar privacidade. Por outro lado, se o compartilhamento do dado permite produtos mais adequados ao seu perfil bem como programas de saúde focalizados em suas necessidades, ele pode preferir compartilhar o dado. Raciocínio análogo é feito por empresas, de todos os segmentos. Ocorre que nem sempre a sociedade convergirá para resultados mais eficientes que maximizem o bem-estar social. Nestes casos, alguma regulação poderá estimular ou mimetizar o resultado ótimo.

Em primeiro lugar, grande parte do debate envolve se os consumidores são ou não capazes de fazerem a escolha certa em torno da decisão de fornecer dados, e se o “aviso e consentimento” fornecem informações suficientes aos consumidores para que façam a escolha certa. Trabalhos como McDonald e Cranor (2008) enfatizam que até dez anos atrás era irrealista pensar que os consumidores teriam tempo para se informar adequadamente sobre como seus dados podem ser usados, pois a leitura das políticas de privacidade levaria um tempo estimado 244 horas por ano.

Da mesma forma, mesmo que se suponha que os clientes tenham sido adequadamente informados, uma nova literatura “comportamental” sobre privacidade mostra que efeitos da economia comportamental, como o efeito de dotação ou “ancoragem”, também podem distorcer as formas como os clientes tomam decisões em torno de seus dados. Tais distorções podem permitir intervenções políticas do tipo “nudge” para permitir que os consumidores façam melhor decisões (Acquisti, Taylor e Wagman 2016). As empresas têm incentivos adequados para fornecer níveis adequados de privacidade? Qual é o trade-off entre privacidade e desempenho econômico? É amplamente reconhecido que os regulamentos de privacidade podem limitar a capacidade dos fornecedores de machine learging de combinar dados de várias fontes e limitar o uso da Inteligência Artificial.

Políticas restritivas podem gerar efeitos não intencionais. Um exemplo é o Health Insurance Portability and Accountability Act de 1996, comumente conhecido como HIPAA. A intenção original da legislação era estimular a competição entre as seguradoras, estabelecendo padrões para manutenção de registros médicos. No entanto, muitos pesquisadores argumentam que isso teve um impacto negativo significativo na quantidade e na qualidade da pesquisa médica. Qual seria a política ótima para garantir privacidade e inovação?

O fundador da computação, Jeff Hawkins, argumenta que a inteligência humana é, em essência, a previsão (Hawkins 2004). No entanto, muitos neurocientistas, psicólogos, e outros discordam. As tecnologias de inteligência artificial são tecnologias de previsão essencialmente. Para entender o impacto dessas tecnologias, é importante avaliar o impacto da previsão nas decisões. [10] Mas até que ponto devemos confiar nossas decisões aos modelos matemáticos? Esse é um alerta que deve ser lido não como um freio ao desenvolvimento das novas tecnologias. Do ponto de vista das ciências da saúde, tornar a incerteza associada a tratamentos em riscos calculáveis é bem-vinda e reduz o risco de má prática e erros médicos. Isso vale para a gestão de organizações de saúde.

Conclusão

A afirmação de que os dados são o novo petróleo tem fundamento no sentido de que ambos são geradores de valor para a sociedade. Ambos precisam ser refinados para serem úteis. Mas uma distinção importante, do ponto de vista econômico, é que o petróleo é um bem privado e o seu consumo é rival, no sentido de que o consumo de petróleo por uma pessoa torna-o indisponível para o consumo das demais pessoas. É cada vez mais barato armazenar informações o que significa que o dado pode permanecer muito tempo disponível após a sua geração mesmo que de forma não intencional. O dado pode ser reaproveitado para uso diverso do qual foi originalmente produzido, gerando externalidades negativas para outros indivíduos.

Isso significa que a regulação do mercado de dados deve levar esses aspectos em consideração ao mesmo tempo em que deve garantir o devido estímulo à inovação.[11] Ao avançar nessa discussão, aspectos como a propriedade dos dados, dados abertos, colusão algorítmica surgem como aspectos importantes para os policy makers. O desenho dos incentivos para proporcionar o nível ótimo de compartilhamento de dados deve ser alinhado aos aspectos mais amplos do interesse da sociedade.

No caso do Open Health, a discussão está começando pelos dados pessoais dos beneficiários, de enorme sensibilidade e deve avançar considerando a inexistência de padronização de dados de saúde sobre a experiência do usuário, de resultados clínicos que permitam acessar a qualidade assistencial.  Mas o desafio vai muito além e precisa levar em consideração a necessidade urgente de inclusão digital dos brasileiros.

Qualquer avanço das políticas públicas precisa levar em conta a desigualdade digital no país como mostra o estudo PWC/Instituto Locomotiva do Abismo Digital no Brasil.[12] No Brasil, “81% da população com 10 anos ou mais usam a internet, mas somente 20% têm acesso de qualidade à rede. Há diferenças marcantes no acesso à internet entre os extremos das classes de renda (100% na classe A, em comparação com 64% na DE)”. O Brasil ocupa a 80ª posição, entre 120 países, no ranking de alfabetização digital do índice “The Inclusive Internet 2021”, publicado pela revista britânica The Economist. O indicador mede o nível de competência para uso da internet, como a capacidade de leitura para acessar notícias na Web. Isso torna ainda mais crítico um dos principais desafios do nosso tempo que é eliminar o gap de habilidades que as pessoas têm no mundo digital


[1] Mendonça, R. (2022) A robotização do Poder Judiciário brasileiro (Justiça 4.0) e o par eficiência e celeridade: o Juiz de Lata e os perigos da algoritmização da função de julgar. (colunas webadvocacy/out de 2022) e Mendonça, R. (2022) Os algoritmos e a discriminação de preços: qual é o papel do direito antitruste na sociedade do capitalismo de vigilância? (colunas webadvocacy/jan de 2022).

[2] https://medicinasa.com.br/seguranca-do-paciente-confira-10-fatos-importantes-segundo-a-oms/

[3] Estudos da OCDE sobre os Sistemas de Saúde: Brasil 2021.

[4] Improving Health Care throught pro-competitive procurement policy. Digital Health Care market stydy Part 2. Competition Bureau Canada.

[5] https://startupscanner.com/mapas/health-techs-b788761a. Trata-se de ferramenta da Liga Ventures com o apoio estratégico da PwC Brasil. Consulta realizada em 9/10/22.

[6] TikTok compra rede hospitalar chinesa. Big Techs inovarão a saúde? Saude Business (7/10/2022).

[7] Governo estuda MP para criar o ‘Open Health’ – Valor Econômico de 19/01/2022

[8] OECD Health Policy Studies – Health in the 21st Century Putting Data To Work For Stronger Health Systems.

[9] Alessandro Acquisti, Curtis Taylor, and Liad Wagman The Economics of Privacy Journal of Economic Literature 2016, 54(2), 442–492

[10] Bickley,S., Chan H,Torgler, B. Artificial intelligence in the field of economics. Scientometrics (2022) 127:2055–2084

[11] Varian, H. (2019). Artificial Intelligence, Economics, and Industrial Organization. NBER. http://www.nber.org/chapters/c14017

[12] https://www.pwc.com.br/pt/estudos/preocupacoes-ceos/mais-temas/2022/o-abismo-digital-no-brasil.html