A Competitividade Brasileira do Hidrogênio Verde e de Produtos Power-to-X1 

Katia Rocha e Nelson Siffert

Estudo recente da Fundação Fraunhofer analisa a competitividade de diversos países nas exportações de hidrogênio verde e seus derivados para o mercado alemão.  Apresenta resultados que podem servir de pontos de atenção ao formulador de política pública no desenvolvimento do mercado Brasileiro de hidrogênio verde.  

Um total de 39 regiões distribuídas globalmente entre 12 países desenvolvidos e emergentes foram analisados ​​em termos de suas energias renováveis e potencial de custo de produção e fornecimento de produtos Power-to-X1 (PtX). Através de abordagens de simulação e otimização, o estudo identifica regiões promissoras de produção e fornecimento de hidrogênio verde e derivados para cada um dos os locais identificados2

O Brasil foi selecionado para compor a amostra do estudo tomando como referência os custos de produção em três localidades situadas nos estados do Rio Grande do Norte, Bahia e Rio Grande do Sul.  

Os resultados estabelecem indicadores técnicos e operacionais úteis à modelagem econômico-financeira de futuros projetos de hidrogênio verde e derivados, destinados ao mercado externo, como os recentes Leilão H2Global e o Leilão Europeu. Também possibilita identificação de parâmetros críticos que impactam a competitividade do Brasil em relação a países peers no desenvolvimento da indústria de hidrogênio de baixo carbono, um dos objetivos do Programa Nacional de Hidrogênio.  

O Brasil aparece com posição de destaque na amostra, com maior competitividade na produção e exportação de alguns produtos PtX, em especial, do hidrogênio líquido e da amônia verde, com um preço CIF3 de EUR 5,71/kg para o hidrogênio verde líquido (LH2) e EUR 886/ton para amônia verde (NH3). Revela-se o mais competitivo (menor intervalo de custo nivelado LCoPtX) nesses produtos na amostra de 12 países como ilustra a Figura 1. 

Figura 1: Ranking de Competitividade H2V – LCoPtX para a amostra de países 

Fonte: Hank et al (2023)Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems ISE 

O resultado é significativo, uma vez que, estão previstos volumes expressivos de investimentos no desenvolvimento da economia do hidrogênio verde nos próximos anos. Estima-se cifras da ordem de US$ 9,4 trilhões até 2050, sendo US$ 3,1 trilhões direcionados para países em desenvolvimento. Desse total, 49% serão destinados ao segmento upstream (geração de energia solar e eólica); 25% no midstream (eletrolisadores) e o restante no segmento downstream (transportes e conversão)4

Ao Brasil, caberá uma parcela maior ou menor deste bolo, a depender da capacidade que tivermos de transformar a oportunidade aberta pela Transição Energética em algo realmente transformador, capaz de mobilizar decisões de investimentos. Para tal, o desafio consiste em formular políticas públicas que permitam nos valer das vantagens comparativas, transformando-as em verdadeiras vantagens competitivas. Sempre bom lembrar que a matriz elétrica Brasileira apresenta 83% de participação de fontes renováveis enquanto a média mundial é de apenas 28%5. Claramente uma vantagem comparativa que deve ser explorada.  

Variáveis Chaves para a Competitividade dos Produtos PtX no Brasil 

Boa parte da posição de destaque do Brasil decorre do baixo custo de produção de energia renovável, cujos LCOE’s alcançados foram de EUR  29/MWh e EUR 41/MWh, para energia solar PV e eólica, respectivamente.  

A elevada competitividade do Brasil nestas fontes é  decorrência de quatro fatores: i) boa performance dos ventos e da insolação em algumas regiões do nosso país, que se traduz em fatores de capacidade ou eficiência entre os mais elevados de toda a amostra; iii) complementariedade das fontes híbridas de geração solar e eólica viabilizando operar o eletrolisador com elevados fatores operacionais em sistemas offgrid (76-82%); iii) adensamento local da cadeia produtiva, proporcionando um ambiente com várias alternativas de provedores de equipamentos e serviços de engenharia e montagens voltadas para indústria de energias renováveis, viabilizando  valores para o Capex e Opex, abaixo daqueles observados nos países peers; e iv) estimativa de custo de capital relativamente baixo entre os países emergentes, da ordem 6,5% a.a6

Verifica-se que, no tocante ao hidrogênio verde na forma líquida e amônia verde, o Brasil seria capaz de apresentar-se como o mais competitivo entre os 12 países examinados. Essa posição decorre, em boa medida, dos indicadores relativos ao custo nivelado de produção da energia (LCOE) solar PV e eólica, bem como de sua complementariedade horária em sistemas offgrid

Foram considerados também as condições da infraestrutura portuária, de conexão à rede transmissão e ambiente de negócios favorável ao desenvolvimento de projetos, levando-se em conta a estimativa do custo de capital, específica para cada país. 

Tomando-se apenas o exemplo do produto amônia verde no Rio Grande do Norte, os investimentos totais estimados somam EUR 5,4 bilhões, sendo: EUR 3 bilhões voltados para o parque gerador de 3 GW de capacidade, sendo 1,8 GW eólico e 1,2 GW solar PV; EUR 750 milhões para 1 GW de eletrólise PEM; EUR 644 milhões para o sistema de transmissão; EUR 572 milhões para estocagem de hidrogênio; EUR 336 milhões para a unidade síntese e liquefação da amônia e EUR 84 milhões para a unidade de ASU. 

Ainda segundo o estudo, dada a alta complementariedade horária da geração solar e eólica observada no Rio Grande do Norte7 torna-se possível operar o eletrolisador com fator de capacidade de 76%, podendo alcançar 82%. Neste caso, a complementariedade horária da geração de energia entre as fontes eólica e solar torna-se relevante para a competitividade. A produção estimada de amônia verde alcança um volume de 560 mil ton/ano. 

Todavia, em que pese a aparente competitividade do Brasil, em termos globais, na economia do hidrogênio verde, alguns pontos merecem atenção. 

Quando se relaxa a hipótese de geração dedicada (offgrid), e se considera o custo de aquisição da energia por meio da rede básica, o Brasil apresenta um custo de aquisição de energia da ordem de EUR 150/MWh8. Este valor é cerca de 3 a 5 vezes maior que o custo de geração da energia eólica e solar PV. Sob esta ótica, que leva em conta o diferencial entre o preço marginal de geração e a tarifa, nossa posição cai para a 10ª posição entre os 12 países examinados.  

Porque a tarifa de energia do Brasil apresenta valores tão elevados para o MWh a despeito da nossa competitividade? Como a competitividade do hidrogênio verde e seus derivados pode ser afetada? 

A resposta passa pelo exame da composição da tarifa e dos diversos encargos setoriais do sistema elétrico. O MWh ao sair do parque gerador ao custo do LCOE, incorre, na partida, com a TUST-g, caso a unidade de geração seja conectada diretamente com a rede9. Nesta tarifa, que representa a potência contratada para injeção de energia na rede, está incorporado parte dos custos relativos aos encargos setoriais. Também em sua jornada até o uso final, antes de ser consumido pela eletrólise, o MWh incide o pagamento da TUST-c, relativa à potência contratada pelo consumidor da energia. Sendo assim, o uso do sistema de rede básica, implica em arcar com custos relativos às diversas políticas públicas incorporadas nas tarifas. 

A modelagem apresentada assume a hipótese de que o parque gerador se localizará a uma distância não maior que 100 km da unidade de produção de hidrogênio verde e seus derivados. Como a produção de PtX é destinada às exportações, faz sentido que sua localização ótima seja próxima aos portos10. Todavia, no caso brasileiro, é provável que um parque gerador do tamanho previsto para atender um eletrolisador de 1GW, venha se situar a uma distância maior que definida nos estudos, implicado em transitar pela rede básica, e, incorrendo nos custos relativos à TUST e respectivos encargos setoriais.  

Estudo do ICT RESEL aponta que os gastos com a TUST podem provocar um acréscimo no custo nivelado (LCOH) da ordem de até EUR 0,60/kg H2. Implicaria em uma diminuição da competitividade dos derivados de hidrogênio verde – PtX. Uma queda da primeira posição para posições ao final do ranking.  

Outras variáveis também poderiam ser analisadas, como por exemplo, o custo de capital atribuído ao Brasil de 6,5% a.a. É preciso cotejar este indicador com as práticas observadas no mercado brasileiro, que sinaliza percentuais mais elevados. A competitividade observada para o Brasil pode também sofrer alguns percalços neste quesito. 

Concluindo, o estudo da Fundação Fraunhofer, a despeito de colocar o Brasil em uma posição de destaque, retrata uma posição estática, como uma fotografia. Competitividade, por seu turno, é algo dinâmico, envolvendo a interação de múltiplas variáveis, inclusive de caráter institucional e regulatório. Não podemos nos “deitar em berço esplêndido” e perder o foco, pois nossos competidores na nascente indústria do hidrogênio verde estão mobilizados, dando curso às suas respectivas estratégias nacionais, cada vez mais ambiciosas, agressivas.


Katia Rocha. Pesquisadora do Ipea. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br 

Nelson Siffert. Diretor ICT – Resel. E-mail: nelson.siffert@ictresel.org.br 


Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy.


Referências 

Arbache, J.; Esteves, L. (2023). Resiliência com eficiência: como o powershoring pode colaborar para a descarbonização e o desenvolvimento econômico da américa latina e caribe. WebAdvocacy. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2023/04/18/resiliencia-com-eficiencia-como-o-powershoring-pode-colaborar-para-a-descarbonizacao-e-o-desenvolvimento-economico-da-america-latina-e-caribe/ 

Deloitte (2023). Green hydrogen: Energizing the path to net zero. Deloitte’s 2023 global green hydrogen outlook. Disponível em: https://www.deloitte.com/global/en/issues/climate/green-hydrogen.html 

Hank et al (2023). Site-specific, Comparative Analysis for Suitable Power-to-X Pathways and Products in Developing and Emerging Countries. A cost analysis study on behalf of H2Global. Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems ISE. Disponível em: https://www.ise.fraunhofer.de/en/publications/studies/power-to-x-country-analyses.html 

Notas de rodapé

  1. Power-to-X (PtX) é a tecnologia que converte energia renovável gerada por centrais fotovoltaicas ou eólicas em outras fontes de energia, ou carregadores de energia, como como hidrogênio verde, metanol verde, amônia verde e SAF, que podem ser utilizados como substitutos de combustíveis fósseis. ↩︎
  2. Algumas hipóteses comuns a todos países da amostra são estabelecidas, como um sistema de produção de 1 GW de capacidade de eletrólise com tecnologia PEM, para a produção de hidrogênio verde, associado a um parque gerador híbrido, eólico e solar PV, de uso exclusivo, cujo tamanho e performance de geração alcançada, depende das características específicas de cada localidade em termos de insolação e ventos. Outra hipótese importante recai no sistema de produção offgrid, ou seja, projetos de geração dedicada, que evita tratar as questões regulatórias de cada país, associadas ao uso do sistema de transmissão e respectivas tarifas.  ↩︎
  3. Cost, Insurance and Freight – CIF no porto de Brunsbüttel – Alemanha. ↩︎
  4. 7 Ver Deloitte (2023).  ↩︎
  5. Ver em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/balanco-energetico-nacional-2023 ↩︎
  6.  No estudo, Austrália e Espanha são apresentadas com um custo de capital de 5,75%. A Ucrânia, antes da guerra com a Rússia, teve o custo de capital estimado em 6,00%. Colômbia, Marrocos, Tunísia, África do Sul, Namíbia tem o WACC estimado em 7,00%. O México em 6,75% e a Índia em 8,00% ↩︎
  7. Embora o Rio Grande do Norte tenha tido melhor performance, a Bahia e o Rio Grande do Sul, também se destacam entre os resultados. Na produção de hidrogênio gasoso, por exemplo, apenas sites na Austrália e Colômbia apresentaram resultados melhores que os observados na Bahia e Rio Grande do Sul.  ↩︎
  8. Tarifa média ponderada residencial no Brasil é cerca de BRL 726 MWh antes de tributos segundo Aneel. ↩︎
  9. A TUST e TUSD são pagas pelos consumidores livres, regulados, e pelos geradores de energia elétrica que necessitam usar as redes de transmissão e distribuição, ou seja, são tarifas pagas pela prestação de um serviço.  ↩︎
  10. Arbache e Esteves (2023) já discutem a tendência de que o powershoring venha a ser nos próximos anos um vetor relevante na determinação da localização de plantas industrial, ou seja, que novos investimentos em produtos intensivos em energia venham se situar em áreas com disponibilidade de energias renováveis. ↩︎

A necessidade de regulamentação do Filtro de Relevância do Recurso Especial

Maria Augusta Sampaio Ferraz

O problema da massificação de demandas judiciais não é novidade no Brasil. Desde a promulgação da Constituição de 1988 e da garantia do livre acesso à justiça, o número de demandas judiciais no país aumentou de forma exponencial.

Segundo dados do CNJ[1], havia 81 milhões de processos em tramitação no Brasil até dezembro de 2022. Nesse mesmo ano, foram distribuídas 31 milhões de novas ações.

Tais números, que representam o volume de demandas nos tribunais, tornou o sistema processual brasileiro desafiador para o alcance de garantias constitucionais, dentre elas, a segurança jurídica, celeridade e eficiência da prestação jurisdicional.

Nesse contexto, a efetivação das funções das Cortes Superiores, quais sejam, Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, se mostram urgentes e necessárias.

A extrema judicialização no Brasil, em conjunto com a facilidade de recorrer da parte litigante que perde a demanda, tornou-se cenário perfeito para que as Cortes Superiores se transformassem em meros tribunais recursais, onde, em grande parte, os litigantes recorrem apenas para ganhar tempo e protelar uma decisão final.

Em 2022, o STJ recebeu 399.455 processos, o equivalente a três processos a cada quatro minutos durante todos os dias do ano. No mesmo período, o mesmo tribunal atingiu a marca de 577.707 julgamentos. É como se cada ministro tivesse julgado 17.506 processos no ano, ou 48 processos por dia, caso trabalhasse todos os dias do ano.

Tais dados refletem um sistema ineficiente, no qual o cidadão que aguarda uma análise minimamente cautelosa do seu caso, não recebe a devida prestação jurisdicional.

O papel das Cortes Superiores

Diante do cenário apresentado, faz-se necessária uma reflexão do real papel das Cortes Superiores. E nesse contexto surge a figura dos precedentes, cada vez mais presente no cenário jurídico brasileiro.

As Cortes de Precedentes, como deveríamos chamar o STF e o STJ, são cortes cuja função é de interpretação do direito constitucional e direito federal, a partir do julgamento de um caso concreto, para que aquela decisão proferida sirva de modelo para aplicação do direito pelas instâncias inferiores.

Nesse sentido, com o volume processual já citado e um sistema jurídico processual onde existem decisões distintas sobre o mesmo fato, os precedentes tem extrema importância para a uniformização da intepretação legal e logo, para segurança jurídica.

O STF, com a criação da Repercussão Geral, em 2004, através da Emenda Constitucional 45, conseguiu, ao longo dos anos, diminuir consideravelmente o número de processos que chegassem a Corte, uma vez que a parte que deseje ter o seu recurso apreciado pelo referido tribunal, deve demonstrar que o seu caso possui relevância jurídica, política, social ou econômica. Ou seja, o STF forma Teses de Repercussão Geral sobre matéria constitucional que devem ser observados por todos os juízes e tribunais. 

E o STJ, estando em situação crítica em volume processual, também precisou de um instrumento que concretize o seu papel como Corte de formação de teses sobre matéria federal.

O Superior Tribunal de Justiça e o Filtro da Relevância

Na tentativa de efetivação do STJ como uma Corte de Precedentes para consequente diminuição no número de demandas e melhora na prestação jurisdicional, a Câmara dos Deputados aprovou em julho de 2022 a Proposta de Emenda à Constituição 39/2021, denominada “PEC da Relevância”, a qual altera a redação do artigo 105 da Constituição, para inserir um novo requisito intrínseco de admissibilidade do recurso especial, tanto na esfera civil quanto na criminal.

A partir da promulgação da referida emenda, a nova regra impõe ao recorrente o ônus de demonstrar a relevância da questão ou questões federais deduzidas como fundamento do recurso especial, ou seja, o litigante tem o ônus de evidenciar que a questão jurídica a ser decidida pelo Superior Tribunal de Justiça ostenta uma relevância que ultrapassa o interesse subjetivo das partes. Essa relevância deve ser comprovada pelas perspectivas jurídica, econômica e social.

Além disso, o STJ julgará temas relevantes para formação de teses sobre lei federal, as quais deverão ser aplicadas pelos juízes e tribunais, como ocorre com a Repercussão Geral, no âmbito do STF.

Em recente entrevista, o ministro Gurgel de Faria, do STJ, faz a comparação entre os institutos e ressalta a necessidade do filtro para a formação de precedentes pelo STJ. Para o ministro, no STF, foi possível perceber a importância da fixação de precedentes para reduzir o número de processos e dar uma maior atenção a eles.

“Quanto mais processos, por óbvio você vai ter que julgar mais rápido e ali muitas vezes a rapidez faz com que você não dê atenção a temas que são importantes.”

A inclusão dos incisos 2º e 3º ao artigo 105 da Constituição Federal tem como principal objetivo a concretização do papel do Superior Tribunal de Justiça não como uma mera corte de cassação ou de controle, mas sim como uma corte de precedentes no que se refere à matéria de legislação federal.

Para a aplicação do “filtro da relevância”, é necessária uma lei que o regulamente. Nesse sentido, o STJ entregou, no dia 05 de dezembro de 2022, ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma sugestão de anteprojeto para a regulamentação do filtro de relevância do recurso especial. Contudo, até o momento não houve movimentação do órgão para prosseguimento do feito.

Diante do cenário exposto, em que o volume processual se torna cada ano maior e a insegurança jurídica se encontra presente em razão de decisões distintas acerca do mesmo fato, a regulamentação do Filtro de Relevância se mostra urgente.

As Cortes Superiores precisam exercer suas funções de forma plena para que possamos caminhar no sentido de prover a devida prestação jurisdicional, com segurança jurídica e razoável duração do processo, conforme determina a Constituição Federal.


[1] Disponível em: justica-em-numeros-2023-010923.pdf (cnj.jus.br)


Maria Augusta Sampaio Ferraz. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.

Democracia e Regulação: a importância da participação direta para um novo pacto dos agentes sociais.

Cristina Vargas

Dentre os dois modos de produção antagônicos propugnados pelas definições das economias liberais e socialistas, a constituição de um Estado Regulacionista vem se apresentando cada vez mais como uma solução instrumental. A abordagem regulacionista parte do princípio de que a economia capitalista está sujeita a crises cíclicas, que no entanto podem ser amenizadas pelo aparato regulatório, permitindo a continuidade de reprodução do sistema. No entanto, para o funcionamento eficaz desse aparelho regulador é necessária a sua aceitação pelos diversos agentes sociais. O processo de destruição criadora envolvido na constituição desse aparato vem acontecendo de forma dinâmica, em que o novo surge antes mesmo que o velho esteja suplantado. Entre o extremo de uma sociedade produtiva totalmente estatal ou aquela na qual os meios de produção são totalmente apropriados e gerenciados pelo mercado, a regulação sobre quem pode gerir com maior eficiência os meios de produção pode tornar-se cada vez mais participativa. Os novos instrumentos tecnológicos de informação e comunicação estão cada vez mais facilmente acessíveis pela sociedade. A estrada da informação, como era chama a internet no início dos anos 1990, era anunciada como um futuro lócus de comércio e interação cultural. Embora tenha nascido como resultado de pesquisas do departamento de defesa dos EUA durante a guerra fria, isto é, fruto do conflito entre os regimes econômicos antagônicos, cada vez mais a internet oferece a possibilidade de maior participação da sociedade acerca dos processos de fiscalização da coisa pública. A exemplo disso podemos citar as consultas públicas feitas pelas agencias reguladoras, e a própria definição dos projetos nos quais serão aplicados os recursos públicos orçamentários. Sabemos que com a tecnologia atual disponível poderíamos ter um mundo completamente diferente. A participação social atuando conjuntamente `a atividade de regulação dos recursos públicos pode representar um importante avanço na resolução dos conflitos, e contribuir para conciliação social necessária para a retomada do crescimento econômico. A história da humanidade nos mostra que o amadurecimento da democracia aconteceu entre avanços e retrocessos. Robsbawn (1996) já afirmara categoricamente que “a Revolução Francesa começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado”, e no entanto o resultado foi o avanço obtido com a declaração dos direitos dos homens e cidadãos. Mais recentemente Piketty (2016:79) afirmou que estamos ainda muito longe das luzes do século, e a resposta precisa ser dada a seguinte pergunta: “que formas de governança alternativas devemos criar no século XXI para escapar da ditadura do proprietário todo-poderoso e finalmente permitir um controle democrático e participativo do capital e dos meios de produção?” Numa perspectiva inspirada nas revoluções pacíficas da história mundial, como a Marcha do Sal ou a Primavera de Praga, a pergunta pode ser estendida ao conceito de democracia cidadã: como escapar de qualquer tipo de ditadura dos meios de produção, estatal ou de mercado, e ainda conciliar os interesses individuais e coletivos em uma sociedade que promova o crescimento econômico e uma política de paz?

A Teoria da Captura preconiza a possibilidade de que as Agências Reguladoras sofram captura por parte dos agentes regulados, e que em conseqüência os interesses desses agentes sejam atendidos em detrimento dos interesses dos consumidores, ou em outras palavras, que serviços de interesse público repassados à atividade privada obtenham ganhos não por aumentos de eficiência, mas por desfrutarem de alguma situação de proteção ou beneficiamento, que por fim indicaria a perda de autoridade e de comprometimento com o interesse público por parte da Agência.

“A doutrina cunhou a expressão ‘captura’ para indicar a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados. A captura se configura quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos de um, alguns ou todos os segmentos empresariais regulados. A captura da agência se configura, então, como mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidades dos setores burocráticos estatais.” (Justen Filho, 2002: 369).

Aparentemente, o agente que pratica a captura está bem definido, conquanto a forma como o Estado constitui-se em capturado tem sido objeto de estudos e pesquisas. Dificilmente enxergaremos os mecanismos pelo qual o Estado torna-se o agente capturado se o enxergarmos de forma mítica, isto é, uma entidade sem rostos e sem personalidade. Stigler (1971) por exemplo, aponta a importância da pressão de grupos de interesse que financiam partidos políticos cujos projetos regulacionistas são de seu interesse para auferir renda que deveria ser revertida em benefícios dos consumidores. A partir da concepção institucionalista de causação circular, em que as instituições e os

indivíduos se influenciam reciprocamente podemos tentar compreender como se constituem os valores que irão determinar quais regramentos irão reger a sociedade.

Enfatizando o poder da captura em nível de política nacional Cagé (2020) afirma que “o dinheiro compra eleições”, estimando para a França o preço do voto em 35 euros, e apontando uma influencia decisiva do investimento privado sobre os resultados das eleições. Cagé (2017) afirma que não é só no Brasil que a democracia está em crise. O fenômeno de desencanto com a política, também observado nos países avançados, provém de um sentimento de desapropriação sentido pela maioria dos eleitores. Eles têm a impressão de que suas escolhas são confiscadas por uma minoria com forte poder econômico.”

Além do sentimento de ausência de poder emanado diretamente do povo, por melhores e mais racionais que possam ser as escolhas dos indivíduos, devemos considerar também a influência do ao auto-engano nas escolhas, ainda que feitas por mecanismos de participação direta.

“ mentimos para nós mesmos o tempo todo, lembramos e esquecemos de acordo com nossas convicções. O auto-engano permeia grande parte das escolhas que fazemos. Ao nos auto iludirmos geramos implicações éticas na vida publica e pessoal.” (Giannetti: 2005)

Como então garantir que a concorrência será devidamente regulada e não influenciada pela relação por vezes perniciosa entre agentes do Estado e entidades privadas? De acordo com Aktouf (2004) o fato que está latente na atual conjuntura econômica é que a administração pública não pode ser o braço armado da captura por diferentes grupos ou pessoas na definição das políticas públicas.

Alguns exemplos de boas práticas e avanços na administração pública tem se verificado pelo uso de instrumentos que possibilitam o acesso da sociedade civil ao planejamento e à execução das políticas públicas.

A administração pública brasileira dispõe de um rol de instrumentos que podem auxiliar na elaboração de seus regulamentos por meio da participação social, tais como: audiências públicas, consultas regionais, consultas públicas, consultas para revisão de Guias, canais eletrônicos para recepção de denúncias, tomada pública de subsídios, realização pública de Webinars, consultas dirigidas, diálogos setoriais, criação de grupos de trabalho e conselhos participativos. A criação de tais instrumentos tem

contribuído para democratizar o processo de regulação, mas para ser eficaz depende de publicidade eficaz e transparência na fiscalização da gestão.

Assegurar as condições de transparência que garantam a concorrência de fato em processos de regulação, ou mesmo licitatórios, dada a conjuntura recente brasileira passa a ser pré-requisito obrigatório para a manutenção de uma estrutura social pacifica.

Em pleito eleitoral recente no Brasil, parte das campanhas apresentavam uma escolha entre democracia ou corrupção, como se ambos fossem eventos mutuamente exclusivos, quando na verdade nunca o foram. As mídias sociais eram inundadas de acusações que salientavam a idéia de polarização entre denúncias de corrupção e denuncias de autoritarismo. No entanto, o combate efetivo à corrupção depende diretamente de assegurar transparência e efetividade na participação social sobre os processos públicos. Quanto maior a participação social direta na avaliação da eficiência acerca da prestação dos serviços públicos concedidos, menores serão os incentivos para a implementação de práticas de capturas e relações público-privada permeadas por atos de corrupção. Entre 1990 e 2021 o número de indivíduos que utilizam a internet no Brasil passou de zero para 81% da população. A administração pública federal já deu passos significativos para impulsionar a digitalização da economia, buscando oferecer diversos serviços públicos por meio de plataformas digitais. No entanto, conforme Ruess et al.(2021) as pesquisas sobre participação política on line (PPO) ainda são escassas, e por vezes, limitadas a aspectos relacionados a facilidades de acesso técnico. Dois fatos já foram observados: o primeiro é que os mais jovens tendem a ter maior confiança na prática da participação política on line, e a segunda é que diferentes plataformas atraem diferentes perfis de usuários. Além disso, comportamentos adotados on line, como marcar e encaminhar postagens sobre políticas públicas por exemplo, por vezes não apresentam um equivalente direto off line. A discussão sobre a definição do que são atos políticos por via digital ainda é muito ampla, mas os conceitos embrionários parecem estar relacionadas à capacidade de engendrar uma mudança social efetiva. Embora o debate acadêmico sobre a conceituação de OPP tenha sido intenso – particularmente sobre a distinção entre comportamentos políticos passivos e ativos – pouco se sabe sobre seu impacto nas abordagens empíricas do fenômeno. O que já se vislumbra em alguns estudos é que plataformas de mídias sociais estão intrinsecamente ligadas com as manifestações de participação on line. Os resultados das eleições de 2010 e 2014 nos EUA coincidiram fortemente com as estratégias de mídia social das campanhas.

Assim parece estar claro o grande poder de alcance e influencia que a PPO pode produzir na promoção de um ambiente mais ético, tanto na esfera da regulação quanto das contratações e políticas públicas em geral. Alguns economistas acreditam que uma retomada do crescimento econômico associado a investimentos diretos públicos, bem como, o abandono das políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1990 seriam o primeiro passo para retomada de um ambiente social mais estável. No entanto, esse caminho parece conduzir ao acirramento do processo de polarização instaurado nos últimos anos, e por si só não resolveria o problema da captura ou da corrupção. Assim, parece uma atitude sábia buscar uma solução via caminho do meio, dando continuidade aos projetos inclusivos e redistributivos, ao mesmo tempo em que a atuação de regulação e fiscalização do Estado nos casos de concessão ao setor privado deve ser aprimorada. A ampliação da participação on line sobre os destinos dos recursos públicos pode conduzir a uma transformação institucional, capaz de levar a relação entre a liderança empresarial e as lutas sociais a um novo patamar. Mesmo em economias fortemente centralizadas como a China, foi preciso encontrar um caminho do meio entre a atividade estatal e as atividades e aspirações individuais privadas no livre mercado, em que pese não tratar-se de um regime democrático. O fato é que não se pode impedir a inovação, ela faz parte do lema jurássico ‘a vida sempre encontra um meio’, então o que nos resta é avançar na atividade de regulação a fim de melhor distribuir os ganhos entre os diversos agentes sociais.


Referências:

AKTOUF, Omar. Pós-globalização, administração e racionalidade econômica. A Síndrome do Avestruz. São Paulo: Atlas, 2004.

CAGÉ, Julia. The price of democracy. How money shapes politics and what to do about it. Cambridge,Massachusetts, London, England: Harvard University Press: 2020.

CGU-Controladoria Geral da União, Revista da CGU, Brasilia/DF, out, 2007. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/34468/10/V2.n2_Democracia.pdf

GIANNETTI, Eduardo. Autoengano. Companhia de Bolso:2005.

HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.

PIKETTY, Thomas. Às urnas cidadãos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

RUESS, Christina et al. Participação política online: a evolução de um conceito

Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Christian-Hoffmann-14/publication/357176371_Online_political_participation_the_evolution_of_a_concept/links/61dc12b93a192d2c8aee01e7/Online-political-participation-the-evolution-of-a-concept.pdf

SCHUMPETER Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

STIGLER, George J. The theory of Economic Regulation. Bell Journal of Economics and Management Science, 1971.

WORLD BANK. Individuals using the Internet (% of population). Disponível em https://data.worldbank.org/indicator/IT.NET.USER.ZS?locations=BR

O que a obra “Intermitências da Morte” de José Saramago tem a ver com a soberania econômico-orçamentária brasileira no contexto da transformação digital?

Editorial

José Saramago na sua obra “Intermitências da Morte” traz reflexões muito importantes a respeito do custo e do benefício de algo que chega para alterar o status quo. De maneira breve, o autor apresenta a alegria da cidade ao saber que a morte não se fazia mais presente entre eles. No primeiro momento a imortalidade foi vista com regozijo, mas em pouco tempo os conflitos começaram a surgir. 

A ausência das mortes colocou em xeque, por exemplo, a existência das funerárias e das seguradoras de vida. O desajuste dos setores econômicos resultou em soluções criativas e um dos principais efeitos colaterais apontados por José Saramago foi o surgimento da clandestinidade, da contravenção e da criminalidade. 

A descoberta de que a morte não estava extinta nas cidades que faziam fronteira foi o estopim para o surgimento de empreendimentos para fazer o transporte dos enfermos moribundos para as cidades vizinhas, onde estes poderiam alcançar a morte tão desejada, com o retorno da sociedade ao equilíbrio social anterior.

A extinção da morte no Estado era um fenômeno repentino e o Estado, com as suas leis e regras administrativas, não encontrava ajuste ao novo. Na presença de tamanha rigidez legal e de hábitos, o resultado foi o crescimento das atividades clandestinas e do envolvimento do próprio Estado nestas atividades. A existência de policiais de fronteira complacentes com a prática do transporte de moribundos para além da fronteira vizinha é um exemplo de como as alterações na sociedade caminham de avião supersônico e o Estado de carroça.

Pois então, o novo atropela, desafia e causa transtorno e o Estado somente se acautela quando o novo fica velho, mas é entre o novo e o velho que surgem o oportunismo e o descaminho.

A partir da reflexão de José Saramago coloca-se a seguinte pergunta para reflexão: o que está por surgir no Estado brasileiro como resultado da avassaladora transformação digital? 

Bem, parece que ainda estamos “abestalhados” com toda esta transformação digital, tal como foi a atitude dos moradores da cidade mediante a extinção da morte. Os órgãos públicos mergulham de cabeça nestas tecnologias e, ao se deliciarem com as maravilhas virtuais, transferem informações relevantíssimas do Estado para bancos de dados, se não suspeitos, pelo menos bastante obscuros. 

Tá bem, o discurso sempre é de que não podemos perder o bonde etc etc etc!!!

Sim, não podemos perder o bonde, mas também não podemos viajar pendurados na porta, pois a chance de cairmos dele é uma questão de tempo.

Estaria a soberania econômico-orçamentária brasileira em perigo?

A soberania do Estado é um tema constitucional, ela está em tudo aquilo que diz respeito a uma nação e a soberania econômico-orçamentária faz parte da soberania nacional. Alguns autores têm afirmado que a sociedade tem experimentado conjuntamente as transformações econômicas, sociais, jurídicas, políticas e morais, ao contrário do que acontecia anteriormente.

Como tratar a soberania econômico-orçamentária de um país frente aos contratos internacionais de transferência de tecnologia, em que empresas poderosas como as big techs (Microsoft, Apple, Google etc), que possuem PIBs superiores ao de muitos países, estão enraizadas em todos os continentes e detêm acesso a todas as informações fiscais relevantes dos países a velocidades inimagináveis. 

Talvez porque o saudoso romancista José Saramago seja português, a Europa já luta como nunca para proteger as suas fronteiras do avanço destas transformações digitais sobre a sua soberania, mas e o Brasil? Para onde vamos?

A OCDE e o Novo Mercado de Gás: O Ponto Virtual de Negociação como Mercado Relevante no setor de Gás Natural

Felipe Fernandes Reis

Os desafios do setor de gás natural no Brasil vem sendo objeto de iniciativas em prol de boas práticas regulatórias e de defesa da concorrência, a Web Advocacy ostenta importantes publicações nesse sentido, dentre os quais destaco a coluna da Dra. Daniela Santos, profunda conhecedora da matéria[1]. Com esse intuito, a proposta deste artigo é defender o conceito e dinâmica de um dos pilares desenhados para o novo modelo do setor, “o mercado de comercialização atacadista de gás”, especialmente no indispensável papel do CADE em suas análises de atos de concentração ou controle de condutas.

Aliás, aproveita-se que a OCDE incluiu a delimitação de mercado relevante nos setores de Oil & Gas (“O&G”) entre os temas tratados na “Latin American and Caribbean Competition Forum”[2], como oportunidadede também considerar as recomendações desse importante órgão a respeito desse tema. No paper que endereça as principais questões encaminhadas no aludido Forum[3], é destacado a importância de boas práticas na delimitação do mercado relevante, reforçando o entendimento que tal exercício consiste em valioso instrumento de análise, mas não sendo “um fim em si mesmo” ou o único meio de análise da autoridade antitruste para apurar os possíveis efeitos anticompetitivos de uma conduta ou ato de concentração. O CADE, inclusive, vem adotando essa premissa, reconhecendo o papel da delimitação do mercado relevante como instrumento de análise e importante mecanismo para apurar probabilidade de condutas anticompetitivas e seus respectivos efeitos[4].

No referido paper da OCDE, também é mencionado o desafio da delimitação de mercado relevante em setores objetos de transformação, seja em razão de inovações tecnológicas ou pela própria regulação, como é o caso do setor de gás natural no Brasil, que nos últimos anos vem sendo objeto de reformas legais e regulatórias, alterando a sua estrutura e dinâmica, com o objetivo de promover concorrência, eficiência e liquidez no setor de gás natural, conforme proposto pelo Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural[5] e estruturado pelo novo modelo desenhado pela ANP[6].

Além disso, vale citar a orientação da OCDE sobre a necessidade da interação entre a agência reguladora com a autoridade antitruste, para melhor compreensão do setor, redução de assimetrias de informação e outras formas de colaboração na adoção de medidas de preservação e promoção da concorrência. Ressalta-se, também, o reconhecimento, no referido paper, acerca da evolução das análises do CADE na delimitação do mercado relevante no setor de gás natural, especialmente a partir do ato de concentração envolvendo a aquisição do controle da GASPETRO pela Compass Gás e Energia S.A, que antes era detido pela Petrobras[7]. No documento, essa evolução é atrelada à importante separação entre os mercados de comercialização e distribuição de gás natural[8].

Nesse sentido, vale citar que a referida operação foi objeto de análise tanto pela Superintendência Geral (“SG/CADE”) como pelo Tribunal do CADE. A SG/CADE[9] e o Conselheiro Relator definiram o mercado relevante da distribuição de gás canalizado de forma separada da Comercialização, a qual foi segmentada em dois mercados distintos:

  • Comercialização para atender ao Consumidor Livre;
  • Comercialização para fornecimento ao Consumidor Cativo (ou seja: Comercialização para atender as Distribuidoras de Gás Canalizado).

Por outro lado, apesar de acompanhar o Relator em suas conclusões quanto à aprovação da operação, o Conselheiro Victor Fernandes divergiu no tocante à delimitação dos mercados relevantes acima mencionados. No que se refere aos mercados de Comercialização de gás, o Conselheiro o definiu em “Comercialização Atacadista”, segmentado em dois níveis: a montante (i.e. entre produtores e importadores) e a jusante (que ocorre a partir da rede de transporte), aliás, também tratou do mercado de comercialização varejista, que consiste no fornecimento aos usuários do mercado cativo, atualmente de exclusividade das Concessionárias do serviço público de distribuição gás canalizado (Distribuidoras/CDL).

Entre as diferenças dos entendimentos acima, é importante principalmente destacar a opção de incluir as distribuidoras no lado da demanda juntamente com os consumidores livres, conforme delimitado pelo Conselheiro Victor no denominado “mercado de comercialização atacadista à jusante”, enquanto o entendimento da SG/CADE e do Conselheiro Relator seria apenas incluir os consumidores livres na demanda do mercado de comercialização, sem considerar, portanto, o volume adquirido pela Distribuidora e seu papel enquanto adquirente de gás nesse mercado.

É importante destacar que o presente artigo não tem por objeto analisar os fundamentos e motivações alcançadas no referido ato de concentração, o que poderá ser feito em oportunidades futuras. Contudo, é importante apenas mencionar que durante a análise dessa operação, os debates a respeito da dinâmica do setor, em especial sobre a comercialização de gás (se seria apenas uma atividade; um elo e/ou um mercado relevante) acabou por prejudicar, a meu ver, a adequada compreensão da comercialização, sua definição como um mercado relevante, bem como a sua dinâmica concorrencial.

Feito esse breve resumo acerca dos diferentes entendimentos recentemente adotados pelo CADE, entende-se de suma importância defender o mercado de comercialização atacadista de gás à jusante (nos termos propostos pelo Conselheiro Victor), isso porque, no atual momento e de forma geral, é possível e provável que os ofertantes atuem e rivalizem para atender tanto o consumidor livre como as distribuidoras, as quais, além de representarem a maior parcela do volume comercializado no país, desempenham significativo papel no acesso dos comercializadores ao consumidor livre, na medida que esses precisam contratar seu serviço de distribuição de gás no nível downstream para então migrarem como demandante nesse mercado de comercialização atacadista à jusante. Aliás, são vários os casos de comercializadoras que já celebraram contratos com ambos[10].

As recentes reformas do setor buscaram instituir o mercado de comercialização atacadista à jusante[11], a partir do Ponto Virtual de Negociação (“PVN”) ou “Hub” atrelado à respectiva área de capacidade de transporte- como o ambiente propício à competição entre os diferentes ofertantes (comercializadoras de produtoras, importadoras, do grupo econômico das distribuidoras e traders) para atender a demanda das CDL’s, dos consumidores livres e das distribuidoras a granel (GNL/GNC), de modo que as relações comerciais não sejam necessariamente atreladas ao fluxo físico da molécula, gerando, desse forma, liquidez, concorrência e flexibilidade, com aumento da oferta e entrada novos agentes. Por tais razões, o CNPE, através da Resolução n.03 de 2022, estabeleceu como de interesse da Política Energética Nacional que os agentes identifiquem nos contratos de comercialização o Ponto Virtual de Negociação como o ambiente de troca de titularidade do gás, conforme modelo estruturado nas reformas do setor:

Sugere-se, portanto, que o mercado relevante de comercialização atacadista à jusante seja delimitado à luz do Ponto Virtual de Negociação, adotando, inclusive, essa terminologia, de modo a evitar que esse seja confundido com outras atividades e segmentos adjacentes que também envolvem a compra e venda de gás, por exemplo: comercialização de gás não processado entre produtoras (upstream) ou o fornecimento de gás pelas Distribuidoras ao usuário cativo (downstream).

Em sua esfera geográfica, até a completa integração entre as diferentes áreas de transportes, sugere-se a segmentação do mercado conforme cada uma das áreas de capacidades de transporte, uma vez que a sua contratação (no formato de entrada e saída) é necessária para a atuação do agente em cada mercado, conforme assim delimitado pela ANP:

Reita-se que a definição do PVN como um mercado relevante permite a melhor identificação de sua dinâmica competitiva e os riscos de eventuais atos anticoncorrenciais, em especial a partir da sua integração vertical, seja com o elo upstream (comercialização atacadista à montante) como a partir do downstream (Distribuidoras Locais de Gás Canalizado).

No que se refere ao elo upstream, cita-se, como hipótese, o caso dos concorrentes da Petrobras que constantemente necessitam contratar capacidade de escoamento e processamento de suas infraestruturas à montante para então ofertarem gás junto aos consumidores livres e distribuidoras no mercado Ponto Virtual de Negociação. Sob a perspectiva concorrencial, a adequada delimitação do PVN como mercado relevante, permite avaliar riscos de eventuais estratégias para criação de custos, dificuldades e outras condutas restritivas verticalizadas a partir do elo upstream contra esses concorrentes na contratação de de gás e de acesso às suas essential facilities, prejudicando a concorrência no Ponto Virtual de Negociação.

Em relação à integração vertical entre o mercado de Ponto Virtual de Negociação com as distribuidoras de gás canalizado (monopólio natural), os riscos decorrem especialmente no caso do grupo da distribuidora também atuar como comercializadora no PVN, ou seja, concorrendo com outros comercializadores para atender a sua demanda ou a dos usuários cativos aptos para migrarem para o ambiente livre. A definição do PVN como mercado relevante independente, permite, assim, identificar quaisquer tentativas de práticas restritivas a partir do elo da distribuição, as quais devem ser efetivamente apuradas, para fins de preservar um ambiente competitivo, no qual os agentes tenham condições reais de concorrerem para atender às CDL’s e aos potenciais consumidores livres.

Por fim, importante destacar que a nova Lei do Gás (Lei Federal 14.134/2021) instituiu mecanismos importantes para preservação da concorrência nesse mercado, e, assim, evitar condutas anticompetitivas. Contudo, a aplicação dessas medidas requer a constante atuação e cooperação entre as autoridades competentes, em especial do CADE com os respectivos reguladores, à luz das boas práticas internacionais e conforme destacado pela OCDE.


[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/daniela-santos/

[2] Para mais informações sobre o Latin American and Caribbean Competition: https://www.oecd.org/competition/latinamerica/2022forum/

[3] Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2022)12/en/pdf

[4] Nesse sentido, ver: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2010/documento-de-trabalho-n01-2010-delimitacao-de-mercado-relevante.pdf

[5] Instituído pela Resolução n.:04 de 2022 do CNPE.

[6] Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/cp/2020/cp01/cp1-2020-modelo-conceitual.pdf

[7] Ato de Concentração: 08700.004540/2021-10.

[8] Entendimento da OCDE desde os anos 2000, disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sectors/1920080.pdf

[9] Em seu parecer, a SG consignou a possibilidade da revisão desse entendimento conforme as mudanças da dinâmica do setor, nos moldes pretendidos pela regulação

[10]  Nesse sentido, ver: https://epbr.com.br/abertura-do-mercado-de-gas-natural-ja-tem-dez-novos-fornecedores/

[11] Nessa linha, sugere-se o estudo da CNI sobre a organização do mercado atacadista: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/22/4d/224de293-bec6-455d-8b9f-dc5a69e30e14/id_237108_organizacao_do_mercado_atacadista_de_gas_web1.pdf