Regulação econômica

Da Lei de Concessões ao Decreto de AIR: o tortuoso (será?) caminho da regulação econômica no Brasil

Elvino de Carvalho Mendonça

Muito se tem falado a respeito da importância da Análise de Impacto Regulatório (AIR) nas agências reguladoras. Um dos reclames da sociedade sobre a condução da regulação econômica via agências reguladoras estava centrado na grande quantidade de regramentos que acabavam por representar verdadeiras barreiras à entrada regulatórias e, nesse caso desmoronavam a missão precípua da regulação econômica que é a de mimetizar o ambiente concorrencial onde existem falhas de mercado instransponíveis para a economia de mercado.

Antes da Constituição Federal de 1988, os setores econômicos que hoje são conduzidos pelas agências reguladoras eram “regulados” pelos Ministérios do Poder Executivo. Nesse formato, havia a influência direta das questões do governo central e a política era menos de Estado e mais de governo.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o art. 174 previu a possibilidade de constituição de agências reguladoras como agente normativo e regulador da atividade econômica com as finalidades de fiscalização, incentivo e planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado,[1] permitindo maior autonomia, privilegiando a técnica. Por outro lado, no art. 175, também previu que os serviços públicos poderiam ser concedidos ou permitidos a iniciativa privada mediante a realização de processos licitatórios, por prazo longo e mediante contrapartidas das empresas vencedoras[2].

Dada essa condução, a decisão foi a de privatizar as empresas estatais que prestavam serviços públicos, que eram monopólios naturais (ex. eletricidade e telefonia) e criar marcos regulatórios com agências independentes operacional e financeiramente para a gestão das empresas, segundo métodos tradicionais de regulação econômica, como, por exemplo, o regime de preço-teto.

O desafio dos marcos regulatórios era o de selecionar uma empresa por meio de processo licitatório que viesse a ofertar a melhor combinação de tarifa/qualidade da prestação serviço para o contribuinte e recursos para a União. Com esse marco regulatório vieram as regulamentações e com estas as normas, portarias e resoluções.

Várias experiências se sucederam após a criação dos marcos regulatórios dos onze setores regulados no Brasil, mas foi somente com a publicação da Lei das Agências (Lei nº 13.848/2019) e da Lei de Liberdade econômica (Lei nº 13.874/2019) e do Decreto de AIR (Decreto nº 10.411/2020) que a análise de impacto regulatório se tornou uma realidade exigível não somente para as agências reguladoras, mas também para toda a elaboração de atos normativos da administração pública direta, não obstante, aqui e ali, algumas agências já fizessem análises de impacto regulatório.

Os mencionados diplomas legais, sobretudo o Decreto de AIR, disciplinaram o rito do AIR e os métodos para se obterem medidas quantitativas e qualitativas dos atos normativos sobre os regulados e a sociedade como um todo. Salvo para as exceções, toda norma deve ser precedida de AIR e deve ser transformada em relatório, que será submetido ao escrutínio da participação social (tomadas de subsídio, consultas públicas e audiências públicas).

Está claro, portanto, que a regulação econômica no Brasil seguiu as premissas dos bons manuais de regulação econômica ao redor do mundo, pois privatizou empresas estatais deficitárias, criou agências reguladoras, elaborou marcos regulatórios e agora institucionalizou a prática do AIR em todas as agências.      

A ausência de instrumentos que medissem a intervenção do Estado por meio da regulação talvez seja o ponto mais negativo da regulação econômica no Brasil nesses últimos 26 anos. Antes da entrada em vigor da lei das agências, da lei de liberdade econômica e do Decreto de AIR, o Estado era soberano na elaboração de normas, o que fazia dos seus atos uma intervenção ativa no domínio econômico, com efeitos, muitas vezes, não muito positivos para a segurança jurídica dos regulados e dos investidores privados.

É inescapável que a instituição do AIR veio para atribuir poder a sociedade no balanço de forças com o Estado, na medida em que algumas normas anticompetitivas e/ou excessivas regulatoriamente tendem a ser eliminadas no processo de análise de impacto regulatório. Mas fica uma dúvida: qual é a medida certa?

Se é certo que a ausência de barganha de forças com o Estado acabou por gerar normas, muitas vezes, excessivas que acabaram gerando barreiras à entrada para o mercado, por outro lado, também é certo que é fundamental que o Estado tome a condução de diretrizes, ao menos, mínimas em mercados onde são visíveis as falhas de mercado, evitando o abuso do poder de mercado.

A medida correta é a de controlar o abuso, seja do Estado (abuso de poder regulatório) ou abuso do mercado (abuso do poder de mercado).

Não é difícil perceber que a quantidade de atos normativos que são necessários para a boa regulação é muito superior à capacidade de análise das agências reguladoras. Obviamente que um grande percentual desses atos não possui qualquer prejuízo para os setores regulados, a exemplo do que acontece com os 80% de atos de concentração submetidos ao CADE não possuem qualquer problema de natureza concorrencial.

 Esse é um desafio que o CADE e grande parte das agências de defesa da concorrência ao redor do mundo resolveram a partir da elaboração de critérios para separar os casos que realmente eram problemáticos daqueles que não o eram. A solução de triagem com publicidade ao público por meio da publicação de atos simples no DOU deu celeridade ao processo decisório, reduziu a insegurança jurídica e transformou o CADE em uma das melhores agências das Américas.

No entanto, nem sempre foi assim para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Quem não se lembra do duplo trabalho na elaboração de pareceres pela então Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) antes da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência)? Foram precisos alguns bons anos para que o SBDC identificasse que o modo como o sistema funcionava era disfuncional e gerava custos amplos tanto para o erário quanto para o setor privado.

Não obstante o Decreto de AIR tenha trazido os métodos para calcular o impacto regulatório, que nem sempre é uma boa solução devido ao engessamento da autoridade regulatória, não trouxe qualquer critério de triagem. A exemplo do que se viu com a experiência do SBDC, a eliminação do que não é relevante abre espaço para a aplicação de métodos sofisticados em casos que realmente merecem ajustes. Importante lembrar que há diferenças consideráveis entre as operações no CADE e os atos normativos das agências e a principal delas está no fato de que o órgão antitruste é um examinador externo das condições de concorrência que são geradas pela ação de duas ou mais empresas, ao passo que a AIR é elaborada por um examinador interno, que transforma a decisão diretamente conectada à vontade da agência.

Portanto, como criar um fast track para algo que está permeado por interferência direta? É importante lembrar que a AIR é um ônus da prova da agência para publicar um novo normativo e o julgamento é feito pela sociedade por meio da participação social (consulta pública, audiências públicas etc).

Há quem diga que a obrigatoriedade de realização da AIR inibe a produção de normas ruins do ponto de vista regulatório e concorrencial, pois há uma alta probabilidade de que esses normativos não sejam publicados na forma como foram propostos ou que sequer sejam produzidos, em razão da necessidade de produção de um trabalhoso AIR. Nesse caso, o entendimento seria de que somente seriam submetidas para AIR normativos que fossem relevantes e o problema do fast track estaria resolvido.

No primeiro caso, não há o comando da aprovação, ao passo que no segundo, o fast track no CADE, está baseado no tamanho das empresas que fazem as operações (faturamento bruto e participação de mercado).

Mais do que dizer que método utilizar é importante excluir aquilo que não gera preocupação e dar publicidade para a sociedade, pois, do contrário, é como “matar uma formiga utilizando uma bomba atômica”.


[1] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.         (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

[2] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

Hidrogênio: mais uma possibilidade para o futuro do Brasil

Daniela Santos

Fernando Montera

Volto a escrever com o economista Fernando Montera sobre energias alternativas, por conta do espaço de destaque que a pauta de descarbonização vem ganhando como questão central no combate às mudanças climáticas. Se dúvida, as metas para a neutralidade de carbono passam cada vez mais a ditar a dinâmica econômica e regulatória dos Países.

E são diversas as soluções possíveis para reduzir as emissões: geração de energia a partir de fontes renováveis, compensações ambientais, tecnologias de captura de carbono, maior eficiência na queima, substituição por combustíveis menos poluentes, ampliação de uso de biocombustíveis, são alguns exemplos. E é dentro desse rol de soluções que a produção de hidrogênio (H2) tem atraído cada vez mais atenção.

De fato, considerando que o H2 entrega grandes quantidades de energia, tem usos diversos, não emite poluentes no seu uso final e pode ser produzido através de fontes 100% renováveis – chamado Hidrogênio Verde, não há dúvidas que se trata de uma aposta chave para contribuir ativamente na redução de gases de efeito estufa. O seu uso, entretanto, não é novidade, sendo realidade em diversas aplicações industriais – produção de derivados de petróleo, amônia e na indústria siderúrgica, por exemplo.

Como resultado desse cenário, de acordo com o Hydrogen Council, são estimados que os investimentos em projetos de H2 até 2030 estejam na casa de US$ 500 bilhões em todo o mundo. Destes, aproximadamente 30% são considerados pela instituição como projeto maduros, ou seja, que estão na etapa de planejamento após decisão final de investimento ou que estão associados a algum projeto em construção, comissionamento ou operacional.

E o Brasil, como se encaixa nesse contexto? Também aqui o H2 não é novidade, sendo tema de projetos e programas federais para desenvolvimento da tecnologia desde meados da década de 2000. Mais recentemente, conforme a Resolução CNPE nº 6, de 20 de abril de 2021 – que determina a realização de estudo para proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – passou a ser considerado como tema prioritário de investimentos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) pelo Conselho Nacional de Política Energética e estruturação das diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – EPE. Confira-se:

“Art. 1º Determinar ao Ministério de Minas e Energia que, no prazo de até sessenta dias, contados da publicação desta Resolução, em cooperação com os Ministérios da Ciência, tecnologia e Inovação e Desenvolvimento Regional, com o apoio técnico da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, apresente a este Conselho proposta de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio, observados:

(…)  II – a inclusão do hidrogênio como um dos temas prioritários para investimentos em pesquisa desenvolvimento e inovação, conforme Resolução CNPE nº 2, de fevereiro de 2021, aprovada pelo Conselho Nacional de Política Energética.”

E não é só: nessa mesma linha, o CNPE, por meio da Resolução nº 7, de 20 de abril de 2021, instituiu o Programa Combustível do Futuro e criou o seu Comitê Técnico com o objetivo de desenvolver medidas para expandir o uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono. Nesse movimento, já ficou definida uma ação direcionada ao desenvolvimento do H2 no Brasil: o uso do energético como combustível de veículos automotivos. Confira-se:

“VI – propor estudos para ampliação do uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono, como, por exemplo:

(…) b) avaliação das tecnologias de célula a combustível disponíveis para orientar pesquisa, desenvolvimento e inovação”

Com isso, o Conselho que propõe políticas nacionais e medidas específicas ao Presidente da República, evidenciou os direcionadores mínimos referentes ao uso do H2 no Brasil. Como resultado da Resolução no 6 do CNPE, o recém-publicado Programa Nacional do Hidrogênio[1], pautado pelos pilares de Políticas Públicas, Tecnologia e de Mercado, identificou a necessidade de se trabalhar o desenvolvimento desse mercado a partir de seis eixos – fortalecimento das bases tecnológicas, capacitação e recursos humano, planejamento energético, arcabouço legal-regulatório, crescimento do mercado e competitividade e cooperação internacional.

Portanto, equacionadas as questões acima, restam outras que deverão ser debatidas e devidamente esclarecidas de modo a garantir a segurança da opção pelo H2 no Brasil: conscientização do mercado consumidor (o que implica no seu custo competitivo) e a competência e alinhamento regulatório.

A sensibilização do mercado consumidor passa por diversas fatores culturais e econômicos. Quando se fala do potencial interno brasileiro, a já mencionada resolução do CNPE que define o Programa Combustível do Futuro, também explicita que se deve encontrar maneiras de educar o consumidor:

“Art. 3º

V – propor ações para fornecer ao consumidor as informações adequadas contribuindo par a escolha consciente do veículo e da fonte de energia considerando o ciclo de vida dos combustíveis”

Não se pode perder de vista que, assim como ocorre com o gás natural, o H2 pode ser comercializado entre continentes pelos mares. Com efeito, em tese, há espaço para o Brasil fornecer H2 para países que vinculados a uma forte pauta de descarbonização da economia, como é o caso dos países europeus.

Outro ponto a ser considerado é a eventual criação de medidas para expandir o consumo interno no Brasil. O Reino Unido, por exemplo, incluiu taxas na conta dos consumidores para estimular a produção de H­2, que seria misturado, por exemplo, no gás natural entregue.

De todo modo, a expansão do consumo estará diretamente relacionada a capacidade de inserção em bases competitivas do energético. De acordo com a BloombergNF[2], a difusão da tecnologia levaria a preços competitivos do Hidrogênio Verde apenas em 2050. A necessária redução do custo do H2 de modo a torná-lo competitivo, dependerá, em grande medida, do sucesso de tais escolhas[3].

Sobre a regulação, é possível prever a existência de mais de um ente diferente atuando no tema, acrescentando, portanto, complexidade no alinhamento e harmonia das diretrizes regulatórias, AIR, ARR etc.  Veja o caso das versões verde e azul do hidrogênio: caso seja produzido 100% com energia renovável, dependerá principalmente da regulação da ANEEL, mas caso seja produzido utilizando gás natural, com tecnologias de captura de carbono, deverá envolver a ANP e, em alguns casos, os estados que regulam a distribuição de gás natural.

Ao ser utilizado diretamente como combustível (misturado ou não com gás natural) a atuação da ANP e, em alguns casos, das agências estaduais de regulação da distribuição de gás natural, teria ainda seu papel em destaque quanto aos usos na síntese de biocombustíveis.

Nada obstante, apesar da complexidade adicional por conta disso, não há obstáculos intransponíveis para a definição de regulações harmônicas, isonômicas, com base na transparência e com foco na concorrência. Neste sentido, novamente citamos o inc. I do art. 1º da Resolução CNPE nº 6/21, que, entre as diretrizes do Programa de Hidrogênio, corrobora o “interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas”.

Portanto, é possível afirmar que o assunto está encaminhado, mas precisa ser avaliado a partir de uma política pública específica para o Brasil, considerando suas características, necessidades e a diversidade de fontes energéticas disponíveis no País. Exemplos de outros países são importantes, mas apenas dentro de um contexto que realmente reflita os caminhos que o País deseja trilhar nas próximas décadas.

E, como sempre, as (boas) possibilidades no Brasil são inúmeras e, se bem-organizadas, com regras simples, objetivas e transparentes – o que, como se sabe, ainda é um grande desafio – atenderão plenamente às nossas necessidades.

Por fim, considerando que não é possível falar sobre H2 sem falar sobre gás natural, devemos considerar a existência de uma questão ainda pendente que precisa ser equacionada: a especificação do gás natural. Isso porque se pretendemos aproveitar o H2 misturado ao gás natural, é necessário que se tenha clara a composição do gás natural entregue ao consumidor.

*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.

(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)


[1] https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/FIEMGHidrogenioMMEconvertido.pdf

[2]https://data.bloomberglp.com/professional/sites/24/BNEF-Hydrogen-Economy-Outlook-Key-Messages-30-Mar-2020.pdf

[3] https://gasenergy.com.br/custos-de-hidrogenio-perspectivas-no-longo-prazo/

Energia OFFSHORE: um tema novo que une as experiências elétrica e do petróleo e gás

Daniela Santos

Felipe Fernandes Reis

Hoje o foco da minha coluna mensal, com a participação especial do Fernando Montera, é a exploração da energia offshore, ou seja, a energia gerada no mar – eólica, inclusive, mas pode ser qualquer outra, a partir das ondas, das marés, das correntes marítimas entre outras.  Um tema muito atraente para todos aqueles que se interessam pela diversificação da matriz energética nacional, pela inovação tecnológica e pelo meio ambiente.

Para termos uma ideia do “tamanho da coisa”, somente Reino Unido, Alemanha e China respondem por um total de aproximadamente 27 GW de energia proveniente apenas de eólicas offshore[1]. E o mercado continua em franca expansão, incluindo a participação de outros Países como os Estados Unidos.

Apesar do tema não ser tão novo assim – se considerarmos que as primeiras experiências na produção de energia offshore ocorreram na Dinamarca em 1991 – é certo que, no Brasil, trata-se de uma nova frente energética, com um potencial enorme de geração de energia e, consequentemente, de estímulo de novos entrantes no setor.

Considerando todo o movimento mundial, em 2020, a EPE divulgou seu estudo sobre o tema no Brasil – Roadmap Eólica Offshore – Perspectivas e caminhos para a energia eólica marítima. Nele, são apresentadas informações que devem ser consideradas para o amadurecimento do debate sobre a nova fonte energética – já inserida no Plano Decenal de Expansão de Energia –PND.

Em síntese, o trabalho da EPE aponta para (i) a existência de um “potencial técnico de cerca de 700GW em locais com profundidade até 50m” em todo o litoral brasileiro, mas especificamente na região Nordeste (sem excluir outras áreas, inclusive o Rio de Janeiro, por exemplo, com a sua expertise em mercado offshore); (ii) a necessidade de estrutura portuária adequada para a construção, montagem e transporte dos equipamentos eólicos; (iii) custos elevados de implantação e operação dos parques eólicos offshore (tecnologia e equipamentos diferentes da eólica onshore) ; (iv) necessidade de conexão com as linhas de transmissão de energia (e eventuais reforços); (v) ajustes normativos/regulatórios e ambientais.

Paralelamente, no final de 2020, o IBAMA elaborou o Termo de Referência Padrão para Complexos de Energia Eólica Offshore, de modo a garantir o correto entendimento sobre os estudos de impacto ambiental de empreendimentos de geração eólica offshore. A iniciativa é importante para garantir celeridade e segurança para o investidor e o Termo já está sendo utilizado na análise dos projetos já apresentados ao IBAMA.

Em relação à regulação, a despeito de não haver impedimentos para o desenvolvimento da atividade eólica no País, o foco é a geração onshore, que, como sabemos, é uma atividade já estabelecida e diferente da offshore. Assim, recentemente o Ministro de Minas e Energia noticiou que devemos ter as adequações regulatórias necessárias equacionadas ainda em 2021.

Por outro lado, há algumas possibilidades de arcabouço legal que estão sendo cogitadas, o que inclui a adoção do modelo de Oferta Permanente do setor de petróleo e gás e possibilidade de se optar por uma nova lei federal, de modo a garantir segurança aos empreendimentos offshore. No Brasil, há dois projetos de lei sobre o assunto tramitando no Congresso. O mais antigo é o PL nº 11.247/18 (que trata da promoção ao desenvolvimento da geração de energia elétrica a partir de fontes eólica e solar fotovoltaica offshore) e o segundo o PL nº 576/21 (que trata do potencial energético offshore – sem limitar as fontes).

O PL 11.247/18 encontra-se, desde janeiro de 2019, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara do Deputados. Em extrema síntese, o PL propõe alteração na Lei nº 9.074/95 de modo a incluir as usinas eólicas e solares e a autorização da ANEEL para a atividade (com a obrigação de chamada pública). Igualmente, propõe ajustes nos artigos sobre princípios e objetivos da Política Energética Nacional – com o intuito de promoção e incentivo às novas fontes – políticas nacionais e medidas específicas recomendadas pelo CNPE e nas definições (incluindo prismas eólico, fotovoltaico e energia de fonte solar fotovoltaica) contidas na Lei nº 9.478/97.

O mencionado PL propõe a alteração da Lei nº 9.427/96 – garantindo a competência da ANEEL para regular as atividades e promover os procedimentos para a outorga de concessão ou de autorização de uso do bem público associado às usinas eólicas e solar offshore – e da Lei nº 10.847/04, esclarecendo a competência e atribuições da EPE sobre o assunto.

No mais, especifica os regimes de concessão e autorização de uso do bem público associado a implantação das usinas, detalhando o processo licitatório e as cláusulas essenciais do contrato de concessão. Sobre as participações que deverão ser pagas pelos autorizados/concessionários, o PL propõe o seguinte:

“Art. 14. O edital de licitação e o contrato de concessão ou de autorização de uso do bem público disporão sobre o pagamento pela ocupação ou retenção de área, a título de arrendamento ou taxa de ocupação, a ser feito mensalmente, nos termos estabelecidos em resolução do CNPE.” (g.n.)

Por outro lado, o PL 576/21 encontra-se, desde fevereiro de 2021 no Plenário do Senado Federal aguardando a escolha do relator. De forma resumida, o PL altera as Leis nº 9.478/97, nº 9.074/95 e nº 10.438/02, disciplinando a outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore, seja ele eólico ou qualquer outro. O texto apresentado define offshore, prisma energético e descomissionamento, além de esclarecer os princípios e fundamentos da exploração e desenvolvimento da geração de energia a partir de fonte instalada offshore.

O PL estabelece o regime de autorização – e não concessão – de uso de bens da União (com suas respectivas obrigações), por meio de outorga planejada (conforme planejamento do CNPE, por meio de processo seletivo público, considerando, entre outros, a disponibilidade de ponto de interconexão à rede básica) ou de outorga independente (conforme prismas sugeridos pelos interessados – após estudos, por sua conta e risco – com realização de consulta pública prévia).

O texto também define os estudos exigidos para a autorização, o que remete a avaliação técnica e econômica, EIA e avaliação da segurança náutica e aeronáutica. Detalha questões referentes aos prismas energéticos, inclusive indicando a possibilidade de constituição de prismas nas áreas de exploração e produção de petróleo e gás nos casos de constituição de prismas pelos seus operadores ou com sua anuência – boa oportunidade para as concessionárias de E&P!

Ademais, o PL mais recente, além de detalhar o descomissionamento, também fala sobre participações governamentais obrigatórias, o que merece a transcrição do dispositivo proposto:

“Art. 13. O processo seletivo público e o respectivo instrumento de outorga dele resultante disporão sobre as seguintes participações governamentais obrigatórias:

I – bônus de assinatura, que terá seu valor mínimo estabelecido no respectivo instrumento de outorga e corresponderá ao pagamento ofertado na proposta para obtenção da autorização, devendo ser pago no ato da assinatura do termo de outorga;

II – pagamento pela ocupação ou retenção de área, que será pago mensalmente, a partir da data da assinatura do termo de outorga, fixado por quilômetro quadrado ou fração da superfície do prisma energético, na forma da regulamentação;

III – participação proporcional, que será paga mensalmente, a partir da data de entrada em operação comercial, em montante correspondente a cinco por cento da energia efetivamente gerada e comercializada relativamente a cada prisma energético;

§ 1º Regulamento disporá sobre a apuração, o pagamento e as sanções pelo inadimplemento ou mora relativos às participações governamentais devidas pelos autorizatários.

§ 2º O Poder Executivo poderá estipular redução de até sessenta por cento dos valores previstos neste artigo mediante recomendação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) pelo prazo de até cinco anos, sem renovação.” (g.n.)

Em qualquer dos dois projetos, é fundamental garantir que uma eventual lei sobre o tema não engesse a atividade e os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo que assegure a sua competitividade e redução de custos, considerando que hoje, a despeito do imenso potencial, devido aos elevados custos associados à tecnologia, a atividade ainda não é competitiva no Brasil. Nesta medida, a questão das participações devidas pelo agente – que impacta na sua competitividade – deverá ser alvo de amplo debate de forma a assegurar que não representem obstáculos ou barreiras para o desenvolvimento da nova atividade.

As oportunidades para eólicas offshore são grandes e estão em linha com o cenário internacional de redução das emissões, incluindo nesse rol a sua convergência com o desenvolvimento de outras tecnologias como o Hidrogênio Verde.  Por fim, importante não perder de vista que a “aposta” nas eólicas onshore foi certeira para o Brasil, tratando-se de uma atividade limpa e competitiva consolidada há anos no País, com resultados excepcionais. E é precisamente isso que se espera da eólica offshore, em harmonia com as práticas ESG, gerando mais empregos e competitividade nos próximos anos.

*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.

(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)


[1] De acordo com o Irena o valor de 2020 para esses 3 Países é de 27 GW, equivalente a 80% da capacidade mundial de OW. GWEC-Global-Wind-Report-2021.pdf

O CNPE e a concorrência no mercado de gás

Daniela Santos

Minha coluna de hoje é sobre a Resolução nº 3, de 7 de abril de 2022, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabelece as diretrizes estratégicas para o desenho do novo mercado de gás natural, os aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência nesse mercado, os fundamentos do período de transição.

O contexto dessa Resolução foi a necessidade de construir soluções, ainda que transitórias[1], para garantir, na prática, a concorrência no mercado de gás natural no Brasil. E isso decorreu dos avanços atuais que, por certo, apontaram para problemas/limites que ainda impedem a plena observância dos princípios do Novo Mercado de Gás (NMG) e dos objetivos pretendidos com o desinvestimento da Petrobras no setor, nos termos indicados pelo Termo de Compromisso de Cessação (TCC do gás), celebrado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em 2019.

Foram muitas as diretrizes, medidas e princípios dispostos na Resolução. Todos eles já dispostos em outras normas, experimentados em outros mercados, e reconhecidos como fundamentais para a transição entre um mercado restrito para um mercado seguro e confiável com a participação de diversos agentes.  

Mas além do (importante) reforço de tais parâmetros pelo CNPE – vinculado à Presidência da República e presidido pelo Ministério de Minas e Energia – há novidades importantes que devem ajudar no crescimento do mercado de gás enquanto o CADE não sinaliza com decisões mais objetivas no âmbito do TCC do Gás e a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis não finaliza itens fundamentais da sua extensa agenda regulatória.

Mas vamos em partes. Em primeiro lugar, chama atenção para o (correto) apoio dado às diretrizes estratégicas do novo mercado de gás natural no Brasil, especialmente aquelas que indicam a necessidade de dinamismo e acesso à informação (transparência), a participação dos agentes do setor e a promoção à competição na oferta do gás natural (sem perder de vista o respeito aos contratos).  

Neste sentido, cito algumas diretrizes que me chamaram a atenção:

  • remoção de barreiras econômicas e regulatórias às atividades de exploração e produção de gás natural;
  • implementação de medidas de estímulo à concorrência que limitem a concentração de mercado e promovam efetivamente a competição na oferta de gás natural;
  • reforço da separação entre as atividades potencialmente concorrenciais, produção e comercialização de gás natural, das atividades monopolísticas, transporte e distribuição;
  • aumento da transparência em relação à formação de preços e a características, capacidades e uso de infraestruturas acessíveis a terceiros;
  • promoção do acesso não discriminatório e transparente de terceiros aos gasodutos de escoamento, Unidades de Processamento de Gás Natural – UPGNs – e Terminais de Regaseificação;
  • promoção da harmonização entre as regulações estaduais e federal, por meio de dispositivos de abrangência nacional, objetivando a adoção das melhores práticas regulatórias;
  • promoção de transição segura para o modelo do novo mercado de gás natural, de forma a manter o funcionamento adequado do setor.

E como se não bastassem tais diretrizes, o CNPE também confirmou os princípios da transição para um mercado de gás natural concorrencial, que deve primar pela segurança do abastecimento, pela celeridade e pelo fortalecimento e autonomia das agências reguladoras e da autoridade de defesa da concorrência.

Os objetivos da transição também são descritos na Resolução CNPE nº 3/22. Cito apenas alguns deles:

  • promover um mercado transparente, concorrencial e líquido de gás natural, tanto no atacado como no varejo, com diversidade de agentes do lado da oferta e da demanda;
  • restringir situações de transações entre comercializadores e concessionárias de distribuição de gás canalizado que sejam partes relacionadas;
  • promover a transparência e o estabelecimento de regras claras para o acesso negociado e não discriminatório às infraestruturas de escoamento e processamento de gás natural e aos Terminais de Gás Natural Liquefeito – GNL;
  • promover a transparência do teor dos contratos de compra e venda de gás natural para o atendimento ao mercado cativo; e
  • incentivar a adoção voluntária, pelos Estados e o Distrito Federal, de boas práticas regulatórias relacionadas à prestação dos serviços locais de gás canalizado, que contribuam para a efetiva liberalização do mercado, o aumento da transparência e da eficiência, e a precificação adequada no fornecimento de gás natural por segmento de usuários.

E tudo isso, sem esquecer da necessidade de (i) coordenação das atividades, (ii) concentração das operações de compra e venda de gás em um ponto virtual de negociação (que servirá como referência para os produtos relacionados à flexibilidade e ao balanceamento da rede), (iii) padronização dos contratos, (iv) redução da tarifa relacionada às interconexões e a efetiva interconexão das instalações do sistema de transporte, (v) a adequação de procedimentos e padrões utilizados pelos agentes, (vi) a implantação de programas para a liberação progressiva de gás natural (com a supervisão da ANP e dos órgão de defesa da concorrência) e (vii) simplificação e periodicidade dos processos de oferta de capacidade de transporte de gás natural. Grifei as palavras-chave para não restar dúvidas sobre os propósitos legítimos e necessários na consecução dos objetivos do NMG.

Para atingir tais objetivos, o MME se comprometeu a disponibilizar, no seu site, os prazos indicativos sobre: (i) interconexão de gasodutos de transporte; (ii) oferecimento de capacidade de transporte; (iii) troca de informação entre usuários e operadores de rede; (iv) elaboração de código de conduta e prática de acesso à infraestrutura; (v) processo de código de rede; (vi) informações sobre a constituição do conselho de usuários e (v) informações dos proprietários e operadores de infraestruturas essenciais. Previsibilidade, transparência e acesso às informações são essenciais para a estruturação do mercado de gás natural no Brasil.

Ademais, para além dos pontos que fazem referência ao transporte de gás natural, os temas que mais chamaram a atenção no artigo 8º da Resolução dizem respeito: (i) ao estímulo à participação ativa na comercialização de gás a curto prazo (para dar maior liquidez e transparência na formação de preços) e (ii) ao prazo de 180 dias para a conclusão das negociações entre os operadores de instalações e infraestruturas essenciais e o terceiro interessado no acesso – senão a ANP poderá atuar para verificar eventuais “condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”, devendo deliberar em 90 dias sobre o caso. Espera-se que, ao se estabelecer prazos, o mercado tenha mais previsibilidade, transparência e segurança nas negociações de acesso. Mais um reforço no papel (protagonista) do regulador federal – sem perder de vista que, havendo dúvida sobre as “condutas anticoncorrenciais” sempre será possível consultar os órgãos de defesa da concorrência.

Ainda sobre acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais, a Resolução CNPE reforça os seus princípios gerais (muitos deles já observados no case de acesso à UPGN Guamaré, por exemplo) merecendo destaque aquelas que ainda não foram implementados total ou parcialmente, quais sejam, os que estabelecem que (i) a remuneração para o acesso deva ser baseada em critérios objetivos e considerar um retorno justo e adequado do investimento, a partir de uma prestação de serviço eficiente; (ii) que toda recusa ao acesso deva ser devidamente justificada; e (iii) que os proprietários ou operadores devam dar transparência e disponibilizar dados e informações sobre as instalações de gás natural, contendo no mínimo: as remunerações dos serviços prestados; as capacidades disponíveis, contratadas e utilizadas; os atuais usuários das instalações; e as negociações em curso, especificando a data de início.

Outro importante tema tratado na Resolução CNPE nº 3/22 diz respeito às medidas estruturais e comportamentais que devem ser observadas pelos agentes que ocupem uma posição dominante no setor – as quais vão desde a alienação total das ações nas empresas de transporte e distribuição até venda de gás em leilões.

O CNPE também ratificou a importância da harmonização das legislações estaduais, ao indicar as medidas que esperam ser tomadas pelos estados, inclusive via aditivo contratual, com as suas concessionárias distribuidoras. Recomendou, também, a articulação do MME, ANP e EPE para treinamento e capacitação das agências reguladoras estaduais. Todos, pontos fundamentais – e ainda pendente em vários estados – para o sucesso do NMG!

Por fim, sobre as condições de concorrência no mercado de gás, o CNPE recomendou a elaboração de um diagnóstico conjunto entre ANP, MME, ME e CADE, em seis meses, o que é de extrema importância para a tomada de decisões estratégicas no sentido de assegurar a desconcentração da oferta do gás natural. Faço menção aos integrantes do Fórum do Gás – em especial à Juliana Rodrigues, especialista em energia da ABRACE – que sempre defenderam diretrizes de transição bem semelhantes às apresentadas pelo CNPE.

Vamos em frente nos caminhos indicados pelo CNPE.


[1] Art. 6º Fica estabelecido o período de transição para o novo desenho de mercado de gás natural até o término do processo de fusão de áreas de mercado de capacidade do sistema de transporte.

Existe um nível ótimo para a integração vertical na saúde?

Sandro Leal Alves

A integração vertical, ou verticalização como é mais conhecida no mercado de saúde, se refere ao processo que que há a unificação produtiva de partes da cadeia que antes eram separadas. Quando uma operadora de plano de assistência à saúde adquire um hospital, ou vice-versa, há uma integração vertical pois o plano de saúde e o hospital passam a operar sob uma gestão única.  O mesmo ocorre dentro do hospital quando este é responsável, por exemplo, pelo funcionamento dos serviços de gastroenterologia.[1]

Esse processo de integração visa um melhor alinhamento de incentivos entre os agentes econômicos, reduzindo custos de transação e ineficiências decorrentes de uma gestão com objetivos eventualmente conflitantes e separados. Essa não é, portanto, uma peculiaridade da saúde. Ao contrário, a economia industrial é cheia de exemplos em que a verticalização resulta em economias para as partes e maior eficiência econômica. Já o ecossistema da saúde, com crescente uso de informações e transações digitais, atualmente é muito mais próximo ao funcionamento de redes integradas do que a tradicional visão de etapas subsequentes das cadeias produtivas industriais.

A visão mais tradicional da análise antitruste se baseia no argumento de que há um nível de concentração que para além do qual, os custos econômicos superam os benefícios. Diversos índices de concentração (HHI, C4, etc.) ajudam a identificar os mercados relevantes que merecem um maior grau de preocupação das autoridades da concorrência.  Não é objetivo desse artigo adentrar este campo já muito desenvolvido na literatura. [2]

Mas e na integração vertical? E, mais ainda, na área da saúde, haveria um indicador capaz de sinalizar ou antecipar algum potencial dano à concorrência? Sabemos que os tradicionais índices de concentração são muito úteis para movimentos horizontais, mas estes não se aplicam diretamente aos movimentos verticais. [3]

A literatura disponível ao conhecimento deste autor não indica um consenso se os efeitos predominantes de uma integração entre empresas que atuam em mercados complementares são ganhos de eficiência ou anticompetitivos. Sabemos que os ganhos de eficiência podem vir de redução dos custos de transação, melhora na capacidade de monitoramento dos elos da cadeia produtiva e melhor coordenação do cuidado. Já em relação aos efeitos anticompetitivos, o fechamento de mercado para a entrada de concorrentes talvez seja o mais danoso.[4]

No Brasil, e em especial na saúde privada suplementar, o movimento de concentração vertical foi acelerado após investimentos de instituições financeiras estrangeiras em toda cadeia de saúde suplementar, que só foram possíveis após a Lei n. 9.656/98 para a recepção de capital estrangeiro em operadoras assim como pela Lei n. 13.097/15, que ampliou esta possibilidade às empresas de assistência à saúde como clínicas, laboratórios e hospitais. [5]

A própria concorrência, a regulação da ANS com requerimentos de entrada e capital, dentre outros, e a escalada dos custos assistenciais impuseram aos agentes econômicos a necessidade de reformatar seus modelos de negócio abrindo espaço para as fusões, aquisições e integrações verticais. Não podemos esquecer que o modelo de remuneração Fee-For-Service (FFS), que paga de acordo com o volume de procedimentos ofertados, contribuiu para uma taxa de crescimento de custos acima do sustentável, nem sempre privilegiando a melhoria da assistência aos pacientes. O mesmo efeito pode ser atribuído ao histórico processo de incorporação de tecnologias na saúde suplementar, sem avaliações técnicas de custo-efetividade como os bons manuais de Avaliação de Tecnologias em Saúde recomendam. Isso tudo, aliada à fragmentação do cuidado assistencial e à excessiva judicialização, contribui para a inovação dos modelos de negócios.

Na saúde suplementar, a obtenção de economias de escala é fundamental para dar maior segurabilidade aos riscos e custos assistenciais crescentes. A integração vertical, seja ela real ou virtual, confere às operadoras a possibilidade de gestão desses riscos com estratégias de coordenação de cuidados assistenciais e de saúde populacional, sem falar na necessidade crescente de integração de dados para melhorar a assistência prestada e desenhar soluções mais focalizadas para grupos de riscos específicos.

A integração com coordenação também pode permitir um melhor resultado assistencial ao melhorar a comunicação entre os agentes, padronizar procedimentos e reduzir redundâncias. No fim do dia, o consumidor estará mais bem atendido. Esse seria o desenho ótimo de uma integração vertical, cabendo às autoridades o monitoramento desse movimento com vistas a preservar os benefícios econômicos que a integração pode trazer. Na ausência de falhas de mercado e infrações à legislação de defesa da concorrência, o mercado encontra o caminho para levar o melhor resultado assistencial aos consumidores de planos.

Nesse sentido, a verticalização é um processo, e não um fim em si mesma, que ajuda a lidar com o desafio do financiamento. Isto porque as despesas assistenciais, representadas na saúde suplementar pela VCMH (variação dos custos médico-hospitalares) crescem em velocidade superior ao crescimento das rendas, salários, inflação ao consumidor e diversos outros indicadores econômicos.

Sob o ponto de vista da defesa da concorrência, a análise das eficiências dinâmicas que geralmente procuram observar efeitos da operação sobre preços e quantidades deve olhar cada vez mais para indicadores de qualidade assistencial, não desprezando evidentemente os tradicionais indicadores de solvência, muito importantes em um mercado que lida com riscos futuros, eventos incertos e com a poupança popular.

Para finalizar, pouco importa se a verticalização é real, mediante a aquisição de ativos, ou virtual, mediante acordos e contratos. O que realmente interessa é o resultado na última linha do balanço assistencial, ou seja, a entrega de valor em saúde para as pessoas.


[1]  Song, L., Soroush, S., Saghafian, M., Newhouse.J., Landrum, M., Hsu, J. The Impact of Vertical Integration on Physician Behavior and Healthcare Delivery: Evidence from Gastroenterology Practices Faculty Research Working Paper Series. September 2020

[2] Uma boa discussão sobre a relação entre índices de concentração, mercados relevantes geográficos e preços na saúde suplementar pode ser encontrada em Lima, T (2021). Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar. Documento de Trabalho 04. Departamento de Estudos Econômicos do CADE.

[3] Alguns economistas utilizam o índice de Gans ou HHI vertical (VHHI) para mensurar a verticalização. O VHHI é dado pelo somatório do produto da participação da firma a jusante com o máximo entre essa mesma participação e a da firma a montante. Sendo si a participação da firma a jusante e σi a participação da firma a montante, tem-se que: VHHI = .  Cabe o registro de que a definição dos mercados relevantes e, principalmente, na dimensão do produto, condição necessária para cálculo do referido indicador, é tarefa de enorme complexidade devido às múltiplas funções exercidas pelo hospital em seus diversos serviços assistenciais.

[4] Gaynor M (2014) Competition policy in health care markets: Navigating the enforcement and policy maze. Health A↵airs 33(6):1088–1093.

[5] Não nos esqueçamos que a verticalização é um processo antigo. As medicinas de grupo, por exemplo, já nasceram verticalizadas, assim como as filantrópicas e as próprias Unimeds. Faz parte do DNA organizacional dessas entidades a operação conjunta do plano e da assistência.