Regulação econômica

Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos

Sandro Leal Alves[*]

Uncertainty must be taken in a sense radically distinct from the familiar notion of Risk,  from which it has never been properly separated…. The essential fact is that ‘risk’ means in some cases a quantity susceptible of measurement, while at other times it is something distinctly not of this character; and there are far-reaching and crucial differences in the bearings of the phenomena depending on which of the two is really present and operating…. It will appear that a measurable uncertainty, or ‘risk’ proper, as we shall use the term, is so far different from an unmeasurable one that it is not in effect an uncertainty at all.” Frank Knight (Risk Uncertainty and Profit 1921 edition)

No momento em que escrevo este artigo, o Ministro Luis Roberto Barroso acaba de expedir decisão convocando audiência pública em setembro de 2022 para debater a taxatividade do rol de procedimentos da ANS, fruto de ADI recorrendo da decisão do STJ. Na própria decisão do Ministro Barroso, esclarece que “A matéria extrapola os limites do estritamente jurídico e exige conhecimento interdisciplinar apto a desvelar questões técnicas, médico-científicas, atuariais e econômicas relativas à definição da abrangência da cobertura dos planos de saúde, à previsibilidade de novos tratamentos, ao impacto financeiro de condenações judiciais ao fornecimento de terapias não incorporadas e ao processo de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.”

No dia 8/6, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Contudo, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

Neste artigo, trago uma perspectiva econômica e atuarial com foco na precificação dos planos de saúde, atividade precípua dos atuários, registrados no Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) que devem elaborar Nota Técnica Atuarial (NTA) e submeter à aprovação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Sem a aprovação da NTA, a operadora não pode comercializar seus produtos. Antes de abordar a precificação propriamente dita, é importante retornar às bases técnicas do produto.

  1. Fundamentos

O funcionamento da saúde suplementar é, sob vários aspectos, similar ao setor de seguros. Logo, é importante conhecer algumas definições aplicadas em ambos os mercados para aceitação e precificação de planos ou seguros.  O seguro é um mecanismo de transferência de risco de uma pessoa ou empresa para uma seguradora, ou operadora, que assumirá esse risco. Pode-se dizer que a matéria-prima da indústria de seguros é o risco.  Nas operações de seguro, risco é a possibilidade de ocorrência de um evento aleatório que cause danos de ordem material, pessoal ou ainda de responsabilidades. Ele é assumido pela seguradora, que se obriga a indenizar a importância segurada na ocorrência do risco coberto, mediante o pagamento do prêmio (custo do seguro) do seguro realizado. O risco é um evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e contra o qual é feito o seguro. Risco é expectativa de sinistro. Sob o ponto de vista legal, o risco constitui o objeto do seguro, pois o segurado transfere à seguradora, por meio do seguro, o risco e não o bem.

Mas saúde é diferente!

Os serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde são diferentes, lidam com um bem incomensurável, que é a vida, e tem características bem específicas e uma regulação complexa. As especificidades do nosso setor foram identificadas desde a década de 60 com o trabalho seminal do economista Keneth Arrow, laureado pelo prêmio Nobel em economia.

A natureza da demanda por saúde é irregular e há prevalência de ampla incerteza em relação à quando e ao que utilizar nos momentos de adoecimento. Nunca saberemos quando necessitaremos de uma internação ou de outro serviço de saúde. As relações no mercado são caracterizadas por problemas derivados da assimetria de informação entre médico e paciente, médico e operadora, cliente e operadora e assim por diante. Não à toa, esse é um setor extremamente regulado tanto no Brasil como no mundo. Como o acesso aos serviços públicos universais nem sempre é efetivo, os planos de saúde emergem como uma importante fonte de acesso tanto das pessoas quanto das empresas que os contratam para seus colaboradores. Em resumo:

A saúde não é um bem transferível de um indivíduo para o outro. É um bem meritório e, em geral, é necessária a certificação de um profissional especializado para indicar o produto ou serviço a ser consumido em cada caso específico assim como atestar sua qualidade. Dessa forma, na ausência de uma certificação pública reconhecida pelos consumidores como confiável, a reputação do provedor do bem ou serviço passa a ser relevante tanto para as decisões de consumo, por parte dos pacientes, quanto para a prescrição médica dos profissionais de saúde.

O consumo de produtos e serviços de saúde se caracteriza pela dissociação entre o consumidor final e o agente responsável pela indicação terapêutica. Quem escolhe o tratamento não é quem paga, diferentemente, dos outros setores onde você escolhe o que deseja consumir.   

Alguns produtos e equipamentos do setor saúde se caracterizam por elevados gastos com pesquisa e desenvolvimento de novos processos e, sobretudo, de novos produtos. O acesso a determinados serviços médicos, em geral, e medicamentos, em particular, é considerado em diversos países como um direito de cidadania, resultando na classificação desses bens e serviços como meritórios, isto é, bens e serviços a que todos o cidadão deve ter acesso, sendo responsabilidade da política pública a garantia de acesso universal.

O valor do seguro decorre da imprevisibilidade dos gastos com saúde. As pessoas em geral optam pela segurança de ter acesso aos tratamentos contratados ao invés de carregarem consigo esses riscos. Em termos microeconômicos, sabemos que a demanda por seguro ocorre em um ambiente de escolha sob incerteza e agentes avessos a risco preferem arcar com o custo certo de pagar uma mensalidade a ter que incorrer na incerteza de precisar desembolsar elevadas somas financeiras quando ocorre a eventualidade de uma doença.

  • Mutualismo

Mutualismo é uma das principais características do seguro. Entende-se por mutualismo a reunião de um grupo de pessoas com interesses seguráveis comuns, que concorrem para a formação de uma massa estatística, com a finalidade de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas do grupo ou de parte do grupo. Desse modo, o impacto financeiro de um evento, que poderia ser fatal ou catastrófico para um indivíduo ou uma empresa, é distribuído entre os integrantes de um grupo maior por custo relativamente baixo.

No caso da saúde suplementar, as operadoras reúnem todas as mensalidades (ou prêmios no caso do seguro) que recebem em um fundo mutual usado para pagar as despesas com os eventos aleatórios tais como uma internação hospitalar. Dificilmente, esses eventos de alto custo, como internações, são suportados individualmente. Mas coletivamente, pela aquisição de um plano, é possível ter acesso a essas coberturas por meio do mecanismo de solidariedade entre os contratantes que o plano possibilita. Cerca de ¼ da população brasileira é coberta por algum tipo de plano de saúde. Segundo dados da ANS, em dezembro de 2019 havia 47 milhões de beneficiários em planos privados de assistência médica com ou sem odontologia e 26 milhões de beneficiários em planos privados exclusivamente odontológicos. Esse contingente expressivo da população atendida pelo setor privado acessa o setor, principalmente, mediante os contratos coletivos. Em períodos em que a empregabilidade vai bem, a saúde suplementar tende a acompanhar. O inverso também é verdadeiro. Quando a economia e o emprego formal desaceleram, a capacidade de aquisição de planos de saúde também é afetada.

Segundo Maia (2018), o risco, no âmbito da saúde, é definido como a consequência financeira de uma alteração no estado de saúde do indivíduo. Tais alterações podem resultar em despesas com bens e serviços de saúde para recuperação ou tratamento da saúde, despesas com cuidados de reabilitação e até mesmo perda de renda em função da incapacidade laboral.  Na saúde, o que se segura é o acesso aos tratamentos assistenciais decorrentes de alterações no estado de saúde, seja este acesso realizado pela rede própria da operadora, pela rede credenciada ou pela livre escolha do segurado mediante o reembolso, conforme o contrato.

  • Precificação

A precificação deve incluir o custo ou prêmio do risco que se está segurando além de incluir despesas administrativas e de comercialização. Falaremos de algumas regras para essa precificação. Para organizar toda essa operação, o plano de saúde deve contratar e remunerar funcionários das mais variadas especialidades como gestores, médicos, dentistas, atuários, estatísticos, advogados, administradores, economistas, dentre outros. Também deve remunerar corretores e vendedores que comercializam seus produtos.  O preço deve incorporar uma margem de segurança estatística calculada a partir de metodologia adequada para garantir, com a maior probabilidade possível, que as ocorrências estarão cobertas no preço, de tal forma que a operadora siga solvente. Adicionalmente, como toda empresa privada, a operadora deve incorporar uma margem de lucros esperada. A arte é precificar o produto para ser ao mesmo tempo competitivo e economicamente sustentável.  Veja a fórmula abaixo:

  • Preço do Seguro = Custo do Risco + Margem de Carregamentos de Despesas + Margem de Segurança Estatística + Margem de Lucro

As operadoras têm a função de organizar o mútuo, que envolve a avaliação do risco, a definição do preço do plano, a cobrança e gestão financeira dos recursos, a organização da rede de assistência à saúde, pagamento aos prestadores e a gestão de saúde de seus beneficiários.

Ressalta-se importante diferença da saúde suplementar para outros setores econômicos é que ao precificar um produto, a operadora não conhece os seus custos a priori, pois estes são aleatórios e estimados pelas técnicas da probabilidade. Uma indústria, por exemplo, precifica seus produtos após conhecer os seus custos de produção. Isso significa, na prática, que a operadora recebe as mensalidades, antecipadamente, para a cobertura de riscos no futuro.

Já em uma indústria tradicional, a firma recebe as receitas e paga os custos que já incorreram. Na saúde, esse fluxo financeiro é invertido. Daí a importância de um bom processo de precificação e contratação para que as receitas sejam suficientes para cobrirem os custos que ainda irão ocorrer.  Errar na precificação pode levar uma operadora à falência!

O processo de judicialização que se agrava no Brasil faz com que, muitas vezes, as operadoras arquem com custos de procedimentos que não foram previstos nem precificados, ou por não estarem no contrato ou por não constarem no rol de procedimentos da ANS. Quando isso ocorre, toda a coletividade é chamada a contribuir com recursos adicionais em forma de maiores mensalidades. Logo, é necessário ter previsibilidade nos custos para que os planos possam ser oferecidos.

Devemos ressaltar que existem regras para a precificação segundo as faixas etárias definidas pela legislação. Basicamente, são três momentos: antes da lei 9.656/98, entre a lei 9.656/98 e o Estatuto do Idoso, e após o Estatuto do Idoso.  É importante destacar que qualquer utilização feita que não tenha sido contratada, fora do contrato ou fora do rol, torna a previsibilidade e precificação uma tarefa absolutamente complexa, senão impossível.

A operadora consegue precificar os procedimentos que estão cobertos no contrato e no rol de procedimentos da ANS. Casos que extrapolam tais limites não são considerados no momento da precificação. Logo, se isso ocorre por algum motivo, como decisões judiciais ou um rol de procedimentos aberto, ou exemplificativo, esse custo é transferido para os demais participantes da mutualidade que devem incorrer em maiores despesas para assegurar o equilíbrio econômico do contrato. Em termos econômicos, trata-se de um caso de externalidade negativa, pois a ação de um indivíduo impõe custos sobre terceiros.  A precificação pode ser feita segundo os seguintes métodos:

  • Community rating

Neste caso, o mutualismo se dá entre todos os indivíduos. O preço é único para toda a população e é baseado no custo médio desta mesma população. O problema com esse método é que ele funciona quando o seguro é obrigatório. Para seguros voluntários, como no caso do plano de saúde individual, esse método estimula a anti-seleção de riscos, ou seja, como é uma média, os indivíduos que se auto-avaliam como sendo de riscos superiores ao preço tendem a aderir ao contrato. Analogamente, os indivíduos de baixo risco, não tem interesse em aderir e preferem carregar o próprio risco.

  • Experience rating

Nessa metodologia, o preço baseado no custo per capita por idade. Por exemplo, o preço seria estimado para cada idade. Essa metodologia implica no mutualismo entre os indivíduos que possuem a mesma idade, mas será prejudicial para os indivíduos mais idosos. Para estes, o seguro ficaria inviável. O legislador brasileiro, seguindo ampla referência internacional, entendeu que deve haver solidariedade entre grupos de risco formado por faixas etárias. E assim, chega-se ao terceiro método, explicado a seguir.

  • Community rating modificado

Neste caso, o preço é baseado no custo médio por faixa etária que atualmente é segmentada de 5 em 5 anos conforme mostrado a seguir. O risco é, portanto, solidarizado entre os indivíduos que estão em uma mesma faixa etária.

O legislador brasileiro estabeleceu a divisão solidária do risco entre 7 (sete) faixas etárias na Lei 9.656/1998. Posteriormente, com o advento do estatuto do idoso, foi proibido o aumento de mensalidades após os 60 anos e a ANS revisitou as suas faixas etárias. São 10 atualmente. Adicionalmente, o legislador previu o pacto intergeracional, ou seja, os mais jovens devem pagar um pouco mais para que os mais idosos possam pagar um pouco menos do que o custo do seu risco. O pacto intergeracional é garantido pela regra que limita o preço da última faixa etária como sendo no máximo 6 vezes o preço da primeira. E a variação da 7ª a 10ª faixa etária deve ser menor ou igual ao valor da 1ª a 7ª faixa etária. São as condições de contorno para manutenção da solidariedade intergeracional.

  • Precificação sujeita a incertezas

A principal consequência de um rol exemplificativo para a precificação é a impossibilidade de cálculo do preço com base em dados.  Vejamos a figura abaixo para tentar compreender esse ponto. Lembrando que o cálculo do preço deve ser feito por agrupamentos (clusters), segundo os grandes grupos de eventos: Consultas médicas – diversas especialidades, exames complementares, terapias, outros atendimentos ambulatoriais, internações hospitalares e demais custos assistenciais. Cada grupo desses é desdobrado em diversos subgrupos de coberturas e os procedimentos que são estabelecidos no rol da ANS servem para que as operadoras saibam previamente quais os riscos que está assumindo. A partir deste momento, irão avaliar a disponibilidade de rede assistencial, avaliar os preços praticados e incluir no cálculo do custo assistencial. Portanto, o quadrado superior da figura descreve os procedimentos cobertos pelo rol da ANS.

Para cada um dos 3379 procedimentos do rol, a operadora deve obter dados de frequência de utilização e o preço para se chegar ao custo médio (ou severidade média). Ressalta-se que pela legislação atualmente em vigor, os procedimentos devem ser submetidos à Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) a fim de verificar as evidências científicas que suportam a inclusão, sua eficácia e seu custo-efetividade. Não nos esqueçamos da fosfoetanolamina, tida como cura do câncer em um período no Brasil, mas que posteriormente demonstrou-se absolutamente ineficaz. Quantos recursos públicos e privados foram desperdiçados? Difícil prever. Em todo mundo desenvolvido, o processo de ATS é um requerimento necessário para que alguma nova tecnologia seja incorporada. No Brasil, o setor público faz a ATS na CONITEC. Na saúde suplementar, essa avaliação está a cargo da ANS.

As operadoras de planos de saúde são especializadas em precificar o risco atuarial se valendo de ciência para chegar nas melhores estimativas possíveis, dados os dados disponíveis. No entanto, ao se falar em rol exemplificativo, ou procedimentos extra-rol, saímos do campo do risco e adentramos no terreno da incerteza. Não é possível fazer previsões sobre quais procedimentos vão ser incorporados pois estes são frutos do desenvolvimento tecnológico da indústria de medicamentos, materiais, equipamentos etc. A incorporação automática no rol, além de inviabilizar o processo de precificação, também coloca sob risco a saúde da população tendo em vista que não passou pelo rigor científico do crivo da ATS.

É possível carregar na margem de segurança para tentar alcançar. Não obstante, quanto maior for a margem, maior será o preço. No limite, a operadora pode optar por não oferecer o produto pois não conseguirá fazer uma gestão adequada do risco. Cabe lembrar que é objetivo da precificação que o valor presente das receitas seja suficiente para pagar todos os compromissos assumidos. Se estes compromissos mudam ao longo do tempo, e o preço se mantém constante, haverá déficit na carteira. A ocorrência de déficit deve ser provisionada pois pelas regras prudenciais, baseadas em risco, a subscrição se tornará excessivamente elevada. Evidentemente, déficits irão demandar maior volume de capital das operadoras, reduzindo a rentabilidade do negócio e a atratividade para a entrada de investidores potenciais.

Sair do terreno do risco e adentrar o campo da incerteza não parece ser uma política pública sustentável. Alguns dirão que faz parte do risco do negócio. Mas se queremos mais eficiência da regulação a ponto de entrar para a OECD, esse pode ser um elemento de muita vulnerabilidade regulatória. Afinal, risco regulatório é até possível se precificar, mas incerteza não.

REFERÊNCIAS

ALVES, Sandro Leal. Fundamentos, regulação e desafios da saúde suplementar no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2015

ARROW, Keneth. Uncertainty and the Welfare Economics of Medical Care. In: The American Economic Review, v. LIII, n. 5, dec., 1963

CARLINI, Angélica. Judicialização da Saúde Pública e Privada. Ed. Livraria do Advogado, 2014.

CECHIN, José; ALVES, Sandro Leal; ALMEIDA, Álvaro. Dinâmica dos Custos, Formação de Preços e Controle de Reajustes dos Planos de Saúde no Brasil: a Urgência de se Revisar a Regulação. R. Bras. Risco e Seg., Rio de Janeiro, v. 12, n. 21, p. 133-156, abr.-set., 2016.

FERREIRA, Paulo Pereira. Modelos de Precificação e Ruína para Seguros de Curto Prazo.1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2002.

FERREIRA, Paulo Pereira. Desafio do Preço Justo no Seguro Saúde. Revista Cadernos de Seguro. 195. 2018

FLÁVIO, AMANDA e LEAL, SANDRO, Sandro: Saúde suplementar e o Brasil: sobre escassez, escolhas, rol de procedimentos e almoço grátis. Coluna Webadvocacy. Fev.2022

LIMA; William. Manual de solvência: aspectos principais. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

MAIA; A.C. Gestão de Risco em Planos de Saúde. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

NAZARENO, JOSÉ M. Jr. Precificação dos planos de saúde: apresentando alguns aspectos técnicos envolvidos. https://www.linkedin.com/pulse/precifica%C3%A7%C3%A3o-dos-planos-de-sa%C3%BAde-apresentando-alguns-maciel-junior/?originalSubdomain=pt

On Risk Classification. A Public Policy Monograph.American Academy of Actuaries Risk Classification Work Group. November 2011

RESOLUÇÃO IBA Nº 02/2019. Dispõe sobre os princípios gerais que devem nortear os trabalhos de formação e revisão de preços no âmbito da saúde suplementar no Brasil, em consonância com os Princípios Básicos Atuariais definidos pelo CPA nº 001 – IBA.


[*] Economista. Superintendente de Estudos e Projetos Especiais da FenaSaúde. Este artigo expressa a opinião do autor.

Percepções sobre a ampliação de dispositivos do R-Ciber aos agentes PPP

Andrey Vilas Boas de Freitas

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti

Alessandro Guimarães Pereira

Coerente à Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (E-Ciber), regida pelo Decreto nº 10.222/2020, a Anatel editou a Resolução Normativa nº 740/2020, que contém o R-Ciber, regulamento que estabelece condutas e procedimentos para promoção da segurança nas redes e serviços de telecomunicações, incluindo a segurança cibernética e a proteção das infraestruturas críticas de telecomunicações.

Alguns dispositivos do R-Ciber aplicam-se a todas as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo, independentemente de seu porte, havendo, todavia, artigos que não alcançam os Prestadores de Pequeno Porte (PPP). São os artigos 6º ao 11º, os quais, resumidamente, definem as seguintes obrigações às prestadoras:

Art. 6º: elaborar, implementar e manter uma Política de Segurança Cibernética;

Art. 7º: utilizar produtos e equipamentos de telecomunicações provenientes de fornecedores que possuam política de segurança cibernética compatíveis com o R-Ciber;

Art. 8º: alterar a configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários;

Art. 9: notificar a Agência e comunicar as demais prestadoras e aos usuários incidentes relevantes que afetem de maneira substancial a segurança das redes de telecomunicações e dos dados dos usuários;

Art. 10: realizar ciclos de avaliação de vulnerabilidades relacionadas à Segurança Cibernética;

Art. 11: enviar à Anatel informações sobre suas Infraestruturas Críticas de Telecomunicações.

Por meio da recente Consulta Pública nº 63/2021, a Anatel propôs Instrução Normativa visando a ampliar a incidência destes artigos aos PPP e, assim, alcançar empresas que, independentemente de seu porte, detenham infraestruturas críticas de telecomunicações e incrementar o enforcement do Ato Anatel nº 77/2020, o qual define requisitos de segurança cibernética para equipamentos para telecomunicações e que possui recomendações não mandatórias de segurança cibernética.

A ampliação proposta baseia-se na premissa de que as infraestruturas, sistemas e equipamentos utilizados tanto por grandes empresas como pelos PPP são similares e amplamente conectados, já que incidentes cibernéticos ocasionados por quaisquer agentes podem resultar em danos sistêmicos.

A ampliação do alcance do R-Ciber aos PPP ocorrerá, todavia, de forma distinta, a depender dos tipos de infraestrutura que detém e dos mercados em que atuam. Os PPP que possuem infraestruturas críticas, como redes próprias para SMP, de suporte para transporte de tráfego interestadual e cabos submarinos com destino internacional[1] deverão cumprir as exigências dos artigos 6º a 11, igualando-se, portanto, às grandes empresas do setor, detentoras de Poder de Mercado Significativo (PMS).

Já as empresas que, dentre os PPP, são de menor porte, como os típicos ISP[2] que operam localmente e que não possuem infraestruturas críticas, deverão submeter-se apenas ao artigo 8º do R-Ciber, o qual exige a alteração na configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários, como os modens de acesso à banda larga e as antenas wifi. Por tal exigência, estes pequenos agentes deverão alterar as configurações de fábrica[3] dos equipamentos antes de entregá-los aos usuários, ampliando os códigos e protocolos de segurança neles inseridos. Igualmente, os aparelhos já instalados aos seus clientes também deverão ser atualizados.

Resta claro que esta exigência tem o condão de reduzir inúmeros incidentes cibernéticos com potencial de danos sistêmicos e ao usuário final, sendo este último um alvo constante de invasões por crackers[4] às suas informações e aplicações pessoais e financeiras, resultando em golpes e ampliando a desconfiança quanto à segurança das redes em geral. A própria Anatel bem explica:

nestes equipamentos é comum que a configuração realizada pelos fabricantes, ou até mesmo pelo instalador, utilize credenciais (usuário e senha) padrão conhecidas ou facilmente identificáveis por atacantes. Pelo domínio ou acesso pelo atacante a estes equipamentos é possível realizar ataques à toda a rede de suporte de serviços, tais como Distributed Denial of Service (DDoS) ou alteração do cache de Domain Name System (DNS), possibilitando o redirecionamento de usuários para sites falsos onde são realizados o phishing de senhas de acesso ou a coleta de informações relevantes dos usuários.”[5]

Contudo, não se pode esquecer de que os PPP de menor porte atendem a franjas do mercado, principalmente em banda larga fixa por fibra ótica, em áreas periféricas de grandes cidades e municípios menores. Sua competitividade é ditada por sua capilaridade e pelos seus menores custos operacionais. Assim, em tese, o aumento das exigências de segurança cibernética aos equipamentos que venha a instalar e àqueles já em operação pode significar um aumento de seus custos, à medida em que será necessário o emprego de adicional de mão de obra e o investimento em sistemas para reduzir vulnerabilidades dos equipamentos que ofertam em comodato.

Tal preocupação, todavia, deve ser ponderada à luz dos benefícios sistêmicos – inclusive econômicos – que estas melhorias de segurança tendem a gerar tanto no médio quanto no longo prazo. A redução de incidentes cibernéticos favorece modelos de competição mais equânimes e com menor margem a free riders, reduz os imprevistos operacionais das próprias empresas e estimula à inovação de produtos e serviços. Favorece também a ampliação da percepção, pelo consumidor, de que produtos e serviços ofertados por estes agentes menores e menos conhecidos podem ter qualidade e segurança compatíveis, ou mesmo superiores, aos grandes agentes do mercado.

Desta forma, a ampliação do R-Ciber aos PPP pode, ao fim, representar uma redução de custos de transação a todos os agentes, à medida que diminuem os incidentes de segurança cibernética, minorando a necessidade de atendimentos e resolução de incidentes causados graças a vulnerabilidades do tipo ‘senhas fracas’, ‘acessos não autorizados’ ou ‘ausência de credenciais’, os quais têm grande potencial de danos econômicos.

Assim, a ampliação regulamentar proposta na Consulta Pública, se corretamente dosada – permitindo-se inclusive um vacatio legis adequado à adaptação destes agentes – é oportuna. Fundamental, neste sentido, que a Anatel aprecie as contribuições trazidas por empresas e associações especializadas, as quais vêm sistematicamente enriquecendo os debates sobre o ambiente concorrencial em mercados de telecomunicações.

Como já vem sustentando a Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competividade do Ministério da Economia, são mercados que demandam ações regulatórias efetivas, mas discretas, permitindo o alcance de objetivos importantes sem ampliar desnecessariamente o seu ônus regulatório: a busca deste equilíbrio exige diálogo constante com múltiplos agentes e um olhar multidimensional sobre seus impactos, notadamente à segurança, sem relaxar no necessário estímulo à competitividade.


[1] Como ilustra o seguinte estudo: VICHI, L.P., PINTO, D.J.A., de SÁ, A.L.N. A defesa da infraestrutura de cabos submarinos: por uma interface entre a defesa cibernética e a segurança marítima no Brasil. 2020. In: Revista Escola de Guerra Naval. Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 326-346. maio/agosto. 2020. pp. 333-334.

[2] Internet Services Provider (“ISP”) ou Provedor de Serviços de Internet, é uma empresa que fornece acesso à internet a usuários que a contratam, podendo agregar outras soluções, como hospedagem de sites, armazenamento na nuvem, serviços de telefonia e pacotes de streaming

[3] Como bem o explica o Cyber Security Policy Guidebook, “these out-of-the box digital identities are called “generic IDs” because they do not belong to any one person. Often, generic IDs remain configured with the default password supplied by the technology vendor for the entire lifetime of the product. These Ids are well known to criminal elements and are often used to impersonate technology administrators.” In: BAYUK, J. L, Healey J., Rohmeyer P., Sachs M., Schmidt J. , Weiss J.. 2012. Cyber Security Policy Guidebook (1st. ed.). Wiley Publishing.

[4] Os crackers são indivíduos que praticam a quebra de segurança de softwares de forma ilegal, agindo de forma criminosa.

[5] ANATEL. Informe nº 200/2021/COGE/SCO (Doc. SEI Anatel nº 7040861)


Andrey Vilas Boas de Freitas. É Subsecretário de Advocacia da Concorrência na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti. É Coordenadora-Geral de Inovação, Indústria de Rede e Saúde na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Alessandro Guimarães Pereira. É Coordenador de Inovação e Telecomunicações na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

As Verdades e os Mitos da Marca e Qualidade no Mercado de Combustíveis Brasileiros

Rodrigo Zingales*

Quando vamos a um restaurante, não perguntamos ao garçom a marca do sal ou do açúcar consumido? No entanto, quando vamos ao supermercado costumamos pagar mais caro pelo sal e açúcar de marcas mais renomadas, como, por exemplo, o sal Cisne ou o açúcar União.

No mesmo sentido, usualmente há uma tendência maior dos consumidores de optarem por abastecer os veículos em um posto de bandeiras renomadas como Shell, Ipiranga ou BR, mesmo que para isso acabam pagando dez, vinte ou trinta centavos mais caro pelo litro de combustível, se comparado com os preços praticados por postos de marca própria (bandeira branca) ou de “marcas” menos conhecidas.

Qual a razão para termos esse comportamento?

Akerlof foi um dos primeiros a estudar e explicar esse comportamento dos consumidores em seu artigo “The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism[1], denominando-o de “seleção adversa”.

Resumidamente, segundo o autor, a seleção adversa ocorre em mercados onde existe grande “assimetria informacional” entre ofertantes e demandantes quanto à qualidade do bem comercializado e adquirido. Essa assimetria informacional é usualmente verificada em bens homogêneos e de experimentação, como são o açúcar, o sal, a gasolina, o etanol e o diesel, exatamente porque a qualidade desses bens somente é verificada após a sua aquisição e o seu consumo.

Note-se que em bens homogêneos, suas características físico-químicas tendem a ser as mesmas ou muito similares, a não ser que haja uma “desonestidade” por parte do ofertante, conforme destaca Akerlof, e que pode ser refletida, por exemplo, a partir da “adulteração” de suas características físico-químicas regulares.

Uma das soluções trazidas pelo autor para esse problema de ofertantes “desonestos” seria o investimento na reputação da marca do bem (“brand-name good[2]), pelos seus ofertantes “honestos”.

Por esta razão, o açúcar União, o sal Cisne e as distribuidoras BR, Ipiranga e Raízen / Shell investem montanhas de dinheiro na divulgação de suas marcas e sempre visando chamar a atenção dos consumidores para a “qualidade” de seus produtos.

No entanto, deve-se aqui indagar se realmente essas marcas ofertam produtos de melhor qualidade ou se sua reputação é apenas fruto de seu maior poder econômico para investir em propaganda “reputacional”?

No caso específico dos combustíveis, é um fato que praticamente desde a abertura do mercado brasileiro a distribuidoras e postos bandeira própria (ou bandeira branca), verificou-se uma forte tendência de os consumidores enxergarem esses postos com certa suspeita e optarem por adquirir combustíveis em postos de marcas mais bem estabelecidas reputacionalmente, como BR, Ipiranga ou Shell.

Segundo dados divulgados pela ANP no “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis, 2ª Edição, 2020”[3], percebemos, contudo, uma certa tendência de alteração desse hábito dos consumidores brasileiros.

Nesse contexto, vale citar, por exemplo, que segundo a ANP a participação conjunta das três principais distribuidoras do país (BR, Ipiranga e Raízen/Shell) na comercialização de gasolina C no mercado brasileiro, em 2014, correspondia a aproximadamente 68,67 da oferta total; já, em 2019, essa participação conjunta estaria em torno de 63,25%[4]. Ou seja, durante esse período, houve uma migração no consumo de combustíveis para redes de distribuidoras menores ou para postos bandeira própria superior a 5 pontos percentuais.

Este mesmo fenômeno também foi constatado no caso do etanol hidratado, onde a participação conjunta das três principais distribuidoras do país passou de 58,4%, em 2014, para 53,52%[5]; e, ainda, do óleo diesel, onde esta participação conjunta passou de 78,81%, em 2014, para 71,03%, em 2019[6].

Esta migração de demanda de combustíveis ofertados pelos postos bandeirados para aqueles de bandeira própria (ou de marcas menos conhecidas) pode ser explicada por duas razões principais cumulativas e que não possuem qualquer relação com a melhoria na qualidade dos combustíveis ofertados por esses últimos.

A primeira delas decorre da recessão econômica iniciada a partir de 2014 e que apenas se agravou com a Pandemia da COVID-19. Com efeito, esta recessão acarretou uma considerável perda de renda para a maioria da população brasileira, obrigando uma revisão considerável de seus gastos e consequentemente de suas preferências de consumo. Nesse contexto, parte dos consumidores passou a “experimentar” produtos mais baratos e que antes dessa recessão não se encontravam dentre aqueles de sua primeira opção. Os combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou de marcas menos conhecidas se enquadram nesse conceito de “produto mais barato”.

A segunda explicação, que se encontra diretamente relacionada à primeira, resume-se exatamente à elevação no nível de “experimentação” dos combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou bandeira de menor reputação. A partir dessa maior experimentação, os consumidores passaram a perceber que referidos postos, em sua maioria, comercializam combustíveis de qualidade igual àquela dos postos das principais bandeiras, porém com preços mais baixos. Ou seja, o mito de que haveria diferenciação na qualidade caiu ou passou a ser mitigado entre esses consumidores.  

De fato, a grande maioria dos consumidores desconhece que a Resolução ANP nº 807/20[7] classifica os diferentes tipos de combustíveis líquidos ofertados no país como: “comuns”, “aditivados” e “premium” e que os diferencia segundo o nível mínimo de octanagem ou a inclusão de aditivo em sua mistura[8].

Segundo esta resolução, a gasolina “comum” se diferencia daquela “premium“, em razão, principalmente, do nível mínimo de octanagem (“IAD” – Índice Antidetonante): comum 87; e premium 91[9]. Já, o que diferencia a gasolina “aditivada” da “comum” seria apenas a inclusão na primeira de um “aditivo”, cujo função seria auxiliar a limpeza do motor e de seus componentes, com o objetivo de garantir uma melhor eficiência funcional[10].

Assim, seguindo a lógica da regulação atualmente em vigor, não haveria distinção entre a gasolina comum comercializada por distribuidoras bandeiradas ou sem bandeira, de grande ou pequeno porte.

Nesse mercado, há ainda comentários no sentido de os combustíveis (gasolina A e diesel A), produzidos pelas refinarias da Petrobras e conhecidos como “combustíveis de bombeio”, serem de melhor qualidade do que aqueles produzidos por outras refinarias, petroquímicas ou importados.

Esta diferenciação de qualidade não se encontra especificada nas normas editadas pela ANP, razão pela qual não haveria razão para acreditar que esses comentários teriam algum fundo de verdade.

No entanto, se for tecnicamente confirmado que os combustíveis produzidos e ofertados pelas refinarias da Petrobras são de melhor qualidade, é indispensável que a ANP reveja imediatamente a sua regulação que trata da qualidade dos combustíveis para que esta diferenciação esteja corretamente contemplada, além de divulgar amplamente essa diferenciação a todos os atores desse mercado (distribuidoras, revendedores e consumidores).

Também é fundamental que seja alterada a regulamentação da ANP sobre as informações da origem dos combustíveis comercializados pelos postos, com o objetivo de constar nas bombas e placas, não mais o nome da distribuidora que forneceu o combustível, mas, sim, o nome do produtor ou do importador que vendeu a gasolina A ou o diesel A, utilizado pela distribuidora na mistura que gerou a gasolina C ou o diesel B comercializado aos consumidores finais pelo posto revendedor. Ressalte-se, nesse sentido, que no caso da gasolina C e do diesel B comuns, a função principal da distribuidora é a realização da mistura de gasolina A com o etanol anidro; e do diesel A com o biodiesel. No caso do etanol hidratado, a distribuidora sequer exerce essa atividade, sendo mera intermediária entre produtor e posto revendedor. 

Outra informação relevante que merece ser destacada nesse artigo e amplamente divulgada aos consumidores, refere-se ao fato de as três principais distribuidoras do país também serem as principais ofertantes de gasolina, diesel e etanol comum para postos bandeira própria (bandeira branca), os quais muitas vezes adquirem esses combustíveis junto a essas distribuidoras por preços mais baixos do que aqueles pagos pelos postos que ostentam suas marcas, conforme dados disponibilizados pela ANP até junho de 2020.

A principal razão para as três principais distribuidoras bandeiradas do país serem as principais fornecedoras dos postos bandeira própria (ou bandeira branca) está na ausência de uma concorrência efetiva no elo da distribuição, na maioria dos estados da Federação.

Esta ausência de concorrência tem relação direta com o fato de as três principais distribuidoras bandeiradas do país controlarem e compartilharem entre si a maioria das bases primárias e secundárias de distribuição instaladas; e, ainda, em decorrência da política de cotas de fornecimento de gasolina A e diesel A, definida pela Petrobras e baseada nas vendas pretéritas de cada distribuidora. A partir dessa política, a Petrobras aloca cotas máximas a cada distribuidora, definindo multas elevadas caso a distribuidora não cumpra com o volume de combustível solicitado, seja demandando volumes inferiores ou superiores àqueles previamente solicitados e definidos na cota determinada. Este modelo de cotas acaba gerando desincentivos para distribuidoras menores elevarem sua oferta de combustíveis no mercado doméstico e, consequentemente, reduzirem drasticamente seus preços para ganhar mercado. Afinal, quase 50% dos postos instalados no país estão sob contratos de embandeiramento e nos 50% há forte concorrência das principais distribuidoras bandeiradas, conforme explicamos a seguir.

Em relação à cobrança de preços mais baixos a postos bandeira própria (bandeira branca), do que aos postos contratualmente vinculados às principais distribuidoras bandeiradas do país, a justificativa econômica está exatamente nesses contratos e em seu efeito prático de monopólio sobre a oferta e demanda de combustível junto a esses postos.

Ou seja, ao celebrar um contrato de “embandeiramento” com uma distribuidora, o revendedor se compromete também a comercializar apenas combustíveis fornecidos por essa distribuidora. Assim, como a maioria desses contratos não traz um preço definido ou definível e essas distribuidoras bandeiradas não têm qualquer obrigação legal ou infralegal de divulgar sua política de preços e descontos – diferentemente do que ocorre com a Petrobras e os postos revendedores –, acabam detendo o monopólio sobre esses postos e o direito de cobrarem destes os preços que bem entenderem.

Já, no caso dos postos bandeira própria (bandeira branca), esse vínculo contratual inexiste. Isso significa que, em relação a esses postos, as distribuidoras bandeiradas concorrem entre si – e com outras distribuidoras bandeiradas ou não de menor porte, quando presentes no mercado local / regional – pelo fornecimento de combustíveis, sendo, portanto, obrigadas a cobrar preços mais baixos para tê-los como clientes.

Reitera-se que o combustível comum ofertado pelas distribuidoras, bandeiradas ou não, de grande ou pequeno porte, aos postos revendedores, bandeirados ou não, é o mesmo segundo a Resolução ANP nº 807/20. Assim, não haveria razão, do ponto de vista das características físico-químicas e de qualidade para as distribuidoras bandeiradas cobrarem cinco, dez, quinze ou vinte centavos mais caro pelo litro de combustível adquirido por um posto bandeirado, só porque este ostenta a sua marca. O mesmo vale em relação aos consumidores quando optam por abastecer em postos bandeirados.

Esta conclusão não é, contudo, válida para o caso dos combustíveis “aditivados” e “premium”, os quais possuem uma certa tecnologia desenvolvida ou adquirida pelas distribuidoras que os “produzem” ou comercializam. Tanto isso é verdade que, nos Estados Unidos da América, a exclusividade de fornecimento de combustíveis somente é aplicada para os combustíveis “premium” e “aditivados”, sendo aqueles “comuns” considerados como verdadeira commodity, podendo o proprietário do posto, bandeirado ou não, adquiri-lo de qualquer refinaria – ou distribuidora –, independentemente da marca que ostenta[11]. Este poderia ser um bom exemplo a ser seguido pela ANP, em sua regulamentação, com o objetivo de baratear os preços dos combustíveis no país e incentivar o desenvolvimento, por refinarias, petroquímicas e distribuidoras, de combustíveis “premium” ou “aditivados” cuja qualidade tenderá a ser superior àquelas da gasolina e do diesel comuns, dependendo das características do veículo e recomendações de seu fabricante.


[1] Disponível em <http://wwwdata.unibg.it/dati/corsi/8906/37702-Akerlof%20-%20Market%20for%20lemmons.pdf>. Acessado em 25.05.21. Observe que o termo “lemons” utilizado por Akerlof em seu artigo refere-se a carros usados com problemas, que no vernáculo seria traduzido como um “abacaxi”.

[2] O autor ainda cita como possíveis soluções para este problema da “desonestidade”: (i) a concessão de “garantias” pelo fornecedor do produto; (ii) estruturas de “redes” / “licenciamentos” (genericamente conhecidas como franquias); e, ainda, (iii) organizações certificadoras. Op. cit. p. 13 e 14.

[3] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/livros-e-revistas/arquivos/diagnostico-sdc-2020.pdf>. Acessado em 25.05.21.

[4] Observa-se que a participação da Distribuidora Alesat, quarta colocada, também sofreu uma queda no período, passando de 5,76%, em 2014, para 4,20%, em 2019, o que reforça o argumento apresentado acima. Op. cit. p. 46,

[5] Op. cit. p. 55.

[6] Op. cit. p. 64.

[7] Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-807-de-23-de-janeiro-de-2020-239635261>. Acessado em 25.05.21.

[8] Sobre a diferença de qualidade entre gasolina comum, aditivada e premium, recomendo a leitura desse artigo: https://www.economist.com/babbage/2012/09/17/difference-engine-who-needs-premium?utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gclid=CjwKCAjwtcCVBhA0EiwAT1fY70y9TWGs9xMJLmQni8ocRHaSq8k6oWVPDLXvHAslDbzN2MLTOv98tBoCAncQAvD_BwE&gclsrc=aw.ds

[9] Vide ainda informações prestadas pela Petrobras em: <https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/entenda-10-questoes-sobre-a-nossa-gasolina.htm>. Disponível em 25.05.21.

[10] Sobre aditivo, vide, por exemplo, explicação resumida constante no “Blog Bardhal”, disponível em <https://blog.bardahl.com.br/entenda-a-diferenca-entre-o-aditivo-vendido-em-frasco-e-a-gasolina-aditivada/>. Acessado em 25.05.21.

[11] Vide, por exemplo: <https://kendrickoil.com/the-differences-between-branded-vs-unbranded-fuel/>. Acessado em 25.05.21.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. O presente artigo reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.

O Direito do Consumidor e a Transparência de Preços no Mercado Brasileiro de Combustíveis

Rodrigo Zingales*

            Em 25 de março último, entrou em vigor o Decreto Presidencial nº 10.634/21, que dispõe sobre a divulgação de informações aos consumidores referentes aos preços dos combustíveis automotivos.

            Embora esse tema não tenha relação direta com a série de artigos “De Quem é a Responsabilidade pelos Preços Elevados dos Combustíveis no Brasil”, que propus escrever nessa coluna, tem, de certa forma, uma relação indireta que justifica as provocações, ponderações e sugestões que pretendo tecer nas linhas a seguir.

            Em seu artigo 1º é definida expressamente a motivação que levou a Presidência da República a editar esta norma, assim como a sua finalidade. Conforme destaca o caput o objetivo deste Decreto é a “divulgação de informações aos consumidores referentes aos preços dos combustíveis automotivos”, e a sua finalidade é garantir aos o “direito de receberem informações corretas, claras, precisas, ostensivas e legíveis sobre os preços dos combustíveis automotivos no território nacional”.

            Para atingir, a princípio, esta finalidade, o artigo 2º determina que “os postos revendedores de combustíveis deverão informar aos consumidores os preços reais e promocionais dos combustíveis” em placa que traga “o preço real de forma destacada, o preço promocional vinculado ao uso de aplicativo de fidelização”; e, ainda, “o valor do desconto”. O artigo 4º deste Decreto ainda determina a necessidade de o posto de combustíveis fixar painel contendo os seguintes “componentes do preço do combustível”: (a) “valor médio regional no produtor ou no importador”; (b) “o preço de referência do ICMS” (“preço pauta”); (c) o valor do ICMS pago; e (d) o valor da PIS, COFINS e CIDE pagos”.

            Especificamente em relação às informações indicadas no citado artigo 2º não tenho qualquer reparo a fazer, à exceção da necessidade de os órgãos responsáveis pela fiscalização (ANP, SENACO e PROCONs) editarem normas infralegais para regulamentação do tamanho do painel, tamanho da letra etc.[1]

            Já, em relação às informações destacadas no referido artigo 4º, considero que o “valor médio regional no produtor ou no importador” não atende a finalidade da norma de garantir aos consumidores “informações corretas, claras, precisas, ostensivas e legíveis sobre os preços dos combustíveis automotivos no território nacional”.

            Isso ocorre, pois, em primeiro lugar, em razão de vedação regulatória da ANP, os postos de combustíveis não estão autorizados a adquirir combustíveis diretamente do produtor ou do importador. Segundo o artigo 6º da Resolução ANP nº 43/09, o artigo 14 da Resolução ANP nº 41/13 e o artigo 18 da Resolução ANP nº 58/14, os postos de combustíveis estão atualmente obrigados a adquirir gasolina, diesel e etanol ofertados por distribuidoras, as quais, por seu turno, adquirem esses combustíveis de produtores ou importadores[2].

Em decorrência dessa vedação regulatória, a informação prevista no Decreto sobre o “valor médio regional no produtor ou no importador” traz ao consumidor a falsa informação de que o preço do produtor ou importador seria aquele pago pelo posto revendedor; e, portanto, que a diferença entre o preço final cobrado pelo posto e o preço do produtor / importador, somado aos tributos, equivaleria à margem bruta do posto.

Esta confusão é inclusive destacada pela própria Petrobras em seu site: “o valor pago pelo consumidor final não está sob gestão da Petrobras e é composto por 4 fatores: 1) preços do produtor ou importador de gasolina A [ou diesel A]; 2) carga tributária; 3) custo do etanol obrigatório [ou biodiesel]; e 4) margens da distribuição e revenda”[3], no entanto não consta refletida no Decreto e no painel que deve ser afixado no posto revendedor de combustíveis.

Além disso, a informação do “valor médio” também passa uma informação não clara e imprecisa.

Isso porque, há uma variação não pequena no valor do combustível fornecido pelas refinarias da Petrobras, importadores e usinas, seja em razão da localização da unidade produtora ou importador, seja em razão da forma de entrega do produto (CIF ou FOB) ou ainda da unidade da federação.

Apenas a título ilustrativo, a Petrobras divulga em seu site, semanalmente, os “preços de venda às distribuidoras” à vista da gasolina e diesel, sem a incidência dos tributos[4]. Percebe-se por essas informações que os preços à vista praticados pela Petrobras são divididos entre estados e “bases”; e, ainda, pelas modalidades de vendas “EXA, LPA, ETM, ETT e LTM”.

Nesse sentido, se analisado os dados de preço de venda da gasolina A no estado de São Paulo, tem-se, por exemplo, 15 preços diferentes, sendo que o mais elevado, na semana de 01.04.21, foi de R$ 2,6728 (Ribeirão Preto – LPA) e o mais baixo, de R$ 2,5108 (Santos – LTM), conforme destaca a tabela abaixo:    

LocalModalidade da VendaPreço (R$/l)
Barueri (SP)EXAR$ 2,6187
Barueri (SP)LPAR$ 2,6206
Cubatão (SP)EXAR$ 2,5512
Cubatão (SP)LPAR$ 2,5535
Guarulhos (SP)EXAR$ 2,6126
Guarulhos (SP)LCTR$ 2,6272
Paulínia (SP)EXAR$ 2,6297
Paulínia (SP)LPAR$ 2,6320
Ribeirão Preto (SP)EXAR$ 2,6673
Ribeirão Preto (SP)LPAR$ 2,6728
Santos (SP)LTMR$ 2,5108
São Caetano do Sul (SP)EXAR$ 2,5916
São Caetano do Sul (SP)LPAR$ 2,5968
São José dos Campos (SP)EXAR$ 2,5870
São José dos Campos (SP)LPAR$ 2,5893
Preço Médio R$ 2,6041

             Se considerados: (a) o preço médio (2,6041), (b) o preço mais baixo (R$ 2,5018) e (c) o preço mais alto (R$ 2,6728) registrados nessa semana, percebe-se uma diferença entre o preço mais baixo e o preço médio de R$ 0,1023 e entre o preço médio para o preço mais alto, de R$ 0,0687. A diferença entre o preço mais baixo e o preço mais alto é ainda maior, de R$ 0,1710.

Para qualquer outro produto, essas diferenças de centavos não significariam muito, no entanto, qualquer consumidor médio sabe que uma diferença de R$ 0,10 por litro, por exemplo, tem grande impacto no custo de abastecimento do seu veículo carro e no seu orçamento do final do mês.

            Nota-se que este mesmo problema de “valor médio” também se verifica no caso do etanol anidro e do etanol hidratado, divulgado pela CEPEA/ESALQ[5] e indicado pela ANP como fonte de cálculo[6], com a agravante de que esta instituição audita apenas preços mensais de alguns estados (AL, PE, PB, MT, PE, GO, AL e PB), tendo apenas o estado de SP com preços semanais.

            Esse problema informacional sobre o “valor médio do produtor / importador” trazido no referido Decreto é de fácil solução. Bastaria incluir no Decreto a necessidade de ser informado no painel os preços reais praticados pelo produtor/importador e pela distribuidora fornecedora do combustível comercializado pelo posto e, ainda, exigir que na nota fiscal de compra do combustível, emitida pela distribuidora fornecedora ao posto, constassem discriminados esses preços reais de compra do combustível pago ao “produtor/importador”, além do preço cobrado pela distribuidora do posto, que já vem discriminado, os quais deveriam ser reproduzidos pelo posto no painel exposto aos consumidores.

Apenas dessa forma, o consumidor terá a “informação correta, clara e precisa” sobre o real preço dos combustíveis ao longo de toda a cadeia.

Ressalte-se, ainda, que a divulgação de todos esses preços reais permitirá ao consumidor ter informações completas sobre os preços ao longo da cadeia, além de aperfeiçoar suas escolhas sobre o posto onde abastecer. Isso porque, com essas informações de preços reais, o consumidor poderá verificar quando o posto está cobrando abaixo ou próximo ao preço de custo, o que pode ser um sinal de algo estranho com o combustível ou mesmo quando o posto está obtendo margem acima daquela média do mercado.

Esta maior transparência nos preços ao longo da cadeia também poderá facilitar a atuação das autoridades públicas para a constatação de práticas discriminatórias, sonegação de tributos, preços predatórios e lucros abusivos de todos os agentes da cadeia brasileira de combustíveis (produtor, importador, distribuidora e revendedor) e tomar as medidas cabíveis para solucioná-las.

Por fim, chamo ainda a atenção para a necessidade de fazer ajustes nas informações sobre os valores dos tributos incidentes na comercialização dos combustíveis que devem ser apresentadas no painel afixado no posto e aquelas constantes dos documentos fiscais emitidos pelos postos.

No setor de combustíveis há a chamada regra de “substituição tributária”, onde a responsabilidade pelo pagamento dos tributos recai sobre os produtores / importadores e distribuidoras, conforme o tributo e o combustível.

Além disso, os tributos incidentes nos combustíveis e destacados no artigo 4º do referido Decreto (ICMS, PIS, COFINS e CIDE) são cobrados com base em valores (alíquotas) fixas, incluindo o ICMS cujo valor percentual é aplicado em cima do chamado valor pauta do ICMS ou “Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final” (PMPF), definido pelas autoridades fazendárias estaduais e divulgados nos chamados “Atos Cotepe”[7] do CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária do Ministério da Economia.

Ocorre, contudo, que na nota fiscal (ou cupom fiscal) emitida pelo posto aos consumidores as informações ali divulgadas sobre os tributos incidentes são obtidas a partir do sistema IBPT que, além de serem aproximadas, conforme destacam os exemplos de Nota Fiscal trazidos no site da ANP[8], não refletem os valores reais pagos pelos produtores / importadores de gasolina, etanol ou diesel e pela distribuidora, mas, sim, percentuais definidos no sistema IBPT que é aplicado em cima do valor efetivamente cobrado.

Isso acarreta um problema sério aos consumidores e proprietários de postos, pois, por exemplo, se o preço cobrado pelos postos for superior ao PMPF, o valor do ICMS constante na nota fiscal será superior do que aquele divulgado no painel, baseado no PMPF, gerando uma desconfiança do consumidor de que o posto está cobrando um valor maior de ICMS. Por outro lado, se o valor cobrado pelo preço for menor do que aquele do PMPF, o valor do ICMS divulgado na nota será menor e, nesse caso, o consumidor poderá pensar que o posto está sonegando o imposto.

A solução para este problema também é simples: basta constar na Nota Fiscal o valor correto do ICMS, PIS, COFINS e CIDE incidentes sobre o combustível comercializado pelo posto, uma vez mantida a sistemática do ICMS pauta. Para tanto, é fundamental que o CONFAZ determine alterações no sistema do IBPT para que apresente na nota fiscal (ou cupom fiscal) os valores reais dos tributos federais e estadual incidentes na operação de compra e venda de combustíveis realizada pelos postos aos consumidores finais.   


[1] Nota-se que, em 18 de março de 2021, a ANP emitiu em seu site comunicado com sugestão de “modelos de painéis”. Embora estas sugestões sejam úteis para orientação dos postos, na prática, não possuem força cogente. Isso significa que há ainda a necessidade de edição de norma regulamentadora de forma a garantir, por um lado, a efetivação do poder de polícia da agência em termos de aplicação de sanções; e, por outro, maior segurança jurídica aos postos de combustíveis, uma vez que a regulamentação correta deverá eliminar o efeito “poder discricionário” de fiscais quanto ao tamanho correto do painel, letra e, por conseguinte, cumprimento integral do Decreto nº 10.634/21.  

[2] Segundo o artigo 14 da Resolução ANP nº 777/19, as distribuidoras autorizadas podem, inclusive, importar diretamente esses combustíveis.

[3] Disponível em <https://duvidasgasolina.hotsitespetrobras.com.br/como-e-feita-a-composicao-do-preco-da-gasolina-ao-consumidor/>. Acessado em 09.04.21.

[4] Disponível em <https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/precos-de-venda-as-distribuidoras/gasolina-e-diesel/>. Acessado em 09.04.21.

[5] Disponível em <https://www.cepea.esalq.usp.br/br/indicador/etanol.aspx>. Acessado em 09.04.21.

[6] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/orientacoes-sobre-painel-de-composicao-dos-precos-decreto-no-10-634-2021>. Acessado em 09.04.21.

[7] Disponível em <https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/atos-pmpf/2021>. Acessado em 09.04.21.

[8] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/orientacoes-sobre-painel-de-composicao-dos-precos-decreto-no-10-634-2021>. Acessado em 09.04.21.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. A presente carta reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.

De Quem é a Responsabilidade pelos Preços Elevados dos Combustíveis no Brasil – Parte I

Rodrigo Zingales*

Por quase dez dias ininterruptos os caminhoneiros brasileiros paralisaram o país, em maio de 2018, com a chamada “greve dos caminhoneiros”. O principal objetivo dessa greve foi o de protestar contra os preços elevados dos combustíveis e a política então adotada pela Petrobras de realizar reajustes quase diários e sem qualquer previsibilidade baseada em uma suposta “paridade internacional de preços”[1].

Na ocasião, foram bloqueadas rodovias em praticamente todos os estados da Federação, incluindo o Distrito Federal, com grande impacto no abastecimento de bens essenciais, duráveis e não duráveis. Além dos prejuízos causados à sociedade e à economia do país durante a greve, que se estimam superiores a R$ 30 bilhões, esta greve demonstrou ao Governo e à população brasileira a real importância que os combustíveis e os próprios caminhoneiros têm para o país.

No final de 2020 e início de 2021, as pressões dos caminhoneiros em relação ao preço dos combustíveis retomou com grande força, tendo o Governo do Presidente Jair Bolsonaro tomado, no início de fevereiro, algumas medidas para tentar controlar e reduzir os preços do diesel e da gasolina ofertados aos consumidores finais.

Os três principais alvos dessas medidas foram: (i) a Petrobras e sua política de preços; (ii) a elevada carga tributária, com maior ênfase à forma de cobrança do ICMS; e (iii) a necessidade de informações mais transparentes aos consumidores finais sobre os preços em diversos elos da cadeia.

Não há dúvidas que as medidas apresentadas pelo Executivo Federal, nesse início de 2021, poderão gerar algum impacto positivo na redução dos preços dos combustíveis. No entanto, na minha visão, não serão suficientes em razão: (i) da atual estrutura da cadeia brasileira de combustíveis líquidos, baseada em um monopólio no refino e um “oligopólio concertado” no elo da distribuição (incluindo aqui o armazenamento), o qual também controla por meio de contratos de exclusividade parcela considerável dos postos revendedores de combustíveis e do volume de gasolina, diesel e etanol ofertado e consumido no país; e (ii) do modelo regulatório implementado pela Agência Nacional do Petróleo – ANP e que tem, pelo menos na última década, incentivado e beneficiado estas estruturas monopolista e oligopolista nos elos a montante e a jusante da cadeia, criando barreiras à entrada e dificultando a concorrência e competitividade daqueles agentes já instalados no país.

Pretendo utilizar esta coluna para escrever uma série de artigos onde tentarei explicar de forma didática e resumida quais seriam, na minha visão, as medidas que o Estado brasileiro deveria adotar para atrair novos agentes no mercado e, com isso, garantir maior concorrência, competitividade, oferta e, por conseguinte, combustíveis de melhor qualidade e preços mais baixos aos consumidores.

Focarei este primeiro artigo nas medidas relacionadas à Petrobras, já adotadas pelo Executivo Federal, assim como aquelas que poderiam também ser implementadas no setor de refino.

Nesse sentido e a despeito de Lei Geral do Petróleo, editada em 1997, ter visado a quebra do monopólio legal da Petrobras e a abertura de todos os elos da cadeia brasileira de combustíveis líquidos a novos agentes de forma a introduzir e garantir um ambiente de liberdade econômica e livre concorrência, o que se tem visto na prática, desde então, é que a Petrobras continua detendo uma posição monopolista na oferta da gasolina A e do diesel A no mercado brasileiro, com uma participação no segmento de refino de aproximadamente 98%. Lembrando que o diesel A e a gasolina A são os principais insumos para a formulação do diesel B e da gasolina C comuns, utilizados no abastecimento de caminhões, utilitários, carros de passeio e motos.

Esta posição monopolista fica ainda mais evidente quando a Petrobras é também detentora das principais infraestruturas essenciais necessárias para o escoamento da produção de suas refinarias e, ainda, da importação de diesel e gasolina.

Observa-se, contudo, que antes de analisar as medidas implementadas em relação à Petrobras, é importante citar que por muitos governos, a Petrobras serviu como um importante veículo de implementação de políticas públicas, seja para controlar os preços dos combustíveis no país – os quais impactam diretamente na inflação – seja ainda para proteger a então chamada “soberania nacional do petróleo”.

Esta função da Petrobras passou a ser minimizada a partir do governo do então Presidente Michel Temer, quando se determinou que a companhia deveria focar suas atividades na busca de lucros e da valorização de suas ações vendidas no mercado. Esta nova função da Petrobras foi mantida pelo Presidente Jair Bolsonaro no início de seu mandato, a partir da nomeação de Roberto Castello Branco para a presidência da Petrobras e do alinhamento de continuidade de sua política de precificação baseada na “paridade de preços internacionais”.

Especificamente sobre este aspecto, se a decisão do Estado brasileiro é aquela de tornar a Petrobras uma simples empresa de mercado, a princípio, não haveria qualquer reparo a se fazer quanto à implementação de uma gestão baseada na otimização de seus ativos e produção e geração de lucros a seus acionistas e valorização de suas ações no mercado.

No entanto, não se pode admitir que uma sociedade de economia mista, que teve a sua posição monopolista construída a partir da Lei e de investimentos estatais, passe a adotar políticas de preços que visem garantir a seus acionistas lucros de monopólio, os quais são muito superiores àqueles usuais de um mercado liberal.

Segundo estudos realizados[2] e números divulgados[3], percebe-se que na prática os preços da gasolina A e do diesel A praticados pela Petrobras no mercado interno têm sido, nos últimos anos, bem acima dos chamados “preços de mercado internacional”. Destaca-se, por exemplo, o lucro registrado pela companhia no segmento de refino, o qual teria superado, nos anos de 2019 e 2020, não apenas as expectativas dos avalistas, como principalmente os lucros registrados pelas principais e maiores empresas internacionais de capital 100% privado.

Uma mudança na política de gestão e precificação da Petrobras, baseada na otimização de seus ativos e em uma real e efetiva paridade com os preços do mercado internacional, torna-se, portanto, essencial para que haja preços mais baixos e competitivos no mercado interno, ao invés dos preços e lucros de monopólio vistos nos últimos anos e que apenas beneficiaram os acionistas e gestores da petrolífera.

Além dessa mudança, se a intenção do Estado brasileiro for realmente aquela de fazer com que a Petrobras seja apenas um agente econômico – sem qualquer função para formulação de políticas públicas – é também acertada a decisão de alienar a totalidade ou parte de suas refinarias de forma a atrair novos agentes e a criar maior concorrência e competitividade para este elo a montante da cadeia brasileira de combustíveis líquidos.

Para tanto, contudo, a alienação das refinarias e infraestruturas essenciaispara produção, comercialização e importação de gasolina A e diesel A deve ser realizada a terceiros não participantes dos mercados a jusantes[4]; ou seja, as empresas adquirentes não devem ter qualquer presença nos segmentos de distribuição / armazenagem e revenda de combustíveis líquidos.

Isso porque, por outro lado, se as refinarias e as infraestruturas essenciais da Petrobras forem alienadas a grupos que já atuem nos segmentos de distribuição (incluindo-se aqui o armazenamento em bases primárias e secundárias) e revenda de combustíveis líquidos, corre-se um grande risco de haver uma elevação no nível de concentração nesses segmentos a jusante – cuja concentração já é elevada, diga-se de passagem[5] – e, portanto, de ser reproduzido no Brasil, o que ocorreu nos Estados Unidos da América com a Standard Oil, no final do século XIX e início do século XX, ou o que ocorre na Espanha[6] atualmente, onde apenas um pequeno número de empresas controla toda a cadeia de petróleo, desde a produção e refino até a sua distribuição e revenda. 

Ocorre que, também em relação a esse ponto, a Petrobras e seus acionistas parecem não querer ajudar o Brasil. Afinal, recentemente a companhia assinou com os Grupos Raízen e Ultra (controladores das duas principais distribuidoras do país: Raízen/Shell e Ipiranga) memorandos de entendimento para a alienação de duas de suas principais refinarias localizadas no Sul do País e, consequentemente, de seus ativos e infraestruturas essenciais.

A alienação dessas refinarias a esses dois grupos, além de lhes transferir os monopólios locais do refino, deverá acarretar ainda na eliminação – ou redução considerável – da concorrência no segmento de distribuição e revenda. Afinal, ao adquirirem essas refinarias, Raízen e Ipiranga não terão incentivos para vender gasolina A e diesel A às distribuidoras locais e regionais de combustíveis, concorrentes daquelas.

Isso significará, em outros termos, que as distribuidoras de menor porte terão que continuar comprando esses combustíveis de refinarias da Petrobras, porém localizadas em outros estados ou regiões. Isso certamente encarecerá o custo de frete e, consequentemente, o preço da gasolina A e do diesel B ofertados aos postos revendedores e, consequentemente, consumidos pelos consumidores finais.

Logo, se confirmada a decisão de desinvestimento da Petrobras no setor de refino e o interesse do Governo brasileiro de garantir maior concorrência em toda a cadeia e preços mais baixos dos combustíveis aos consumidores finais, é indispensável que as refinarias da Petrobras e suas infraestruturas essenciais sejam alienadas a grupos econômicos que não estejam nos elos a jusante; e, ainda, garantir, por meio de legislação federal ou da regulação da ANP, que outros agentes tenham acesso a essas infraestruturas essenciais em condições isonômicas. Afinal, a importação de combustíveis também é uma forma eficaz de geração de pressões competitivas e garantia de maior oferta e preços mais baixos e competitivos.


[1] Ressalte-se que o próprio preço internacional do Petróleo decorre de um “cartel institucional” formado pelos principais países exportadores de petróleo e que se encontram organizados na chamada OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) ou em inglês, OPEC. Disponível em <https://www.opec.org/opec_web/en/>. Acessado em 04.03.2021. Ou seja, não reflete preços de mercado baseados nos custos e regras de oferta e demanda; mas, sim, nos custos de oportunidade dos agentes econômicos de seguirem os preços definidos e cobrados pelos principais produtores e exportadores mundiais de petróleo. Logo, também esses “preços internacionais” devem ser tratados pela Petrobras e o Governo Brasileiro de forma relativizada para fins da precificação interna dos combustíveis, especialmente, quando a maioria do petróleo utilizado como insumo no refino tem como origem o próprio Brasil.

[2] Vide, por exemplo, avaliação realizada pelo Departamento de Estudos Econômicos do CADE, na Nota Técnica nº 37/2018/DEE/CADE (“Nota Técnica DEE”). Disponível em <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yMRAuO0RdPFR3axgUo1p5aEXeb7GFwjIzaf516RFimU3OmwsPFN0Qmj7ypqv0NgKqWHcLPfGYf7b2RCG2j0bLo2>. Acessado em 25.02.2021, p. 52 e ss. 

[3] Disponível em <https://oglobo.globo.com/economia/petrobras-surpreende-com-lucro-recorde-de-599-bi-no-4-tri-de-2020-no-ultimo-balanco-de-castello-branco-1-24897390>. Acessado em 25.02.2021.

[4] Ressalte-se que esta proposta foi apresentada no TCC celebrado entre a Petrobras e o CADE, no entanto, ali não foi feita qualquer restrição a grupos econômicos atuantes em mercados a jusante virem a adquirir essas refinarias e infraestruturas essenciais; restrição esta, contudo, apresentada no TCC do Gás, por exemplo (Disponíveis em < https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcfCo1Z24FrKe2wW9llyOv2ILUjTgBbLuIeOjayRJxADF> e < https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOB2_y38g8rskaIXKzeotVBWZN5hz5-udKHa5qGzaLmNapRiFbIw7vfgVhN9O1oE3ZqDt6d3zhFM95dglR3E9X3>. Acessados em 25.02.21).  

[5] Vide, por exemplo, a decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE no chamado “Caso Alesat / Ipiranga”. Disponível em <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcRzz2y8r2JE-nPZSLitiIxD-J5oundb5E8CKrXYfULop>. Acessado em 26.02.2021.

[6] Vide “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis Automotivos”, publicado pela ANP, em 2016. Disponível em <http://www.anp.gov.br/publicacoes/livros-e-revistas/2382-diagnostico-da-concorrencia-na-distribuicao-e-revenda-de-combustiveis-automotivos>. Acessado em 25.05.2020, p. 155 e ss.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. A presente carta reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.

Petrobras e a Armadilha do Neoliberalismo Tardio

Lucia Helena Salgado

“No dia em que o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje – milhões de brasileiros descalços, analfabetos, andrajosos – na miséria. O Brasil tem todos os elementos para tornar-se um país riquíssimo – mas riquíssimo de verdade, e não, como hoje, apenas rico de “possibilidades” ou de “garganta”.”

(Lobato, 1937)[*].

Foi assim que o Visconde de Sabugosa resumiu, no terceiro dos serões sobre geologia no sítio de Dona Benta, a convicção de Monteiro Lobato de que a exploração e refino do petróleo (tido, na época, como inexistente no Brasil) por uma empresa pública nacional, de um lado, e o desenvolvimento econômico e social, de outro, estavam intimamente ligados.

Monteiro Lobato não viveu para ver as esperanças que tinha para o Brasil, pelo menos em parte, concretizadas. A empresa pública com que sonhou foi criada cinco anos após sua morte, a Petrobras. Esta tornou-se a maior empresa do país e da América Latina, desenvolveu tecnologia própria, capacidade multiplicadora de demanda por suprimentos nacionais e aceleradora de investimentos, ocupou papel central no planejamento da politica energética e industrial do pais – implantando a petroquímica e a indústria de fertilizantes durante o II PND após o choque do petróleo de 1973 –, segue investindo em P&D para desenvolver fontes de energia renováveis como biomassa; a composição do legado que proporcionou ao pais é mesmo vasta.

Contudo, foi apanhada na armadilha do neoliberalismo tardio, zeitgeist dominante neste país. “O Brasil não é para principiantes”, dizia o maestro Tom Jobim. É espantoso como ideias superadas pela realidade, teses falsificadas pelas evidências, são requentadas e defendidas aqui como achados; museu de grandes novidades este nosso Brasil.

Os anos 1990 foram marcados por mudanças radicais, prenunciando novos tempos: a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética e, com ela, o fim da guerra fria, tudo apontava para um “caminho único” – o fim da História? – para os países industriais avançados e para aqueles agora denominados emergentes. O caminho único para o pleno desenvolvimento já tinha uma receita pronta, conhecida como o “Consenso de Washington”: liberação do comércio exterior, privatização, disciplina fiscal, redução do tamanho (sobretudo dos gastos sociais) do Estado. Era a formula pela qual os países em desenvolvimento (agora renomeados emergentes) participando da globalização alcançassem a prosperidade.

A fórmula neoliberal para o desenvolvimento parecia ao mesmo tempo tão simples e consistente que influenciou desenhos de políticas públicas mesmo entre segmentos tradicionalmente ligados ao ideário socialdemocrata – aquele que desenhou a Constituição- Cidadã de 1988. Ali nos anos 1990, muitos de nós estávamos convencidos de que a concessão de serviços públicos e a extinção de monopólios legais, acompanhados do desenho cuidadoso de instrumentos e instituições reguladoras, seriam suficientes para atrair novos investidores, introduzir a concorrência e revelar todas as virtudes de uma economia de mercado apoiada por um Estado regulador competente e bem-intencionado.

Mas não só aqui; na Europa do Sul (Espanha, Portugal, Itália e Grécia), no Reino Unido e na França, muita esperança foi depositada na privatização de empresas estatais operando em serviços públicos, como caminho para introdução da concorrência e oferta de melhores serviços e preços mais baixos. O fundamento seria a superioridade operacional da empresa privada que, mais eficiente, atenderia melhor a sociedade com preços menores.

Essa hipótese foi posta à prova em várias experiências reais, mas tanto o volume de casos de abuso de posição dominante como as evidências de que os mercados permaneciam fortemente concentrados revelaram a ingenuidade do pressuposto; em uma frase: abrir mercados para a concorrência privatizando estatais ou concedendo serviços públicos não tornou os mercados competitivos.

A teoria da organização industrial tem explicado o aparente paradoxo da livre entrada não ser suficiente para eliminar o poder de mercado (e o abuso do poder de mercado). Continuam presentes elementos estruturais como barreiras à entrada, custos afundados, externalidades de redes e custos de troca pelos usuários. Ademais, em indústrias que operam em rede, a diversificação e a verticalização reduzem custos de transação, de logística e coordenação, geram economias de escopo e reduzem riscos de portfolio. O desmembramento, desinvestimento e restrição de operação em um segmento onde a empresa apresente vantagens comparativas não necessariamente leva a uma situação socialmente ótima.

Concluída a longa digressão, voltamos à Petrobras e à armadilha do neoliberalismo tardio em que a empresa se deixou apanhar. A melhor expressão da doutrina neoliberal aplicada à gestão empresarial foi exposta no artigo de Milton Friedman publicado em 13/12/1970 no jornal New York Times: “The Social Responsibility of Business is to increase its profits.” O titulo sumariza toda a doutrina que por cinquenta anos reinou como dogma nas escolas de negócios e nos conselhos de administração. Como observou Marianne Bertrand[1], a primazia do acionista, ignorando-se as vozes de trabalhadores, consumidores e das comunidades, traduzindo uma única função objetivo para a empresa, foi a visão dominante desde os anos 1970 nos Estados Unidos e em países que seguiram seu ideário. Por décadas se acreditou que “o que fosse bom para o acionista era bom para a sociedade.[2]

Essa crença foi posta em xeque sobretudo a partir de 2008, com a debacle provocada pela crise financeira que se estendeu após a quebra da casa bancária Lehman Brothers nos Estados Unidos, evento que levou todo o mercado financeiro internacional à beira do colapso. As contradições, tensões e fracassos do capitalismo globalizado em sua expressão mais desenvolvida, nos Estados Unidos, trouxeram à luz o quadro de concentração de renda e riqueza, com seu fardo de sofrimento para milhões, como jamais a humanidade conhecera ao longo de sua história. Neste ambiente, ganha força uma nova consciência sobre as responsabilidades das empresas não apenas com a “teoria do valor do acionista”, mas também com o meio ambiente, a comunidade, os trabalhadores, os consumidores. É o momento em que se fortalece o movimento que já se organizava desde os anos 1970 e que hoje responde pelo acrônimo ESG (Environmental, Social and Governance).

Paralelamente, chama atenção o movimento denominado Patriots Millionaires[3]: centenas de herdeiros, investidores e empresários que se reúnem desde os anos 2010 em torno de uma pauta: queremos pagar mais impostos, o credo da maximização de lucros à custa do bem-estar da sociedade não mais nos representa.

É espantoso que, enquanto nas economias avançadas do mundo ocidental, uma nova mentalidade se forma[4], no Brasil a maior empresa do país é instada a operar sob o antigo credo friedmaniano: a única responsabilidade social da empresa é maximizar o lucro do acionista! Com o agravante de que se trata de uma monopolista de fato atuando livre, leve e solta, sem qualquer restrição à precificação de monopólio!

Ora, empresas mistas como a Petrobras sofrem, por definição, da síndrome que Abranches (1978) denominou de “dupla lógica da empresa estatal”: convivem com o dilema de, por atuarem no mercado, precisarem ser produtivas e rentáveis, serem vistas como importantes instrumentos de políticas públicas de curto e de longo prazo para os governos[5]. Sob o comando de uma agenda neoliberal centrada no desmonte de políticas públicas (que não combinam com o ideal de um Estado mínimo) e destituída de qualquer resquício de estratégia de desenvolvimento, a Petrobras tem se empenhado na implosão de suas capacidades – com a venda de ativos e saída de segmentos[6] –  e numa démarche anacrônica de “maximizar o lucro do acionista”.

Desde 2017, no governo Temer, a Petrobras passou a adotar uma política de preços cuja função objetivo é exclusivamente maximizar lucros. Com aval governamental, passou a se comportar como se o acionista principal já não fosse a União, estando a empresa liberada de perseguir objetivos de longo prazo, colaborando com o planejamento energético do país. O parâmetro adotado passou a ser o preço de paridade internacional (PPI), que na pratica representa equivalência com o preço de importação – supostamente para estimular a concorrência com importadores[7]. De fato, a importação de petróleo ainda é necessária, visto que o óleo mais leve trazido de outras fontes é misturado ao nacional para torna-lo adequado à produção de combustível. O refino do petróleo extraído nas bacias brasileiras, em quantidade superior ao consumo, demandaria investimentos para modernizar e adaptar refinarias que foram projetadas para um tipo de petróleo mais leve que só recentemente, no Pré-Sal, passou a ser produzido no país. não à toa, das oito refinarias que o Cade determinou a venda pela Petrobras em 2019, decisão aplaudida e apoiada pelo governo, apenas duas encontraram até agora interessados[8].

O Brasil não é mesmo para principiantes. Movidos pela ingênua crença de que a concorrência se estabeleceria por meio de algumas poucas oportunidades e incentivos, transformamos um monopólio público[9] de direito em um monopólio privado de fato[10], que decide, às expensas da sociedade, maximizar seus lucros de monopólio, enquanto abre mão de sua capacidade de planejamento energético de longo prazo do país, desenvolvendo fontes de energia renováveis, pesquisa em novos insumos, em biofertilizantes e biodefensivos, em tecnologia de reciclagem de resíduos, tudo o que em um horizonte mais largo se mostra absolutamente indispensável para a retomada de desenvolvimento em bases sustentáveis.

Na contramão dos esforços empregados pelas suas rivais no cenário mundial, que investem pesadamente em fontes de energia renováveis, integração vertical e novos segmentos, adquirindo ou atuando em parceria com start-ups de tecnologia, a orientação imposta à Petrobras pelo comando escolhido pelo governo é esquecer o longo prazo e desfazer-se dos ativos em segmentos estratégicos e em novas fontes de energia, concentrando-se na atividade
mais lucrativa a curto prazo, a extração em águas profundas, para satisfação dos acionistas privados.[11]

Comportando-se como uma monopolista privada – e isolada da concorrência pelas características estruturais da indústria – a Petrobras atua hoje de forma nitidamente abusiva. Abusa de sua posição dominante com o expediente mais simples: estabelecendo paridade do preço dos combustíveis com o preço internacional como se não houvesse alternativas. Há. Conforme outros analistas já apontaram, a parcela dos lucros extraordinários – os windfall gains que são independentes de qualquer ação ou inação da empresa, função da flutuação de preços internacionais – poderia formar um fundo de estabilização do preços dos combustíveis, o que, considerando o grau de dependência que a cadeia logística e de transporte apresenta com relação aos combustíveis fósseis, teria forte impacto estabilizador sobre ampla gama de preços na economia.

Esses mesmos ganhos extraordinários – que nada devem a uma pretensa eficiência em gestão – poderiam ser também transformados em fonte importante de financiamento de pesquisa e desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Estaria aí a forma mais rápida da Petrobras adaptar-se a novas regras, adequar-se ao novo padrão de conduta empresarial ESG, o mesmo que os grandes fundos de investimento comprometem-se em priorizar em suas aplicações[12].

Diversas soluções regulatórias já foram concebidas para compatibilizar interesses de uma monopolista natural privada e o interesse público, do conjunto da sociedade[13]. No entanto a agência regulatória do setor, a ANP, reluta em atuar onde quer que a palavra “preço” seja pronunciada. Da mesma forma, o Cade, autoridade de defesa da concorrência, permanece preso à teoria econômica convencional – irmã siamesa da doutrina neoliberal – fundamentada na  crença  de  que  os preços “livres”,  por carregarem  todas  as  informações  necessárias  para  promover  o  equilíbrio  entre  oferta  e demanda ,  tendem  a  se  ajustar  “naturalmente” desde  que  não  sujeitos  à interferência  artificial do Estado.

São momentos como este que atravessamos que exigem daqueles que se dedicam a propor saídas para impasses coletivos e tomam decisões com impacto sobre a sociedade, sobretudo criatividade e coragem. Ainda está nessas mãos a chance de realizar aquele projeto de país sonhado pelo Visconde de Sabugosa:

“o Brasil tem todos os elementos para se tornar uma país riquíssimo – (…) de verdade.”


[1] Professora de Economia da Universidade de Chicago, “Booth School of Business”.

[2] Artigo especial publicado na edição de 13/09/2020, nos 50 anos do ensaio de Friedman https://www.nytimes.com/2020/09/13/business/dealbook/milton-friedman-essay-anniversary.html

[3]Members of the Patriotic Millionaires say the income gap in the US has become a disaster – and it’s time to ‘take that money back’https://www.theguardian.com/us-news/2022/apr/08/patriotic-millionaires-one-percenters-pay-higher-taxes

[4] Em 2021, Larry Fink, CEO da Black Rock, maior fundo de investimento do planeta, em sua carta anual aos acionistas, tratando do lema ESG, conclamou-os à ação urgente para que a comunidade de negócios passe a desempenhar o papel que lhes cabe para fazer “um mundo melhor.” https://www.blackrock.com/br/2021-blackrock-client-letter.

[5] “A questão da empresa estatal: economia, política e interesse público.” Sergio Abranches in Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, 19(4): 95-105, out-dez 1979.

[6] O plano posto em marcha a partir de 2019 é concentrar-se no que rende lucro de monopólio de imediato, desfazendo-se de ativos à montante, à jusante (refinarias, distribuidora) bem como em segmentos estratégicos como insumos para fertilizantes e defensivos agrícolas (que o país até o presente não produz e do qual depende como de oxigênio), usinas eólicas e outros.

[7] Não obstante as importações representarem cerca de 8% do total do petróleo comercializado e desempenharem função complementar no refino, duas fortes sinalizações de que instrumentos regulatórios poderiam dar conta melhor dessa equalização, sem sacrifício de toda a cadeia de produção e todos os consumidores de combustível e gás.

[8] Decisão no mínimo controversa, visto que ao determinar a venda de dutos de transporte e refinarias em diferentes mercados relevantes geográficos, deverá dar origem a monopólios regionais.

[9] Até 1997 a Petrobras exercia o monopólio da pesquisa, exploração e refino do petróleo, quadro alterado pela Emenda Constitucional n. 9/1995 regulamentada pela lei n. 9.478/1997.

[10] Em 2000, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Petrobras passou a colocar papéis na bolsa de valores de Nova York. Desde então a União passou de 80% para 36% de controle do capital total da empresa (50% das ações com direito a voto), sendo que hoje cerca de 64% do capital da empresa pertence a acionsitas privados, sendo 40% desses papeis negociados no exterior. https://www.cut.org.br/noticias/afinal-quem-manda-na-petrobras-fup-pergunta-e-responde-e-o-presidente-do-brasil-333c

[11] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/petroliferas-europeias-tem-visao-mais-ambiciosa-sobre-renovaveis-do-que-a-petrobras/

[12] Como a Black Rock, comentada na nota 5 acima.

[13] Por exemplo Optimal Regulation, Kenneth Train, The MIT Press, 1991 e The Theory of Regulation and Procurement, Jean Tirole e Jean-Jacques Laffont, The MIT Press, 1993.

[*] O Poço do Visconde, Monteiro Lobato, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1937.

Mercados Secundários de Espectro no Brasil:Oportunidades e Desafios

       Luiz Alberto Esteves, Luciano Chalita Freitas & Ronaldo Neves Moura Filho

Os últimos anos foram marcados por uma série de reformas legais com desdobramentos sobre os mercados regulados no Brasil. A mais principiológica delas veio com a Lei nº 13.874/2019 – Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, centrada na racionalização da intervenção estatal. Para o caso do setor de telecomunicações, tal reforma trouxe aspectos especialmente interessantes. Destaca-se pela renovação do setor e a revisão da política de acesso a insumos escassos por particulares. Dentre as alterações, a possibilidade de estruturação de um mercado secundário de radiofrequências no Brasil foi um dos destaques.

A importância das radiofrequências se deve ao fato de serem insumo essencial para a prestação e uso de serviços de comunicação sem fio. Até a edição da Lei nº 13.879/2019, os prestadores de serviços detinham acesso exclusivo a partes do espectro. Tal distinção se justificava como contrapartida aos investimentos disponibilizados para aquisição das radiofrequências, obtidas em leilões primários conduzidos pelo regulador setorial. Nessas condições, não podiam negociá-las com terceiros, ou seja, transferi-las ou cedê-las para outros prestadores interessados. Com a reforma legal abre-se aos titulares do direito de uso de radiofrequências a possibilidade de transferência, ou de comercialização da parte ociosa do espectro, mediante anuência da administração pública e submissão a condicionantes de natureza concorrencial e regulatórias.

As bases legais para a criação desse novo mercado se sustentam no reconhecimento de seu potencial para lograr ganhos de eficiência e utilidade no uso de espectro a partir de configurações alternativas ao modelo de alocação tradicional. Sua vertente indutora de ganhos de eficiência alocativa e de aumento da competição no setor de telecomunicações já se encontra consolidada. Em regra, um mercado secundário maduro propicia maior agilidade na designação do espectro por permitir transações entre privados e, em países como o Brasil, pode representar uma oportunidade de ampliação da cobertura em regiões de menor atividade econômica, onde o uso desse recurso é potencialmente ineficiente.

A liquidez nesse novo mercado é um dos fatores críticos para alcançar os benefícios de eficiência, qualidade e ampliação da prestação de serviços móveis. Seu bom funcionamento permitirá elevar a confiança dos investidores para negociarem seus ativos de forma rápida e eficiente, promover a inovação e, inclusive, potencializar a utilidade das atividades nos mercados primários. Ademais, esse mercado também pode estimular o ecossistema financeiro do setor, visto que escalar o espectro a uma condição de ativo negociável gera implicações na composição patrimonial das empresas, com efeitos no custo de capital e no valor do negócio.

A despeito dos benefícios esperados, existem riscos de ordem técnica e concorrencial associados ao desenvolvimento do novo mercado. Aqueles relacionados a comportamentos anticompetitivos, especulativos e de criação de escassez artificial, bem como aspectos como interferências e custos de coordenação e harmonização são exemplos de ameaças comumente atribuídas ao mercado secundário.

Esses aspectos trazem desafios adicionais aos reguladores, visto que os mercados secundários de radiofrequências podem ser estruturados a partir de diferentes desenhos alocativos. Dentre tais possibilidades, a literatura especializada tem apontado três alternativas: (i) o laissez-faire, com mínima intervenção estatal; (ii) o de corretagem, com preços orientados a custos, e; (iii) o Licenciamento de Acesso Indireto Autorizado com incentivos (Leilões).

Um primeiro ponto a ser destacado é que estes mecanismos alocativos apresentam, sob determinadas circunstâncias, vantagens e desvantagens. Um segundo ponto é que o desenvolvimento de mercados secundários de espectro encontra-se em estado embrionário, até mesmo em economias com mercados de telecomunicações bastante sofisticados. Isso significa haver carência de evidência empírica que possa nortear a decisão do regulador.

Na ausência de evidência empírica, acadêmicos e especialistas estão recorrendo a simulações computacionais sobre a eficiência relativa desses mecanismos. Para tanto, faz-se necessária a formulação de modelos de economia computacional baseada em agentes (ACE), parametrizados para simular sistemas evolutivos, com agentes interativos autônomos no mercado secundário de radiofrequências.

Esse método de simulação tem o potencial de auxiliar no desenho normativo do novo mercado e oferecer intuições acerca do seu funcionamento e do comportamento dos agentes. Essa é uma agenda de pesquisa onde temos envidado esforços. O objetivo é buscarmos intuições econômicas que possam contribuir para o desenho de uma política regulatória para o setor de telecomunicações cada vez mais eficiente e menos invasiva.