Maxwell de Alencar Meneses

Liberdade (apenas uma força) de expressão: também uma questão concorrencial

Maxwell de Alencar Meneses

Falar sobre liberdade de expressão é sempre difícil, dada a profundidade do assunto. Portanto, nada melhor do que partir do que foi expresso por julgadores de cortes constitucionais ao redor do mundo a respeito do tema, porque, afinal de contas, é a pluralidade — efeito da mencionada liberdade — que sustenta a busca pela verdade. Para isso, utilizou-se, de modo fortuito, uma excelente pesquisa de jurisprudência internacional, obtida no site do STF (STF, 2021).

A referida pesquisa é parafraseada a seguir, estabelecendo um fio condutor para a reflexão aqui ensejada, que, como de costume, não reflete a opinião de nenhuma entidade em especial, nem mesmo do autor, sendo apenas um livre exercício de raciocínio crítico.

De início, na África do Sul, a Corte Constitucional afirmou em 2007 que a liberdade de expressão é central para a democracia, que a Constituição garante aos indivíduos a capacidade de ouvir, formar e expressar opiniões livremente, sendo essa liberdade crucial para a busca da verdade. Em 2013, a Corte complementou que o valor de permitir vozes dissidentes é fundamental em uma democracia constitucional, alertando que medidas restritivas não devem ser usadas para silenciar essas vozes.

Na Alemanha, em 1996, o Tribunal Constitucional precisou lidar com os limites dessa liberdade ao avaliar como uma pessoa poderia criticar uma organização de assistência ao suicídio. Na América, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, destacou que os Estados devem evitar interferências nos direitos daqueles que participam do discurso público, especialmente em contextos de polarização social, afirmando que a liberdade de expressão inclui o direito de buscar, receber e transmitir informações livremente.

Todavia, na França, em 2018, o Conselho Constitucional estabeleceu limites à liberdade de expressão para garantir eleições justas, justificando restrições sob o argumento de combater a manipulação da informação.

Em Israel, a Suprema Corte decidiu, em 2003, que a ofensa ou rudeza de uma manifestação não pode ser motivo para impedir sua proteção. A Corte foi clara ao afirmar que a verdade da expressão não é relevante e que permitir restrições com base nisso daria ao governo o poder de definir o que é verdade ou falso. Essa visão ressalta a defesa radical da liberdade de expressão, mesmo que inclua a disseminação de expressões falsas.

Por fim, na Turquia, em 1994, o Tribunal Constitucional afirmou que partidos políticos não podem promover atividades que ameacem a democracia e a paz social, como incitar rebeliões ou fomentar diferenças étnicas. Aqui, vemos mais uma vez a liberdade de expressão sendo subordinada à proteção do Estado e da unidade nacional. Da mesma forma, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em 1994, justificou a apreensão de um filme blasfemo como uma interferência legítima na liberdade de expressão, desde que prevista em lei e visando proteger os direitos dos cidadãos de não serem insultados.

É possível agora perceber melhor a dura e pouco desejável realidade prática do jogo de palavras contido no título deste artigo, que, rescrito da seguinte forma, demonstra o conteúdo encapsulado, de fato implícito sob uma espécie de sanfona: ora estendida, liberdade »apenas uma força« de expressão; ora contraída, liberdade »« de expressão, a depender do caso. Sendo assim, pode-se afirmar, pela lógica, que algo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Portanto, de fato, não há liberdade de expressão; esse termo é apenas uma força de expressão, outra hype, uma hipérbole, a exemplo da descrita no último artigo, a respeito da inteligência artificial, como quando se diz que o azeite está pelos olhos da cara, por mais verdadeira que pareça tal afirmação para quem vai aos mercados.

Nota-se, fazendo uma primeira associação com ideias de concorrência, que os Estados, aqui e acolá, não resistem à tentação de criar regulações sobre o discurso e, assim, mal ou bem, criam barreiras de entrada para segmentos que concorrem entre si, a partir do mercado relevante das ideias, que são o insumo básico para outros mercados, como o editorial, jornalístico, educacional e seus desdobramentos em uma longa cadeia de valor. Desse modo, constituem-se os consensos fabricados, um tipo de monopólio de conclusões.

No dia a dia, ou melhor dizendo, de modo empírico, essa realidade é vivida há tempos. A experiência deste autor, que viveu sob vários regimes, remonta à época em que a simples menção dos nomes de antigos presidentes-generais na escola criava um clima tenso. O leitor pode, por si só, traçar paralelos com nomes atuais que provoquem sensação semelhante.

Na Escola Anglicana John F. Kennedy, em Belém-PA, havia um cemitério dentro da própria instituição, pois os missionários anglicanos não podiam ser enterrados em outro lugar. Regras são aprendidas desde a infância, como não perguntar a idade das professoras, evitar falar de religião, política e futebol. Os lugares de fala estão constantemente sendo estreitados; somente quem compartilha exatamente da condição analisada pode se pronunciar a respeito.

Portanto, por mais simplórios que sejam esses exemplos, eles deslindam a realidade fática de que ninguém é realmente livre para dizer o que pensa. O filtro é normalmente aplicado conforme o poder econômico ou político vigente. Nos anos 80 e 90, assistia-se a um programa infantil todas as noites de domingo, o famoso ‘Os Trapalhões’. As falas e o humor utilizados nesse programa são hoje veiculados após avisos legais que praticamente imploram desculpas pelas falas ali contidas. Ao mesmo tempo, em eventos de âmbito internacional, como nas recentes Olimpíadas de Paris, deboches considerados por alguns desrespeitosos à fé cristã são propagados livremente, enquanto conteúdos ditos culturais, de cunho erotizante, são expostos cada vez mais cedo para crianças, como parte, inclusive, de ações governamentais.

E a concorrência, o que tem com isso? Tudo, porque a concorrência está em toda parte. Basta lembrar do conceito de controle de concentrações como um modo de evitar nocivas concentrações de poder econômico, que seriam capazes de conferir aos seus possuidores o condão de influenciar, ao seu bel-prazer, a economia, a política e, por que não, os costumes, como Soros, Musk, Bezos, Gates, Batistas, Odebrechts ou, nos primórdios da criação do Direito Concorrencial no Brasil, Chateaubriand versus Agamenon.

Em fechamento, como um possível resultado da reflexão apresentada neste artigo, que percorreu de modo sucinto decisões de cortes supremas ao redor do mundo e passou pela experiência pessoal do autor, é fundamental entender e ter plena consciência da real e prática possibilidade de se expressar, tanto na sociedade de hoje quanto na de ontem. O que pode ou não ser dito está, em grande parte, atrelado aos poderes dominantes, mais do que à ideia abstrata de liberdade. Nesse cenário, o papel do CADE se torna crucial, pois seu trabalho constante de evitar ou mitigar a formação de grupos econômicos capazes de ditar como devemos viver e nos expressar está diretamente ligado à preservação de uma concorrência saudável. Sem esse equilíbrio, corremos o risco de viver sob a influência de poucos, que controlam tanto o mercado quanto o discurso. Assim, a concorrência se revela não apenas como uma questão econômica, mas como um mecanismo essencial para a manutenção da liberdade de expressão em sua forma mais autêntica.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DEFESA DA DEMOCRACIA. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaInternacional/anexo/PJI22021LiberdadedeExpressoeDefesadaDemocracia.pdf#:~:text=%E2%80%9CA%20liberdade%20de%20express%C3%A3o,%20a%20liberdade%20de%20reuni%C3%A3o>. Acesso em: 30 set. 2024.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


IA Hype – hiperentusiasmo e exaltação marketeira

Maxwell de Alencar Meneses

Em maio de 2024, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) apresentou sua contribuição ao projeto de lei (PL) destinado a regular a Inteligência Artificial (IA). Existem preocupações sobre o uso de algoritmos que podem facilitar estratégias anticompetitivas e dificultar a detecção e punição pelas autoridades competentes. Também se discute a necessidade de equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação, considerando os riscos e benefícios.

O órgão mantém, assim, sua postura equilibrada de advocacia da concorrência, evitando açodamentos, como já demonstrado no caso do projeto de lei de congelamento de preços durante a Covid, ou na questão da proibição da cobrança por bagagens em voos nacionais (CADE, 2020). A atual proposta inclui a criação de um sandbox regulatório como uma estratégia para testar e monitorar algoritmos de IA em um ambiente controlado. A ideia é equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação para evitar barreiras à entrada e promover a concorrência. (CADE, 2024)

Adicionalmente, o próprio Superintendente-Geral do Cade, Alexandre Barreto, de acordo com entrevista publicada no Valor Econômico por ocasião de sua recente recondução ao cargo, ao ser perguntado a respeito da IA como problema concorrencial em si, afirma de modo muito ponderado e pragmático que não seria possível dizer que se tornará um problema específico. No entanto, ele destaca que a IA é um instrumento que, se usado para infração econômica, entra na atuação do Cade, não pelo instrumento em si, mas pela sua utilização em efeito anticompetitivo. (OLIVON; PIMENTA, 2024)

Dessa forma, é possível extrapolar que ferramentas como bancos de dados, planilhas ou aplicativos de mensagens podem ser utilizadas para diversas infrações, incluindo delitos econômicos. Nesse sentido, exemplifica-se que a criação da planilha eletrônica, com suas atualizações automáticas, representou uma revolução em relação às versões datilografadas, acelerando muitos processos de trabalho e, infelizmente, também facilitando atividades criminosas. No entanto, isso não levanta questionamentos sobre uma eventual descabida necessidade de regulamentar o uso do pacote Office em si. Ressaltando de início, que nenhuma das cogitações desse texto representam a opinião de nenhuma instituição em particular, nem mesmo do autor, apenas de um teste de hipótese para fins de reflexão.

Logo, esse equilíbrio observado no Cade pode estar ausente em outras esferas. Muito se discute sobre os perigos da IA, frequentemente em tom apocalíptico, e não é difícil encontrar argumentos que sustentem essa visão. No entanto, sigamos aqui pela estrada menos percorrida, como em um teste científico para avaliar o verdadeiro estágio da IA ou se isso não passa de mais uma onda de marketing comum no ambiente tecnológico, usada para gerar interesse em novos produtos. Considerando que mudanças na sociedade frequentemente surgem de pensamentos entrópicos — ou seja, desvinculados de certezas estáticas estatais — é essencial manter a mente aberta. Como dizem: use a criatividade.

Por essa estrada menos percorrida, portanto, serão visitadas avaliações de cenários por parte de autoridades, assim como serão revisitadas ações comparáveis da história recente que podem lançar luz sobre as questões levantadas, iniciando pelo hype.

Nesse sentido, o Ph.D. em aprendizado de máquina pela Universidade Columbia, ex-professor da mesma instituição, escritor, CEO e co-fundador da Gooder AI, Eric Siegel, afirma categoricamente que o que vemos nas manchetes acerca da IA generativa (aquela que cria conteúdo em resposta a comandos dos usuários), em suas palavras, “It’s hyperbole. It’s hype.” Segundo Siegel, embora a tecnologia atual de fato ofereça eficiências e capacidades de automação, no mundo real ele não acredita que, tão cedo, ou sequer que haja avanços consistentes na direção da replicação da inteligência humana (SIEGEL, 2024).

Ao falar sobre incerteza, que é muitas vezes característica do hype, Jason Abelak, professor de economia na Yale School of Management, afirma que a IA representa um momento revolucionário na tecnologia, mas ainda há muitas incertezas sobre seu verdadeiro potencial. Abelak, assim como este artigo, questiona: estamos em um momento em que o progresso tecnológico irá acelerar drasticamente, resolvendo muitos dos problemas complexos que enfrentamos, ou a tecnologia existente basicamente estagnará? (GOOD WORK, 2023)

Como efeito colateral do hype ou de suas características, observam-se paralelos com danos ao progresso e ao acesso a tecnologias emergentes, algo que já ocorreu no passado. John Coogan, economista formado pela Northeastern University, CTO, documentarista e cofundador da Soylent e Lucy, e atualmente Entrepreneur-in-Residence no Founders Fund — que tem em seu portfólio empresas como OpenAI, Nubank e SpaceX —, afirma em seu documentário “AI Regulation, Explained” que a IA “acabou de se tornar nuclear”. Ele argumenta que, assim como aconteceu com o desenvolvimento da tecnologia atômica, a IA está gerando preocupações globais, e o futuro dessa tecnologia pode ser ameaçado por uma regulamentação excessiva, baseada no medo.

Coogan destaca que, após a criação da bomba atômica, o foco se desviou de uma visão promissora de energia nuclear abundante para uma corrida armamentista, sufocando o progresso civil. A IA pode estar seguindo um caminho semelhante, sendo amplamente utilizada por governos e militares, enquanto o público em geral se beneficia pouco dessa tecnologia. Portanto, em sua visão, seria necessária uma regulamentação equilibrada, que evite o bloqueio total da inovação e assegure que a IA traga benefícios reais, sem se tornar uma ferramenta de controle autoritário ou causar danos irreversíveis à sociedade (JOHN COOGAN, 2023).

Esse bloqueio indesejável mencionado por Coogan, causado pela mistura de hype e medo (hype-medo), já começa a se manifestar devido a regulações. O Brasil, assim como a União Europeia, ficou de fora do lançamento da IA da Meta em razão de entraves regulatórios. Enquanto isso, as ferramentas foram disponibilizadas em outros países da América Latina, como Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru. Segundo uma reportagem da CNN, no início de julho, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) notificou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre a forma como a Meta estava utilizando as informações dos usuários de suas redes sociais no Brasil para treinar sua inteligência artificial (BRITO, 2024).

Curiosamente, o hype-medo, funciona como um propulsor regulatório, sob a égide da proteção do uso de dados, tanto que para combater vazamentos e roubos de dados, o governo brasileiro decidiu parar de utilizar até mesmo o WhatsApp. Ricardo Cappelli, presidente da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), abrirá uma licitação para escolher uma plataforma nacional de mensagens que garanta a preservação do sigilo nas comunicações da alta cúpula do governo. Cappelli argumenta que grandes plataformas de mensagens não devem ser usadas para a troca de informações no governo nem pelos demais poderes da União. De acordo com ele, essa alternativa visa aumentar a segurança na comunicação interna e evitar o vazamento de informações altamente sensíveis. Com essa nova iniciativa, as autoridades esperam “proteger a soberania” do país. (WIZIACK, 2024)

Essa proteção, sem fazer juízo de valor, remete ao caso em que o presidente Obama assumiu a responsabilidade pela espionagem da presidente Dilma Rousseff (MACEDO, 2013), levando o Serpro a criar o sistema Expresso V3 para evitar esse tipo de problema. Esse sistema, entretanto, foi descontinuado, e, a partir de 2017, o Zimbra, baseado em uma plataforma de software livre da empresa norte-americana Synacor, foi adotado como nova solução de e-mail para órgãos públicos. Em 2021, o Serpro finalizou a migração do correio eletrônico Zimbra, que usava o Google, para o Office 365 (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 2021).

Exemplificando a que destino essa linha regulatória pode levar, a situação também remete à lei de internet soberana promulgada por Putin em 2019, que foi seguida pelo banimento de mídias sociais populares por serem estrangeiras (IYENGAR, 2022). De forma semelhante, Biden sancionou uma lei nos Estados Unidos banindo o TikTok (FUNG, 2024). Agora, as exigências brasileiras colocam o Brasil na lista de países onde o aplicativo X está proibido, como China, Coreia do Norte, Irã, Rússia, Nigéria, Mianmar e Turcomenistão (VICTORIA NOGUEIRA ROSA, 2024).

Nota-se que, segundo Barcellos (2024), a popularização do WhatsApp no Brasil realmente começou em 2013, ainda sem o mesmo impacto e relevância que tem atualmente. Talvez por isso, no caso da espionagem do governo Dilma por Obama e seus desdobramentos tecnológicos, o WhatsApp não tenha sido incluído no esforço original de criação de aplicativos nacionais substitutivos, como ocorre agora com as atuais preocupações.

Nesse sentido, parece que há um retorno ao “cenário do crime” anterior (espionagem), aplicando aparentemente o mesmo remédio precipitado, que ao longo do tempo se mostrou inviável e custoso, ou ainda cortinas de ferro digitais aplicadas em experiências autoritárias e ineficazes (THORNHILL, 2022). Além disso, o vai e vem nas estratégias adotadas tem se revelado ainda mais oneroso, já que mudanças de plataformas tecnológicas são, em geral, bastante dispendiosas. Em países como os EUA, por exemplo, mesmo sendo pioneiros em avanços na área, sistemas legados são mantidos por anos justamente para evitar essas transições custosas. Esse contexto pode explicar a acusação de obsolescência programada a que algumas plataformas estão sujeitas por meio de hype de inovações, um problema que, de certo modo, o Linux ajudou a amenizar, devido a capacidade de operar em máquinas antigas e de hardware limitado. É o que ocorre, por exemplo, com as atuais promessas de incorporação de IA em tudo. (KING, 2016).

Aliás, o criador do Linux, Linus Torvalds, em evento da Linux Foundation, também refletiu sobre o hype em torno da IA, observando que, atualmente, todas as empresas afirmam ter um foco em IA. Apesar das preocupações de que a IA possa substituir empregos como programação ou criação de filmes, ele expressou ceticismo em relação a essas alegações.

Com base em experiências passadas com sistemas de IA que não eram realmente inteligentes, Torvalds argumenta que é essencial aguardar para ver o que a IA realmente será capaz de realizar em 10 anos. Ele desconfia de promessas exageradas, comparando o alvoroço em torno da IA a tendências tecnológicas anteriores, como criptomoedas e computação em nuvem.

Torvalds pede cautela diante do exagero, destacando que, embora a IA possa automatizar tarefas e aumentar a eficiência, é improvável que substitua completamente os profissionais. Para ele, o verdadeiro potencial da IA será revelado ao longo do tempo, em vez de ser definido pela empolgação imediata que a cerca atualmente. (SAVVYNIK, 2024)

Esse hype, por alguns, é visto como uma bomba relógio. Na reportagem da CNBC, intitulada “AI’s trillion dollar time bomb”, é justamente abordada a crescente onda de investimentos em IA generativa por gigantes da tecnologia, como Microsoft, Google e Meta, que tem gerado preocupações sobre o retorno real dessas apostas bilionárias.

A matéria aponta que, enquanto há promessas de grandes avanços em produtividade e inovação, o progresso tangível tem sido modesto, com o setor de IA ainda lutando para apresentar aplicativos que justifiquem o enorme capital empregado. Empresas estão gastando bilhões em infraestrutura, como chips e data centers, mas o retorno financeiro esperado ainda é incerto.

Analistas alertam que, embora o potencial da IA seja promissor, ele pode levar mais tempo do que o previsto para se materializar, comparando a situação com a bolha da internet dos anos 2000. Apesar disso, muitos continuam otimistas de que os benefícios a longo prazo surgirão, mas enfatizam a necessidade de paciência e realismo quanto ao impacto imediato da IA. (CNBC TELEVISION, 2024)

Reforçando o coro da incerteza característica de um hype, a revista The Economist, em seu artigo intitulado “AI needs regulation, but what kind, and how much?”, explora o crescente debate sobre a regulamentação da IA, destacando a tensão entre os riscos existenciais de longo prazo e os danos imediatos da tecnologia. Segundo a matéria, diferentes abordagens estão sendo adotadas globalmente, desde a autorregulamentação até leis abrangentes. No entanto, a incerteza sobre o futuro da IA e seus impactos potenciais levanta a questão: talvez seja prematuro impor regulamentações rígidas sem uma compreensão completa do que regular e como fazê-lo de forma eficaz. (THE ECONOMIST, 2024)

Ainda sobre regulação desmedida, na história recente a respeito de outra hype, em 2018, Bill Clinton, na Ripple’s Swell Conference em San Francisco, expressou preocupações sobre a regulamentação excessiva de tecnologias emergentes, como blockchain. Clinton argumentou que, enquanto a regulamentação é necessária para proteger os mercados e os consumidores, uma abordagem excessiva pode sufocar a inovação. Naquela ocasião, ele comparava a regulamentação excessiva com o risco de matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ da tecnologia blockchain, que, em seus estágios iniciais, poderia sofrer com regras rígidas que limitariam seu crescimento e potencial revolucionário. (HIGGINS; FLOYD, 2018)

Continuando pelo caminho da infinita hype, chega-se a avaliação de Steve Case, ex-CEO e presidente da America Online e ex-conselheiro do governo Obama, que viveu o auge da bolha das pontocom em 2000. Reconhecido como um dos empreendedores mais influentes da história da internet (“Steve Case”, 2020), Case falou na cúpula ‘Forjando o Futuro dos Negócios com IA’ da Imagination In Action sobre as semelhanças entre o boom da IA e o boom das pontocom, além das lições que os empreendedores de IA podem aprender com aquele período.

Segundo Case (FORBES, 2024), uma semelhança é que a tecnologia, seja a IA ou a internet, vinha se desenvolvendo há décadas, com 75 anos de investimento em torno da IA. Nos últimos 18 meses, a tecnologia acelerou consideravelmente, principalmente devido ao sucesso repentino do ChatGPT, que levou 75 anos para ser desenvolvido.

Case recorda que o mesmo aconteceu com a AOL. Fundada em 1983, na época apenas 3% das pessoas estavam online, e essas 3% passavam cerca de uma hora por semana na internet. Durante uma década, de 1985 a 1995, poucos se importavam com a internet; o foco estava em semicondutores, computadores pessoais e software. A maioria não acreditava que a internet se tornaria um fenômeno mainstream. Era vista como uma tecnologia de hackers e entusiastas de computadores. Mas em 1995, a internet acelerou e se tornou uma mania. As empresas começaram a mudar seus nomes para algo.com, assim como agora vemos empresas mudando seus nomes para algo com IA para estar na moda. A U.S. Steel, por exemplo, agora é U.S. Steel AI. Isso indica que a tecnologia chegou ao seu momento.

Case lembra de uma música antiga que diz: ‘Algo está acontecendo aqui, mas o que é, não está exatamente claro.’ Em 2000, muitas empresas .com abriram o capital, e muitas acabaram falindo. Houve uma visão de um ‘inverno nuclear da internet’, mas as empresas que sobreviveram, como Google e Facebook, conseguiram se tornar significativas e icônicas. Passava-se da fase em que a pesquisa estava sendo feita, mas sem tração significativa, para uma fase de atenção e crescimento.

Case espera que a IA possa passar para a próxima fase de forma menos disruptiva do que o boom das pontocom, onde 90% das empresas faliram. Ele ressalta que, embora haja preocupações com a regulamentação excessiva sufocando a inovação, nenhuma regulamentação também não é uma resposta adequada. Ele observa que as propostas atuais na Europa podem exagerar e sufocar a inovação, mas uma abordagem equilibrada é necessária.

Na última cúpula de IA do Senado americano, Case destacou a importância de garantir que, ao pensar em proteções e regras, o foco esteja em permitir que novas empresas comecem e cresçam, evitando a captura regulatória que poderia beneficiar apenas os operadores históricos.

Ele recorda que, em 1985, era ilegal para consumidores ou empresas estarem na internet, que era restrita a instituições educacionais e agências governamentais. O Congresso aprovou uma lei de telecomunicações para criar uma internet comercializada, e a FCC determinou o acesso aberto. Não bastava criar novas empresas de telefonia; era necessário permitir que outras, como a AOL, operassem em suas redes. Sem isso, os custos não teriam diminuído, a inovação não teria acelerado e empresas como a AOL não teriam existido.

Case resume as lições para a IA, ressaltando a importância de garantir que ela seja aberta e permita o surgimento de novas empresas, em vez de apenas fazer as grandes empresas de tecnologia se tornarem ainda maiores. Ele acredita que devemos errar para o lado de garantir que a IA seja acessível a todos e que os líderes em IA daqui a 20 anos sejam novas empresas e empreendedores que ainda não existem. Assim como na internet, onde os líderes não eram empresas como AT&T ou IBM, que gastaram um bilhão de dólares para lançar um empreendimento online chamado Prodigy e falharam, novas empresas surgiram e moldaram o cenário. Segundo o bilionário, esse é o arco da inovação e da história americana.

Portanto, ainda no contexto de incerteza, que desenha o retrato falado de uma hype, percebe-se uma estratégia mais coerente, no mesmo sentido proposto pelo Cade. Em seu artigo Regulatory Sandboxes for AI: A Policy Approach, a OECD sugere o uso de sandboxes de IA devido à sua capacidade de permitir a experimentação de tecnologias emergentes em um ambiente controlado e regulado. A principal vantagem desses sandboxes é que eles oferecem um espaço seguro para testar inovações enquanto gerenciam os riscos associados, promovendo a colaboração entre desenvolvedores, reguladores e outras partes interessadas. Essa abordagem não apenas facilita a inovação responsável, mas também garante maior transparência e permite que as tecnologias sejam avaliadas com base em critérios claramente definidos, otimizando assim os benefícios para a sociedade. (FERRANDIS; PERSET; YOKOMORI, 2023)

Em outra avaliação consonante com o que já foi descrito aqui, em dezembro de 2023, o presidente francês Emmanuel Macron expressou preocupações de que a nova Lei de Inteligência Artificial da UE, projetada para regular o desenvolvimento da IA, possa prejudicar a inovação e a competitividade das empresas de tecnologia europeias em comparação com seus rivais dos EUA, Reino Unido e China. Macron criticou a regulamentação rigorosa sobre modelos fundamentais de IA, como o ChatGPT, temendo que isso possa levar a um atraso em relação aos chineses e americanos. A nova lei impõe requisitos de transparência, restrições ao reconhecimento facial e proíbe o uso de IA para “pontuação social”. As empresas que não cumprirem a lei podem enfrentar multas de até 7% do faturamento global. Críticos argumentam que as novas regras exigirão muitos recursos para conformidade, desviando investimentos da inovação. No entanto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, elogiou a legislação, afirmando que ela “transpõe os valores europeus para uma nova era”. (ESPINOZA; ABBOUD, 2023)

Em mais uma exposição das incertezas, fica clara a única certeza: o perigo de perder competitividade e sufocar a inovação. Esse é o resumo da ópera do recente encontro de líderes mundiais realizado na Inglaterra, que abordou a regulamentação da inteligência artificial (IA). Durante a conferência, representantes de vários países, incluindo Brasil, China e EUA, assinaram uma declaração reconhecendo a importância de regular a IA, mas não chegaram a um consenso sobre uma regulação concreta. O debate sobre a viabilidade de controlar a IA continua, com figuras como Elon Musk questionando se tal controle é realmente possível (MILMO; STACEY, 2023). Contrastando com o cenário, de que nos EUA, uma ordem executiva de Biden sugere diretrizes para o desenvolvimento seguro da IA, mas não estabelece uma lei formal, indicativo de flexibilidade. No Brasil, a PL 2338/2023 propõe regras restritivas, mas há preocupações de que essas medidas possam retardar o progresso da IA no país. Como já percebido, a principal preocupação é que uma regulamentação excessiva possa inibir a inovação, enquanto países com regulações mais flexíveis avançam mais rapidamente no campo da IA.

Finalizando o caminho aqui percorrido de avaliações a respeito da IA, no que tange às regulações europeias, percebeu-se muitas preocupações por parte de autoridades no assunto que participaram do CEO Collaborative Forum (2024). Constantin Pavleas, advogado na União Europeia, admite que todos estão acostumados a ver a Europa regulamentando tudo. Ele lembra que, em certo ponto do processo regulatório, perceberam que ele já estava parcialmente desatualizado, o que resultou em mais um ano e meio de ajustes. Pavleas explica que o foco da regulamentação é a construção de confiança. A regulamentação foi projetada para ser baseada em risco: dependendo de como o sistema de IA for classificado, ele pode ser proibido, altamente regulamentado (se for considerado de alto risco), moderadamente regulamentado (se for de baixo risco) ou não regulamentado (se for de risco mínimo). Por exemplo, o reconhecimento facial para vigilância pública é proibido na UE. A pontuação social, como visto na China, também não será permitida. Da mesma forma, sistemas de IA que rastreiam comportamento e emoções em tempo real para manipular o comportamento humano não serão permitidos.

No que diz respeito à manipulação de comportamento, também não será permitido. Por exemplo, não será possível armar um drone e enviá-lo para atacar e matar alguém com base em uma decisão automatizada — isso não é permitido na UE. No entanto, há muitas outras aplicações da IA que podem ser classificadas como de alto risco. Em setores como saúde, recursos humanos ou educação, quaisquer decisões automatizadas que impactem significativamente as liberdades ou escolhas das pessoas podem ser consideradas de alto risco. Com essa classificação, surgem várias obrigações, incluindo o design adequado e a supervisão rigorosa da ferramenta.

Por exemplo, agora os sistemas de IA são considerados produtos na UE, o que significa que eles exigem a marcação CE. Pavleas afirma que a IA generativa se enquadra na categoria de baixo risco e que, quando a UE começou a trabalhar nessas regulamentações em 2022, o surgimento da IA generativa ainda não havia sido previsto. No entanto, após muito lobby e negociações, a IA generativa passou a ser regulamentada, especialmente em relação às obrigações de transparência.

Ao desenvolver um grande modelo de linguagem, é necessário fornecer uma lista suficientemente detalhada das fontes utilizadas. Isso pode parecer um requisito menor, mas representa um grande desafio para os desenvolvedores de grandes modelos de linguagem. O legislador da UE visa proteger os criadores de conteúdo ao exigir essa transparência, o que sujeita os grandes modelos de linguagem a essas novas obrigações.

O desafio recai sobre as pequenas e médias empresas (PMEs) da UE, que enfrentam uma enorme carga regulatória. Para advogados, isso cria um excelente modelo de negócios na Europa, na opinião de Constantin.

Já o Radouane Oudrhiri (Rad), Doutor e Ph.D. em Teoria da Informação e Sistemas pela ESSEC e Université d’AIX-Marseille, no mesmo evento, opina: “Em relação às leis, não acredito que elas resolvam os problemas subjacentes — elas são apenas o ponto de partida. Costumávamos dizer em IA: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, simulam.’ Vou reformular isso: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, regulamentam.’ Muitas vezes, há uma crença de que a regulamentação resolverá o problema, mas isso nem sempre acontece. Na maioria das vezes, pessoas com entendimento limitado da tecnologia acabam definindo as regulamentações, e acredito que é isso que está acontecendo agora na UE.

É lamentável, porque temos grandes talentos — muitos cientistas e especialistas em IA — mas talvez estejamos limitando o potencial deles. Isso é preocupante. O segundo problema é que eu não acho que a regulamentação seja a solução. Veja o exemplo dos dados: muitas vezes, assustamos as pessoas em relação ao uso de dados, mas eu os vejo como algo que pode salvar vidas. Os dados deveriam ser tratados como o sangue — deveríamos encorajar as pessoas a doá-los. No entanto, precisamos educá-las sobre o valor dos dados.

Não se trata de impor restrições ou proibir o uso de dados, mas sim de educar e mudar perspectivas. Isso é algo que ainda não consideramos completamente no contexto da regulamentação de IA. Por exemplo, a abordagem baseada em risco que estamos adotando foi emprestada da regulamentação de dispositivos médicos, e é assim que acabamos com este sistema. No entanto, há áreas onde essa abordagem não se encaixa perfeitamente.

Provavelmente o que vai acontecer é que muitos talentos irão para outros lugares — e isso já está acontecendo. Na Europa, particularmente em países como França e Reino Unido, temos grandes matemáticos, pois não devemos esquecer que a IA também é sobre matemática. O que vemos agora é que muitos cérebros estão migrando e trabalhando em outros lugares.

Também podemos ver novas startups que, em vez de abrirem aqui, estão sendo fundadas na África, nos EUA ou em outros lugares. Esse é o custo da conformidade. Isso vai tornar os custos tão altos que acabaremos fazendo isso em outros lugares.

Rad finaliza admitindo que a única maneira de acertar é ser humilde, reconhecer que não sabemos tudo, e entender que a regulamentação, por si só, não será suficiente. Acho que, agora, muitos governos e países estão apenas jogando o jogo para mostrar que estão participando. Mas muitos vão perceber que não vai funcionar. Algo mais colaborativo é necessário. Acredito muito mais em revisões de código aberto, baseadas na comunidade, do que em regulamentação. Educação é fundamental.

A partir de tudo que foi exposto, pode-se refletir sobre um ponto levantado no curso de Organização Industrial Aplicada à Concorrência e à Regulação Econômica, ministrado pelo doutor em economia e ex-conselheiro do Cade, Elvino Mendonça. Esse ponto, aparentemente simples, mas profundamente significativo, corrobora muito do que foi discutido aqui. O Dr. Elvino compartilha uma de suas ricas experiências na administração pública, em que, ao ser instado a regular determinado setor, questionou os envolvidos sobre o que e por que se pretendia regular essa matéria e qual falha de mercado seria abordada. Essas perguntas destacam a necessidade de clareza antes de qualquer ação regulatória — uma abordagem que, em alguns aspectos, contrasta com o cenário aqui apresentado, que se mostra dúbio e incerto conforme as avaliações mencionadas.

Em conclusão, o panorama atual da inteligência artificial (IA) é repleto de incertezas, com muitos sinais de que estamos diante de um hype ou, potencialmente, de uma bolha tecnológica. O entusiasmo exagerado em torno da IA, impulsionado por expectativas de avanços revolucionários, esbarra em dúvidas sobre a capacidade real dessas tecnologias de cumprirem suas promessas. Figuras como Eric Siegel e Steve Case, além de estudos e análises recentes, indicam que o progresso pode ser mais lento do que o previsto, reforçando o risco de uma supervalorização das expectativas.

Neste contexto, o Cade tem adotado uma abordagem prudente e equilibrada. Ao propor o uso de sandboxes regulatórios para testar e monitorar os impactos da IA, o Cade demonstra uma compreensão clara das complexidades envolvidas, evitando o exagero regulatório que poderia sufocar a inovação sem uma real necessidade. Essa postura se alinha a uma visão mais cautelosa e racional, reconhecendo tanto o potencial quanto os perigos da IA, sem ceder ao alarmismo que, em outros contextos, pode gerar regulações prematuras e prejudiciais ao desenvolvimento tecnológico.

Assim, o Conselho se posiciona de maneira acertada ao buscar um equilíbrio entre a necessidade de regulação e o incentivo à inovação, o que parece ser o caminho mais promissor em meio à incerteza que cerca a evolução da IA.

BARCELLOS, S. Que ano começou o WhatsApp no Brasil? Descubra aqui! Disponível em: <https://cidesp.com.br/que-ano-comecou-o-whatsapp-no-brasil/>. Acesso em: 22 ago. 2024.

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BRITO, A. Brasil fica fora de lançamento de IA da Meta após entraves regulatórios. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/meta-lanca-nova-ia-mas-brasil-fica-de-fora-apos-acao-de-reguladores/#:~:text=Como%20consequ%C3%AAncia%20do%20imbr%C3%B3glio%2C%20a%20intelig%C3%AAncia%20artificial%20da>.

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CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Ministério da Justiça e Segurança Pública -MJSP Conselho Administrativo de Defesa Econômica -CADE. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/advocacy/QIP-2020/SEI_CADE%20-%200737899%20-%20Nota%20T%C3%A9cnica%2015%20-%2008027000240-2020-70.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2024.

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Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


Concorrer, Regular e Programar

Maxwell de Alencar Meneses

Falar algo inédito é muitas vezes uma grande dificuldade, especialmente em ambientes altamente competitivos. Essa dificuldade do ineditismo se intensifica ainda mais para alguém que não se encaixa rigidamente no domínio específico da Defesa da Concorrência. A exemplo deste autor, um “nem-nem” – nem economista, nem advogado, mas sim um cientista da computação.

Para preencher essa lacuna deixada por esse certo deslocamento, nada mais apropriado para um bom cientista do que observar ao redor, inclusive para cima. A prática da observação de objetos de estudo e comparação é parte fundamental da boa ciência, mesmo que, por vezes, essa abordagem esteja sendo desafiada pela ascensão de teorias desprovidas de evidências concretas, fundamentadas em opiniões midiáticas.

Soma-se a isso o fato de que, na Ciência da Computação, entre muitas coisas, estuda-se como representar computacionalmente o mundo. Por esse motivo, tende-se a se tornar observador de padrões repetitivos, no caso, inerentes à concorrência, que podem ser eventualmente convertidos em algoritmos.

Nesse olhar ao redor, um padrão repetitivo observado é o uso da lista tríplice, ou triplicidade, já mencionada no artigo  ‘O Bom, o Mau e o Feio‘ e agora outra vez reconhecido no livro ‘Comer, Rezar e Amar’, de Elizabeth Gilbert. Este livro vendeu milhões de cópias e foi adaptado para o cinema, obtendo êxito financeiro e sendo interpretado por ninguém menos que Julia Roberts. Algo tão bem-sucedido não deve passar despercebido, especialmente quando se trata de analisar a concorrência, considerando a significância dos negócios em um cenário tão disputado como o literário e cinematográfico.

Sendo assim, com este texto, propõe-se uma transmutação: uma correspondência biunívoca entre “Comer, Rezar e Amar” e sua versão hipotética parodiada, “Concorrer, Regular e Programar”. Pelo menos para fins de estudo, as viagens, tema da obra literária em questão, teoricamente teriam o poder de proporcionar uma perspectiva diferente sobre os objetos de estudo e sobre a vida, graças ao distanciamento ou à aproximação calculada e planejada desse mesmo objeto que elas podem proporcionar.

Um experimento compartilhado, que não retrata a opinião de nenhuma instituição em particular, nem tampouco a desse autor, sendo meramente um livre teste de hipóteses. Desse modo, utiliza-se da literatura como base para uma análise crítica, assim como, e apesar da análise de Posner, escrita em ‘Law and Literature’.

Concorrer | Comer

Iniciando a jornada pela dimensão do prazer de concorrer, lembra-se que muito se fala a respeito de casos e teorias sobre Defesa da Concorrência, mas nem tanto sobre o âmago do que é, enfim, o objeto dessa defesa: o que se pretende proteger; o que é concorrer? De acordo com o linguista Aldo Bizzocchi, “concorrer”, do latim concurrere, é literalmente “correr juntos” e referia-se à competição esportiva da corrida na Roma antiga[i].

Outro aspecto a se notar é que, em espanhol e outras línguas, o termo concorrência é representado pelo vocábulo competencia, sendo que, para nós brasileiros, o falso cognato competência remete diretamente à capacidade de vencer.

Mas como algo tão fundamental na hierarquia das necessidades humanas, como o alimento, poderia ser relacionado à ideia de concorrência? Em um primeiro momento, parecem ser ideias e conceitos distintos, mas não são. Como sabemos, a busca por alimento é ancestralmente o que moldou as relações humanas entre os caçadores-coletores, onde o homem[ii] ia caçar, competindo por alimento; às vezes ganhando na competição, outras vezes sendo o alimento de seus concorrentes.

De acordo com Darwin, que estudou essa dinâmica durante suas próprias viagens de descoberta, acabou percebendo que o concorrente mais adaptado prevalece. Por outro lado, Moshe ben Amram, em sua travessia pelo deserto e em sua obra denominada Torah, atribui ao homem a característica de ser superior por projeto. Tanto que, ao avaliar os potenciais concorrentes que poderiam compor uma joint venture com ele, a solução encontrada foi promover uma cisão fifty-fifty. A retirada de parte de suas capacidades produtivas, que até então estavam concentradas sob um único controle, formando assim um ser independente.

Portanto, o prazer de comer está intrinsecamente ligado aos instintos de sobrevivência de nossa espécie e, por que não dizer, aos instintos natos de concorrência e competência, que vêm de fábrica, “built-in”[iii] no nosso “firmware”[iv]. O cérebro associa um ao outro: comi porque venci! Daí surge o estímulo do prazer pelo ato de comer, instigando a competir novamente para experimentá-lo mais uma vez, pois, do contrário, seria a morte — a fonte fulcral de todos os medos e ansiedades humanas.

O ato de concorrer e de comer, se considerados como conceitos fundamentais relacionados às necessidades humanas e sendo estes inter-relacionáveis, suscitam a avaliação de como as ações de um Órgão de Defesa da Concorrência, como o Cade, podem ter exercido o papel de preservar ambos.

De fato, não são poucas as análises realizadas pelo Conselho nesse sentido, como, por exemplo, na avaliação do Ato de Concentração (AC) “Carguero”, quando analisou uma joint venture (JV) entre concorrentes nos mercados relacionados ao segmento de commodities agrícolas, que envolvia um software (programa) de intermediação de frete rodoviário, ou seja, uma plataforma digital.

Como esperado, a atuação da Defesa da Concorrência em setores como esse se mostra crucial para, se não garantir, em última instância, promover um ambiente concorrencial saudável capaz de mitigar condições que minem o acesso a alimentos, seja pela oferta ou pelos preços que possam ser deliberados por monopólios.

Também no mercado de commodities agrícolas, destaca-se o inédito AC (Cargill, ADM, LDC e SusteinIt), que envolve alguns dos mesmos grupos econômicos do AC Carguero. Eles formaram uma JV para criar uma plataforma de software multistakeholder, visando rastrear métricas de sustentabilidade nas cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas, como emissões de carbono, desmatamento, água, proteção infantil, trabalho forçado e diversidade, para atender à crescente demanda por informações detalhadas devido a regulamentações, legislações e exigências dos clientes.

O escrutínio desse caso pelo Cade envolveu a averiguação de riscos concorrenciais que poderiam eventualmente interferir na oferta de alimentos, práticas de greenwashing, troca de informações sensíveis, barreiras de entrada ou outras distorções de mercado. O Cade, felizmente, reconheceu seu papel de proteger a concorrência e não se envolver diretamente em questões sociais como a sustentabilidade.

Regular | Rezar

Como visto, as regulações estão causando preocupações nas empresas a ponto de elas construírem sistemas complexos para monitorar suas cadeias de fornecimento e poder dispor dessas informações aos seus demandantes.

Destaca-se que a regulação ocorre proficuamente também nos ambientes computacionais. As regras são amplamente aplicadas de forma semelhante ao mundo natural, com o objetivo de proteger os usuários. No entanto, ao fazer isso, consomem recursos computacionais. Quanto mais regras e proteções são implementadas, mais lentidão, geração de processos de monitoramento concorrentes e arquivos de controle ocorrem, tornando humanamente impossível verificar esses arquivos manualmente.

Cabe, portanto, à reflexão que, se o excesso de regulação pode prejudicar e até paralisar máquinas capazes de processar milhões de instruções por segundo, o que esse excesso pode gerar na condição humana, seja individual ou institucional?

No seu livro, Liz Gilbert relata como cruzou o mundo em busca de conhecer a Deus e encontrar guias espirituais. Ela descreve como se dedicou à repetição de mantras por horas a fio, buscando alguém ou algo que lhe indicasse o que seria o correto, uma regulação de qualidade.

Sentimento parecido foi percebido no saudoso cantor Cazuza, que cantava ou contava que precisava de uma ideologia para viver, expressando um desejo por um conjunto de princípios, crenças ou valores pelos quais valia a pena lutar, o que poderia ser uma filosofia de vida, uma visão política, uma causa social ou qualquer conjunto de ideias que desse significado e direção à sua existência. Já Caetano Veloso cantou em 1968, vivenciando o império da regulação do regime vigente na época, “É proibido proibir”, criticando o conformismo político da mídia.

Regulações que atrapalham até mesmo a regra que resume todas as outras, o amor, na declaração de Yeshua: “Ame o seu próximo como a si mesmo”, e que se manifesta na solidariedade ao próximo que sofre.

 O Cade, mesmo não sendo visto como um regulador propriamente dito, age de forma muito consciente nesse sentido. Não atua para embaraçar o mercado com um emaranhado de exigências, mas trabalha para tornar o ambiente concorrencial previsível, auscultando a sociedade e criando guias e decisões com o objetivo de orientar e sanar pontos não totalmente compreendidos pelo mercado.

Um exemplo disso são seus guias de análise, que publicam as regras utilizadas para suas avaliações de mercado. O baixo índice de reprovação de atos de concentração é um possível indicador de que as partes, já bem informadas, fazem um cálculo empresarial antecipando-se aos limites da bem compreendida jurisprudência do Conselho.

Programar | Amar

A viagem de Elizabeth, descrita em seu livro, se encerra na etapa do “Amar”, em que ela narra o relacionamento que tem com um empresário brasileiro na Indonésia. Nesse ato, é como se os dois se tornassem um só. Para comparar isso com “Programar”, além do sufixo da palavra, talvez seja necessário ter tido a experiência de um “relacionamento” com uma máquina computacional. Assim como em um relacionamento humano, é difícil e requer preparo e dedicação para entrar no mundo das máquinas e inserir seus pensamentos em forma de algoritmos, tornando-se, de certa forma, um só com esse ente.

Com base no conceito de amor expresso por Saulo de Tarso, aqui parafraseado, o amor é caracterizado por paciência, bondade, humildade, respeito, abnegação, autocontrole, perseverança, verdade, resiliência e durabilidade. Não seria difícil encontrar um profissional da área de programação que afirme que, devido ao grau de dificuldade, é necessário amar muito o que se faz para se manter nessa área.

Curiosamente, a primeira pessoa programadora foi a Condessa de Lovelace, filha única de Lord Byron, uma matemática e escritora. Ada Lovelace[v] utilizava uma estratégia que ela chamava de “ciência poética”[vi], integrando imaginação e ciência, o que inicialmente considerava um dever, mas que despertou nela alegria e paixão.

Essa abordagem a levou a explorar a Máquina Analítica, examinando como indivíduos e sociedade se relacionam com a tecnologia. Ada acreditava que intuição e imaginação eram fundamentais para aplicar conceitos matemáticos e científicos de forma eficaz, valorizando a metafísica tanto quanto a matemática para explorar “mundos invisíveis ao nosso redor”.  

As ideias de Ada demonstram a interrelação entre amar, programar e rezar, já desde a década de 1840.

De lá para cá, pode-se entender que nenhuma outra área do conhecimento humano evoluiu tanto e gerou tanta disrupção na sociedade, influenciando o binômio “Concorrer | Comer”, como vimos pelas plataformas digitais alvo de análise antitruste no Cade. A programação e seu efeito, o programa, tornaram-se um fator preponderante para a existência humana e, como tal, de fato requerem uma avaliação necessária em relação aos seus riscos concorrenciais.

Quanto a isso, o Cade vem diuturnamente cumprindo seu papel nesse sentido, seja apurando se o Google estaria privilegiando, nos resultados da busca orgânica, os seus próprios sites temáticos, como o Google Shopping, em detrimento de sites concorrentes, seja por meio de Inquéritos Administrativos, como o caso Google Android e caso Google News, em desfavor do Google, bem como o caso Jedi Blue, em desfavor do Google e da Meta, instaurados para apurar possíveis indícios de infração à ordem econômica verificados em cada um daqueles autos.

Além disso, o Cade está apurando suposto abuso de posição dominante por parte do Google e da Meta relacionado à utilização indevida das plataformas Google, YouTube, Facebook e Instagram para a realização de campanhas em desfavor do Projeto de Lei n° 2630 (“PL das Fake News”).

Concorrer | Regular | Programar ≡ (fogo, água e ar)

Neste ponto, cabe uma reflexão: uma expansão da mente no sentido de considerar que a programação não se restringe ao universo tecnológico. Muito antes disso, o próprio homem é uma máquina capaz de ser programada e tem sido. Não por acaso, vários recursos tecnológicos são criados mimetizando a máquina humana, e não o contrário.

Assim como a aviação e o voo foram concebidos por meio da observação dos pássaros, a computação utiliza a observação de habilidades humanas, como aprendizado, comandos, redes neurais, inteligência, lógica, raciocínio, memória e comunicação, além de objetos e recursos do cotidiano, como arquivos, pastas, programas, agenda e processos, entre outros.

Nesse sentido, vimos crescer uma programação do pensamento humano de modo homogêneo e dominante, com os mesmos comandos e instruções, percebidos por palavras de ordem e agendas unificadas que se tornam universais. Como observado em tantas outras questões que estão pululando na mente das pessoas sem saber ao certo por quê, sem averiguação de sua coerência com os fatos e com o debate cancelado, como quem expulsa um vírus de computador.

Algo que traz nuances de uma concorrência desleal de ideias, uma crença que lembra a religiosa em verdades absolutas e uma robotização programada das massas. O que faz pensar se uma das causas da pressa de regular a última fronteira da tecnologia humana, os avanços recentes no campo da inteligência artificial, teria algo a ver com manter o controle da programação vigente.

Portanto, o trinômio que intitula este artigo pode ser comparado às forças da natureza, como fogo, água e vento (ar), em termos de impacto na nossa sociedade. Sendo assim, seu domínio, de maneira desequilibrada por quem quer que seja, deve ser alvo de discussões e ponderações constantes, como a que aqui se faz. O objetivo não é necessariamente dizer o que está certo ou errado, mas fomentar uma visão crítica sobre a verdadeira natureza dessas questões e a utilização que tem sido dada a elas, antes que a distinção entre homem e máquina esmaeça a ponto de ocorrer a padronização irreversível da característica mais humana: sua individualidade e singularidade.


[i] Bizzocchi, A. (2018). Tag: concorrer. Fonte: DIÁRIO DE UM LINGUISTA: https://diariodeumlinguista.com/tag/concorrer/

[ii] LEOPOLDI, J. S. (2004). As relações de gênero entre os caçadores-coletores. Fonte: Portal de Periódicos da UFG: https://revistas.ufg.br/fcs/article/download/925/1171/5429

[iii] Essencialmente, “built-in” indica que algo está integrado ou embutido no sistema principal, em vez de ser uma adição opcional.

[iv] Firmware é um tipo de software que está incorporado em um dispositivo de hardware para controlar seu funcionamento. permanente no dispositivo, como uma memória flash, e é carregado durante a inicialização do dispositivo.

[v] Ada Lovelace. (2024, fevereiro 6). Wikipédia, a enciclopédia livre. Retrieved 13:43, fevereiro 6, 2024 from https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ada_Lovelace&oldid=67438046.

[vi] Toole, B. A. (2010). Ada, the enchantress of numbers: Poetical science. Betty Alexandra Toole.


Maxwell de Alencar Meneses – cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


Sorria você está sendo regulado!

“Reacts” ao Seminário, à Regulação e à Concorrência

Maxwell de Alencar Meneses

Em meados de novembro, realizou-se o Seminário Internacional de Regulação e Concorrência com o propósito de discutir o modelo vigente no Brasil. Há que se louvar a iniciativa, visto o fato da autoavaliação realizada tratar-se de algo necessário à manutenção das ações nesse sentido dentro de um contexto crítico, não acomodado ao fazer por costume, sem a compreensão dos motivos e o teste da atual necessidade, como ilustrado no artigo anterior com a história “A burocracia/3”.

Assim, a partir das manifestações de palestrantes consideradas mais relevantes para o contexto deste artigo, pretende-se tecer reações decorrentes. Ressalta-se que essas informações podem conter imprecisões e alguma falta de contexto, não representando a opinião de nenhuma instituição em particular, tampouco a do autor. Este realiza aqui um exercício de hipóteses, limitado e com determinado viés.

De início, o Presidente do Cade, Alexandre Cordeiro, abrilhantou a abertura do evento com declarações precisas, fruto do seu conhecimento e sabedoria. Ele é um excelente exemplo da sabedoria definida no artigo sobre o conhecimento do Cade. Afinal, antes de tornar-se chefe da autoridade antitruste brasileira, Cordeiro não foi apenas um acadêmico teórico e autor de um artigo, mas ex-conselheiro e ex-superintende-geral da autarquia por dois mandatos. Dessa fala, destaca-se aqui o termo ‘eleição’, no sentido de que determinados setores foram escolhidos no Brasil para serem regulados, algumas vezes por questões políticas.

Na sequência, o procurador-geral do Ministério Público de Contas da Paraíba e também cientista de dados, Bradson Camelo, aborda a “arte da regulação” como sendo um trabalho comparável ao artístico, que busca encontrar o ponto ótimo da regulação. Ele lembra das falhas de governo como motivo para não regular tudo. Abstrai-se da fala do procurador a necessidade de regular o regulador. Utilizando de histórias para compor seu raciocínio, como o Mito de Gyges para ilustrar a importância da transparência e a história de Ulisses e as sereias para falar da contenção do regulador.

Bruno Drago, Presidente do Ibrac, equipara a concorrência a um tipo de regulação, que seria ex post, ao contrário da ex ante setorial. Ele menciona o manual de boas práticas regulatórias da AGU, que indica que o excesso de regras e a falta de atualização produzem um ambiente deletério em vários aspectos, ou seja, um “custo Brasil”. Drago apresenta dados do relatório Doing Business do Banco Mundial, que coloca o Brasil na 124ª posição entre 190 países no ranking de facilidade para fazer negócios. Além disso, segundo o Relatório de Competitividade Global de 2017-18, o Brasil é um dos piores países do mundo com relação a carga regulatória, ocupando a 137ª posição.

Kaliane de Lira, procuradora federal com atuação na ANTT, define regulação em poucas palavras como a intervenção do Estado na sociedade. Explica que a mudança do Estado empreendedor para um Estado regulador, nos anos 90, se deu pela crise econômica instalada e recomenda artigo disponibilizado aqui na WebAdvocacy, ‘25 anos de regulação no Brasil’, da Professora e colunista Amanda Flávio de Oliveira. Pontua a respeito da necessidade de um Estado forte, não no sentido da imposição do comando e controle, mas forte para criação de um ambiente saudável. Celebra a lei de liberdade econômica, ponderando que ela diz o óbvio, mas que o óbvio muitas vezes precisa ser dito.

Na discussão a partir da perspectiva Law and Economics, destacam-se alguns trechos de falas curtas capazes de delinear bem o cenário atual. O subprocurador-geral do Trabalho, Manoel Jorge e Silva Neto, lembra que dominar é um atavismo humano. André Bueno da Silveira, procurador da república, fala a respeito de adaptações do direito concorrencial para inserir labor antitruste e green antitruste, discutindo a tolerância quanto a acordos entre empresas para custear questões ambientais e a possibilidade de atritos com Justiça do Trabalho em casos antitrustes. Márcio de Oliveira Junior, ex-conselheiro do Cade, considera que, no Brasil, a área de defesa da concorrência é uma das poucas em que o Estado brasileiro pune com eficiência, ao fazê-lo por meio de evidências empíricas. Nesse sentido, apresenta o caso Innova Videolar e aduz a respeito de erros e acertos.

Oksandro Osdival Gonçalves, advogado e professor da PUC-PR, assevera que o poder regulador, de modo geral, não leva em conta a concorrência. A perspectiva da análise econômica do direto é o realismo. Um livro, jurídico apenas, aborda situações desconectadas da realidade. A utilidade, a felicidade, a eficiência são outros aspectos observados. Regras claras fazem você feliz, mas no direito tributário é impossível ser feliz. O palestrante menciona os custos de transação, o tempo jurídico e tempo econômico, e relata ter tratado casos no judiciário devido ao tempo do Cade, exemplificando com o caso Nestle Garoto.

Lilian Marques, Economista-chefe do Cade, afirma que a autarquia não tem o papel de regular. Existe uma certa confusão nesse sentido, uma vez que o princípio por trás da ação do Cade não é o da regulação. As agências reguladoras, responsáveis setoriais, têm a competência para atuar nesse sentido. No entanto, o Cade tem uma abordagem abrangente, olhando para todos os mercados.

A Economista considera que, para o Cade, o foco principal é se ater aos efeitos concorrenciais. Expandir sua atuação para questões ambientais e outras áreas poderia gerar dúvidas sobre prioridades. Adições contínuas podem fazer o órgão se afastar do cerne, que é o ambiente concorrencial. Lilian Marques lembrou da atuação do Cade em questões regulatórias que afetavam a concorrência no setor da aviação, assim como nas propostas de controle de preços durante a pandemia, entre outras situações.

Sob o tema dos objetivos da defesa da concorrência versus objetivos da regulação, o conselheiro do Cade, Victor Fernandes, pondera que, partindo de alguns teóricos, quando a regulação é exauriente do comportamento dos agentes econômicos, quando ela não dá nenhuma outra margem a esse agente, aí, nesse sentido, falece a competência do direito da concorrência. Dario Oliveira, Diretor do Global Antitrust Institute, destaca que o antitruste pode ser compreendido como um subconjunto da regulação, encarregado de lidar com o poder de mercado. Este representa um domínio especializado dentro da regulação, caracterizando-se pela intervenção do Estado na solução de falhas de mercado relacionadas ao exercício excessivo do Poder de Mercado.

A Professora de Direito da UnB, Dra. Amanda Flavio, traz a fala mais disruptiva e interessante de todo o evento. Segundo a professora, se configurado o pensamento em modo “economês”, regulação existe para correção de falhas de mercado. Se mudado para modo “juridiquês”, a regulação é para assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social, de acordo com a Constituição de 1988, que versa sobre o objetivo da ordem econômica.

Já a respeito dos objetivos da concorrência, nos mesmos dois “modos” anteriores, não se sabe, pois trata-se de uma discussão recorrente desde sua concepção, que agudamente ainda está posta no direito e na economia. A regulação e a concorrência têm uma premissa comum, que é a crença na capacidade do Estado de promover desenvolvimento, e outras subjacentes, como a neutralidade e infalibilidade do agente público.

Outra premissa é a existência de uma técnica soberana e definitiva. Há também uma fixação que existe no Brasil na ideia da solução de desigualdade e não no combate à pobreza, o que traz consequências que podem não estar sendo compreendidas. Existe também uma prevalência subjacente de que há um dever do agente de agir, que está na mente da população, fazendo com que todos anseiem por regulação. Na realidade, o agente público é falível, condenável é a pobreza, e em atividade econômica não há espaço constitucional para dever de agir apriorístico, e as técnicas são várias e estão sempre em evolução.

Em nosso sistema constitucional, só há um objetivo para regulação e política concorrencial: assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. Se nossas premissas regulatórias e concorrenciais não se confirmam na realidade, a cautela e a autocontenção devem prevalecer. De vez em quando, precisamos parar de mergulhar em teorias e doutrinas e olhar as coisas como elas são, parar para pensar por que elas existem.

Fechando o primeiro dia, Guilherme Ribas, Diretor do Ibrac, trouxe um dado interessante: de outubro de 2022 a outubro de 2023, foram revisados pelo Cade 599 ACs. Dessas revisões, 192 casos, ou seja, aproximadamente um terço, estavam relacionadas a mercados regulados.

No segundo dia, abordando a análise de impacto regulatório e a avaliação de impacto legislativo, Fernando Meneguin, consultor legislativo do Senado Federal, discute o abuso regulatório e as falhas governamentais, destacando sua importância. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) não está sendo devidamente implementada, uma vez que o governo não a está exigindo e os técnicos não estão familiarizados com o processo, correndo o risco de tornar-se letra morta. Não existem sanções para quem não a cumpre, e há várias exceções, como na área tributária, nos decretos presidenciais e nas proposições encaminhadas ao Congresso Nacional. Vale ressaltar que o relatório da AIR não é vinculante.

Fernando também menciona que conforme o RegBR da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) em 2021, na área de transporte e armazenamento, foram estabelecidas 149 normas, enquanto na área de saúde e serviços sociais foram 109, a maioria sem AIR. Além de buscar aprimorar a qualidade das normas, é essencial reduzir o número delas, pois no Brasil há uma cultura que sugere que todos os problemas podem ser resolvidos por meio de normas. Segundo o palestrante, é importante reconhecer que existem diversas outras maneiras de alcançar objetivos sociais sem necessariamente recorrer à criação de normas.

César Mattos, consultor da Câmara dos Deputados e colunista da WebAdvocacy, discute sobre as Iniciativas de Análise de Impacto Legislativo (AIL) na Câmara, que são iniciativas de pequeno porte cujo progresso é incerto. Ele destaca a importância do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) como entidade autônoma e apresenta o checklist de concorrência desenvolvido na Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) como um instrumento para avaliação de problemas concorrenciais.

O conselheiro do Cade, Gustavo Augusto de Lima, remonta à origem da Análise de Impacto Regulatório (AIR), que teve início no governo Reagan nos anos 80 e, na realidade, buscava evitar a criação de novas normas. Além disso, ele exemplifica como, no caso dos planos de saúde individuais, a regulação prejudicou esse produto. Ele também reforça a necessidade de utilizar estudos empíricos, simulações e análises baseadas em evidências.

Diogo Andrade, Superintendente-adjunto do Cade, enfatiza que, no campo do direito econômico, o excesso de normas não apenas pode, mas é, de fato, um entrave à livre iniciativa e à livre concorrência. Ele argumenta que esse excesso dificulta a intervenção estatal. No Cade, muitas vezes, surge a necessidade de intervir para corrigir um problema anticompetitivo específico em um caso concreto. No entanto, as regulamentações do setor, a maneira como algo está regulado ou outras normas tornam-se obstáculos e fronteiras, que às vezes são até insuperáveis.

Tratando-se da AIR nas agências reguladoras, autoridades de diversas agências reguladoras brasileiras expuseram sua estrutura, processos, metodologias, padrões e reconhecimentos que vêm obtendo devido à qualidade regulatória alcançada. Além disso, sugeriram que todos os poderes da República passem a adotar esse tipo de ferramenta relacionada à qualidade regulatória. Foi apresentado um dado do fórum econômico mundial indicando que de 1988 a 2019 mais de 6 milhões de normas foram editadas.

Sobre o tema de cartéis e regulação, Ana Patrícia Lira, subsecretária de Regulação e Concorrência do Ministério da Fazenda, destaca o papel da Secretaria de Reformas Econômicas na construção de regulamentações que inibam a formação de cartéis e outras práticas anticompetitivas. Além disso, apresenta ações em curso, como o estudo da necessidade de regulamentação de plataformas digitais. Adicionalmente, a subsecretaria atuou contra uma emenda que propunha a criação de um conselho de supervisão externa das agências. A SREG também esteve envolvida na proposta de alteração do Decreto n° 10.411/2020 para estabelecer a avaliação obrigatória do impacto concorrencial pelas resoluções das agências reguladoras e demais reguladores.

Fernanda Garcia Machado, superintendente-adjunta do Cade, informa que um terço das investigações em andamento ocorre em mercados regulados, tais como combustíveis, transportes, medicamentos, fretes e seguros. A teoria econômica reconhece que alguns fatores estruturais facilitam a formação de cartéis, como a homogeneidade de produtos e serviços, barreiras à entrada, entre outros. Muitos desses fatores são observáveis em mercados regulados. Desenvolver ações voltadas para aumentar a competitividade seria uma maneira eficaz de prevenir a formação de cartéis.

Valdir Alves, membro titular do MPF junto ao Cade, destaca que a regulação alcança todos os setores, seja de forma direta ou indireta. Ele fornece exemplos de excessos e abusos, como reservas de mercado e barreiras artificiais. Além disso, enfatiza a importância de considerar o destinatário da norma para determinar se deve ou não realizar uma análise de impacto.

No que diz respeito às regras concorrenciais, Alves acredita que o Brasil acertou ao ter uma lei específica de concorrência, que serve como um instrumento vigoroso para o tribunal. Ele destaca que a legislação abrange um tipo aberto de ilícito concorrencial, com um rol exemplificativo, permitindo ao tribunal atualizar constantemente as condutas, mesmo sem a menção explícita de termos como “cartel” na lei.

Alves reforça a importância da transparência no combate a cartéis em licitações públicas e aborda questões relacionadas à alteração da lei de licitações, destacando a permissão, como regra, para a realização de consórcios.

Luiz Hoffman, ex-conselheiro do Cade, lembra que a administração pública para o jurisdicionado é uma só, no sentido da necessidade de harmonização de regras. Além disso, aborda detalhes de casos concretos relativos a consórcio em licitações.

A respeito de regulação e concorrência no Brasil e nos Estados Unidos, o superintende-geral do Cade, Alexandre Barreto, exalta a importância da coordenação e troca de informações entre regulação e concorrência, mediante exemplos em casos concretos. Informa que nos últimos 4 anos, foram 626 atos de concentração sumários e 88 ordinários, totalizando 714 casos. No setor de energia 306 casos, telecomunicações 74 casos e tantos outros. Na investigação de condutas algo em torno de 25 casos em 2023 e 23 casos em 2022 em setores regulados.

Segundo Krisztian Katona, ex-membro da Federal Trade Commission (FTC), o ponto central de intensos debates globais sobre o equilíbrio adequado de regulação está nos mercados digitais. Os debates se encontram em diferentes estágios. Entre as várias regulações em andamento, a mais discutida é a europeia, DMA, que estará totalmente implantada em 2024. É crucial acompanhar os resultados. Até o momento, a Alemanha é o único país que implementou uma regulação ex-ante nos mercados digitais, mas é cedo para compreender completamente os efeitos desse regulamento.

Nos Estados Unidos, há uma proposta que despertou muita atenção: o American Innovation and Choice Online Act Bill. Muitas preocupações foram levantadas sobre diversos aspectos, resultando na perda da oportunidade de prosseguir. A regulação da concorrência não existe no vácuo; as características do mercado mudam rapidamente ao longo do tempo. As regulamentações de hoje mostram respostas diferentes ao longo de 3 a 5 anos. Por exemplo, nos EUA, no setor de transportes, houve lições aprendidas sobre como não regular, a partir do resultado observado com problemas para a concorrência e para os consumidores ao longo do tempo.

Por fim, processando tudo o que foi pronunciado nesse rico evento e, em parte, reproduzido aqui como objeto de estudo, as preocupações tornam-se pungentes em relação ao futuro do Brasil. Isso não se deve exatamente à quantidade exacerbada de normas, mas sim ao fato de que o povo brasileiro aparentemente gosta que seja assim e anseia por receber cada vez mais proteção do Estado por meio de regulamentações. Acrescente a isso o fato de que, já desde a antiguidade, filósofos como Platão, por meio de sua teoria das ideias ou formas, consideravam que o mundo, de fato, é mental. Portanto, no mundinho tupiniquim, a realidade deve continuar a ser essa enquanto uma outra perspectiva não for experimentada consistentemente desde a tenra idade.

Tanto é assim que, em cursos ou oficinas de inovação, é comum dedicar horas buscando reverter, nos adultos, os efeitos tolhedores de criatividade sedimentados ao longo dos anos quando crianças, no ensino de regras de conduta que talham em pedra como comportar-se, no sentido duplo de se moldar a algo. Então, essa criança passa por um sistema de ensino rígido e restrito, desembocando, quando possível, em uma formação universitária dominada por determinado viés, tornando-se servidor público e retroalimentando esse processo.

A frase comumente atribuída a Einstein, de que uma mente exposta a uma nova ideia nunca volta ao seu tamanho original, consiste em uma esperança. Ao conhecer inovações como o Uber e tantas outras disrupções rápidas o bastante para não dar tempo de o Estado pôr a mão, o brasiliano pode perceber que existe um outro mundo, mais leve, ágil e próspero. Nesse mundo, a tragédia dos concorrentes comuns ainda não foi instalada, e os gigantes podem ceder a pequenos pastores de ovelhas.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


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De Davi a Gigantes Corporativos: Reflexões sobre o Poder de Mercado e a Influência das Histórias

Maxwell de Alencar Menezes

Steve Jobs, o fundador e ex-CEO da Apple, afirmou que o contador de histórias é a pessoa mais poderosa do mundo. Ele ilustrou que o mundo é feito de histórias e não de átomos[i]. Ao utilizar esses princípios, Jobs conseguiu transformar sua empresa e o mundo com o lançamento do Iphone. Uma inovação que é fruto não apenas de um engenho tecnológico, mas também de uma história muito bem contada, que estimulou com as pessoas a adotarem até hoje esse novo meio de comunicação e interação.

Neste quinto artigo para o WebAdvocacy, apresentam-se histórias adicionais que se somam às já discutidas, tais como a história da Microsoft e sua venda casada[ii], mencionada no primeiro artigo; além das histórias sobre o bom, o mau e o feio no antitruste do segundo artigo[iii]; e o conhecimento do Cade[iv] e as dificuldades enfrentadas pelos concorrentes comuns[v], abordados nos terceiro e quarto escritos. Todas são hipóteses que não representam a opinião de qualquer instituição em particular, nem necessariamente do autor, mas são apenas cenários de reflexão.

Nesse sentido, o escritor uruguaio Galeano, que foi perseguido pelo regime militar, narra em sua crônica “A burocracia/3”[vi] uma história sobre um quartel onde um soldado estava sempre de guarda ao lado de um banco. Passaram-se muitos anos até que um certo comandante decidiu investigar a razão para isso e descobriu que o banco havia sido pintado muito tempo atrás. O comandante daquela época havia ordenado a alguém: “Fique de olho para que ninguém se suje com a tinta fresca.” Desde então, esse cuidado desnecessário continuou, sem que ninguém questionasse se ainda fazia sentido manter essa prática para sempre.

A partir deste ponto, inicia-se o fio condutor deste artigo, cujo objetivo é examinar se o banco pintado, na perspectiva antitruste relacionada ao receio das grandes corporações, continua fresco ou se a sentinela está lá por mero hábito.

A primeira história trazida aqui é a famosa luta entre Davi e Golias. Davi, um jovem judeu mirrado que mal conseguia carregar uma armadura de combate, enfrentou um Gigante Filisteu[vii], que habitava o que hoje é a Faixa de Gaza e naquela época ameaçava continuamente o exército israelita. No entanto, Davi enfrentou-o com um estilingue e derrubou-o com uma única pedrada. Essa história ilustra e modela a ideia de como um Gigante, que, no contexto atual, pode ser interpretado como uma corporação com grande poder de mercado, pode potencialmente eliminar os pequenos. No entanto, a agilidade do pequeno em contraste com o gigantismo pode, na realidade, revelar a verdade desse cenário concorrencial.

Essa imagem do grande vilão contra o pequeno indefeso tem implicações na defesa da concorrência. Segundo o critério do Cade para notificação obrigatória de atos de concentração, uma operação envolvendo um grupo A com um faturamento de R$ 750 milhões e um grupo B com um faturamento de R$ 75 milhões deve ser notificada. Esse critério pode ser interpretado como uma salvaguarda contra a situação em que um gigante ataca um concorrente dez vezes menor. Tanto que, no caso de dois grupos com um faturamento na faixa de R$ 600 milhões, a notificação não seria obrigatória, mesmo que o grupo resultante da operação atinja R$ 1,2 bilhão, bem maior do que pelos limites mínimos estabelecidos, que atingiria R$ 825 milhões.

Ainda em relação aos gigantes, há o ‘EB’, que não se refere ao Exército Brasileiro, embora pudesse, mas, neste contexto, se trata do Elefante Branco. Ele foi até homenageado tornando-se nome  de uma escola[viii] em Brasília. Esse termo, de acordo com o sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz[ix], remonta à história de um ‘presente’ dado no antigo reino de Sião: o rei presenteava alguém com um Elefante Branco, e o presenteado acabava por falir devido aos custos de manutenção. Kurz também considerava a máquina militar, especialmente a dos Estados Unidos, como o maior e mais pesado de todos os elefantes brancos.

De modo análogo, o filósofo inglês Thomas Hobbes ressuscita outro gigante, o Leviatã bíblico, há muito tempo exterminado pelo próprio criador, e o coloca na figura do Estado como o ente responsável por cuidar dos indivíduos egoístas, que, de outro modo, não são capazes de deixar de abusar uns dos outros. Seguindo essa linha de raciocínio, no caso de empresas gigantes, elas precisariam de uma estrutura estatal gigante para impedi-las de devorar as menores. Aqui, cabe destacar que não se intenta nenhuma crítica à atuação do Cade, que se pauta nas regras definidas. Tratam-se de reflexões a respeito de um ponto anterior a essas regras, no sentido de perscrutar as histórias que de algum modo as influenciaram a se tornar o que são.

Por outro lado, observa-se que a vida de gigante não é tão maravilhosa quanto parece. A própria Apple, após a saída de Steve Jobs, quase faliu enfrentando forte concorrência da Microsoft e da IBM[x], que, aliás, também enfrentou grandes dificuldades. Mais recentemente, o Facebook[xi] enfrentou fortes turbulências com quedas no valor de suas ações e o rápido crescimento da base de usuários de concorrentes como o TikTok. Além disso, existem exemplos como o Yahoo, Xerox, Kodak e Nokia, gigantes que, assim como o Titanic, não conseguiram manobrar rapidamente o suficiente para desviar de obstáculos, ou pelo menos evitar grandes quedas das quais não conseguiram se recuperar totalmente.

Gennaro Cuofano, o criador do ágil e inovador FourWeekMBA, ao tratar de como as empresas mudam com o tamanho[xii], ilustra como o Facebook inicialmente tinha agilidade para transformar sua empresa rapidamente. No entanto, a olhos vistos, perdeu essa característica que o impulsionou à grandeza. O lema da rede social, que era “mova-se rápido e quebre as coisas”, foi alterado para “mova-se rapidamente com infraestrutura estável”, o que nitidamente se tornou um paradoxo e um freio. Um sinal claro de que o custo e o risco de simples correção de falhas aumentaram de tal forma que tornou a empresa, em certa medida, lenta e, por isso, vulnerável, como é o caso de outros gigantes, sejam estatais ou privados.

Além dos custos e dos riscos, há também que se considerar a influência da cultura organizacional que tende a resistir a mudanças, muitas vezes funcionando como um mecanismo de defesa contra a introdução de elementos externos em sua estrutura. Em parte, é por isso que surgem as spin-offs, empresas criadas por organizações de grande porte com o propósito de explorar inovações ou novos mercados. Em resumo, as spin-offs servem como uma forma de manter um grupo de pessoas com mentalidades diferentes isolado da influência e das restrições da organização principal, que muitas vezes se concentra em seus processos estabelecidos. Em outras palavras, sou tão grande que preciso me fazer pequeno para conseguir me manter relevante e competitivo.

As startups, por sua vez, são empresas pequenas e inovadoras criadas por empreendedores que identificam oportunidades negligenciadas pelas grandes corporações. Essas empresas disruptivas atraem investidores aos montes para o Brasil, que usualmente se voltava mais para o consumo e revenda de produtos estrangeiros do que para a produção de inovações tecnológicas. De acordo com o Sebrae, nos últimos quatro anos, as startups nacionais conquistaram mais de 60%[xiii] do total de investimentos em empresas inovadoras na América Latina, totalizando cerca de R$ 108 bilhões.

Além disso, as grandes corporações não de hoje procuram terceirizar bastante sua operação. Com isso, a intenção seria tornar o Elefante Branco menos custoso, para que possa focar seus esforços em seu core business, a fim de manter-se competitivo frente aos concorrentes mais leves, sem toda essa bagagem adquirida. Tanto é assim que, em alguns casos, até mesmo os fabricantes de equipamentos optam por terceirizar a produção desses equipamentos[xiv], direcionando seu foco para a concepção e os projetos, em vez de se concentrarem nas operações de chão de fábrica. O que pode ser entendido como uma tentativa de emular o modelo operacional de uma startup.

Até agora, tornou-se evidente que manter-se como uma grande empresa traz consigo inúmeros desafios e leva muitas organizações a adotarem estratégias de compartimentação e redução organizacional para se manterem competitivas.

A preocupação central gira em torno da possibilidade de os gigantes do mercado, de forma unilateral, praticarem abuso de poder econômico, particularmente quando se trata de manipulação artificial de preços, o que pode prejudicar os consumidores e o mercado. Uma tática clássica adotada por empresas com poder suficiente é a redução excessiva de preços, a ponto de eliminar seus concorrentes.

O único exemplo encontrado de condenação pelo Cade por práticas abusivas de preço predatório ocorreu em 1987 no caso Centralsul Defensa[xv], no qual o Dr. Mauro Grinberg, colunista do WebAdvocacy, atuou como Conselheiro-Relator.

No entanto, ao analisar os brevíssimos resumos dos casos a seguir, torna-se evidente que a maioria das condutas relacionadas ao abuso do poder econômico, que estão em certa parte ligadas a manipulações unilaterais de preços, foi arquivada devido à falta de indícios suficientes para caracterizar tais práticas.

Em 2022, a Superintendência-Geral do Cade conduziu uma investigação sobre possíveis infrações à ordem econômica no mercado de transporte aéreo doméstico de passageiros. A análise incluiu a possível prática de preços abusivos. No entanto, devido à ausência de indícios robustos, o Inquérito Administrativo foi arquivado[xvi].

Além disso, durante a apuração de um possível aumento abusivo de preços por parte de empresas de saúde, em resposta à alta demanda por produtos farmacêuticos devido à COVID-19, o Cade concluiu que não houve abuso de poder de mercado[xvii].

No caso de uma suposta prática de discriminação de preços e condições de contratação no fornecimento de gás natural pela Petrobras às concessionárias de distribuição de gás canalizado, a análise do Cade não encontrou evidências de efeitos anticompetitivos no mercado, resultando no arquivamento do caso[xviii].

Uma outra investigação envolveu a conduta da Rodopetro, que alegadamente deixou de recolher tributos de forma deliberada e recorrente para praticar preços mais baixos na distribuição de etanol hidratado. No entanto, o Cade decidiu arquivar o caso devido à ausência de indícios de condutas anticompetitivas por parte da empresa[xix].

Em relação ao mercado de vales benefício, o Cade investigou alegações de subsídio cruzado e uso anticompetitivo de dados pela iFood.com. A prática de subsídio cruzado, onde a empresa utilizava receitas de sua plataforma digital dominante para subsidiar descontos e vantagens no mercado de vales benefício, foi arquivada devido à falta de indícios de infração à ordem econômica, embora com indicação de que poderia ser objeto de investigação futura[xx].

No mercado de intermediação de milhas aéreas, o Cade apurou alegada manipulação de valores e eliminação de descontos aos consumidores. Contudo, o caso foi arquivado devido à insubsistência de indícios de infração à ordem econômica[xxi].

Por outro lado, e para concluir, um caso emblemático de condenação  não diz respeito a preços, mas envolveu a cobrança de taxas por parte do operador portuário do Porto de Suape/PE[xxii].

Aqueles que chegaram até este ponto podem começar a conectar algumas peças e refletir sobre o que foi sugerido no início deste artigo. Um momento de parar para pensar, questionar e investigar práticas que persistem, examinar os personagens das histórias apresentadas, como o Soldado do banco pintado, o Gigante Golias, o Elefante Branco, o Leviatã, as grandes corporações enfrentando desafios e seus esforços de terceirização, bem como as spin-offs e startups, juntamente com o que parecem ser raros casos de efetivo abuso de poder por parte desses temíveis gigantes de forma unilateral, mesmo nos mais variados mercados.

Nesse cenário, onde as grandes corporações podem ter sua aura de invencibilidade e perigo decorrente de seu poder de mercado desmistificada, poderia se considerar uma investigação mais minuciosa do algoritmo que, na prática, determina que aqueles com a capacidade de cometer abusos realmente o façam. Em semelhança a como todos os automóveis têm o potencial de causar danos, mas na realidade, apenas uma pequena parcela deles exerce esse potencial.

Outro aspecto, embora venha ser abordado por último, não é menos importante: o mindset derrotista versus o perseverante. Davi, naquele tempo, assim como as startups de hoje, acreditam plenamente em sua capacidade de se tornarem os próximos gigantes. Elas não veem a necessidade de intervenção de um monstro atrapalhado como o Leviatã para ajudá-las, pois os dinossauros, devido ao peso de sua grandeza, não sobreviveriam nos dias de hoje.

A mentalidade conhecida como “síndrome do balde de caranguejo” ou “crab bucket syndrome” não é exclusiva de regiões costeiras no nordeste ou em qualquer lugar específico. Trata-se de um fenômeno estudado pela psicologia em todo o mundo[xxiii], que se manifesta de várias maneiras. Uma dessas manifestações, talvez influenciada pelo inconsciente coletivo e pela disseminação de histórias, é a tendência a controlar concentrações. O que significa que, quando uma empresa parece estar saindo dos limites do “balde” (ultrapassando thresholds de concentração), pode haver forças normativas que tentam puxá-la de volta para dentro, para a comunidade, para a tragédia dos concorrentes comuns.

Essa mentalidade reflete como histórias e influências culturais podem impactar as ações e decisões das pessoas, inclusive no mundo dos negócios. Um exemplo notável desse fenômeno é o trabalho do psicólogo israelense Daniel Kahneman, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia por suas pesquisas sobre a racionalidade humana na tomada de decisões.

Como conclusão, sugere-se que, em vez de manter uma vigilância constante sobre o banco pintado, deveria se considerar a ideia de que, em vez de puxar o caranguejo de volta para o balde, instituições dedicadas à promoção da concorrência poderiam investir em capacitar outros para também saírem do balde. O que pode ser promovido por meio do investimento em programas de capacitação empresarial e na criação de incentivos que facilitem o acesso de novos concorrentes ao mercado, permitindo que compreendam os processos de sucesso que levaram algumas empresas a se tornarem grandes. O objetivo não deve ser apenas transferir o problema para outro lugar, mas sim promover um ambiente com mais concorrência e menos interferência, proporcionando benefícios para todos os envolvidos.


[i] Jobs, S. (1996). The next insanely great thing. Wired, 4(3), 74-821

[ii] Meneses, M. d. (2023). Venda casada de PC novo com sistema Operacional Microsoft. Fonte: WebAdvocacy: https://webadvocacy.com.br/2023/06/07/venda-casada-de-pc-novo-com-sistema-operacional-microsoft

[iii] Meneses, M. d. (2023). O Bom, o Mau e o Feio: Como um faroeste espaguete pode nos ensinar sobre antitruste. Fonte: WebAdvocacy: https://webadvocacy.com.br/2023/07/13/o-bom-o-mau-e-o-feioi-como-um-faroeste-espaguete-pode-nos-ensinar-sobre-antitruste/

[iv] Meneses, M. d. (2023). Onde reside o conhecimento do Cade? . Fonte: WebAdvocacy: https://webadvocacy.com.br/2023/08/18/onde-reside-o-conhecimento-do-cade/

[v] Meneses, M. d. (2023). A Tragédia dos Concorrentes Comuns. Fonte: WebAdvocacy: https://webadvocacy.com.br/2023/09/28/a-tragedia-dos-concorrentes-comuns/

[vi] Galeano, E. (2002). A burocracia/3. Em O livro dos abraços (p. 54). Porto Alegre: L&PM.

[vii] Romey, K. (2019). Origem dos filisteus pode ser finalmente revelada por DNA antigo. Fonte: National Geographic: https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia201907origem-dos-filisteus-pode-ser-finalmente-revelada-por-antigo-dna

[viii] Salomão, M., & Araujo, A. L. (2021). Educação libertadora: Elefante Branco faz 60 anos nesta quinta-feira. Fonte: Eu Estudante: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2021/04/4919466-educacao-libertadora-elefante-branco-faz-60-anos-nesta-quinta-feira.html

[ix] Kurz, R. (2001). Elefantes brancos. Folha de São Paulo.

[x] Denning, S. (2011). Why Did IBM Survive? Fonte: Forbes: https://www.forbes.com/sites/stevedenning/2011/07/10/why-did-ibm-survive/?sh=f404a2c1cac4

[xi] Kerry, F. (2023). Facebook vs TikTok: Everything you need to know! Fonte: Search Engine Insight: https://www.searchengineinsight.com/facebook-vs-tiktok/

[xii] Cuofano, G. (2023). Grandeza, Grande Demais Para Escalar: Como As Empresas Mudam Com O Tamanho. Fonte: FourWeekMBA: https://fourweekmba.com/pt/escada/

[xiii] Startups brasileiras conquistam 60% dos investimentos feitos na América Latina. (2023). Fonte: Agência Sebrae de Notícias: https://agenciasebrae.com.br/inovacao-e-tecnologia/startups-brasileiras-conquistam-60-dos-investimentos-feitos-na-america-latina/

[xiv] Flextronics assume parte da produção da Xerox no Brasil. (2001). Fonte: FolhaONLINE: https://www1.folha.uol.com.br/folha/reuters/ult112u6560.shtml

[xv] PROCESSO ADMINISTRATIVO N° 65/1981

[xvi] vide nota técnica nº 8/2022/cgaa8/sga2/sg/cade versão pública

[xvii] nota técnica nº 19/2022/cgaa2/sga1/sg/cade versão única de acesso público

[xviii] PROCESSO ADMINISTRATIVO nº 08700.002600/2014-30  VIDE VOTO ACESSO PÚBLICO GAB5

[xix] Inquérito Administrativo n° 08700.002532/2018-33 VIDE VOTO VOGAL – CONSELHEIRO MAURICIO  OSCAR BANDEIRA MAIA VERSÃO PÚBLICA ÚNICA

[xx] Inquérito Administrativo nº 08700.001797/2022-09 VIDE VOTO VOGAL – CONSELHEIRO SÉRGIO COSTA RAVAGNANI VERSÃO PÚBLICA

[xxi] Procedimento Preparatório nº 08700.001519/2019-48 VIDE VOTO VOGAL – conselheiro gustavo augusto versão pública

[xxii] Cade condena Tecon Suape por cobrança de THC2. (2021). Fonte: Conselho Administrativo de Defesa Econômica: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-condena-tecon-suape-por-cobranca-de-thc2

[xxiii] Breuning, L. G. (2019). When Others Hold You Back. Fonte: Psychology Today: https://www.psychologytoday.com/us/blog/your-neurochemical-self/201903/when-others-hold-you-back


Maxwell de Alencar Meneses. Cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


A Tragédia dos Concorrentes Comuns

Maxwell de Alencar Meneses

Shlomo ben Dovid, no século X a.C. apregoou algo que ao contrário de algumas teorias e modelos vem sempre sendo testado e provado ao passar dos milênios: “O que foi voltará a ser, o que aconteceu, ocorrerá de novo, o que foi feito se fará outra vez; não existe nada de novo debaixo do sol. Será que há algo do qual se possa dizer: ‘Vê! De fato, isto é absolutamente inédito?’ Não! Já existiu em épocas anteriores à nossa”.

Essa afirmação, como pressuposto, nos permite entender como o ensaio publicado pelo ecologista Hardin em 1968 a respeito da exploração não regulamentada de recursos naturais[i], que se baseou, por sua vez, em escrito do matemático William Forster Lloyd de 1883[ii] com referências a vilarejos medievais, pode ser recorrentemente aplicado e avaliado em contextos atuais. Se bem que Moshe ben Aharon, ainda no século XIII a.C., já havia recomendado a propriedade privada e o descanso da terra a cada 7 anos, o que hoje podemos perceber claramente sob a roupagem da rotação de culturas defendida pela Embrapa ou do pagamento pelo não cultivo feito nos EUA, como um antídoto para algumas condições abordadas por Hardin na Tragédia dos Comuns.

O interessante dessas condições é que são fruto da observação, ainda que indireta, de cenários práticos, a exemplo de outros grandes pensadores, como Arquimedes, que teria descoberto a Lei da Flutuação e gritado ‘Eureka’ nu durante o banho, e a história da maçã que teria inspirado Newton à descoberta da Lei da Gravidade.

De forma análoga, pode-se dizer que Brasília, o Brasil, o brasileiro e a dinâmica da concorrência entre as empresas proporcionam histórias e dimensões a serem observadas, a fim de extrair ou confirmar leis ou princípios subjacentes, semelhantes a algoritmos que ditam como o mundo funciona. Neste contexto, estas dimensões são percorridas aqui de modo exploratório para provocar uma melhor reflexão acerca do seu funcionamento e sua influência conjunta para somatização de seus efeitos.

A iniciar por Brasília, que em geral é considerada uma cidade não comum, embora Palmas tenha se utilizado de conceitos e formatos de Brasília, a capital do Brasil é, no entanto, um palco do comum. Os criadores da cidade, simpáticos a ideias comunistas (do latim ‘communis’, que significa comum ou compartilhado), implementaram esses conceitos de forma evidente na cidade. Os blocos de apartamentos parecidos entre si, que se assemelham a prédios moscovitas de períodos próximos e contam com algo impensável em outras capitais: não há cercas, ao contrário, livre trânsito por baixo dos prédios, garantido pelos pilotis. Já se discutiu o cercamento por questões de segurança, mas a ideia não evoluiu para não descaracterizar o tombamento da cidade.

A Área Octogonal Sul, também idealizada por Lúcio Costa, se difere por ser o primeiro local em formato de condomínios fechados de prédios em Brasília, e ainda hoje é a única área com as características urbanísticas similares ao plano piloto que tem esse privilégio. Aí que a tragédia se manifesta, como se fosse por um refrator de greens, aquele aparelho usado pelo oftalmologista mudando lentes e perguntando: ‘Está melhor ou está pior?’ Dentro dos alambrados da quadra, o ‘está melhor’ – jardins perfeitamente cuidados, limpeza e beleza – mas entre as quadras há a área dos comuns, o ‘está bem pior’, que é de responsabilidade pública e também de todos – uma sujeira e morosidade para manter as coisas em ordem – a terra de ninguém aludida pela ‘Tragédia dos Comuns’.

O que é curioso é que o problema parece que não reside no uso incorreto ou excessivo de recursos, que em tese seria evitado se disciplinado pelo Estado. Os moradores são ocasionalmente vistos cuidando das áreas comuns, plantando e cuidando de árvores, além de financiarem melhorias identificadas como custeadas pela comunidade em tais áreas. A verdadeira tragédia ocorre quando o Estado assume a responsabilidade pelo cuidado de algo, que foi tornado comum.

No Brasil, mais especificamente na extremidade sul, Porto Alegre, há um parque chamado Parque Moinhos de Vento (ou ‘Parcão’) que abriga a Escola Estadual Uruguai, formadora de especialistas em vários campos. Um cenário bonito, com semelhanças ao europeu, com patos e outras aves aquáticas, algo que seria impensável em certo período em Belém do Pará, no lado oposto do Brasil, cidade que tem em sua culinária o apreciado Pato no Tucupi. Belenenses de mudança para Porto Alegre ficavam admirados de como os patos ficavam ali e ninguém os pegava, até que o fizeram: a própria Prefeitura de Porto Alegre e uma ONG. Mas foi para a proteção dos patos, que sempre estiveram lá de acordo com moradores. Agora o parque está mais parecido com outros parques, mais comum, sem algo que o caracterizava.

Sequindo com essas reflexões e testes de cenários, sem a intenção de representar quaisquer opiniões institucionais ou pessoais, observa-se agora a história dos brasileiros, que, por esse termo, se diferenciam de outros gentílicos[iii]. Esse gentílico específico, caracterizado pelo uso do sufixo ‘-eiro’, explicita que poderiam ser ‘brasilenses’ como os canadenses, ‘brasilianos’ como os italianos, ou ‘brasileses’ como os portugueses.

No entanto, são chamados de ‘brasileiros’, assim como engenheiros, padeiros, açougueiros e assim por diante. Esse nome historicamente evoca a ideia de trabalhar na exploração de uma terra comum, em vez de indicar propriedade sobre ela. O que conferiria um maior teor de cuidado e zelo, para além da extração ou distribuição de riquezas sem pensar no amanhã, algo que poderia ser chamado de patriotismo, representando um senso de proteção e cuidado.

Trata-se de uma dimensão importante porque, como diz o bom senso comum: ‘Se você dominar as palavras, dominará o pensamento e tudo mais que daí é proveniente’. Há um fluxo bidirecional entre palavras e comportamentos que também é vivenciado no Brasil, como exemplificado pelo mote: ‘Sou brasileiro, não desisto nunca! ”, que foi personificado pela população em geral.

Antes de prosseguir, relembra-se que foram tocadas as dimensões Brasília, Brasil e brasileiro, no sentido de estabelecer um breve pano de fundo a partir de histórias que ilustram efeitos observados ao tornar algo comum. O que aqui inclui tanto o sentido de igualar e deixar de ser original, quanto o sentido de partilhar e ceder a uma administração coletivista, ou seja, englobando ambos os aspectos resultantes dessas considerações, investigando sua inter-relação.

Quanto às empresas, estas também podem ser tornadas comuns. No livro “A Estratégia do Oceano Azul”, escrito por W. Chan Kim e Renée Mauborgne, são explorados conceitos e desafios do ponto de vista dos empreendedores. O “oceano azul” representa um espaço de mercado com pouca concorrência; a metáfora evoca a imagem de um oceano sereno, claro e tranquilo, como aqueles retratados em filmes de mergulho turístico. Em contrapartida, o “oceano vermelho” é uma metáfora para um espaço onde a competição é feroz e acirrada, semelhante a tubarões em frenesi, cada um lutando agressivamente para obter uma fatia da caça, e o resultado é a água cristalina do oceano azul se tornando turva de vermelho. O que caracteriza o oceano vermelho. Pode-se notar uma certa analogia com o uso de recursos limitados de mercados saturados por concorrentes comuns.

Como história de exemplo, a LATAM, anteriormente conhecida como TAM (acrônimo de Transportes Aéreos Marília), empregou uma estratégia inteligente que foi fundamental para seu sucesso no mercado de aviação. A empresa, fundada pelo Comandante Rolim Amaro, diferenciou-se de forma inusitada ao optar por adquirir aeronaves Fokker 100. Essas aeronaves se destacaram não apenas pelo número de passageiros que podiam acomodar, mas também por sua capacidade de operar em aeroportos regionais que não estavam na mira das principais companhias aéreas (tubarões) da época.

Essa estratégia pode ser comparada à tática militar de “cabeça de praia” ou “cabeça de ponte” utilizada na Segunda Guerra Mundial, na qual uma pequena porção do território inimigo é conquistada como ponto de partida para uma expansão posterior. A LATAM aplicou essa abordagem de forma eficaz para aumentar sua penetração e participação no mercado.

Vale mencionar que, na época, não havia um regulador limitando artificialmente alguns aeroportos do mesmo modo como pode se observar hoje, o que pode ser um fator que permitiu à LATAM uma maior flexibilidade em suas operações e na escolha de aeroportos regionais estratégicos.

Essa estratégia de diferenciação, assim como outras, foi fundamental para o sucesso da LATAM. Afinal, quantas outras empresas tinham o próprio dono envolvido na tarefa de destacar o ticket de embarque e dar atenção aos passageiros durante o embarque em Congonhas? O jeito TAM de voar. Essa expansão inteligente contribuiu significativamente para a LATAM se tornar uma das principais companhias aéreas da América Latina.

Em mais uma história, constata-se que quando Bezos fundou a Amazon, sua ideia inicial era estabelecer uma livraria. No entanto, a diferença estava no fato de que essa livraria seria online, o que já era um passo à frente em relação ao convencional. Mas não parou por aí. Seu objetivo era oferecer o maior catálogo de livros disponíveis, e, na verdade, já nos anos 90, havia livros que só podiam ser encontrados na Livraria Cultura da Avenida Paulista e, em último caso, se você não conseguisse encontrá-los lá, poderia verificar na Amazon, onde quase certamente o encontraria. Desde então, a empresa vem ampliando suas diferenças, fugindo do comum e sendo criticada pelos frutos de ousar sair do comum, ao qual muitos acreditam que deveria aderir.

Em comparação, a Xerox foi uma empresa que veio produzir uma grande quantidade de patentes de inovação. A Ethernet desenvolvida pelo Xerox PARC (Palo Alto Research Center) é a tecnologia utilizada para comunicação de dados em redes locais de computadores, assim como o mouse, a GUI (interface gráfica de usuário), um dos primeiros PC´s, NLP (Natural Language Processing) base para a Inteligência Artificial e muitas outras inovações em uso hoje[iv]. Mesmo assim não teve capacidade de se diferenciar por isso, a antes vantagem da marca Xerox, sinônimo de cópia, que era sinal de poder de mercado, torna-se sinal do comum, afinal todos tiram Xerox ou cópia.

No Brasil, a Xerox buscou se diferenciar da concorrência ao oferecer serviços que incluíam o fornecimento de material de consumo. No entanto, a empresa foi condenada pelo Cade e posteriormente pelo TRF devido à litigância de má-fé contra o Cade. Sem entrar em discussões sobre a correção dessas decisões, interessa abordar um outro aspecto.

Em mercados altamente competitivos, como o setor de cópias, onde a competição frequentemente se transforma em uma batalha de preços – o mencionado “Oceano Vermelho” – é comum que os concorrentes tradicionais sacrifiquem critérios que podem ser considerados dispensáveis, como a qualidade dos insumos, a fim de oferecer preços mais baixos. Em sentido análogo, percebe-se que até mesmo companhias aéreas premiam pilotos por redução de custos com combustíveis. Quando se constata casos de queda de avião por falta de combustível, chega-se ao ponto de inferir o quanto a luta por margens de lucro em meio a concorrência entre comuns pode ser uma tragédia e refletir o quanto a ação antitruste, assim como outras ações do Estado podem limitar movimentos de negócios que levem empresas a Oceanos Azuis.

Uma lógica semelhante pode ser observada na decisão de multar a Uber em um valor bilionário e obrigá-la a contratar todos os motoristas. Essa abordagem faz sentido do ponto de vista de buscar a uniformidade (comum), afinal, se todas as empresas teoricamente seguem as leis trabalhistas (CLT), por que permitir que a Uber escape desse padrão e busque diferenciação? Deve-se buscar a igualdade, caso contrário, a substitubilidade pode ser prejudicada e margens de lucro excessivamente elevadas podem ser alcançadas, o que não seria desejável dentro dessa linha de raciocínio.

Ataviando os fios das histórias aqui percorridas, depreende-se, como mencionado anteriormente, que essas histórias seguem um ciclo que se repete através das eras, hoje chamado algoritmo. Sendo que é perceptível o potencial dano que pode ser causado quando dimensões fundamentais como as apresentadas são tornadas comuns nesse sentido ambivalente e diferente aqui aventado, seja em relação à terra, cidades, empresas ou indivíduos. Esse dano que enseja a tragédia dos concorrentes comuns é ainda mais acentuado quando percebemos como essas dimensões podem eventualmente ser interconectadas.

Um povo que não compreende que o que é público realmente lhe pertence atribui um valor insignificante a essa propriedade e tem por como se fosse sua obrigação explorá-la. O que resulta em um inconsciente coletivo permeado de um olhar genérico de permissividade, mesmo quando se trata de empresas. Muitos indivíduos acabam enxergando essas entidades como algo que, no fundo, também não pertencem a ninguém em particular, mas sim como algo de valor social comum a todos. Por conseguinte, suscitando a legitimidade para regular, em outras palavras, as padronizar, tornando-as tão uniformes quanto o vasto conjunto habitacional que Brasília aparenta ser quando observada de cima de sua Torre de TV.

Em conclusão, essa homogeneização e a perda de identidade podem acarretar “buracos negros” de ações predatórias no ambiente em que ocorrem, tanto para o patrimônio público quanto para o empreendedorismo. A ausência de um senso de propriedade e responsabilidade pode resultar na degradação de elementos fundamentais que compõem a sociedade, como a capacidade de pensar diferente, primeira baixa quando a igualdade forçada suprime a identidade e a propriedade, além da perda do senso de pertencimento e individualidade que são fundamentais para a preservação e prosperidade do povo brasiliano.


[i] Hardin, G. (1968). The Tragedy of the Commons. Fonte: The Garrett Hardin Society: https://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html

[ii] W. F. Lloyd, Two Lectures on the Checks to Population (Oxford Univ. Press, Oxford, England, 1833), reprinted (in part) in Population, Evolution, and Birth Control, G. Hardin. Ed. (Freeman, San Francisco, 1964), p. 37.

[iii] Rodrigues, S. (2020). ‘Brasileiro’, a palavra, já nasceu pegando no pesado . Fonte: Sobre palavras: https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/brasileiro-a-palavra-ja-nasceu-pegando-no-pesado/

[iv] parc. (s.d.). Fonte: PARC History: https://www.parc.com/about-parc/parc-history/

Onde reside o conhecimento do Cade? 

Maxwell de Alencar Meneses

No tempo da sociedade do conhecimento, com busca incessante por informação, essa pergunta se faz imperiosa. Ao invés de responde-la diretamente a intenção é perscrutar o tema e estimular o pensamento crítico a respeito de questões conexas. De antemão ressalvando que considerações aqui expressadas não constituem opinião de nenhuma instituição em particular, nem tampouco daquele que as escreve.  

Trata-se apenas de cogitações e testes de cenários a fim de compreender e explorar realidades complexas, como as associadas ao tema “conhecimento”. Mais do que nunca, o “tudo que sei é que nada sei” de Sócrates se faz mister. 

Para que seja possível minimamente tentar endereçar a pergunta que intitula o artigo, que faz menção a uma busca por algo, no caso o conhecimento do Cade, é necessário tecer um retrato falado de quem se busca, para que seja então possível seu reconhecimento, sendo assim, cabe aqui uma pequena digressão com disposições preliminares, no sentido de conceituar alguns elementos essenciais associados ao termo “conhecimento” no âmbito desse escrito.  

Começando pelo elemento básico do conhecimento, que aqui se chamará “dado”.  Define-se como partícula elementar capaz de carregar atributo único acerca de algo ou de si mesmo. Informação, por sua vez, seria um objeto composto construído cumulativamente pela agregação organizada de um conjunto de dados, até o limite de sua transmutação à condição de um ente portador de valor utilizável.  

De maneira semelhante, o conhecimento advém do agregado de informações sistematizadas a respeito de um determinado tema, que envolve necessariamente o processo de interação íntima com essas informações por uma pessoa humana ou, de modo emulado por um robô, até o ponto de constituírem parte indissociável dessa pessoa natural ou artificial. 

Em uma escala bem mais elevada, seria definida a “sabedoria” como a absorção, por meio de um contato experimental, de conhecimentos múltiplos em um período abrangente o suficiente para habilitar a capacidade de produzir outros conhecimentos inéditos e de desfazer conhecimentos errôneos. 

O que justificaria o quão arriscado são as nomeações de pessoas sem a sabedoria necessária. Talvez isso tenha ocorrido com Lina Khan, que, depois de assumir o FTC, sofreu internamente uma queda da satisfação geral de um terço do seu próprio pessoal. Em pesquisa realizada na agência americana, que antes apontava que 83% dos seus colaboradores detinham elevado nível de respeito pelos líderes seniores, após a chegada de Lina, esse índice caiu para 49%i.  

Em outras palavras, “it’s all about people” (é tudo a respeito de gente), o que traz à lembrança de que não é nada segura a comida de restaurantes em que os funcionários estão insatisfeitos. Além disso, explica a menção a muitas pessoas feita aqui, a começar por Sócrates, oferecendo sugestões antecipadas para os possíveis rumos da resposta à discussão central do artigo. 

Em relação ao Cade, que foi eleito em 2022 como um dos melhores lugares para trabalhar, sendo o único na Administração Pública, é possível notar um verdadeiro progresso nos conceitos estilizados de conhecimento aqui experimentados, especialmente considerando a contínua maturação institucional à qual o Conselho está submetido, oferecendo uma infinidade de oportunidades para a construção de novos conhecimentos.  

Nesse contexto, o que efetivamente estimulou a abordagem desse tema foi uma dessas experiências inefáveis de geração de conhecimento enfrentadas pelo Cade. Tudo se iniciou pelo fim, quando recentemente foi concluído o caso Nestlé Garoto, fruto de belíssimo trabalho da atual Procuradora Geral do Cade, Dra. Juliana Domingues, colunista do WebAdvocacy. Tema rico merecedor de muitos estudos, mas que foi apenas o gatilho para algumas reflexões visitadas nesse texto.  

Na sessão de julgamento em que foi apresentada a proposta de acordo para encerramento do caso iniciado em 2002, pretérito à atual lei de defesa da concorrência, algo da história do caso foi lembrado tanto pelo Cade quanto por representantes das partes. De modo emotivo e, para além da sessão, foi inevitável pensar em quantos advogados, economistas, autoridades, técnicos, procuradores, profissionais de variadas áreas e composições do conselho vieram e partiram, deixando alguma parcela de contribuição durante esse tempo. 

Despertando aos nascidos no século passado, que mais conscientemente vivenciaram esse período, divagações a respeito de quanto conhecimento foi empregado, gerado e para onde teria ido esse conhecimento. As fotos de ex-autoridades do Cade hoje existentes na sede do órgão apontam também nesse sentido.  

Mesmo quem não tem sua foto na parede, mas passou pelo Cade, lembra com saudosismo e alguma dose de nostalgia pelas experiências, contribuições e aprendizado. Ainda assim, se essas fotos falassem e pudessem compartilhar seus conhecimentos acumulados, se pudessem ser entrevistadas e responder a dúvidas de quem chegou por agora, talvez muitas rodas não precisariam ser reinventadas. 

De fato, já seria possível fazê-lo. A exemplo de museus que se utilizam de realidade aumentada para propiciar interatividade, ou pela aplicação da ubiquidade da internet das coisas, que habilita que objetos sejam emissores de sinais digitais. Tecnologias perfeitamente capazes de tornar possível essa entrevista com os “pais” do antitruste.  

A quantidade de informação hoje disponível é notadamente muito grande e de certo modo suficiente para suprir de assunto esse diálogo. Até pelo contrário, essa magnitude de informação pode ser na realidade um obstáculo para seu real aproveitamento. 

Esse volume estupendo torna-se uma benção e uma maldição. O malogro está na condição de que muito conteúdo é um modo de não se ter nenhum. O overload de informações é bem conhecido como forma de atrapalhar investigações, por intermédio do fornecimento de uma quantidade massiva de documentos.  

As máquinas também sofrem, visto que o flooding, o Distributed Denial of Service (DDoS) são técnicas clássicas de causar indisponibilidade de serviços ou servidores, por intermédio da sobrecarga das interfaces com acessos distribuídos, ou com uma grande quantidade de dados. 

O Rei Salomão, renomado como o mais sábio e abastado, possivelmente um dos raros estudiosos a combinar esses dois elementos – conhecimento e riqueza – antecipou algo semelhante há milhares de anos, quando aconselhou: “Meu filho, cuidado, pois não há limite para a quantidade de livros que se produz; o estudo excessivo sobrecarrega o corpo”.  

Os livros são exemplos de documentos contenedores de informações, das quais especula-se aqui, e também são um meio de comunicação com as pessoas de outrora e da atualidade. No entanto, quando em uma quantidade e finalidade não adequadamente sistematizada, são um método de sobrecarga de informação, à semelhança dos ataques cibernéticos citados, mas que também significam outras sobrecargas preocupantes, como peso e espaço, que até explicaria em parte o sucesso do Kindle da Amazon.  

Dentro desse contexto, é compreensível que o Cade tenha implementado um sistema de gestão de biblioteca moderno, utilizando a tecnologia de RFID (identificação por radiofrequência), que pode ser associada à mencionada internet das coisas. Fruto do belíssimo trabalho da Bibliotecária Deborah Lins, que também contribuiu para a criação da própria Biblioteca Agamenon Magalhães, que possui o nome do pai do Antitruste no Brasil, alguém outrora tão combatido pelo consórcio de mídia de seu próprio tempo.  

Delineando a esse ponto de modo mais direto onde está o conhecimento do Cade, destaca-se do acervo da Biblioteca, livro de Ednei Silva, Coordenador-Geral de Análise Antitruste, que versa sobre controle de concentrações envolvendo fundo de investimento no Brasil, que como diz Vinicius de Carvalho, ex-presidente do Cade, trata-se de um dos temas mais polêmicos e difíceis da política de defesa da concorrência. 

A questão a respeito de onde está o conhecimento aponta também para a relevância da organização da informação e da habilidade de localizar o conhecimento necessário tempestivamente. Com a recente pane no sistema elétrico, torna-se interessante reforçar esse conceito em contextos como o do ONS, o Operador Nacional do Sistema Elétrico.  

Apesar de toda a tecnologia à disposição em seu centro de controle sito no SIA, em Brasília, semelhante aos centros de controle retratados em filmes sobre a NASA, o ONS ainda recorre a manuais de procedimentos de rede, volumes de considerável tamanho, que precisam ser mantidos constantemente atualizados e são de vital importância em situações de instabilidade. De tal forma que, esses manuais seriam inúteis se não estivessem impressos e acessíveis em momentos de crise. 

Ainda acerca do acesso ao conhecimento, é interessante notar ser possível hoje alimentar algumas ferramentas na nuvem com arquivos pdf e fazer perguntas a respeito do conteúdo, como na entrevista imaginada. No entanto, essa facilidade de nada adianta se não for possível localizar o livro ou o arquivo. Tal é a importância dessa questão, que levou a criação do Google Search Appliance, que foi um investimento da gigante de buscas no sentido de fornecer para as organizações uma forma de indexar automaticamente seus documentos.  

Tratava-se de um servidor com tecnologia Google embarcada, que era montado no Data Center do interessado e passava a indexar milhões de documentos corporativos. O problema passou a ser achar até o que não devia. Provavelmente, o motivo do produto vir a ser descontinuado brevemente, um indicativo da necessidade da intervenção humana na produção de conhecimento. 

Nesse sentido, O Departamento de Estudos Econômicos do Cade, proativo como de costume, produziu em 2020 o documento de trabalho nº 006/2020 com o subtítulo “Passado, Presente e Futuro”. Em síntese, trata-se de uma apresentação da história do Departamento, compilando em forma de conhecimento os anos de produção de estudos, pesquisas e pareceres de alto nível.  

Conhecimento responsável por definir rumos do antitruste no Brasil, dos quais destacam-se a Resolução nº 24/2019 do Cade, que trata do Gun Jumping, e o desenvolvimento de filtros econômicos para a detecção de cartéis já aplicados no mercado de venda de combustíveis. Com destaque a atuação do Economista-Chefe Luiz Esteves, colunista da Webadvocay, bastante profícuo na produção de notas técnicas durante sua gestão (2014-2016). 

Outra fonte de conhecimento para o Cade é a atuação dos advogados das partes, como bem ilustrado no recente artigo do ex-conselheiro do Cade, Mauro Grinberg, publicado no WebAdvocacy. Nesse artigo, ele destaca a significativa relevância da participação dos advogados perante o Cade, visto que desempenham um papel fundamental no processo de elaboração das decisões administrativas, cumprindo um compromisso público de contribuir para a construção dessas resoluções. 

As decisões que ao longo do tempo vêm moldando a jurisprudência do Cade, contribuindo para a formação de um conhecimento coletivo sobre diversos mercados, estavam, até recentemente, disponíveis em volumes intermináveis em papel. Como discutido anteriormente, devido às características inerentes desse formato, tais volumes apresentavam barreiras naturais de acesso, como as dificuldades e custos associados ao compartilhamento.  

No entanto, essa questão foi solucionada por meio da bem-sucedida iniciativa do Cade sem papel, que foi liderada por Mariana Rosa. Esse avanço se mostrou crucial durante a recente pandemia e, quando comparado com instituições governamentais de países como os EUA, coloca-nos em uma posição vantajosa, já que tais instituições não possuem a digitalização presente no caso do Cade. 

Além disso, à semelhança da natureza cumulativa do conhecimento mencionada no início, durante a gestão do ex-presidente Alexandre Barreto, o Cade implementou um sistema moderno de consulta de jurisprudência. Esse sistema é de importância fundamental para abordar as questões de acesso e garantir a previsibilidade das decisões da autarquia, um compromisso atentamente perseguido pelo corpo técnico do Conselho. 

A transparência e a participatividade que caracterizam a formação do conhecimento do Cade foram bem representadas durante a época da abertura de um inquérito administrativo para investigar possíveis práticas anticompetitivas no mercado financeiro e nos meios de pagamento eletrônico. Especificamente, o enfoque estava nos efeitos resultantes da verticalização dentro desse setor. Uma audiência pública, organizada pelo Cade e intitulada “Estrutura do Setor Financeiro Nacional: Impacto da Verticalização sobre a Concorrência”, proporcionou uma plataforma para uma ampla gama de perspectivas sobre as razões subjacentes ao custo elevado da intermediação financeira e dos serviços bancários e de pagamento no país. 

Nessa audiência pública, variadas visões foram apresentadas, abordando as possíveis causas da onerosidade associada aos serviços financeiros. Isso destacou a importância de analisar profundamente os efeitos da verticalização sobre a concorrência no setor financeiro, considerando a diversidade de opiniões e contribuições. Através desse processo participativo, o Cade demonstrou seu comprometimento com a transparência e a inclusão, permitindo que múltiplos pontos de vista fossem considerados na análise das práticas anticompetitivas e de suas implicações para os consumidores e para a economia em geral. 

A diversidade de pensamento e conhecimento, está presente em projeto de Elvino Mendonça, ex-conselheiro do Cade, pai da Webadvocacy, esta plataforma online que se destaca por produzir e disseminar conteúdo de excelente qualidade relacionado às áreas de direito e economia. Essa iniciativa representa de maneira notável outro âmbito de conhecimento do Cade: as comunidades online dedicadas à difusão de cursos, estudos e discussões. Muitos colunistas que fazem ou fizeram parte do Cade participam ativamente dessas comunidades, contribuindo para a manutenção de um ambiente de troca de conhecimentos. 

A presença de ex-membros do Cade nesses fóruns oferece uma oportunidade única para a comunidade antitruste. Ao compartilharem suas perspectivas e experiências, essas autoridades continuam a enriquecer o conjunto de conhecimentos disponíveis. Isso não apenas sustenta o nível atual de entendimento, mas também expande as perspectivas para abranger outras realidades e contextos. 

Dr. Elvino, como um ex-conselheiro do Cade, exemplifica a importância de indivíduos que, após ocuparem posições relevantes no campo antitruste, continuam a contribuir ativamente para a educação e o diálogo construtivo. A Webadvocacy e outras iniciativas semelhantes desempenham um papel vital na disseminação do conhecimento, na promoção do debate e na capacitação contínua de profissionais e estudantes interessados em direito e economia, proporcionando um ambiente de aprendizado rico e dinâmico, demonstrando o caráter de um ecossistema de defesa da concorrência que o Cade construiu ao logo dos anos. 

Em fechamento, nesse ponto, percebe-se claramente que o Cade, mesmo sofrendo com o turnover de pessoal como qualquer organização moderna, conseguiu elaborar uma série de instâncias e repositórios distribuídos e autogerenciáveis. Esses repositórios se retroalimentam de conhecimento antitruste, ventilando e engrandecendo o próprio conhecimento do Órgão. Esse conhecimento não se dissipa facilmente. Ao contrário das estruturas feudais de conhecimento acadêmico em que os nobres, detentores de títulos, se encastelam, como ocorria nos mosteiros do século XIV, o Cade empoderou cada servidor, colaborador, autoridade e a sociedade a ser um produtor de conteúdo. Esse conteúdo, ao ser continuamente produzido, não se permite ser esquecido. O conhecimento do Cade está hoje em toda parte. 


Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy.

O Bom, o Mau e o Feio: Como um faroeste espaguete pode nos ensinar sobre antitruste

Maxwell de Alencar Meneses

Considerado o mais icônico e insuperável Western já filmado, em parte devido a trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone. Ele foi eleito um dos 10 melhores filmes de todos os tempos pelo público no IMDB[i]. A história contada por esse épico do cinema se passa em 1862, pouco antes da fundação da Standard Oil em 1870, que chegou a controlar as ferrovias, essencial facility para o desbravamento do oeste americano e bem presente em cena-chave do filme.

Com efeito, em 1890, o Sherman Antitrust Act foi promulgado e reverbera até hoje, tanto que o Caderno do Cade do Mercado de Mineração, lançado em 2022, aborda a integração vertical no mercado de transporte ferroviário e confirma o modal ferroviário como o principal meio de transporte para minério de ferro. Esse raciocínio dialético, desdobrado aqui, ensina a respeito de temas concorrenciais entrelaçados nas experiências vivenciadas desde o velho oeste ítalo-americano de Sergio Leone, ao faroeste caboclo de Renato Russo.

O convite para utilizar esse enredo como meio de exploração de temáticas concorrenciais almeja uma imersão em um simulacro imaginativo, causando uma boa experiência de leitura, em consonância com a abordagem moderna da “Era da Economia da Experiência”. Ao passo que, oportuniza tocar nessa estratégia de negócios, como um fator concorrencial determinante para conquista de mercados, que ela claramente representa. Por vezes, essa estratégia é concretizada na experiência de consumo ou na área tecnológica, mais especificamente na User eXperience (UX) de uma plataforma digital.

De tal modo que, é precipuamente por meio desses aspectos que a empresa atrai clientes em quantidade suficiente para gerar o efeito de rede, como visto no recente e disruptivo boom do Tik Tok. Não tão recentemente, mas não por isso menos relevante, merece destaque o caso da Amazon, que em 2003 revolucionou a internet ao oferecer aos usuários a oportunidade de ter uma experiência simulada online ao folhear livros e ler trechos antes de fazer a compra. Fato é que a plataforma dominou o mercado de livros no Brasil em 9 anos[ii].

Já pela experiência memorável, gerada pela obra de Sergio Leone, é possível inferir princípios como os da teoria dos jogos, que são relevantes para as autoridades de defesa da concorrência, principalmente quando analisados sob a perspectiva do Acordo de Leniência e do Termo de Compromisso de Cessação (TCC). No filme, o personagem interpretado por Clint Eastwood, identificado como “o Bom”, entrega o personagem chamado “o Feio”, em troca de uma recompensa. Existe um conluio entre esses agentes, onde, em busca de ganho máximo, eles se arriscam ao ponto de planejar uma falsa captura, que é revertida antes da execução da pena por enforcamento.

Nesse ponto, chama a atenção a semelhança, embora limitada, entre questões amplamente discutidas que estão presentes no contexto do jogo envolvendo incentivos a denúncias. Isso se relaciona à propensão de cometer práticas anticoncorrenciais, através de um cálculo que leva em consideração a possibilidade de punição e as vantagens a serem obtidas com tais condutas. Outros aspectos também envolvem o risco de uso indevido desses benefícios, semelhante ao que é retratado no filme. Isso evidencia a importância desses pontos diuturnamente e minuciosamente avaliados pelo Cade durante o processo de assinatura de acordos, reforçando os ensinamentos que são extraídos dessa análise.

A fragilidade ou instabilidade observada em conluios, como no caso dos cartéis, torna-se evidente quando os personagens, “o Bom”, apelidado de “lourinho”, e “o Feio”, também conhecido como Tuco, parceiros no crime, começam a avaliar os riscos envolvidos na continuidade de sua conduta. Eles discutem quem está disposto a correr mais riscos e quem deveria receber uma compensação maior por isso, o que leva a uma repentina ruptura do acordo. O Bom percebe que pode obter uma recompensa maior com menos riscos em outra parceria, deixando Tuco abandonado no meio do deserto à própria sorte.

O terceiro personagem, ainda não mencionado, é tido pela alcunha de “o Mau”. De modo propositalmente irônico, o Mau é também conhecido por Sentença, Julgamento e ainda por Angel Eyes. Ele procura ocupar um cargo público de sargento da União em meio à guerra de secessão, como modo de obter acesso a informação privilegiada. Entretanto, tem uma característica ética mais elevada que os outros dois personagens, no que se refere a levar a cabo até o fim os seus acordos, cumprindo-os, a despeito de proposta mais vantajosa em contrário. Em contraponto, tem um prazer sádico em aniquilar seus concorrentes.

A importância dos codinomes mencionados está associada ao fato de que são marcas indeléveis e renitentes no transcurso de condutas criminosas, ao serem utilizados para evitar o reconhecimento direto dos criminosos e transmitir a posição de cada indivíduo dentro do grupo. A identificação de eventuais codinomes desempenha um papel relevante na etapa de coleta de provas relacionadas à participação em crimes contra a ordem econômica. Para processar esses delitos, assim como outros, é necessário individualizar as condutas e identificar corretamente os envolvidos. Tanto é assim que o personagem principal nesse exemplo fictício, conhecido como “o Bom”, sendo o mais astuto dentre três, e mentor em certa medida, é o único a ser anonimizado como “Pistoleiro sem nome”.

No desenvolvimento desse caso hipotético, utilizado como uma ferramenta pedagógica para explorar situações potencialmente prejudiciais à livre concorrência, os três homens entram em conflito, ou em concorrência mordaz, quando descobrem uma oportunidade de negócio muito mais vantajosa do que as anteriores, como entrantes em um novo mercado. Trata-se de um montante estimado em aproximadamente 25 milhões de reais em ouro, referentes a recursos extraviados do esforço de guerra em curso. Essa quantia foi enterrada em um cemitério desconhecido, sob uma lápide também não identificada. Neste estudo de caso, essa empreitada será considerada por uma perspectiva metafórica de prospecção de riquezas subterrâneas.

Sem a pretensão de adentrar no direito minerário, sabe-se que uns dos grandes desafios além da obtenção das licenças de exploração, são exatamente a localização das jazidas, que são essenciais para o planejamento e viabilidade econômica dos projetos de mineração, bem como para atendimento a requisitos legais relacionados a direitos de exploração. Não sem motivo, um dos campos de pesquisa de Inteligência Artificial tem sido o apoio de sistemas especialistas capazes de processar informações a ponto de precisar ao máximo os locais de busca, de acordo com o Geológo David Bressan a IA foi capaz de prever a localização de minerais exóticos de urânio[iii].

Em outras palavras, o acesso a informação, ou ainda, como afirmou inicialmente o matemático londrino Clive Humbly, os dados são o novo petróleo, de tal forma que a assimetria de informação é assunto de interesse concorrencial, que afeta a capacidade das empresas de operar em determinados mercados. No exemplo do filme, essa assimetria se manifesta de diferentes formas: o Bom sabe o nome na lápide, o Feio sabe o nome do cemitério e o Mau apenas conhece a origem do ouro.

Esse cenário enseja uma acirrada competição pela informação, com uso de estratégias abusivas a fim de se obter uma posição dominante, que culminam na eliminação final dos demais concorrentes por intermédio de um truel (duelo com três oponentes) no formato do icônico impasse mexicano. Os desafiantes observam por segundos intermináveis os sinais de atividade por parte do concorrente antes de tomar sua própria decisão de movimentação, que não poderá ser revertida.

Nos anos 90, várias grandes indústrias no ramo da tecnologia enfrentaram truelos que resultaram em sua extinção. Analistas tinham uma expectativa de que apenas algumas poucas empresas seriam capazes de sobreviver à competição com as big four daquele tempo: IBM, Apple, Microsoft e Oracle, com a HP como a única possível sobrevivente, tendo até mesmo enfrentado a ameaça de ser adquirida pela Oracle[iv]. A tendência natural esperada era a gradativa absorção das demais como o fazem corpos celestes ao puxar para si planetas menores. Embora essa tendência tenha sido observada, a característica do setor de, até então, não sofrer com regulações tão restritivas quanto outros, permitiu a entrada de novas empresas, de forma que as big techs hoje são a Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft.

Esse “até então” traz em seu bojo um possível turning point regulatório perante “A Ira de Khan”[v]. Tendo em vista que, no campo do antitruste, Lina Khan, conhecida por suas críticas à Amazon, que eventualmente vieram alçá-la à presidência da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos, foi alvo, por parte da empresa, de pedido de afastamento dos casos antitruste em curso relativos à plataforma digital. Segundo a petição da Amazon, Khan argumentou em diversas ocasiões que a Amazon é culpada de violações antitruste e deveria ser desmembrada.

Neste contexto, a teoria da escolha pública se torna relevante uma vez que, de acordo com Mandle e Reidy (2015), é uma abordagem da ciência política que, utilizando pressupostos e modelos comuns na economia, analisa ocupantes de cargos eletivos e outros atores políticos como agentes movidos principalmente por interesses próprios. Esse conceito é praticamente óbvio, considerando que o simples fato de alguém ingressar no serviço público não tem o condão de transformá-lo em um ser amputado de eventuais interesses privados. Diante disso, a história de “O Bom, o Mau e o Feio” ensina ser necessário cuidado para que, ao ultrapassar suas missões institucionais, no afã de garantir outras prioridades nacionais, a autoridade antitruste não venha incorrer em tornar-se parte do conflito e venha, de modo incauto, assumir o papel de “o Bom” ou de outro personagem que não seja o seu próprio.

A partir disso tudo, fica evidente que na dinâmica das partes envolvidas em questões de defesa da concorrência pode ocorrer um magnetismo na direção de estereotipar os agentes: alguns sendo vistos como “o Bom”, outros como “o Mau” e ainda outros como “o Feio”, que em conjunto são o construto do título alternativo “Três Homens em Conflito” que, contextualizado, se tornaria “Três Partes em Conflito”. Essa reflexão se dá para reforçar o imperioso afastamento de eventual caracterização de um Grupo Comprador como sendo “o Mau”, a empresa adquirida como “o Bom”, o órgão antitruste como “o Feio”, ou outras variantes desses papéis, a depender da perspectiva do expectador.

Esses personagens foram assim intitulados pelos produtores, inclusive como uma forma de provocar essa reflexão a respeito de uma visão maniqueísta do mundo. Nenhum deles é permanentemente bom, mau ou feio, mas uma composição de nuances variáveis. A identificação de uma grande corporação que ao longo dos anos, por meio de inovação, erros e acertos, conseguiu lograr êxito de modo a expandir-se, como algo perigoso por si só, é exemplo disso. Por outro lado, a associação da autoridade antitruste a qualquer um desses papéis, mesmo que de modo subconsciente, também é no mínimo impróprio.

Essa áurea de faroeste é insidiosa e povoa o imaginário coletivo, como a maior parte do que se torna uma exposição constante. Ciente de todas essas questões, é importante que o órgão de defesa da concorrência, como vem fazendo o Cade, mantenha-se lúcido, técnico e alinhado com padrões de excelência à altura da missão que ocupa, de tal forma a se postar como um facilitador para o ambiente concorrencial, capaz de garantir a todos regras claras, respostas tempestivas, bem como uma perspectiva imparcial, não maculada com esses pressupostos que atribuem a determinados grupos papéis necessariamente negativos de antemão.

Quem participou ou participa de atividade empresarial, em especial no setor de inovação e tecnologia, na luta ferrenha para manter-se atualizado e competitivo, ora perdendo, ora ganhando, investindo muito em melhoria de processos, qualidade, em um corpo técnico capaz de diferenciar produtos e serviços, valorizando novas ideias com poder disruptivo para vencer seus concorrentes, saindo da reles disputa por preço, preocupando-se com sua rentabilidade e capacidade de se manter no jogo a todo tempo, de manter empregos e não perder seus melhores ativos profissionais para a concorrência, oferecendo benefícios competitivos e participação nos lucros. As pessoas que conseguem fazer tudo isso funcionar, de modo legítimo, a ponto de serem capazes eventualmente de adquirir um competidor menos competente, não podem ser vistos por lente que não seja do respeito e da admiração, pois competir é muito difícil mesmo.

Além do já exposto, os elementos presentes nesse longa, são notadamente encaixados, ou partidos em três personas, sendo interessante notar que muitas outras instituições, histórias, conceitos e áreas do conhecimento fazem uso dessa divisão em uma tríade. A Lei dos Três Estados de Conte, que categoriza o pensamento em teológico, metafísico e positivo. Na filosofia, a tese, antítese e síntese. Em narrativas a subdivisão em introdução, desenvolvimento e conclusão. Na lide jurídica marcada por três partes principais: as partes, o pedido e a causa de pedir. O ser humano composto por corpo, alma e espírito.

O próprio Cade exerce a função preventiva, a repressiva e a educativa, por meio do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, da Superintendência-Geral e do Departamento de Estudos Econômicos. Com as missões principais de: (i) prevenção e repressão às infrações à ordem econômica; (ii) orientação, incentivo e fomento à concorrência; e (iii) análise de atos de concentração econômica.

Tomando por base esses padrões e os personagens de moral ambígua e complexa apresentados na película, buscando tecer uma comparação, mesmo que ainda deveras imperfeita, entre o filme e a atuação do Cade, uma forma de fazê-la seria pelo entendimento de que a complexidade e a diversidade do cenário concorrencial no Brasil compreendem uma miríade de condutas e interesses de empresas, consumidores e da sociedade, que podem se sobrepor ou conflitar em situações ambíguas, assim como os personagens, e ainda mais controversas. Não é possível distinguir, de modo taxativo, quem são os bons, os maus e os feios no mercado. Possivelmente, esses seriam arquétipos aos quais condutas poderiam ser associadas em determinados momentos.

 Cabendo ao Cade, que por sua vez enfrenta seus desafios e limitações, como recursos humanos e financeiros escassos, analisar cada caso com rigor, de forma ao mesmo tempo meticulosa e célere, buscando manter em ordem a livre concorrência e o bem-estar social dela advindo.

Sendo correto afirmar que nos cenários cada vez mais complexos de condutas anticoncorrenciais se faz mister o aperfeiçoamento de sistemas de computação e inteligência artificial para dar auxílio na análise e reconhecimento de padrões, pela capacidade nata dessa tecnologia de processar grandes volumes de dados, identificar correlações e padrões complexos, prover insights para a detecção e investigação de práticas anticompetitivas, que combinadas com o corpo técnico de alta especialização, aplicando interpretação com a distinção inerentes a humanos, capaz de resultar em tomadas de decisão precisas em tempo de se preservar adequadamente o ambiente concorrencial brasileiro.

A coragem de ser imperfeito, complexo e ambíguo faz parte da jornada das pessoas e das instituições. A qualidade se atinge por processos repetidos de reflexão, como a realizada nesse momento, que ao ser considerada ou criticada – afinal, como diria Nelson Rodrigues, “Toda unanimidade é burra” – sendo possível, a partir de um filme antigo, mas de temática atual, propiciar avanços impensáveis pelo simples fato do afastamento, mesmo que momentâneo, da realidade à qual se cerca.


[i] De acordo com a sinopse do filme na Plataforma Brasil Paralelo. Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.

[ii] Carrança, T. (2 de maio de 2023). Como a Amazon dominou vendas de livros no Brasil em apenas 9 anos. Fonte: BBC News Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwprveg0wo

[iii] Bressan, D. (21 de junho de 2023). Como a IA pode ajudar a encontrar novos minerais na Terra e em outros planetas. Fonte: Forbes Tech: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/06/como-a-ia-pode-ajudar-a-encontrar-novos-minerais-na-terra-e-em-outros-planetas/

[iv] Lawson, S. (18 de Jun de 2012). HP Worried About an Oracle Takeover After Hurd Switched Sides. Fonte: PCWorld: https://www.pcworld.com/article/465401/hp_worried_about_an_oracle_takeover_after_hurd_switched_sides.html

[v] Filme de ficção científica onde uma entidade de inteligência superior usa seus recursos a fim de acabar com a Enterprise


[i] THE GOOD, the Bad and the Ugly . Sergio Leone. Alberto Grimaldi. Mundial, 1966. Longa metragem (178 min). Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.

Venda casada de PC novo com sistema Operacional Microsoft

Maxwell de Alencar Meneses

A Microsoft pratica a conduta de venda casada de licenças do seu sistema operacional Windows, que são pré-instaladas em novos computadores fabricados por OEMs (original equipment manufactures), máquinas montadas de fábrica. Isso ocorre de modo análogo desde os primórdios da criação da empresa, sendo que na época tratava-se do seu precursor o MS-DOS, que também já vinha embarcado com os primeiros PCs (computadores pessoais).

A questão levanta polêmica quando o usuário se vê obrigado a pagar pela licença do Windows, mesmo que não tenha interesse em utilizá-lo, visto que se tratam de produtos que são diferentes e que podem ser vendidos separadamente, todavia a conduta em si cria barreiras para que o usuário possa optar quanto à aquisição da licença.

No processo de compra de um desktop de determinados fabricantes, por exemplo pelo site da Dell no Brasil, o usuário é forçado a adquirir desktops com o Windows, podendo optar por versões diferentes, mas apenas do Windows. Não é possível deixar de adquiri-lo, ao passo que esses fabricantes se recusam a vender um equipamento dessa categoria sem esse sistema operacional (S.O.), já que não disponibilizam essa opção.

Segundo o site statista, em 2021 o Microsoft Windows foi o sistema operacional mais utilizado em computadores (desktop, tablet e console) no mundo, possuindo mais de 70% de Market share. No mercado de PCs o Gartner group estimou para o quarto trimestre de 2021, a liderança em primeiro lugar da Lenovo com 24,6%, seguida de perto pela HP com 21,1% e com o bronze a Dell com 19,5%. Esse pódio totalizaria 65,2% do mercado de computadores. Nota-se que em 2008, a Lenovo chegou a não suportar mais o Linux nos seus desktops, o que reviu somente em 2016.

A Apple vem em quarto lugar nessa lista com 7,7% de share. Em sua arquitetura historicamente fechada e proprietária, a fabricante determina qual sistema é utilizado em seus computadores, que é o seu próprio sistema, o OS X, que tem raízes em comum com o Linux.

A Microsoft por sua vez estende sua posição dominante sobre os fabricantes, sendo alavancada formando um efeito artificial de conjunto hardware-software monolítico e quase monopolista, que mimetiza o efeito natural obtido pela Apple com seu conjunto próprio de hardware e software, Mac e OS X, indissociáveis pela engenharia de concepção do projeto, e não por uma conduta concorrencial, como no caso do Windows.

O curioso é que o fato de a Microsoft não ter vendido seus direitos do MS-DOS à IBM no início da era dos PCs, mas pelo contrário ter negociado com as outras empresas o fornecimento desse software para máquinas rivais da IBM, foi provavelmente o causador de hoje nós não termos apenas dois fabricantes de PCs cada um com seu conjunto de hardware e software entranhados, que seriam a IBM e a Apple.

A abertura dada pela separação entre o S.O. e o hardware naquela ocasião, possibilitou o florescimento de vários fabricantes de computadores, maior concorrência e um barateamento de preços, em comparação a solução Mac que é mais cara desde o início e talvez sempre se mantenha assim.

Em 2007, a Dell declarou que seus computadores com Linux pré-instalado seriam US$ 50 mais baratos de que a versão similar com Windows, em outras palavras seria pago à Microsoft uma “taxa” de licenciamento de US$ 50, valor esse acrescido ao custo de um computador de US$ 1000. A “taxa” Windows criada pelo incentivo dado pela Microsoft para que OEMs forneçam computadores com Windows pré-instalado é justificada pela empresa por uma eficiência gerada aos compradores, que têm o benefício de não necessitar instalar um sistema operacional. Muitas pessoas comprariam PCs com sistemas operacionais pré-instalados para não ter que lidar com a curva de aprendizado e a inconveniência de realizar sozinhas a instalação de um sistema operacional.

Ao mesmo tempo, revendas de software anunciam abertamente venda de licenças OEM Windows, direcionadas para venda casada com equipamentos novos, que não vem necessariamente com S.O. pré-instalado, ou seja, a eficiência alegada da pré-instalação é relativa. Essas licenças são atreladas a aquele hardware novo e perdem validade em caso de determinadas alterações que o descaracterize, como a troca da placa principal do computador.

Entre os que se dispõem a utilizar outro S.O. há relatos de compradores que obtiveram restituição do valor pago pela licença Microsoft e de outros a quem esse benefício foi negado, a depender do país, do entendimento do vendedor a esse respeito, e de condições específicas de venda do fabricante do hardware. Em sites especializados como o “Reclame Aqui” relatos de problemas de consumidores quanto a essa imposição do sistema ao adquirirem um PC.

Em 2007, foi apresentado o projeto de lei 167/07 na Câmara dos Deputados proibindo venda casada de hardware com sistema operacional, que veio a ser arquivado. O CADE julgou no caso Paiva Piovesan v Microsoft a venda casada do Microsoft Money com o Windows. A Microsoft enfrentou notórias ações antitruste, como no caso Netscape. Há, portanto, um histórico que corrobora uma inquietação de partes da sociedade com o que ao longo dos anos vem delineando um certo padrão de condutas comerciais da Microsoft visando afastar concorrência de modo não natural.

Em que pese haver aspectos técnicos qualitativos entre os sistemas operacionais existentes, há um aspecto comportamental que torna muito difícil a troca e é parte insidiosa da Conduta concorrencial da Microsoft. Quando se é introduzido ao uso de smartphones por meio de um celular iPhone, que utiliza sistema iOS, o usuário sente natural dificuldade ao operar um celular Android, o mesmo acontece com usuário inicial do Android com relação ao iOS.

Esse sintoma ocorre de modo semelhante com o usuário de sistemas para desktops. O usuário contumaz de Windows fica perdido no ambiente Mac, bem como no ambiente Linux e vice-versa. Isso ocorre pela máxima de que o melhor ambiente é aquele no qual se foi habituado a utilizar desde o início. Isso explica o investimento de fabricantes de software de CAD (Computer Aided Design) para fornecer licenças em condições especiais aos arquitetos ainda na universidade, pois quando esses profissionais ingressarem no mercado dificilmente optarão por utilizar outro sistema, mesmo que tecnicamente superior.

Nesse sentido, é possível adicionalmente dizer que a fixação vezes obrigatória do Windows nas máquinas concorre para que os usuários se mantenham ad aeternum atrelados a esse fornecedor, dificultando não só a entrada de concorrentes já existentes, como a inovação tecnológica proveniente de um eventual novo entrante, que sente desestimulado face ao contexto de posição dominante inarredável.

Uma das possíveis alegações com efeito de balancing da conduta é que tanto é possível, quanto existe o fornecimento de computadores com Linux, bem como também haveria possibilidade de aquisição de máquinas montadas, que podem receber qualquer sistema operacional, todavia o efeito notado nas principais fabricantes de hardware que hoje perfazem um share de quase 80% do mercado de PCs, é que essas empresas utilizam sistema alternativo em uma fração diminuta de suas vendas, ou, por vezes, simplesmente não utilizam em absoluto.

Essa fração pode ser observada pelo share dos S.O. disponível no site statcounter, que informa que em maio de 2022 os computadores Desktop no mundo todo se distribuem assim: Windows 75,54%; OS X 14,98%; desconhecidos 4,81%; Linux 2,45%; Chrome OS 2,22% e FreeBSD 0,01%.

A falta de opção ao comprador e além disso, a falta de informação de quanto lhe custa o software que está adquirindo de forma casada, e por quanto poderia adquirir um equipamento com uma alternativa de S.O. gratuito pode interferir na universalização do acesso à tecnologia. No contexto de pandemia em que famílias passaram a utilizar mais intensamente computadores em uma conjuntura de crise econômica, a possibilidade de redução do ônus do sistema operacional de em torno de R$ 150,00 sobre um desktop de R$ 800,00 pode fazer toda diferença e constituir um sobrepreço ao produto essencial almejado.

Em conclusão e síntese, procurou-se até aqui percorrer de modo fluído o teste jurídico utilizado em precedente do CADE já mencionado, de forma a constatar autoria, materialidade e dano advindo da conduta, visto que: (i) os produtos são diferentes e autônomos, (ii) existe elemento de coerção, (iii) existe uma posição dominante inequívoca para alavanca, (iv) existem efeitos duradouros no mercado alavancado, (v) a análise das eficiências pretendidas demonstra sinais de acobertamento de uma presumível naked restriction.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.