Ônus da prova no processo administrativo do CADE
Distribuição dinâmica do ônus da prova
Mauro Grinberg
Todos os processos, de quaisquer categorias, necessitam de provas, ressalvadas determinadas hipóteses de confissões. Os julgadores julgam os processos de acordo com as provas existentes nos autos, ressalvados os fatos notórios. Mas é muito importante saber quem tem o ônus de fazer a prova ou até mesmo quem ganha e quem perde com a prova.
Em primeiro lugar, vejamos que o ônus da prova não é uma obrigação e sim uma faculdade, um direito. Artur Thompson Carpes bem expõe que “o ônus da prova impõe à parte onerada, portanto, a opção entre cumprir e não cumprir o encargo probatório”[1]. Ou seja, a parte incumbida tem o direito de fazer a prova e o não uso desse direito obviamente terá consequências quando da prolação da decisão pelo julgador.
O Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ao processo administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de acordo com o art. 115 da Lei 12.529/2011, no seu artigo 373, incisos I e II, estabelece que “o ônus da prova incumbe” “ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito” e “ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.
Ou seja, levando a dúvida para o campo do processo administrativo sancionador do Cade, que é aberto pela autoridade concorrencial, deve-se prever que os atos e/ou fatos – que constituem a infração da ordem econômica cuja sanção é objeto do processo – devem ser provados pela mesma autoridade, sendo que, se o acusado tem como demonstrar que aqueles atos e/ou fatos não constituem infração da ordem econômica, tem o direito à produção da prova.
Como explicam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhardt, “a regra do ônus da prova é um indicativo para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, julgar o mérito e colocar fim ao processo”[2]. Como o julgador não pode deixar de julgar (art. 48 da Lei 9.784/1999: “A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência”). A regra do ônus da prova serve para por ordem na instrução, inclusive no processo administrativo sancionador do Cade (considerando aqui as partes como Representante e Representado).
Todavia, o parágrafo 1º do art. 373 do CPC apresenta uma possibilidade de alteração da norma principal: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
Antes de falar sobre o que se convencionou chamar de distribuição dinâmica do ônus da prova, é importante mostrar que o texto legal trata de “oportunidade” de provar e não em obrigação de provar, o que se coaduna com o princípio penal (aqui também aplicável) de não obrigação de fazer prova contra si mesmo.
Há diversas possíveis situações que se encaixam na distribuição dinâmica do ônus da prova. Uma parte acusada sabe que em certo órgão público há documentos que podem constituir “fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito” do Representado. Como ele não tem acesso legítimo àquele órgão público, pode pedir que o Representante envie ofício com o pedido de fornecimento dos documentos em questão. Havendo vários Representados, um pode ter o interesse legítimo de que outro forneça documentos e/ou informações de que é possuidor. E há a hipótese muito frequente no Cade de requisição de documentos e informações contábeis do Representado. É claro que a exemplificação pode ser bem extensa.
Mesmo antes da promulgação do CPC, a distribuição dinâmica do ônus da prova já era praticada, como é exemplo o item 2 da ementa da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Relator o Ministro Luis Felipe Salomão, no Recurso Especial 619.148-MG, julgado em 20.05.2010: “Ademais, à luz da teoria da carga dinâmica da prova, não se concebe distribuir o ônus probatório de modo a retirar tal incumbência de quem poderia fazê-lo mais facilmente e atribui-la a quem, por impossibilidade lógica e material, não o conseguiria”.
Também o item 7 da ementa da decisão do STJ nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 1.268.704-SP, Relatora a Ministra Nancy Andrighi: “Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual esse ônus recai sobre quem tiver melhores condições de produzir a prova, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso”.
Assim, o parágrafo 1º do art. 373 do CPC só veio normatizar o que, por força da jurisprudência interpretativa, já se aplicava. Todavia, deve-se levar em conta que, como diz Vítor de Paula Santos, “as soluções de atribuir supostamente um ônus da prova para a parte (…) são inidôneas para o fim de obter uma busca da verdade com maior qualidade”[3]. O mesmo autor explica: “Isso porque não servem de verdadeiros estímulos jurídicos para que a parte produza uma prova quando esta lhe é desfavorável (…) sendo o advogado (e a própria parte, como o próprio nome sugere) um sujeito parcial, não tem (e nem pode ter) preocupação direta com a busca da verdade”[4].
Essa desobrigação da busca da verdade não se aplica, todavia, à autoridade administrativa e, em especial, à autoridade concorrencial, que deve obedecer ao princípio da legalidade, que consta tanto do art. 2º da Lei 9.784/1999 quanto (e principalmente) no art. 37 da Constituição Federal, tendo, no parágrafo único do artigo desta lei, os critérios, por exemplo, de “atuação conforme a lei e o Direito”, “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” e outros. Mas a busca da verdade deve ser seu objetivo maior. Não se está a dizer aqui que a parte pode atuar sem probidade, sem decoro e com má-fé. Mas a autoridade é que personifica a pessoa maior, ou seja, o Estado.
O que se encontra não só na prática mas também na doutrina é a obrigação da autoridade de provar a materialidade e a autoria de qualquer infração da ordem econômica que resulte na abertura de processo administrativo sancionador, lembrando-se o que prescreve o parágrafo 2º do art. 373 do CPC, segundo o qual a distribuição diversa do ônus da prova “não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”.
A autoridade, assim, exerce função central na atividade pronbatória. A obrigação estatal está sempre presente, como esclarecem Irene Patrícia Hohara e Thiago Marrara, segundo os quais, “mesmo em processos administrativos destinados a viabilizar o exercício de seus direitos ou interesses individuais (…), seu ônus probatório não exclui o dever de a Administração colaborar com a produção de provas”[5].
Confirma Egon Bockmann Moreira: “O fato de o particular ter pleiteado a produção de prova específica, e caso sua produção lhe seja atribuída, isso não derroga o dever administrativo de realizar atividade probatória (desde que essencial à discussão travada nos autos”[6].
De tudo o que vai acima exposto, tem-se que, no processo administrativo sancionador do Cade, a autoridade concorrencial tem o dever de fazer a prova da infração que quer sancionar, podendo, em situações nas quais é muito mais fácil para o Representado o cumprimento desse ônus, atribui-lo ao Representado – desde que não seja acarretado ônus excessivo – que, todavia, tem o direito de não fazer prova contra si mesmo. O ônus maior é sempre da autoridade.
Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, Mestre em Direito, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil Advogados
[1] ”Onus da Prova no Novo CPC”, RT, São Paulo, 2017, pág. 33
[2] “Prova e Convicção de Acordo com o CPC de 2015”, RT, São Paulo, 2015, pág. 194
[3] “Ônus da Prova no Processo Civil”, RT, São Paulo, 2015, pág. 95
[4] Obra e página citadas
[5] “Processo Administrativo”, RT, São Paulo, pág. 294
[6] “Processo Administrativo”, Malheiros, São Paulo, pág. 366