Marco Aurélio Bittencourt

Egoísmo x Altruísmo: um debate sobre a natureza humana e as regras que nos regem

Marco Aurélio Bittencourt

A Teoria da Escolha Pública, um conceito que permeia a ciência política e a economia, propõe que as ações humanas, inclusive na esfera pública, são motivadas, em grande parte, pelo interesse próprio. Essa ideia, à primeira vista, pode parecer cínica e desanimadora, contrastando com a crença de que as políticas públicas devem visar o bem comum e a justiça social.

Mas será que o egoísmo e o altruísmo são realmente forças opostas e irreconciliáveis?

É inegável que a maioria das pessoas, incluindo cientistas e intelectuais, possuem bons sentimentos e buscam contribuir para um mundo melhor. A evolução da humanidade, com avanços significativos em áreas como saúde, educação e tecnologia, especialmente após a Revolução Industrial, sugere que o “bem”, de alguma forma, tem prevalecido.

No entanto, a boa intenção por si só nem sempre é suficiente para garantir a cooperação e o alcance do bem comum. A religião, por exemplo, apesar de pregar valores como a compaixão e a solidariedade, muitas vezes esbarra na dificuldade de traduzir esses valores em ações concretas no mundo real.

Para entender melhor essa complexidade, vamos analisar alguns exemplos práticos:

1. Regras de Trânsito:

Nos Estados Unidos, a regra básica em muitos cruzamentos é simples: quem chega primeiro, tem o direito de passar. Essa norma, aparentemente trivial, gera um efeito notável no comportamento dos motoristas. Ao saberem que serão respeitados em sua ordem de chegada, os condutores tendem a agir de forma mais cooperativa e paciente, resultando em um trânsito mais fluido e seguro.

No Brasil, a regra da preferencial define quem tem o direito de passagem nos cruzamentos. No entanto, em cruzamentos complexos com alto volume de tráfego, a identificação da preferencial pode não ser trivial, o que pode levar a confusões e dificuldades em determinar a ordem de passagem. Embora a regra exista, a falta de clareza em algumas situações, em conjunto com a ausência do hábito de ceder a passagem mesmo quando se tem a preferência, pode gerar conflitos e desordem no trânsito.

Comparando os dois sistemas, podemos observar como regras claras, simples e bem definidas influenciam o comportamento das pessoas, incentivando a cooperação e o respeito mútuo. No caso americano, a simplicidade da regra “quem chega primeiro, passa primeiro” contribui para um sistema mais eficiente e harmonioso. No Brasil, a complexidade de alguns cruzamentos e a falta de um costume de ceder a passagem, mesmo tendo a preferência, podem dificultar a fluidez do tráfego.

Uma sugestão interessante para o caso brasileiro seria a implementação de um adendo à regra da preferencial: em situações de congestionamento, independentemente de cruzamentos, a regra “quem chega primeiro, passa primeiro”, alternadamente entre as filas, poderia ser aplicada. Isso tornaria o sistema mais claro, justo e eficiente, similar ao modelo americano. Claro, aqui a suposição implícita é de que todos estariam sujeitos a, no contexto da regra válida hoje para o Brasil, ambas situações: estar na preferencial ou estar aguardando todos da preferencial passarem. Nem sempre encontramos uma situação propicia à mudanças pontuais com sucesso pleno como me parece ser o caso da regra de transito.

2. Mudança na Jornada de Trabalho (6/1 para 4/3):

A proposta de reduzir a semana de trabalho de 6 para 4 dias úteis, mantendo a remuneração dos trabalhadores, é outro exemplo que ilustra a complexa relação entre egoísmo, altruísmo e o papel do Estado.

A princípio, a semana de 4 dias parece atender aos interesses individuais de todos:

  • Trabalhadores: Mais tempo livre para lazer, família e desenvolvimento pessoal.
  • Empresas: Potencial aumento da produtividade, redução de custos com energia e infraestrutura, e atração de talentos.
  • Governo: Melhora na qualidade de vida da população, estímulo à economia e possível redução de gastos com saúde pública (devido à redução do estresse e doenças relacionadas ao trabalho).

No entanto, a Teoria da Escolha Pública nos alerta para a necessidade de ir além das boas intenções e analisar os incentivos de cada ator, bem como os possíveis desafios e obstáculos para a implementação da semana de 4 dias.

Desafios e o Papel do Estado:

  • Custos para as empresas: A reorganização do trabalho, a contratação de novos funcionários e o investimento em novas tecnologias podem gerar custos para as empresas, especialmente para pequenas e médias empresas.
  • Risco de redução salarial: É preciso garantir que a redução da jornada não implique em redução salarial, o que prejudicaria os trabalhadores.
  • Dificuldade de adaptação: Alguns setores da economia podem ter dificuldades em se adaptar à semana de 4 dias, especialmente aqueles que exigem disponibilidade contínua.
  • Desemprego: A mudança pode levar à perda de empregos em alguns setores, caso as empresas não consigam manter a produtividade com a redução da jornada.

Para enfrentar esses desafios e garantir que a semana de 4 dias seja benéfica para todos, o Estado tem um papel fundamental:

  • Garantir a proporcionalidade salarial: A legislação deve assegurar que a redução da jornada não implique em redução salarial.
  • Incentivar a flexibilidade: As regras para a organização da jornada de trabalho devem ser flexíveis, permitindo que empresas e trabalhadores negociem a melhor forma de implementar a semana de 4 dias.
  • Criar mecanismos de apoio: O governo pode oferecer incentivos fiscais e programas de apoio para auxiliar as empresas na adaptação à nova jornada.
  • Monitorar os impactos da mudança: O governo deve acompanhar e avaliar os impactos da semana de 4 dias no mercado de trabalho e na economia, ajustando as políticas públicas quando necessário.
  • Investir em requalificação profissional: Oferecer programas de requalificação para os trabalhadores que eventualmente perderem seus empregos devido à mudança na jornada de trabalho.

Conclusão:

A Teoria da Escolha Pública nos convida a repensar a relação entre egoísmo e altruísmo, mostrando que esses conceitos não são necessariamente excludentes. Ao entendermos como as pessoas tomam decisões e como as regras influenciam o comportamento humano, podemos construir uma sociedade mais justa, eficiente e cooperativa, onde o interesse individual e o bem comum caminhem lado a lado, com a lei como um importante instrumento para a promoção da solidariedade.

Assim como no caso das regras de trânsito, a semana de 4 dias exige uma análise cuidadosa dos incentivos e a criação de regras claras e eficazes para garantir que a mudança seja benéfica para todos. O Estado tem um papel fundamental nesse processo, atuando como mediador e promotor do bem-estar social. Evidentemente, numa democracia, a questão seria resolvida no voto.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


A inteligência artificial e o futuro da humanidade: um debate aberto

Marco Aurélio Bittencourt

A inteligência artificial (IA) tem se tornado onipresente em nossas vidas, moldando a maneira como interagimos com o mundo e com as outras pessoas. Se, por um lado, vislumbramos um futuro com soluções para problemas complexos e melhorias na qualidade de vida, por outro, nos deparamos com questões cruciais sobre o futuro da humanidade, a liberdade individual e o próprio significado de ser humano. O termo “inteligência artificial” em si já gera debate, questionando a natureza da inteligência e os limites da IA. Afinal, a inteligência humana é fruto de milhões de anos de evolução, inerente aos organismos vivos e não às máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Alan Turing, o pai da computação, ao reconhecer a existência de problemas não computáveis, já demonstrava a limitação da lógica digital, um obstáculo intransponível para máquinas que tentam replicar a complexidade da intuição, criatividade e emoção, inerentemente humanas.

Essa complexidade inerente à mente humana é o que Miguel Nicolelis, renomado neurocientista brasileiro, explora em sua Teoria do Cérebro Relativístico (TCR). Segundo ele, o cérebro não se limita à lógica binária dos computadores; opera de forma relativística, criativa e imprevisível, construindo seu próprio “espaço-tempo” interno para processar informações. A TCR reforça a singularidade da inteligência humana e questiona a possibilidade de uma IA realmente inteligente e autônoma, como a que muitos preveem com a singularidade tecnológica. Essa visão de um futuro em que algoritmos ditam nossas vidas e máquinas controlam a sociedade é perturbadora e exige profunda reflexão.

Vivemos em uma era onde algoritmos influenciam cada vez mais nossas escolhas, desde compras online até as notícias que consumimos. Essa influência silenciosa e persuasiva representa um risco à liberdade individual, demonstrando o poder dos algoritmos e a erosão da liberdade. Quem controla esses algoritmos detém um poder imenso, podendo manipular comportamentos e moldar opiniões. A perda da autonomia e a submissão a uma lógica determinística imposta por máquinas ameaçam a essência do ser humano. A imersão no mundo digital e a adaptação constante à lógica das máquinas podem ter consequências profundas na forma como nossos cérebros funcionam, resultando na moldagem do cérebro e na perda de habilidades humanas.

Habilidades essenciais como a intuição, a criatividade, o pensamento crítico e a empatia podem ser atrofiadas em um ambiente dominado pela lógica binária e, talvez pela evolução analógica dessas criaturas forjadas por códigos, e principalmente pela busca constante por eficiência que faz parte do nosso arsenal de inteligência. A máquina poderia ser binária e analógica, mas há dúvida que possa incluir mais um elemento crucial que a aproximaria do cérebro humano: a complexidade.

Corremos o risco de nos tornarmos seres menos humanos, menos capazes de compreender a complexidade do mundo e de nos conectarmos com os outros. Diante desse cenário potencialmente distópico, a questão das mutações genéticas traz um elemento de imprevisibilidade, podendo representar uma luz no fim do túnel. As mutações, por sua natureza aleatória, podem conferir à humanidade uma saída inesperada, tornando-nos mais resilientes à influência das máquinas ou conferindo-nos novas habilidades cognitivas. No entanto, como eventos aleatórios ocorrem de forma imprevisível e tanto para o bem quanto para o mal, não se pode contar com a sorte para que o rumo do controle da vida seja resgatável.

Assim como o cérebro busca eficiência, as pessoas buscam preservar seus valores. Se a criatividade, a independência e outros aspectos da vida estiverem em perigo, a ação rebelde contra as máquinas será mais intensa quanto maior for a ameaça. Essa resistência, enraizada na capacidade de organização de grupos minoritários com interesses bem definidos, pode ser crucial para evitar um futuro distópico, a menos que a maioria se una em torno da alienação. De fato, já hoje encontramos regiões, cidades ou países em que políticas educacionais restringem o uso de aparelhos digitais na escola.

É certo que as inovações despertam interesse, mas compreender sua oportunidade é ainda um achado no escuro. Se as máquinas dominarem essa área da inteligência humana, a luta se tornaria mais difícil, e talvez dois mundos convivam simultaneamente: o “atrasado” e o “moderno”, em uma relação de poder ainda incerta.

Resta saber se a convivência entre o “atrasado” e o “moderno” seria pacífica ou se o moderno absorveria o atrasado. Caminharíamos para uma senda intelectual mais arbitrária, um futurismo de cartomante. Sabemos, porém, que os valores democráticos só se mantêm pelo equilíbrio entre os poderes, que, com freios e contrapesos (checks and balances), impedem que um poder se sobreponha aos demais e derrube os princípios constitucionais fundamentais e as cláusulas pétreas. Portanto, creio que um mundo distópico não prevalecerá.

A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, com potencial de transformar o mundo de maneiras inimagináveis. No entanto, seu desenvolvimento e aplicação exigem cuidado, responsabilidade e uma reflexão profunda sobre seus impactos na humanidade. A busca desenfreada pela eficiência e pelo progresso tecnológico não pode se dar às custas da liberdade, da individualidade e dos valores que nos tornam humanos. É preciso garantir que a IA seja utilizada para o bem da humanidade, e não para sua subjugação. O futuro da nossa espécie depende das escolhas que fazemos hoje, e dentre elas está a liberdade que estamos perdendo por não nos posicionarmos criticamente sobre o caminho que a própria humanidade toma.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Por que os juros altos são uma desgraça?

Marco Aurélio Bittencourt

Antes de tudo, é necessário definir o que são juros altos e como os juros nominais são estimados pelos agentes econômicos. Apelo para a equação de Fisher: taxa de juros nominal = taxa de juros real + inflação esperada,  . Você pode olhar essa equação da seguinte forma: você tem 100 reais hoje e sabe que pode comprar 10 pães. Aí você empresta esses 10 pães, ou se estiver no mundo nominal, a uma taxa de juros nominal, , por 5% ao período (qualquer período, mas temos que escolher um para que taxa e período sejam compatíveis. Escolho ano). Espero ganhar ½ pão ou 5 reais de juros mais o capital que investi. O que pode atrapalhar minha conta? A inflação esperada,  . Eu tenho que chutar uma . Chuto zero, porque a coisa no Brasil está preta, ou seja, não espero crescimento e assim todo mundo tem problema, inclusive os empresários que não se arriscam a aumentar o preço (o engraçado é que estamos vendo as embalagens dos produtos encolherem ou pesarem menos. Gosto do Chicabom. Hoje pago o mesmo preço, mas o picolé é a metade). Então a minha taxa de juros nominais,  coincide com a taxa de juros de real, . O que isso significa? Que posso voltar ao mercado e comprar meus dez pães e mais meio pão; o que era o que esperava. Foi o quanto quis ganhar por emprestar meus 100 reais.

Mas onde está o problema? Está na expectativa da inflação. Se o preço do pão mudar (para cima, inflação e para baixo, deflação) posso perder. Suponha que a inflação seja de 6%. Como ganhei 5 reais, tenho em caixa 105 reais. Mas vou agora comprar o pão por (1+0,06) *10= 10,6. Quantos pães agora posso comprar? Posso comprar 9,90 pães (105/10,6). O que aconteceu? Eu errei na previsão da inflação. Eu chutei que era zero, mas foi de 6%. Fiquei mais pobre, porque agora, além de retardar meu consumo, tenho uma quantidade de pães menor do que tinha antes de emprestar minha grana. Em termos de fórmulas: a minha taxa de juros nominal tem que corresponder a uma taxa de juros real mais uma expectativa de inflação. Se eu tivesse acertado, teria cobrado acertadamente  Teria um ganho bruto de (1+0,11) *100=111 e assim poderia comprar 111/10,6 = 10,47 pães. (não dá exatamente 5 pães a mais, por conta de aproximações que fiz com a fórmula).

Quais as implicações da nossa brincadeira. Primeiro, a taxa de juros real eu chutei. Vale lembrar que é uma variável não observável, mas pode ser inferida com pouca precisão, é certo. Por que pode ser aferida? Por conta da arbitragem planetária. Se alguém ganha acima do que os demais estão ganhando, há uma corrida em direção ao mercado lucrativo, fazendo com que a arbitragem produza seu efeito: os ganhos seriam iguais e assim uma taxa de juros real ficaria de fato inabalada. A razão da corrida? Chame do que você quiser. De inveja, de cobiça, seja lá o que você quiser chamar, mas a razão econômica é simples: se deixar passar a oportunidade, sou engolido pelo sistema capitalista. Então se alguém ganha acima dos demais, a turma vai ao mercado ganhador e investe aos montes até que a rentabilidade extra desapareça e a taxa de juros reais prevaleça em todos os negócios. Essa taxa de juros real pode ser mascarada por outra razão. A nossa segunda observação. Se há incerteza na economia, a taxa de juros real pode ser encoberta por esse fenômeno, de tal forma que tenho que calibrar mais minha taxa de juros nominal, supondo que as expectativas inflacionarias sejam conhecidas e dadas. Então se soma a incerteza à inflação esperada.

No caso do Brasil, nossas taxas de juros nominais são altas por conta da expectativa inflacionaria que é ajustada pelo Banco Central pelo cenário econômico no visor de sua tela prospectiva. Então, calibra-se a taxa de juros básica, na crença de que se ajustando essa taxa, as demais caminhariam em linha, com a esperança de que o deslocamento de todo o feixe de juros seja coerente com a taxa básica. Como provavelmente a calibração não está correta, a taxa de juros real da fórmula de Fisher é estimada de forma exagerada. O que faz a turma de empresários que precisam investir no seu próprio negócio? Vão comparar o que ganham investindo no seu negócio (a taxa de juros real que eles conhecem que está abaixo da que o Banco Central faz a turma crer que seja a verdadeira) com o ganho investindo no mercado financeiro. Se seu negócio é menos atrativo do que o financeiro, retardam o investimento no seu negócio. Como podem fazer isso? Usando as máquinas e os seus equipamentos por um tempo maior do que outra forma o fariam. Mas certamente seus custos vão aumentar e perderão competitividade. Como resolvem o problema? Alguém tem que ajudar essa turma tupiniquim, para não serem engolidos pela arbitragem planetária. Se ficam por muito tempo no mercado financeiro, de duas uma: ou os juros sobem mais ainda para compensar seus custos elevados ou alguma proteção explicita do governo está a postos (Estado, se a proteção é duradoura, ou seja, a proteção estaria incorporada ao modelo). A redução de custos vai ocorrer de forma exógena ao negócio – por redução salarial, modificação no câmbio, incentivo fiscal, etc. A consequência disso pode ser uma armadilha da qual não conseguimos nos libertar. Esse padrão é autofágico e em algum momento ele terá que ser corrigido e, pelo rastro histórico, continuará tudo como dantes, mas piorando para a turma do andar debaixo cada vez mais. Contudo, fácil ver a saída econômica. Só que o problema é político! Está tudo bem para os de sempre, não importa quem pague a conta.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Como é que me defino politicamente? LIBERAL!

Marco Aurélio Bittencourt

Aproveito ideia de outro blogueiro e faço minha confissão pública sobre minhas preferências em política. Lembro meu entendimento sobre o modelo brasileiro: o do rent seeking (na minha linguagem, o modelo da pilhagem). Lembro ainda o objetivo: tratar de assuntos pertinentes a sociedade e economia brasileira, com implicações econômicas. O foco é de economia política (não consigo ver o estudo da economia de outra forma).

A bem da transparência, é instrutivo estruturar o meu pensamento político. Até porque podem os raríssimos leitores inferirem posturas que abomino, caso sejam levados por clichês. Evidentemente, sigo a recomendação de David Hume (discutir com idiota, você sempre perderá, pois esses estão presos a clichês e verdades absolutas). Todavia, reconheço que não é fácil fugir dos clichês. Às vezes usamos expressões que podem ter interpretações diversas, mas podem encurtar caminhos. Eu mesmo me valho dessa estratégia. Reconheço que há uma mixórdia no entendimento do que seja liberal.

Começo então minha preleção me declarando liberal, com muitos pontos de contato com a socialdemocracia e alguns com o conservadorismo. Sou a favor de um Estado com funções robustas, mas não de um Estado excessivamente ativista. As funções que fazem o Estado robusto se prendem basicamente: à justiça, segurança, defesa nacional, saúde, educação, previdência social e assistência social, a infraestrutura, a conservação dos recursos naturais e à regulação das atividades econômicas que não estejam no contexto competitivo. Na órbita municipal, principalmente o controle do plano diretor a tornar as cidades agradáveis para se viver. Essas atividades devem ser públicas, mas, exceto a segurança e a defesa, justificariam o funcionalismo público. As demais poderiam ser executadas pelo setor privado ou ter forma de seleção simplificada, com salários equiparados ao do setor privado. Quanto ao funcionalismo em si, deveria ser apenas uma categoria e não importa se executivo, judiciário ou legislativo. Deveríamos ter dois níveis: superior e técnico, seguindo as profissões já reconhecidas. A regra básica para postos de gestão em todas as esferas públicas seria a de rodízio e indicação eletiva. No tocante as empresas estatais, lembro a lógica de sua criação (a valer para a grande maioria das empresas): a recusa do setor privado em colocar dinheiro nesses negócios. Sendo assim, não vejo razão para privatizá-las. Se argumentam ineficiência, que pode ser verdade, mas o remédio não seria privatizar e sim estabelecer boa governança. De qualquer forma, havendo interesse em privatizar, duas regras a observar: a) não pode haver aumento de poder de mercado e b) tem que haver aumento no investimento. Quanto à regulação, de forma geral, tem que manter o ambiente competitivo. Regulação que aumenta o poder de mercado ou a empresa privatizada não gerar investimento devem ser consideradas ilegais.

O Estado também pode e deve ter algum papel redistributivo e alocativo. Os programas assistenciais devem se guiar por dois parâmetros: social e financeiro. Fome não pode existir. Moradores de rua devem contar com suporte municipal. Educação básica garantida a todas as crianças e jovens com um padrão de qualidade definido e pelo menos idêntico ao do setor privado.  Dada a realidade econômica (ver http://chutandoalata.blogspot.com/2020/11/olhando-o-brasil-de-uma-maneira-simples.html), uma profissão em nível técnico deve ser garantida a todos. A universidade só seria custeada para os reconhecidamente pobres e para esses seria concedido uma remuneração básica, com contrapartida social de trabalho condizente com a atividade estudantil, em tempo e modo. O segundo parâmetro é que o custo do programa deverá ser decrescente ao longo do tempo.

No tocante ao aspecto alocativo, todas as funções de governo devem estar retratadas no orçamento público e, portanto, com o aval da sociedade. Destaque deve ser dada às atividades de infraestrutura e de conservação dos recursos naturais, tendo em vista principalmente os efeitos de externalidade. A omissão aos princípios legais e constitucionais deve ser considerado crime cometido pelo gestor público afeto à questão específica.

Toda atividade pública tem que contar com apoio legal expresso na Constituição ou lei específica relativo ao gasto específico. Não constando, não pode ser objeto de pauta orçamentária. Por fim, o orçamento público deve ser equilibrado em todas as esferas institucionais (união, estado e município). O ente federal poderá, em casos de notória recessão, que desbalanceia receitas e despesas, apelar para o endividamento público temporário. Todo e qualquer ajuste nas despesas só poderá ocorrer na forma de redução das remunerações, quer para empresários beneficiados orçamentariamente, quer para funcionários. O desequilíbrio se não revertido e tiver implicações sobre o pagamento de juros sobre a dívida pública e revelando-se excessivo, deve ser monetizado.

Além de tudo isto, para poder financiar os bens públicos fundamentais, o Estado não pode ser fraco a nível fiscal, pelo que tem de travar uma guerra sem tréguas à evasão fiscal, interna e externa (paraísos fiscais). A eficiência burocrática deve ser uma política sem fim.

Podem carimbar o que descrevi acima como direita liberal, mas será uma simplificação porque apenas uma dimensão (esquerda-direita) é insuficiente para descrever o meu pensamento sobre as todas as escolhas políticas necessárias para o mundo complexo à nossa volta. Por exemplo, sou católico não praticante e sempre fui “de esquerda” a nível dos costumes. Considero muito positiva a política de descriminalização do consumo de drogas em que os viciados são tratados como doentes e não como criminosos. Em relação a lei do aborto, sou tolerante com a possibilidade e recomendo observarem o debate que se travou no Uruguai, mas meu voto seria contrário. Quanto à ideologia de gênero, sou contrário. Mas não endosso nenhum comportamento contrário à opção sexual. Em resumo, entendo que o preconceito é uma máscara para manter os mais fracos socialmente nessa condição de fraqueza para exploração pura e simples da força de trabalho. Em relação ao politicamente correto, sou totalmente contra. Atitude é tudo. O amparo legal entendo que já existe o suficiente para proteção dos que se consideram desamparados na órbita dos costumes. Mas isso não implica que não devemos rever as políticas públicas e leis que dão amparo aos atingidos pela discriminação e preconceito. Por fim, sou plenamente favorável ao estabelecimento de ONGs. A regra para participação pública nessas entidades é simples: acatar o modelo de ONG do governo e só conceder benefício se a ONG contar com benefício privado, tendo limite governamental de um % dos gastos privados menor do que 60%.

Pode ser que tenha deixado de fora alguns itens para definição clara de uma posição política. Em tempo poderei fazer o devido ajuste. Deixo ainda expresso que apoio integralmente a rebeldia verdadeira. Infelizmente nossa constituição, diferentemente de outras como a alemã, não dá amparo legal a tal situação de rebeldia verdadeira (cada um que defina a sua).

Retirei esse artigo de minha coletânea de artigos que publiquei em meu blog http://chutandoalata.blogspot.com , antes da pandemia. Pode ser que agora, pelo efeito da covid-19, possa ter mudado minha posição política, quer por interesse, quer seja por paixão. Evidentemente, não gastarei do meu colesterol bom para mimos. Para aqueles acompanhados por querubins em purgatório que travam cancelamento tosco, apenas usarei o ruim, já seguindo a abreviação não oficial e nem recomendável: VPPQP!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


O que de fato é a causa central dos desequilíbrios Orçamentários?

Marco Aurélio Bittencourt

Os analistas econômicos, recorrentemente, cerram fileiras contra os avanços na política fiscal que se dirige aos mais pobres e aos mais humildes, tomando como fundamento as mexidas de xadrez que os políticos executam para tal fim. Pelo menos não falam em demagogia. Faço aqui uso do artigo do economista Marcos Mendes, intitulado “As vinculações de despesas são causa central do desequilíbrio fiscal crônico”. Ele faz as contas, mas olha para as árvores e a floresta continua na sombra.

O Autor afirma que uma das medidas essenciais para tirar o governo da rota do endividamento insustentável é a revisão das vinculações das despesas ao salário-mínimo (SM) ou ao crescimento da receita. Ele também argumenta que as vinculações das despesas são fator essencial de desequilíbrio fiscal e realiza um exercício hipotético para considerar a situação da manutenção dessas vinculações em termos monetários precisos. Se essas vinculações não fossem aplicadas, a despesa em 2024 poderia ser de R$ 131,6 bilhões mais baixa. Isso converteria déficit primário previsto de R$ 9,3 bilhões em um superávit de R$ 122,3 bilhões (1,1% do PIB).

Certamente, uma tungada de respeito que pretendiam aplicar ao populacho que é o beneficiário direto dessas medidas vinculativas. De fato, atingiria aposentados da previdência social, os mais pobres, e áreas como educação, saúde e segurança. O autor conclui que, com o passar do tempo, o custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, especialmente nos casos da Previdência e da assistência social. Isso se deveria ao acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal fixados na Constituição.

Evidentemente, mudanças atuais não podem ser a causa do déficit crônico que já existia antes dessas medidas vinculantes de 2023. No entanto, ele não culpa os juros da dívida pública por esse déficit crônico. O ponto é que existem dois itens preocupantes para o desequilíbrio fiscal: os juros da dívida pública e os gastos sociais. O principal fator determinante são os juros da dívida pública. Para demonstrar meu argumento, utilizo dados do orçamento público conforme os padrões da OCDE – COFOG, Painel do Orçamento Federal. Vamos agora analisar o padrão orçamentário em grandes números.

As tabelas 1 e 2 abaixo revelam o nosso padrão orçamentário. Considerando o ano de 2022, apenas quatro itens merecem destaque: 701 – Serviços públicos gerais (que inclui os juros da dívida pública), 710 – Proteção social, 709 – educação e 707 – Saúde, respectivamente com participação percentual em relação ao PIB de 13,6%, 12,4%, 1,9% e 1,8%. Em 2022, esses itens representaram aproximadamente 95% do total de gastos.                                

 Fonte: Painel do Orçamento Federal – COFOG

Duas observações são necessárias. Primeiro, os juros da dívida estão inclusos no item Serviços Públicos Gerais, com peso de quase 65%. Segundo, o item Proteção Social conta com orçamento próprio, sendo seu déficit o principal elemento impactante nos demais gastos públicos. Outro aspecto é que, dada as condicionantes do padrão orçamentário, sua gestão se configura como “eficiente” apenas no sentido de proceder ajustes sem mudar o status quo vigente; o que certamente não é motivo de comemoração. Isso reflete o jogo político em que o povo desempenha papel secundário.

A configuração temporal do padrão orçamentário é explicitada na tabela 3, que nos revela dois fatos. Primeiro, a magnitude elevada, comparativamente aos demais, dos itens Serviços Públicos Gerais e Proteção Social, com Saúde e Educação em patamares bem inferiores. O segundo fato de destaque está nos itens que sofrem os impactos desequilibradores que estão inclusos na categoria Demais Gastos. De fato, dada a estabilidade dessas outras proporções, esse último componente é o que mais contribui para ajustes relativos aos déficits orçamentários. Com efeito, se comparamos a posição inicial (2010) com a posição final (2022), vê-se que os valores aumentaram para os dois itens de maior peso, enquanto educação e saúde ficaram um pouco acima do que prevalecia inicialmente. A queda se deu no item Demais Gastos.

A dinâmica dos ajustes na rubrica Demais Gastos, em especial na que se classifica como assuntos econômicos, mostra um vigoroso deslocamento dessas despesas, com seu efeito deletério sobre as políticas públicas pertinentes a esses itens. Evidentemente como os cortes possíveis são lineares devido ao cumprimento dos normativos legais em situação de ajustes, todas as funções de governo são atingidas, exceto serviços Públicos Gerais e Proteção Social. Serviços Gerais conta com a proteção da Lei de Responsabilidade fiscal, enquanto Proteção Social possui orçamento próprio. Mas, dadas as considerações de equilíbrio orçamentário, os tópicos preocupantes são os serviços públicos gerais em seu item transações da dívida pública e o item proteção social que, contudo, está amparado por contribuições específicas, sendo apenas seu déficit relevante para detecção de elemento desequilibrador do orçamento.

É possível observar que os juros da dívida provocam o deslocamento dos demais gastos de forma robusta, conforme mostrado na tabela 4 abaixo. O deslocamento causado pelo pagamento dos juros ou do item Proteção Social provocam no orçamento pode ser inferido pela medida de impacto que considera apenas a variação anual desses dois itens. Considere as posições dos valores em 2010 e 2022. Depreende-se que despesas com juros e proteção social em relação aos gastos totais mantiveram sua proporção, com ligeira variação para o item Proteção Social. Como dito, em relação ao item Despesas Sociais, apenas o déficit previdenciário seria relevante. O TCU informa que o déficit cresceu, no período 2013 a 2022, 6,8% em média, chegando a 2023 em R$ 375,33 bilhões. Estimamos para fins de comparação prática que o déficit corresponda a 30% da rubrica Proteção Social. Então temos dois candidatos potenciais aos deslocamentos dos demais gastos. Conforme a tabela 4 abaixo, o valor médio do deslocamento dos juros é 3 vezes maior do que o do déficit previdenciário estimado.

O item juros, de fato, é o elemento crítico no deslocamento dos demais gastos. O fato de relevância é que o pagamento da rubrica juros sofre forte influência de um componente externo ao orçamento público: a política monetária/juros do Banco Central. Num cenário de aumento dos juros, o déficit público aumentaria sem mesmo ter aumentado os gastos públicos e o efeito reverso no caso de uma baixa dos juros tem se mostrado eventual e passageiro. Além disso, o ajuste desse item juros ajudaria a resolver de forma definitiva o problema do déficit previdenciário; o que não se daria se o ajuste fosse pelo déficit previdenciário. Mais importante ainda, o ajuste dessa conta de juros poderia ser administrado pelo tesouro (reestruturação da dívida) ou monetizado pelo Banco Central (compra de títulos públicos), enquanto o déficit previdenciário dependeria do crescimento da economia e possivelmente de ajustes no próprio sistema previdenciário. Por essas razões, os juros se apresentam como o elemento central no deslocamento dos demais itens orçamentários passíveis de ajustes. O gráfico abaixo mostra a correlação entre o pagamento de juros e o resultado primário do governo central.

A ilação básica é que qualquer reforma orçamentária deve levar em conta não apenas as regras de ajustamento, mas sobretudo equacionar o problema do endividamento público de forma definitiva. O efeito juros pode anular todo o esforço orçamentário de equilíbrio sem que se esteja promovendo gastos públicos adicionais. Esse é o ponto central: o consertamento orçamentário. Ele deve vir em primeiro lugar, pois fica claro que, se o item juros for reduzido adequadamente, as reformas tributárias poderiam caminhar na direção da tributação ótima ou no redirecionamento de gastos salutares ao crescimento.

Resta a questão da vinculação das despesas.  Segundo Mendes: “O custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, em especial nos casos da Previdência e assistência, com o acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal, fixados na Constituição”. Como disse alhures, o orçamento previdenciário conta com contribuições específicas e só o déficit da previdência é que captura tributos. Entretanto, contribuem para esse déficit previdenciário as benesses sociais que deveriam ser custeadas por tributos outros que não as contribuições previdenciárias, já que tais benesses não contaram com a respectiva contribuição previdenciária. Além disso, se tais gastos crescem exponencialmente, a receita líquida também deveria seguir essa tendência. Olhar o futuro é complicado. Fiquemos no presente e façamos o que tem que ser feito: o consertamento orçamentário definitivo!


MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Desatando o nó de jacarandá

Marco Aurélio Bittencourt

Muitos se perguntam qual a saída para o Brasil, tendo como certo e acertadamente que a nossa situação social, econômica e política é predatória. O pessimismo toma conta de quase todos. Mas nós, economistas, gastamos tempo e muita energia para entender a situação sob o ângulo técnico que se desdobra em diversos tipos de abordagem. Todas elas, em sua grande maioria, quer sejam economistas ou não, nos levam a um caminho só.  O x da questão é político, e é pela política que encontraremos a saída a nos libertar de todos os entraves que estancam recorrentemente o caminho duradouro para o desenvolvimento do país. Eu sou otimista, e isso facilitou meu entendimento para o rompimento das amarras. Mas antes de chegar na questão básica da luz no fim do túnel, é necessário fazer um resumo do quadro político desde 1946.

O modelo político que apontava para a inserção política do cidadão estava presente em Getúlio Vargas. Como já disse alhures, Getúlio era uma figura complexa e aqui falo apenas no contexto político do período democrático. Os dois partidos-chave para o destino do país seriam o PTB e o PSD. O primeiro, criado por iniciativa do próprio Vargas, tendo sua filha como fundadora. O PSD seria fundado por simpatizantes do Getúlio. A UDN seria a oposição sistemática às políticas de Getúlio. Apareceriam mais dois partidos que buscavam o poder federal, mas que se consolidavam principalmente na esfera estadual: O PSP (Partido Social Progressista) que tinha em Ademar de Barros seu líder natural, na tentativa de simular um padrão getulista, nos termos do baronato paulista. O outro partido importante em termos de aliança, mas pouco expressivo como era o PSP, foi o Partido Republicano, PR. Temos ainda o Partido Comunista, PCB que era importante pelo seu potencial de atrair a juventude e intelectuais. Mas, atingido de morte pelo contexto da guerra fria, acaba sendo alijado do processo político partidário e só retornaria ao cenário partidário com a Constituição de 1988. Restou como opção pseudo radical o Partido Socialista Brasileiro, mas de pouca expressão.

O Quadro político imaginado por Getúlio Vargas seria basicamente o seguinte: o PTB serviria como canal para a expressão popular, ocupando, na órbita federal, preferencialmente os cargos de deputados federais, e o PSD como canal de expressão da elite dirigente, ocupando a Presidência da República, Senado e os Governos Estaduais. No entanto, o projeto nacionalista de Getúlio sofreu ataques profundos, sendo a UDN o leme dessa opção que imaginava chegar ao poder a qualquer custo, além dos habituais traidores da causa.

A tentativa de derrubada do projeto nacionalista de Getúlio e seu grupo seria bem-sucedida, já em 1954, com provável afastamento e prisão de Getúlio. Mas, o inesperado acontece e Getúlio deu o troco à UDN com a sua autoimolação, deixando o país em situação política confusa. Seu vice-presidente, Café Filho, plantado ali pelo astuto Ademar de Barros, assume a Presidência da República e intenta um golpe com a intenção de não deixar assumir a Presidência da República e a Vice-Presidência a chapa vencedora Juscelino Kubistchek (JK) e João Goulart (Jango) – este último como vice-presidente. JK era do PSD e Jango do PTB (sob a constituição de 1946 o vice-presidente também era eleito diretamente pelo voto popular). O golpe foi frustrado pela ação do Ministro da Guerra, Marechal Henrique Lott (Lott), que fora deposto por cumprir sua obrigação constitucional de punir o coronel porta-voz do golpe que alardeou a ameaça de que os eleitos à Presidência e Vice-Presidência da República não assumiriam. Lott revidou e garantiu o retorno à normalidade democrática do país, tomando posse em seus cargos os eleitos JK e Jango.

O que esse quadro já mostra? Que o projeto nacionalista estaria sendo atacado por todos os flancos. Os partidos políticos imaginados por Varga, em cumprimento às diretrizes e projetos nacionalistas, já estavam contaminados por interesses que se assemelhavam aos mesmos do período pré-Vargas, embora a oposição liderada pelo PTB ainda produzisse efeito prático na política do dia a dia. O fato é que JK implementou projeto próprio e de característica não nacionalista, firmando pactos com o baronato industrial e empreiteiras. A indústria nacional iria a reboque das multinacionais. A Agricultura já tinha seus interesses arraigados e de pouca monta foi a mudança que já vinha sido trilhada. O destaque está na Constituição de 1946 que permitia desapropriação para fins de reforma agrária, embora não mais explicitasse o que de bom tinha na constituição de 1937 como, por exemplo, em seu Art. 148 que permitia a prática do usucapião em terras de até dez hectares. O tripe da elite estava formado. Mas a agitação política era intensa e o legado de JK no flanco interno e externo exigiam ajustes rápidos e certeiros. A eleição que sucedeu a JK trouxe a esperança com Lott e Jango; Lott candidato filiado ao PSD, galgado a chapa presidencial, com Jango pelo PTB como vice-presidente. Lott não contou nem com o apoio de parte da esquerda que não lhe depositava confiança para levar adiante as reformas de base que o PTB esboçava e menos ainda com o apoio esperado de JK. O objetivo era neutralizar Lott e para isso urdiram a candidatura Jânio Quadros (Jânio), sob aliança com a UDN. Para que tirassem a força do Marechal como candidato, insuflaram marotamente a chapa Jânio-Jango. Para ele, o Marechal, e para nosso azar, a estratégia deu certo e deixaram o vice como esperança ineficaz, na aposta da mudança de rumo com Jânio.

A estratégia do baronato parecia ter dado certo. Mas os problemas na área econômica herdados do período JK não encontraram um caminho de solução fácil. Jânio, alegando pressão de forças ocultas que não o deixavam governar, renúncia em tentativa, talvez, de voltar ao poder nos braços do povo. Não foi isso o que aconteceu e sua renúncia se consolidou. Mas deixou um defunto político para ser enterrado: seu vice, Jango. As forças ocultas que mostraram a cara tentaram impedir a posse de Jango como Presidente da República. E novamente estava ali presente o Marechal Lott que denunciava o golpe, motivando a ação de Leonel Brizola que resultou em sucesso, porém parcial. À Lott lhe custou 15 dias de cadeia.

Jango acatou o acordo costurado com Tancredo Neves, o mesmo que ficara ao lado de Getúlio até o último momento de sua autoimolação, na condição de ministro à época, se oferecendo para assumir o Ministério da Guerra para conter os golpistas. Nesse novo episódio da história política brasileira, Tancredo Neves, mesmo sem ter sido eleito governador de Minas Gerais no pleito de 1960, mas apoiado pela cúpula do PSD e contando com a simpatia de diversos políticos, foi indicado para costurar o acordo com Jango e o convenceu a aceitar um sistema parlamentarista como solução. Jango tomou posse e Tancredo Neves foi guindado ao cargo de primeiro-ministro, inaugurando o sistema parlamentarista que teve breve período de duração.

Mas o PSD que já tinha sido contaminado pela força política de JK que se distanciava do modelo nacionalista de Getúlio/Jango pouco fez para apoiar as políticas pretendidas pelo PTB já que sua bancada estava em grande parte apontando para outro lado do espectro nacionalista. A força da oposição e a decisão tardia de Jango em assumir um lado do embate político feroz o deixou enfraquecido e, quando o fez, o circo do golpe já estava armado.  Um general com tradição rebelde e fama de maluco assume a ponta militar para a derrubada do governo e já não poderíamos mais contar com a força reparadora de Lott que já teria seus passos políticos controlados, dificultado ainda pelo apoio popular da classe média ao movimento golpista, em razão das atabalhoadas políticas de Jango que acenava claramente o envolvimento de forças radicais da esquerda. Veio o golpe e o fim do modelo político arquitetado por Vargas. Muitas foram as traições. A esperança foi na aposta da eleição indireta para a escolha a presidente entre Castello Branco (sem partido), Dutra (PSD) e Juarez Távora (PDC – Partido Democrata Cristão). Dificilmente a chapa Castello Branco seria batida, dada as manobras estratégicas do núcleo duro do golpismo militar. JK agora trai o PSD original e renega a candidatura Dutra do PSD, juntamente com a quase totalidade dos eleitores (Dutra, 2 votos; Távora, 3 votos e Castello 361 votos).  Inicia-se assim, a era do regime militar com esse rebotalho de parlamentares.

Vamos chegar a era do bipartidarismo: a Arena, partido da situação óbvia e MDB, partido criado para mimetizar uma oposição. Os nacionalistas ainda existiam aos montes, mas o objetivo de toda a oposição legítima era derrubar o regime militar, misturando-se todos os oponentes com matizes ideológicas diversas num único partido; o MDB. Nesse embate, surge na legislatura de 1970 um grupo de deputados do MDB que, em seu início poderia ser contado em mais de 60 deputados, já ressabiados com as cassações individuais sem respaldo político na legislatura anterior, optaram por um trabalho de oposição legítima, porém mais coordenado. No famoso encontro do MDB em Recife em junho de 1971 já lá lançaram a proposta da constituinte. Foram boicotados por figuras da cúpula que envolvia Ulysses Guimaraes, Tancredo Neves e Thales Ramalho que se opuseram a essa tese original. Falo da turma autêntica do MDB – termo cunhado pelo jornalista Evandro Paranaguá http://youtu.be/NPdj6N82A2w .

Foram esses deputados briosos do MDB que moldaram a cara de oposição verdadeira ao regime militar que infelizmente foi apropriada por figuras como Jáder Barbalho. Cito os, segundo meu entendimento, os mais importantes desse grupo dos Autênticos do MDB (https://www.youtube.com/watch?v=JFxJKe8qKg4&t=17s): Chico Pinto, Alencar Furtado, Lysâneas Maciel, Marcos Freire e Fernando Lyra. Outros deputados foram também importantes nesse momento; até mesmo da Arena como Pedroso Horta ou outros que militavam na oposição e de alto valor cívico como Alceu Collares que, no momento decisivo para o grupo em denunciar a eleição fajuta do Geisel, roeu a corda, atendendo pressões da turma do Brizola. O fato é que esses políticos valorosos poderiam trazer novamente o sonho nacionalista de Getúlio. Muitos provaram seu valor com a sua própria cassação pelo regime militar, como os três primeiros citados do flanco dos Autênticos do MDB. Foi uma medalha no peito dessa turma; totalmente diferente do que se dá hoje em dia.

Mas o que aconteceu com esse grupo? Isso tem a ver com a estratégia do Golbery de batida em retirada dos militares do poder. Trata-se do retorno do pluripartidarismo. Com isso, os Autênticos se diluíram em distintas legendas. Para piorar, trataram os homens de valor que teriam eleição certa de permanecerem na linha de ataque de continuar sua batalha por mudanças institucionais, mas se descuidaram do comando dos partidos. O resultado foi a perseguição pelos caciques dos partidos a esses homens briosos, com a grande maioria já na legislatura de 1990 não conseguindo mais ascender politicamente. O fato é que todos os partidos têm dono e os utilizam para seu benefício. A moral, a ética e os valores básicos de um patriotismo desejável simplesmente sumiram do mapa político. Essa realidade até o cidadão comum percebe e se indigna. Mas o que fazer? Qual a mudança fundamental a ser perseguida?

A resposta é simples: mudar a regra do jogo fundamental para ferir de morte a supremacia dos caciques políticos: eleição para quaisquer cargos eletivos sem que se tenha necessariamente vinculação partidária.

Essa regra é fundamental e necessária para abrir as portas a opções legítimas de mudança.  Para se perceber a importância dessa estratégia, basta considerar a situação do ex-presidente Trump. Na eleição que o elegeu, foi ameaçado pelo grupo republicano que também lá dirige o partido de não obter a legenda para disputa nas primárias americanas. Trump retrucou: sairei como candidato independente. Claro, dada a polarização política acima e abaixo dos trópicos, muitos, em arroubos autoritários, poderiam achar esse exemplo bastante contraditório à tese da candidatura independente. O exemplo tem que servir à tese e não às ideologias ou preferências que são subjetivas.

A candidatura independente de vinculação partidária abre espaço para homens de valor almejarem a Presidência da República. Não é por outra razão que candidaturas esperadas como as de Joaquim Barbosa e Sérgio Moro não prosperaram. Homens de valor que não aceitaram a manobra dos caciques das legendas que intentavam representar. Se houvesse a possibilidade da candidatura independente, teriam colocado em corner esses partidos.

Claro que essa mudança é a luz no fim do túnel, mas trilharia o caminho da solução política rapidamente e de forma indolor. O difícil é ver deputado jovem como a Tábata Amaral se colocando frontalmente contra a candidatura independente. Evidentemente, uma solução melhor seria o parlamentarismo; tarefa mais complexa do ponto de vista político. Já a candidatura independente teria uma maior chance de aprovação parlamentar.

Feito o consertamento político, resta o econômico. Este é mais simples ainda. Basta adequar a trajetória da dívida pública e deixar o orçamento concebido pela Constituição de 1988 funcionar em seus próprios termos, livre de leis como as da responsabilidade fiscal e outras amarras castradoras. Sou otimista. Pela candidatura independente!

Um olhar especial sobre o modelo brasileiro

Marco Aurélio Bittencourt

Falar sobre desenvolvimento inclui, necessariamente, um mesmo olhar sobre crescimento econômico. Já sabemos os contornos para o crescimento econômico: capital físico e humano, população, tecnologia, progresso tecnológico e Instituições. Mas ligar esses elementos de tal sorte que desabroche o modelo de desenvolvimento tem sido o esforço dos economistas. Tarefa até o momento inglória, por conta principalmente do item instituições que é difícil medi-la adequadamente para o teste sempre necessário. Por essa razão, o apelo às narrativas (também etapa necessária na condução científica do assunto) tem sido empregado a rodo.

Particularmente, não me adequo a nenhuma das versões, embora abrace a ideia do rent seeking (Caçador de rendas). O que esboçarei tem um pé nessa ideia de rent seeking e instituições (Veja Democracy and Growth in Brazil, Marcos Lisboa e Zeina Latif).

Meu modelo começa com a chamada hipótese de Domar que, ao analisar a escravidão, coloca a hipótese de que não podem conviver conjuntamente classe ociosa, terra livre e trabalhador livre. Para a existência de classe ociosa, necessariamente tem-se trabalhador não livre ou terra não livre. Isso retrata bem o que aconteceu no Brasil em tempos imperiais. A elite brasileira (classe ociosa) já tinha em conta que, desde o segundo quartel do século XIX 1830-1840, a escravidão teria fim. A experiência inglesa de libertação dos escravos em suas colônias em 1883 feita gradualmente até 1840 era o espelho que se refletiria à América do Sul. Por conta disso trataram de inverter um dos elementos da hipótese de Domar: trocaram terra livre e trabalhador não livre, por terra não livre e trabalhador livre. Isso se deu com a lei das terras em 1850, mas a transição foi totalmente diferente das colônias inglesas. Durou quase 40 anos.

O que esse esquema da hipótese de Domar revela? Simples. Se deixarem as portas das oportunidades de negócios abertas, não poderá haver classe ociosa. Evidentemente que essa hipótese é cristalina quando se analisa a escravidão. Fica mais complexo, num contexto sem escravidão. Falta agora identificar os elementos que substituam a terra não livre. Faço um esforço especulativo e adianto as seguintes quebras estruturais.

  1. Derrubada do Império
  2.  Acordo de Taubaté e acordo dos governadores
  3. Revolução de 1930
  4. Derrubada do modelo nacionalista com a morte de Getúlio Vargas e ascensão de JK
  5. Ditadura militar e aprofundamento dos acordos com a elite
  6. Redemocratização e nova república
  7. Plano Real

Para esse fim, usarei como referência básica o gráfico abaixo que retrata o salário-mínimo em termos de poder de compra de 1 jornal, O Estadão. Para o período Imperial, usaremos uma referência estimada do equivalente ao salário-mínimo.

Fácil ver que estaríamos melhor com o Imperador do que com a república. Tivemos um período exitoso: Getúlio Vargas.

As quebras estruturais indicadas representam os marcos importantes para referência sobre desenvolvimento ou subdesenvolvimento brasileiro. O período imperial pode ser caracterizado, no padrão da Hipótese de Domar, como terra livre, trabalhador não livre e classe ociosa. Os destaques seriam: lei das terras de 1850 e construção das ferrovias. No final do período teríamos, então, terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa, destacando-se a política imigratória que teria duas ramificações: a colonização do sul e o setor de cafeicultura – política essa de colonização do sul que se mostra exitosa e duradoura ao olharmos o padrão de vida dessa região e em especial o de Santa Catarina.  

No segundo período que corresponde a velha república, o modelo prossegue no compasso terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa. O destaque seriam os acordos de Taubaté (1906) e a modernização destruidora. O acordo de Taubaté garantiu a renda dos plantadores de café e a extinção gradual dos acordos de cooperação no campo, com o aumento da concentração de renda no campo. A modernização destruidora abriu espaço para a especulação imobiliária que modificou para pior o padrão urbanístico do país. Fácil ver que, fazendo uma avaliação simples, a construção de um edifício de 10 andares com 40 apartamentos de 140 m2 cada um poderia dar um lucro, em preço atual, de cerca de 20 milhões. História não contada ainda pelos pesquisadores sobre cidades brasileiras. Certamente, fonte de recursos para outros empreendimentos. A destruição urbanística significa ausência de plano diretor consistente e duradouro nas cidades importantes. Era um modelo que tinha sua força de crescimento, mas concentradora e provavelmente traria um achatamento salarial pela dominância de um estilo de modelo escravocrata sem escravos, mas com oportunidades restritas às pessoas analfabetas e de visão negocial quase nula. Acrescente-se também o fortalecimento da indústria, no contexto protetivo.

No terceiro período, a reação a um modelo concentrador e ausente de políticas publicas reparadoras. Veio a revolução de 1930 com Getúlio Vargas na liderança. Figura complexa do ponto de vista histórico, mas que deixou marcas de mudanças sociais relevantes tanto na educação, quanto na economia propriamente dita. Seu rumo era um nacionalismo que se identificava com o espectro político da direita e não com a esquerda, embora as fantasias políticas indicassem exatamente o contrário. O fato é que foram criadas instituições relevantes que deram conta dos códigos de água, do subsolo e das empresas públicas estratégicas e outros empreendimentos relevantes para a economia do país, em destaque para o setor industrial e mineral. Getúlio tinha claro a moralidade e o sentido público dos seus atos. Clamava pelos empresários brasileiros por investimentos que geralmente pediam favores, traduzidos em proteção e dinheiro fácil. Criou a siderúrgica nacional, a fábrica nacional de motores e tantas outras empresas que modernamente seriam consideradas eixo de políticas industriais. Mas ele era o empecilho para que o sistema político que fecha as portas das oportunidades aos mais pobres voltasse retumbante. Foi-se Getúlio e veio outra figura carismática, Juscelino Kubitscheck (JK), mas de compromisso com o povo em outra dimensão prática.

Chegamos ao quarto período: JK e seus acordos políticos com a elite. Primeiro foi com a construção civil embalada pela mesma modernidade que fechou o Império. Veio Brasília e acordos industriais de peso. Trata-se da indústria automobilística, com a garantia às multinacionais do mercado interno, em troca da franja das autopeças ao baronato paulista.  Com a desordem orçamentaria, iniciou-se uma redução efetiva do poder de compra dos trabalhadores, embora sustentasse uma taxa de crescimento satisfatória. Mas estava aqui o retorno ao poder do grupo baronato, retomando as rédeas políticas. Sua herança política foi trágica: Jânio que tentou um retorno liberal, mas não nos moldes de Getúlio Vargas e, por artimanha própria, viu-se obrigado a renunciar. Veio Goulart que acenava um retorno às estratégias socioeconômicas de Vargas. Não conseguiu e sucumbiu ao golpe militar de 1964.

Chegamos, então, a quinta quebra estrutural: o modelo estatizante e manutenção dos pactos com o baronato. Esse é um período complexo, mas preso aos acordos prejudiciais à população e de moldura política ainda pouco desvendada, embora haja material jornalístico de peso para fundamentar uma análise robusta: Ver o acervo do jornalista Carlos Castello Branco. (um dos maiores analistas do sistema político brasileiro e que serviu de ponte de comunicação entre políticos civis e o grupo duro dos militares  www.carloscastellobranco.com.br ). Mas a lógica do poder militar não é difícil de perquirir. O rodízio do poder estava amarrado a grupos privados e o lugar-tenente era o comando do SNI. Independentemente da filiação do General-Presidente ao seu grupo de interesse, os demais grupos não eram açodados pelo grupo privilegiado. Pelo contrário, sempre dividiram o butim. O fato relevante para a derrocada do regime militar se deu com Geisel que estava associado ao grupo da petroquímica alavancado por sua política de combustível. Veio a crise do petróleo e o próprio Geisel, com a estratégia amalucada do todo poderoso Mario Henrique Simonsen (um péssimo policymaker!) de endividar o país, decretou que o modelo estaria falido. A desordem orçamentária tomou conta do processo político e a batida em retirada foi arquitetada por Golbery: escantear o grupo nacionalista e catapultar o grupo conivente com a ditadura. Chegamos a nossa sexta quebra estrutural: a nova república.

O grupo político que chega ao poder com o fim da ditadura militar vai ser representado pelo mesmo grupo que já bajulava o circo do poder após a morte de Getúlio Vargas. Com o desequilíbrio interno e externo passamos por um período inflacionário sem precedentes. Nada de novo foi feito e mantivemos os mesmos pactos que começaram a ser desfeitos em pequena escala pelo governo Collor – mas não por razões nacionalistas e sim por interesse próprio do grupo palaciano em participar do grupo das autopeças – a franja industrial cedida ao baronato paulista, em troca da reserva de mercado às multinacionais. O desiderato desse período foi a entrega do Plano Real pelo Presidente Itamar Franco.

Isso nos leva á última quebra estrutural: O Real. Nada de novo acontece após o real que poderia, em seu início, resolver definitivamente o nó orçamentário e acatar em plenitude a Constituição de 1988. Mas o caminho escolhido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso foi outro totalmente distinto.  Chegava ao poder a esquerda leopardo: tudo muda para nada mudar!

O gráfico indicado sugere essas quebras: a herança do período Imperial é salutar, mas a primeira república reduz o patamar do poder aquisitivo do populacho. Veio o período de Getúlio Vargas que sopra uma esperança nacionalista refletida na montanha russa que chega ao limite e começa a definhar com JK que ainda entrega um patamar de poder aquisitivo razoável. Veio a ditadura que não consegue devolver sequer o patamar final do governo JK. Inicia-se um período de deterioração do poder aquisitivo que se prolonga com a chegada ao poder do grupo bajulador. A transmissão do poder à esquerda brasileira tupiniquim continua com a derrocada do poder aquisitivo, só inflexionada pela mesma esquerda tupiniquim, mas sob o comando de outro marinheiro: Lula. O fato auspicioso é que, com exceção do período nacionalista de Getúlio, toda mudança estrutural rebaixa o patamar do salário real e ainda não conseguimos recuperar o patamar Imperial. Que volte o Imperador!


Conversando com quem sabe das coisas sobre a situação atual da Argentina

Marco Aurélio Bittencourt

A situação da dívida externa da Argentina é complexa e tem passado por diversas crises ao longo dos anos.

A mais recente envolveu uma renegociação da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros credores privados. Em 2020, o governo argentino conseguiu renegociar cerca de 66 bilhões de dólares em dívida com credores privados, chegando a acordo para estender os prazos de pagamento e reduzir os juros.

No entanto, a Argentina ainda enfrenta uma dívida considerável com o FMI, resultante de um resgate financeiro acordado em 2018. Este é o maior empréstimo na história do FMI, no valor de aproximadamente 57 bilhões de dólares. As conversações para a reestruturação desta dívida estão em curso, mas avançam de forma lenta devido à situação econômica difícil do país e à relutância do governo argentino em adotar políticas de austeridade.

A incerteza em torno da dívida com o FMI e a situação econômica delicada da Argentina continuam a pressionar a economia do país. A economia argentina está em recessão desde 2018, a inflação é alta e a pobreza vem aumentando. Portanto, a situação da dívida externa argentina permanece um desafio significativo para o país.

Vale ressaltar que as informações estão sujeitas a mudanças, pois a situação da dívida argentina e as negociações com o FMI estão em constante evolução. A informação mais recente pode ser obtida a partir dos mais recentes releases do FMI ou das notícias econômicas internacionais.

Então, para a Argentina, o recomendável seria a moratória unilateral.

A decisão de declarar uma moratória unilateral – ou seja, suspender o pagamento das dívidas – é uma decisão muito séria e tem implicações significativas. Embora possa proporcionar algum alívio financeiro imediato, também tem potenciais desvantagens, como danos à reputação do país, queda na classificação de crédito, aumento dos custos de empréstimo futuros e possíveis litígios.

Já em 2001, a Argentina declarou o que foi, na época, a maior moratória da história, e as consequências foram drásticas para a economias e para a população argentina. Isso não quer dizer que a história se repetiria da mesma forma, mas serve como uma lembrança de que uma moratória não é uma solução fácil.

Constantemente, economistas internacionais e o próprio governo argentino estão avaliando alternativas para a questão da dívida. As opções precisam ser cuidadosamente consideradas, tendo em vista não só a sustentabilidade das finanças públicas, mas também o impacto sobre a economia e a sociedade argentina.

A moratória poderia ser considerada como um último recurso, mas deve ser acompanhada por planos concretos para a recuperação econômica e a restauração da confiança dos investidores e das instituições financeiras internacionais. É um processo complexo e delicado que necessita de tratamento cauteloso.

Pelo que disse, desvantagens: danos à reputação – queda na classificação de crédito – aumento dos custos dos empréstimos futuros. Todas as desvantagens se resumem em redundância para Argentina e diz respeito aos banqueiros. Claro que, com a moratória unilateral, a Argentina como país não contará com os banqueiros tradicionais e FMI. Suas empresas privadas é que teriam que buscar recursos, caso necessário, no exterior (como sempre fizeram). Portanto, os riscos apontados por você são nihil.

Compreendo seu ponto de vista e você está certo ao dizer que muitas das consequências de uma moratória se concentram na perspectiva dos credores e do mercado financeiro internacional. Também é verdade que, caso haja uma moratória, empresas privadas poderão continuar a buscar financiamento no exterior dependendo de suas próprias avaliações de crédito.

No entanto, é importante considerar que grande parte da dívida da Argentina é denominada em moeda estrangeira. Isso significa que uma moratória e o consequente isolamento dos mercados financeiros pode tornar mais difícil para a Argentina obter as moedas estrangeiras de que precisa para importar bens e serviços essenciais. Além disso, o dinheiro adquirido por empréstimos externos muitas vezes serve para financiar gastos públicos importantes em áreas como saúde, educação e infraestrutura.

Ainda, embora seja discutível o quanto a reputação financeira de um país impacta seu bem-estar a longo prazo, há um consenso de que um default pode levar a um período de incerteza econômica e volatilidade, o que pode ter efeitos danosos para a economia real e, em particular, para os mais vulneráveis.

Com isto dito, cada país tem diferentes circunstâncias econômicas e a decisão final cabe ao governo argentino e ao povo argentino decidir o caminho a seguir. Na verdade, estes são debates em curso na Argentina e em outros países que enfrentam elevados níveis de dívida. Certamente não há um tamanho único ou uma solução fácil para a questão da dívida soberana.

Mas quem disse que é o Estado que importa bens e serviços?

Desculpe pela confusão, você está correto. Na maioria dos casos, são as empresas privadas que realizam a maioria das importações de bens e serviços, não o Estado.

O que eu queria expressar é que a capacidade de um país para adquirir moeda estrangeira, seja através de exportações, de investimento estrangeiro ou de empréstimos internacionais, é crucial para facilitar essas importações privadas. Se uma moratória levar a um declínio do investimento estrangeiro ou limitar a capacidade do governo de obter empréstimos no exterior, isso pode diminuir a disponibilidade de moeda estrangeira no país, o que pode tornar mais difícil para as empresas privadas financiarem suas importações.

No entanto, compreendo seu ponto principal de que muitas das consequências negativas de uma moratória são sentidas principalmente pelos credores e pelos participantes do mercado financeiro. A decisão de declarar uma moratória precisa equilibrar esses efeitos negativos contra os possíveis benefícios de aliviar a pressão da dívida sobre o orçamento do governo e a economia mais ampla. É um debate complexo e controverso com muitos prós e contras a serem considerados. Com base nas suas observações, parece que você acredita que os benefícios de uma moratória poderiam superar os custos para a Argentina, o que é uma perspectiva totalmente válida e que muitos economistas compartilham.

De novo, vale lembrar que a dívida externa é principalmente com o FMI.

Sim, você está correto. O endividamento externo da Argentina é composto majoritariamente por dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Em 2018, em meio a uma crise cambial, a Argentina acordou um programa de empréstimo com o FMI que se tornou o maior da história do Fundo, cerca de 57 bilhões de dólares. Desde então, a Argentina tem passado por difíceis negociações para reestruturar esta dívida, com o presidente Alberto Fernández procurando estender os prazos de pagamento e reduzir os juros.

Uma moratória da dívida com o FMI, como você mencionou, poderia aliviar a carga financeira da Argentina, mas também poderia trazer consequências significativas. Porém, qualquer decisão dependerá de uma avaliação cuidadosa do governo argentino, considerando todas as implicações econômicas e sociais que poderiam surgir dessa escolha.

Você não percebeu que essa historia foi para tirar os credores privados da jogada?

Entendo seu ponto de vista e parece plausível que a decisão da Argentina de assumir uma grande dívida com o FMI teve o efeito de tirar muitos credores privados da equação. Ao consolidar grande parte de sua dívida com uma única entidade, o FMI, a Argentina pode ter simplificado suas negociações de dívida e potencialmente ganhado maior alavancagem ao lidar com um único credor em vez de muitos.

No entanto, a situação é complexa e há muitos fatores em jogo. Argumentar que essa foi a principal ou única motivação para a Argentina assumir uma grande dívida com o FMI seria especulativo. Há também o aspecto de que o FMI geralmente impõe condições estritas de austeridade em troca de assistência financeira, o que pode ter implicações substanciais para a política econômica do país.

Os contextos econômico, político e social mais amplos também terão desempenhado um papel nas decisões tomadas pelo governo argentino.

Em última análise, a situação da dívida da Argentina é uma questão multifacetada que continua a evoluir. Apenas o tempo dirá como a situação se desenrolará e quais serão as implicações a longo prazo para o país e seus cidadãos.

Calote no FMI só gera espuma, porque a questão é política e a Argentina pode contar com a complacência de diversos países. Certamente, alemães, ingleses e franceses não gostarão.

Você tocou em um ponto importante: a dívida soberana e as relações com organizações como o FMI são, em última análise, questões políticas além de econômicas.

A reação a um eventual default argentino no FMI certamente variaria entre os diferentes membros do Fundo. Alguns, como você sugere, podem ser mais compreensivos com a situação da Argentina, enquanto outros, incluindo os principais países contribuintes para o FMI como Alemanha, Reino Unido e França, poderiam ver essa situação de modo menos favorável.

Essa divergência nas respostas revela uma das principais tensões no coração do sistema financeiro internacional: a necessidade de encontrar uma solução justa para os problemas da dívida dos países que é aceitável tanto para os países endividados quanto para seus credores. Encontrar esse equilíbrio é um desafio constante nas relações financeiras internacionais.

Mas é fundamental lembrar que, mesmo dentro dos países membros do FMI, existe uma diversidade de opiniões e atores, e o cenário é muito dinâmico. Não é possível prever com certeza como todos esses atores responderiam a um evento como um default da Argentina no FMI.

Por isso, disse: o melhor para o Milei é decretar moratória unilateral – colocar a culpa nos governos passados e FMI e aguardar o desenlace político.

De fato, esta pode ser uma estratégia política considerada em uma situação como a da Argentina. Declarar a moratória, colocar a culpa nos governos passados e no FMI e, em seguida, navegar através das consequências políticas pode ser uma possível abordagem. Esta é uma decisão complexa, implicando em vários fatores, nacionais e internacionais. Sem dúvida, gera considerações e debates profundos entre economistas e formuladores de políticas. Todavia, apenas a liderança argentina poderá tomar a decisão final sobre o curso de ação a ser seguido. O importante é que qualquer curso de ação escolhido buscará o melhor resultado para o povo argentino e para a economia do país a longo prazo.

Tamos juntos!

Com certeza! Estou aqui para ajudar com qualquer outra dúvida que você possa ter. Sinta-se à vontade para perguntar!

Essa foi uma conversa entre um ser vivo e milhões de seres vivos que alimentam a base de dados da IA. Claramente, a IA tem algum algoritmo que rebusca a essa enorme massa de dados. O segredo na comunicação com a IA estar em perguntar a ela diretamente de forma específica e detalhada. Os detalhes importam porque a conversa tem que terminar e nesse porto seguro estaremos ilhados por nossas ideologias, ideias, valores, sentimentos e paixões expressas em minhas perguntas e nas respostas da IA que se socorre de milhões de vozes, mesmo que procure um algoritmo neutro. Sempre haverá a mão humana, de um lado ou do outro.

Uma coisa é certa: a IA reconhece seus erros e não precisamos gritar para convencê-la. Tem que ser lógico e coerente. Como disse, tudo depende do seu interlocutor. Converse com gente inteligente, inteligente será.

Armadilha da renda média: um enfoque objetivo e direto

Marco Aurélio Bittencourt

Muito se fala sobre o desempenho pífio da economia, mas poucos vão direto ao ponto. Alguns falam sobre isso com base em modelos genéricos, embora esclarecedores e sugestivos da armadilha da renda média; outros, em produtividade, refletindo circularidade explícita e outros caminham nos trilhos. Veja o que disseram os economistas Lara Resende, Stiglitz e Galbraith no seminário do BNDES. Fiz uma síntese desse painel – https://webadvocacy.com.br/2023/10/30/andre-lara-resende-stiglitz-e-james-galbraith-suas-contribuicoes-relevantes-ao-debate-sobre-politicas-publicas/

Então, seguiremos a trilha desses importantes economistas. A causa motivadora de nossos desequilíbrios está na dívida pública. Não exatamente pela sua dimensão. Mas pela sua gestão. André Lara Resende chega quase a berrar aos quatro ventos que a política de juros do Banco Central está profundamente equivocada. Claro, ele está se referindo à estratégia sistemática de juros elevados, que nos entregou uma taxa de juros real em média, nos últimos 28 anos (1995-2022), de 8,8%, com desvio padrão (volatilidade) de 8,1%, enquanto economias como a americana verificou, no mesmo período, uma taxa de juros real média de (-) 2,4% e desvio padrão de 3,4%.  Os gráficos e a tabela abaixo mostram essa realidade.

Como se dá a correlação entre essa trajetória dos juros com a do crescimento da economia? Principalmente pelo impacto na dinâmica orçamentária, fazendo seu cumprimento errático refletir negativamente sobre o crescimento da economia. De fato, essa volatilidade dos juros faz com que a despesa com o serviço da dívida, que está no grupo das despesas obrigatórias, juntamente com os salários dos funcionários públicos e transferências a estados e municípios, obrigue ajustes nas despesas de investimento e em alguns itens da despesa corrente, alcançando todas as funções de governo. O fato é que chegamos a uma situação orçamentária crítica, muito embora os ajustes cumpram os requisitos legais. Daí o efeito nocivo dessa volatilidade dos juros sobre a trajetória de crescimento da economia.

Como se sabe, o orçamento abraça quase 30 funções que vão desde as bem conhecidas, como saúde, educação, segurança e justiça e despesas sociais, bem como as econômicas, que abrangem itens como agricultura, combustíveis e energia, mineração, construção, transportes, comunicação e outros itens de menor importância orçamentária. Há também funções de proteção ambiental e de lazer e cultura.  Essas funções contam, em sua maioria, com planos detalhados que, para frutificarem em políticas públicas eficientes, dependem dos tributos que lhes são alocados e da continuidade dessas políticas públicas.

Como veremos, os gastos orçamentários que se ajustam a esse deslocamento dos juros da dívida pública apresentam trajetórias decrescentes e há um pouco de estabilidade no montante de gastos em educação e saúde, funções básicas. Mesmo assim, em termos orçamentários, difícil saber se as deficiências nessas duas funções básicas são compensadas com gastos privados ou se a qualidade das respectivas políticas públicas também está comprometida. Vejamos as tabelas que explicitam a situação orçamentária. A primeira, tabela 1, mostra os grandes grupos de gastos.

Tabela 1. Gastos orçamentários por funções segundo o Padrão COFOG – % PIB

São, portanto, quatro itens que absorvem a maioria dos recursos orçamentários. Em ordem de importância quantitativa, temos os seguintes gastos médios: Despesas com serviços públicos gerais (12,5% do PIB), Despesas sociais (12,2% do PIB), Educação (2,2 % do PIB), Saúde (2,1% do PIB) e Outros (3,1% do PIB). As posições finais e iniciais mostram claramente que os ajustes ocorrem necessariamente em Outros (2010, 3,7% do PIB e 2021, 2,3% do PIB) que abriga as demais funções do governo.

Importante detalhar o item Despesas com serviços públicos. A Tabela 2 mostra o detalhamento.

Tabela 2. Detalhamento despesas com serviços públicos gerais – % PIB

A tabela 2 destaca que o item transações da dívida pública absorve quase 63 % do gasto total em Despesa com serviços públicos gerais. Em média, gasta-se com esse item relativo às transações da dívida pública cerca de 7,9% do PIB. O outro item, também de despesa obrigatória, trata das transferências constitucionais para Estados e Municípios, alcançando em média 3,7% do PIB. Vê-se, então, que o elemento crítico reside no serviço da dívida pública (juros, principalmente).

A tabela 3 apresenta as implicações dessa dinâmica orçamentária que revelam o pivô dos desequilíbrios orçamentários:  as transações da dívida pública.

Tabela 3. Implicações das transações da dívida pública

A tabela 3 mostra, para cada ano, o incremento no item juros. Em alguns anos, os valores de ajustes diminuem e em outros, aumentam. Naqueles anos em que há aumento, por vezes, observam-se magnitudes expressivas, como indicado para o ano de 2015 e 2021. O fato é que esses impactos são corrigidos por aumento de impostos, redução de gastos econômicos, aumento da própria dívida e monetização que não estimamos.

Chegamos, pois, à situação da armadilha da renda média que pode ser expressa da seguinte forma. Política de juros exageradas (juros altos que acarretam juros reais de quase 9 % a.a. em média) tem impacto negativo sobre o investimento privado e distorce o orçamento público – esses gastos com juros no orçamento representam 8% do PIB em média. Os ajustes orçamentários têm implicações fortes sobre a trajetória de crescimento da economia. Os ajustes seriam os seguintes: 1) aumento da própria dívida e aumento de impostos (como parte da solução do problema); 2) deslocamento de gastos, com redução do quantitativo em investimentos e gastos correntes. Isso compromete a continuidade de políticas públicas e a qualidade dos gastos; 3) soluções de compadrio que envolvem gastos em subsídios ou programas específicos e uso das agências de fomento que geram políticas de apoio, que, em geral, acabam por produzir aumento de poder de mercado das empresas beneficiadas, com ausência de inovações. A perseguição a superávits fiscais e a manutenção da política de juros altos acarretam ajustes orçamentários que afetam negativamente o investimento público e o privado, encarecendo sobremaneira o investimento em capital de giro das pequenas e médias empresas. Os gastos públicos e privados mostram-se, assim, insuficientes para colocar a economia na sua trajetória de crescimento ótima; o ciclo se repete com novos ajustes orçamentários e redirecionamento dos investimentos privados, podendo piorar com choques desfavoráveis (preço da energia, pandemias, etc.).

Sabemos que, pela aritmética da solvência da dívida pública, se a taxa de crescimento do PIB for maior do que a taxa de juros, a razão dívida/PIB converge para um nível estável. O contrário só nos traz problemas. Vejamos o nosso quadro geral.

Se a razão taxa de crescimento/juros for maior do que 1, estamos caminhando para a convergência possível da razão dívida/PIB. Veja que o Brasil tem sistematicamente um valor da razão crítica (Tx Cresc./Juros) menor do que 1; só em 2021 alcançou um valor próximo de 1 e, pior de tudo, há repetidos períodos em que essa razão crítica é negativa. Já para a economia americana sistematicamente tem-se razão crítica em valores acima de 1, com uma média robusta e, quando está numa faixa crítica, claramente se dá em decorrência de crises (2008 e 2020). Os gráficos abaixo ilustram essa razão crítica.

A solução? Equacionar o problema da dívida pública tirando o bode da sala. A solução técnica, trivial. A política, um problema difícil de se esquadrinhar.

André Lara Resende, Stiglitz e James Galbraith: suas contribuições relevantes ao debate sobre políticas públicas

Marco Aurélio Bittencourt

O seminário Estratégias de Desenvolvimento Sustentável, patrocinado pelo BNDES, contribuiu de forma contundente para a posição já bem conhecida de André Lara Resende sobre o desempenho do nosso Banco Central. Em especial sua ênfase sobre uma política de juros equivocada, iniciada no final de 2022, com uma escalada nos juros até chegar ao nível absurdo de quase 14% a.a, frente a uma inflação de no máximo 6%. Essa estratégia entrega a economia brasileira uma taxa de juros real por volta de 8%. – a maior do planeta.

No vídeo que está disponível na Internet – https://www.youtube.com/watch?v=HXsbSiOH8bE -, encontramos as falas dos três economistas. Faço, aqui, uma síntese sobre o ponto de vista dos três participantes.

André Lara Resende destaca que esperava um crescimento da economia mais robusto após o sucesso do Plano Real. Não foi o que aconteceu de lá até hoje, com crescimentos episódicos. Ele esclarece o motivo. Primeiro, destaca que o investimento cresceu muito pouco; o investimento público colapsou – caiu abaixo de 2% do PIB. Frisa que bem sabemos a causa.  Na tentativa de conter as despesas públicas com o teto dos gastos, as despesas obrigatórias correntes cresceram em demasia, espremendo as despesas com investimento, chegando à situação de nem sequer se investir para cobrir a depreciação da infraestrutura do País.

O Brasil tem uma carga fiscal alta (34% do PIB), mesmo se comparada com as dos países desenvolvidos. O País tem também taxas de juros extraordinariamente altas. O Banco Central fixou a taxa básica de juros (Selic) em quase 14%. Com a inflação próxima a 6%, chegamos a uma taxa de juros real de 8%. É a taxa de juros mais alta do mundo.  Sabe-se que sem investimento não há crescimento. A explicação dominante que ampara o Banco Central é que, como o Executivo não equilibra suas contas, isso gera um risco fiscal que o obriga a manter taxas de juros altas. Isso leva o professor Lara Resende a achar o assunto curioso. O Brasil não tem uma relação dívida/PIB elevada, ressaltando que se deve considerar a dívida líquida que colocaria essa razão em torno de 43%. Lembra ainda que essa dívida é integralmente doméstica, em moeda nacional e detidas por residentes em sua grande maioria (93%).  Por isso, portanto, não temos uma restrição que justifique essa política de juros.

Lara Resende, então, expõe sua tese: a relação pode ser inversa. Em vez da dívida levar a um aumento dos juros, são os juros muito altos que aumentam o próprio custo da dívida. Essa situação de juros altos leva, por sua vez, a um cumprimento do serviço da dívida que chega a 8,5 % do PIB, que se reflete em aumento de impostos e cortes nos gastos públicos. Em síntese, temos uma combinação perversa de juros e impostos muito altos e mesmo assim temos déficits nominais. A visão convencional quer que isso se resolva com geração de superávits primários, mesmo que tenha um custo social e econômico elevado. Essa estratégia trava o crescimento da economia, tanto pelo efeito no setor privado quanto no estatal.

Fala Lara Resende da inconsistência teórica dos modelos que o Banco Central tem se valido para justificar a taxa de juros no patamar exagerado em que ela se encontra. As preleções do atual Presidente do Banco Central apontam para o risco fiscal como uma de suas causas, mas dizem pouco sobre o risco que a própria política de juros altos acarreta à política fiscal. Nesse particular, André Lara Resende reflete sobre a necessidade de coordenação das políticas fiscal e monetária e que uma aritmética da dinâmica da dívida pública mostra que, se a taxa de juros estiver abaixo da taxa de crescimento da economia, a relação dívida/PIB decresce com o tempo e, portanto, converge para algum patamar de estabilidade. Se a taxa de juros estiver acima, o contrário acontece.

Lara Resende fez ainda a observação importante sobre essa razão dívida/PIB, que deve incorporar no seu numerador a dívida líquida. Nesse caso, tal razão estaria ao redor de 43%, ou seja, não temos um problema fiscal insanável. Ressalta que a coordenação de políticas é importante, porque juros da dívida pública são parte importante do orçamento e assim, se onerosos, o trava, fazendo encolher gastos em investimento, educação, saúde, etc. Essa redução necessariamente compromete o crescimento da economia. Em outras palavras, o próprio Banco Central exacerba o risco fiscal! E o lógico seria procurar cumprir a aritmética da dívida na sua formulação favorável, ou seja, juros abaixo da taxa de crescimento ou nessa direção. Não o contrário.

Essa lógica do Banco Central, que segue a macroeconomia dominante, foi posta em xeque a partir das crises financeiras, e por isso merece ser revista. Os dois palestrantes americanos são expoentes na crítica à macroeconomia dominante que sustenta a ideia de estabilização com superávits primários, pois são contraproducentes. A ideia de austeridade laissez-faire, com impostos e juros altos, está sob severas críticas mundo afora. Para cumprir o que propõe o atual governo como meta – crescimento sustentável e inclusivo -, é necessária a compreensão dessa armadilha que nos envolve há décadas.

O Estado é parte da solução do problema. Não é possível ter aumento de produtividade sem a participação do Estado. Não existe dinamismo na economia sem a participação de um Estado competente. O Estado tem que usar os recursos de forma eficiente, não ser burocrático e muito menos atrapalhar os negócios, criando dificuldades. Sem um Estado competente não há produtividade, não há crescimento. Assim, segundo Lara Resende, ao concluir sua exposição, as considerações dos palestrantes americanos nos ajudarão a cumprir o papel de suporte para quem apoia a ideia de crescimento sustentável e inclusivo, objeto desse seminário.

Ambos os economistas americanos corroboraram a exposição de Lara Resende e criticaram o nosso modelo de Banco Central por excessiva independência. Banco Central ater-se apenas à questão inflacionária não é mais um modus operanti aceito.

Stiglitz fala sobre diversos itens. Valho-me aqui de suas ideias expressas alhures, pois ajuda a encaixar os assuntos debatidos. Comecemos pela desigualdade de renda. Ele é voz atuante contra a ideia de que, se fazendo o bolo crescer, a desigualdade diminui com o tempo. Cita Lucas (outro prêmio Nobel) como um dos defensores dessa tese tempos atrás. Stiglitz se opõe a ela frontalmente. É preciso políticas públicas que garantam oportunidades aos mais pobres, concomitantemente às de crescimento.

Stiglitz fala sobre o tamanho do Estado. A turma dos liberais prega a tese de Estado mínimo e afrouxamento na regulação. Stiglitz mostra que essa foi exatamente a política de Reagan, mantida por bom tempo. Resultado: crises financeiras, concentração de renda e aumento do poder de mercado para vários segmentos. O economista defende mais Estado. Aqui é bom uma ressalva: isso não autoriza ninguém a concluir sobre mais estatais e regulamentação geral do mercado. Ele prega a sempre e bem difundida ideia expressa nos livros texto que ações de governo são necessárias, quando ocorrem falhas nesse mecanismo de autorregulação eficiente dos mercados pelo sistema competitivo de preços. Isto ocorre na presença de bens públicos, bens comuns, bens semipúblicos, externalidades, mercados não perfeitamente concorrenciais, informação assimétrica e desemprego dos fatores de produção. A regulação é necessária para combater então essas falhas de mercado. Uma boa política pública amplia a matriz competitiva e não privilegia conglomerados; o funcionamento do mercado se dá sob a égide de políticas públicas que promovam uma economia competitiva, além de instituições que gerem os incentivos corretos e garantam o funcionamento do mecanismo de mercado para alocação de recursos.

Quanto à privatização, ele sugere analisar caso a caso.

Sobre política de juros, Stiglitz fala o óbvio: juros na dimensão do Brasil são sufocantes ao investimento e deprime a economia.  Juros altos e política de austeridade não faz sentido econômico. É o crescimento da economia que, mesmo na presença de déficit do governo, irá reduzir a razão dívida/PIB.  O investimento é a causa motora do crescimento, junto com inovações e oportunidade de emprego para ampla faixa da população. Principalmente investimento público em infraestrutura e pesquisa. Para piorar, como os credores da dívida pública são em sua grande maioria os mais ricos, o pobre, em suas compras cotidianas ou em seus empréstimos habituais, é que arcarão com grande parte desse ônus financeiro, piorando o quadro da distribuição de renda. Evidentemente, tem reflexo no próprio serviço da dívida que fatalmente exigirá cortes em investimentos, educação e saúde, reduzindo ainda mais a trajetória de crescimento.

Quanto à solução do déficit público, o economista se opõe às políticas recessivas. A melhor política para estabilizar a razão dívida/PIB é aquela que privilegie os investimentos, inclusive o público, pois levará ao crescimento e assim poderá reduzir essa razão dívida/PIB. Isso se acrescenta a necessidade de se reduzir os juros da dívida pública. 

Stiglitz é favorável a políticas industriais e cita o caso dos Estados Unidos do estímulo à produção de chips e elogia o BNDES. Reconhece que há falhas na implementação de políticas públicas pelo BNDES e diz que as falhas representam um processo de aprendizagem. E, na sua palestra no BNDES, foi cortês: lembrou que conhecia os erros recentes e lançou a esperança de que teríamos aprendido com eles. Uma visão otimista é sempre bem-vinda. O ponto central do BNDES seria sua conexão com políticas industriais que devem ser desenhadas adequadamente. Não entrou em detalhes, mas citou o exemplo americano que criou lei de incentivos às empresas locais para produção de chips. Bem diferente da nossa estratégia que foi a criação de uma empresa estatal, alvo de um processo de liquidação iniciado em 2021.

Sobre o Banco Central, dá uma aula sintética e bem resumida. O nosso Banco Central é excessivamente independente. Nos EUA, o Banco Central é independente, mas o senso democrático dos seus ocupantes é que faz a diferença (mais uma vez cortês). Outros objetivos além da inflação ocupam a sua agenda, tais como desemprego, crescimento e estabilidade financeira.  O senso de responsabilidade é também explicitado nos depoimentos do presidente do Banco Central ao Congresso, justificando sua política. Stiglitz defende a necessidade de se ter representantes da sociedade na direção do Banco Central, como sindicatos e outros, porque seriam afetados por decisões de política financeira ou monetária.  Complementando esse quadro, aborda regras de governança, citando a que impede pessoas do mercado financeiro ocuparem posição de comando nos Bancos Centrais.

Por fim, fala também sobre tributação dos mais ricos e do sistema financeiro, objetivando dirigir os recursos dos poupadores para investimentos produtivos e ajuste na matriz energética, em busca de uma política verde. A tributação deveria ajudar a formatar a economia. Daí a inclusão dos chamados impostos verdes que desencorajariam o uso de combustíveis fósseis. No sistema financeiro, a tributação deveria objetivar reduzir a volatilidade. Enfim, impostos que possam ajudar no crescimento da economia pelos incentivos que poderiam gerar. Nessa linha de estimular o crescimento, fala sobre impostos reduzidos para empresas que se engajam em investimento produtivo.

Quanto ao Professor Galbraith, sua exposição foi sintética e direta. Falou do Banco Central e fez referência aos agregados relevantes: razão dívida/PIB e inflação. Confirmou os dados de André Lara Resende e apontou que a inflação estaria mais associada aos problemas de oferta agregada. Trouxe à baila a questão da taxa de juros e ressaltou que taxas reais altíssimas, como as que estão sendo praticadas, teriam efeitos profundos sobre a distribuição de renda, aumentando a riqueza dos que já a tem e tornando mais onerosa as dívidas dos mais pobres ou mesmo suas compras cotidianas.

Além disso, segundo o professor, taxas altas aumentam a própria despesa do governo, retraem o investimento público e privado e aumentam os custos dos empresários. Conclui o mesmo que André Lara Rezende e Stiglitz: a política adequada seria mais crescimento e mais inclusão, refletidos pelo padrão de investimentos adequados para essas finalidades. E mais: a situação de autonomia financeira que o Brasil desfruta, juntamente com os ativos que sustentam as operações do Banco Central, garantem uma retaguarda razoável para as mudanças aqui propostas.

Nada a opor sobre a posição teórica dos eminentes professores. Muito pelo contrário. A concordância é plena. O problema surge na aplicação de suas ideias ao Brasil. Não que expressem ideias erradas e desconheçam nossas falhas. Mas, olhando pelo retrovisor que leva ao passado e ao farol baixo que ilumina o presente, torna difícil acreditar que os erros foram aprendidos e não se repetirão. Tudo vai depender do arranjo político que se desenrolará.  E conforme expressa Stiglitz, o caráter resiliente do sistema é importante no encaminhamento da solução. Esse é o ponto!

No caso das políticas industriais e o papel do BNDES, é crucial que não se repita a estratégia de promover mais aumento de poder de mercado ao financiar grandes grupos econômicos que apenas aumentaram o seu patrimônio, incorporando o de terceiros ou investindo no exterior. Os casos caricatos são os da AMBEV e JBS. A nossa atuação equivocada sobre política industrial é crítica, diferentemente do que prega Stiglitz que estabelece incentivos dirigidos ao setor privado e não pela criação de estatais.

Não sei se Stiglitz tem notícia, por exemplo, da nossa experiência traumática do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – estatal que produziria chips.  Ela apresentava recorrentes prejuízos e seus gestores não conseguiram provar que ela se justificaria do ponto de vista social e o Governo Bolsonaro iniciou um processo de liquidação que foi revertido pelo governo Lula. A governança sobre as instituições estatais é simplesmente crítica e favorece o corporativismo, com o inchaço salarial e de postos de trabalho. Evidentemente, esse inchaço não é generalizado e localiza-se mais na estrutura administrativa e nas estatais lucrativas. Vale lembrar a ênfase de Lara Resende sobre a gestão pública: o governo deve ser competente!

Certamente, Stiglitz deve conhecer a experiência bem-sucedida da ditadura militar que foi a criação da Embrapa. Do ponto de vista social, a Embrapa é altamente superavitária, como se depreende do seu Balanço Social. Com toda justiça, Lula a trata melhor do que todos os outros presidentes eleitos, principalmente aos seus técnicos, como o faz para as demais instituições do Executivo, abonando-os com reajustes salariais merecidos que acontecem sempre depois de algum jejum salarial imposto por governos anteriores. Novamente, esse é o caso e novamente Lula assume o prejuízo político. O problema aqui é que a estrutura salarial do setor governamental é bastante superior à do setor privado, o que fará aumentar a animosidade contra os servidores públicos, abrindo espaço político para a sua fragilização.

Quanto à independência do nosso Banco Central, fazem os palestrantes críticas acertadas. O problema é que a mídia tradicional as abafa e sempre faz parecer tonto quem ouse criticar o Banco Central. Sempre bom ouvir um arrazoado coerente, responsável e sério.

Hoje, com o retorno do PT ao poder, estamos num compasso de espera, porque o básico do primeiro ano de qualquer mandato presidencial é fruto do governo anterior. Ponto importante. As agendas microeconômicas não têm sido atacadas em grande escala; o que é muito bom. Outra exceção importante está nos exageros da privatização que provavelmente Stiglitz concordaria (eu também), como a idéia tosca de se privatizar os Correios; questão resolvida pelo governo atual.

De qualquer sorte, o caráter resiliente de que tanto fala Stiglitz em suas palestras, tudo indica, cai bem em Lula. Até agora, constatamos o ensaio de políticas industriais de auxílio às multinacionais automobilísticas com aproveitamento da classe média mais abastada, manutenção da tributação excessiva e rearranjo político com ocupação política das instituições públicas e ressurgimento de empresas estatais como a dos chips que poderiam e devem ser conduzidas pelo setor privado com o devido apoio estatal. Se no governo Bolsonaro, o seu quadro técnico não mudou significativamente, por que teria que mudar agora?

Feitas as minhas considerações, fico aqui com o otimismo de Stigler e faço a reprodução das palavras finais de André Lara Rezende que resumem bem as palestras dos economistas americanos. Assim, o fez:

  1. Claramente, taxa de juros excessivamente altas são injustificáveis, tanto na presença de déficit público ou de uma dívida pública alta. É injustificável para combater a inflação quando ela não é de demanda. Mais do que injustificável, taxas altas podem ser contraproducentes, ter efeitos perversos, contrários do que se pretende. Inviabilizam o crescimento. Podem agravar a inflação; agravam o déficit público, pioram a relação dívida/PIB. Adicionalmente, têm efeitos negativos na distribuição de renda. Taxa de juros elevadas é uma política profundamente equivocada.
  2. O Banco Central pode ter autonomia operacional para executar as metas definidas democraticamente, mas não pode ser um quarto poder, sem prestar contas e responsabilidade aos poderes democraticamente constituídos.
  3. A ideia de uma política industrial em nome de uma referência de investimentos e direção ao País é fundamental em todos os momentos e especialmente hoje com necessidade de reorganização da matriz energética, descarbonização da economia. O crescimento econômico não necessariamente engloba todo mundo. A política de crescimento tem que adicionalmente contar com medidas outras para aqueles que ficam fora do crescimento produzido por esse esforço de investimento publico e rearranjo das políticas em direção ao crescimento.
  4.  O Brasil está numa situação relativamente privilegiada no mundo; nós é que erramos com uma política equivocada nas últimas décadas, especialmente a monetária de juros, e uma adoção impensada do neoliberalismo com essa visão equivocada de que Estado deve ser suprimido ao mínimo, amordaçado e impedido de ter políticas. Isso nos levou à estagnação nesses últimos anos. Temos tudo para sair disso.

MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.