A Dinâmica da produtividade e preços: revisitando o Teorema Balassa-Samuelson na economia digital e em países em desenvolvimento

Marco Aurélio Bittencourt

A validade “Datada” dos Teoremas econômicos e o de Balassa-Samuelson (B-S)

Teoremas econômicos, como o Balassa-Samuelson (proposto em 1964), oferecem lentes analíticas cruciais para compreender fenômenos macroeconômicos. Contudo, é fundamental reconhecer que suas premissas foram formuladas em um contexto histórico e tecnológico específico. O B-S, ao categorizar a economia em setores “transacionáveis” (com alta produtividade) e “não transacionáveis” (com produtividade supostamente mais estagnada), reflete uma realidade industrial de meados do século XX. A validade desses teoremas não é questionada em sua lógica fundamental, mas sim em sua capacidade de capturar a plenitude dos mecanismos econômicos em um mundo transformado pela digitalização, globalização e ascensão da economia do conhecimento.

O teorema B-S estabelece que países com maior crescimento da produtividade no setor de bens transacionáveis (tipicamente a indústria) tendem a ter salários mais altos em toda a economia (devido à mobilidade do trabalho) e, consequentemente, preços relativamente mais elevados nos serviços não transacionáveis. Isso resulta em um nível geral de preços mais alto e uma taxa de câmbio real mais apreciada em nações mais ricas.

“milagre dos números” – o que ajustes nas estatísticas poderiam suscitar com base nesse Teorema B-S, reside na aparente distorção do Produto Interno Bruto (PIB). Em muitas economias avançadas, observa-se uma participação esmagadora do setor de serviços no PIB, o que poderia levar à falsa impressão de que a indústria perdeu sua relevância. No entanto, essa predominância é, em parte, um artefato estatístico do modo como o PIB é mensurado. Se devidamente ajustada para a paridade de poder de compra ou outros métodos que considerem os diferenciais de preço, essa mensuração levaria a uma identificação mais precisa da força do setor transacionável no PIB. É o que advocam a validade ubíqua do teorema B-S.

Elementos dinâmicos que afetam as premissas do Teorema em economias desenvolvidas

Hoje presenciamos diversos elementos dinâmicos que afetam as premissas originais do B-S em economias avançadas:

  • A Inovação e a Universalização da Produtividade nos Serviços: A premissa de que os serviços são intrinsecamente de “baixa produtividade” é atualmente desafiada. A revolução digital, a Inteligência Artificial (IA), a automação e as novas tecnologias têm permitido ganhos substanciais de produtividade em áreas como educação (e-learning, tutores de IA), saúde (robótica cirúrgica, telemedicina) e serviços pessoais (sistemas de agendamento, equipamentos de alta qualidade). A inovação em serviços frequentemente se manifesta na melhoria da qualidade, eficiência na entrega e personalização, e não apenas em uma redução de custo unitário. Essa elevação de preços ocorre por múltiplos fatores:
    • Primeiramente, a remuneração ao investimento em capital humano de profissionais altamente qualificados (mais abundantes e efetivamente utilizados em países desenvolvidos) se reflete diretamente na qualidade, sofisticação e valor agregado dos serviços. Uma consulta com um médico especialista ou uma consultoria com um engenheiro experiente é precificada pelo conhecimento e pela capacidade de resolver problemas complexos.
    • Em segundo lugar, a inovação manifesta-se na utilização de equipamentos de alta qualidade e softwares sofisticados no setor de serviços, cujos custos de capital e tecnologia são repassados aos preços.
    • Por fim, a inovação em serviços frequentemente se traduz em melhoria da qualidade, eficiência na entrega e personalização, que os consumidores de alta renda estão dispostos a pagar. Assim, embora o volume físico de serviços produzidos possa não ser proporcionalmente maior do que o de bens, o valor monetário desses serviços no PIB é artificialmente elevado, reflexo dessas inovações de alcance ubíquo.
  • A Crescente “Transacionabilidade” de Serviços: A distinção rígida entre bens transacionáveis e não transacionáveis está se tornando mais ambígua. Serviços como consultoria, desenvolvimento de software, suporte ao cliente e até mesmo algumas formas de educação e saúde podem ser prestados remotamente e exportados/importados, sujeitando-os a uma competição global e, potencialmente, a pressões de preços semelhantes às dos bens manufaturados.
  • Abundância e Qualificação da Força de Trabalho (Lado da Oferta): A proliferação da educação superior e a disponibilidade de uma força de trabalho altamente qualificada em muitos países desenvolvidos introduz uma nova camada de complexidade na dinâmica salarial. Vejamos:
    • Produtividade Qualitativa: Profissionais mais qualificados elevam a produtividade e a qualidade dos serviços que entregam, justificando preços mais elevados.
    • Custo de Oportunidade Elevado: O alto investimento em educação cria uma expectativa salarial que eleva o “piso” de remuneração em todos os setores, incluindo os serviços.
    • Impacto da Oferta de Trabalho: Se a oferta de profissionais qualificados excede a demanda em certas áreas, pode haver uma pressão de baixa nos salários, mesmo para aqueles com alto nível de educação. Isso difere da premissa de um “puxão” salarial ascendente uniforme e pode atenuar o impacto do B-S.

Elementos que modulam o Teorema em economias desenvolvidas

Os elementos dinâmicos acima fazem o teorema B-S ser moderado, ou seja, exigem uma interpretação mais sofisticada de seus efeitos:

  • Diluição dos Diferenciais de Produtividade: Se a taxa de crescimento da produtividade nos serviços se aproxima daquela nos setores transacionáveis, o principal motor do Balassa-Samuelson – o diferencial de produtividade entre setores – enfraquece. Isso poderia levar a uma convergência nos níveis de preços e uma menor apreciação da taxa de câmbio real nos países ricos.
  • Segmentação do Mercado de Serviços: Em vez de um setor de serviços homogêneo, observa-se uma polarização: serviços automatizáveis (que podem ter preços mais contidos pela eficiência) versus serviços de alto contato ou personalização (que continuam caros pela dependência de capital humano qualificado). Além disso, a emergência de serviços digitais transacionáveis introduz uma dinâmica de precificação globalizada.
  • Pressão Salarial pela Oferta vs. Demanda: A dinâmica salarial torna-se uma interação complexa entre a produtividade dos setores transacionáveis (que puxa salários para cima) e a oferta e demanda de trabalho qualificado em diferentes segmentos de serviços (que pode conter salários ou impulsioná-los, dependendo da escassez de habilidades específicas).

Fatores específicos do custo de vida em países desenvolvidos: saúde e previdência

A explicação para o elevado custo de vida em países desenvolvidos transcende a atuação direta do efeito Balassa-Samuelson, sendo significantemente influenciada por setores e regulamentações específicas:

  • Custos Elevados em Serviços de Saúde: O alto custo dos serviços de saúde nesses países é multifacetado. Ele se justifica, em parte, pelo uso intensivo de equipamentos e pessoal de alta qualificação e especialização e constante inovação, refletindo o investimento em capital humano e tecnologia que eleva o valor intrínseco do serviço. No entanto, o custo também é exacerbado por regulamentações e estruturas de mercado que podem ser ineficientes, burocráticas ou excessivamente fragmentadas, contribuindo para preços mais altos sem uma correspondente melhora na produtividade ou qualidade que justifique integralmente o aumento. Isso inclui custos administrativos, o poder de negociação de grandes empresas farmacêuticas e a complexidade dos sistemas de seguro.
  • Programas de Aposentadoria e Previdência: Os custos associados a programas de aposentadoria e previdência, frequentemente robustos em economias desenvolvidas, também contribuem para o custo de vida dos trabalhadores que arcam em parte com o seu custo. Embora sejam fundamentais para o bem-estar social, sua sustentabilidade pode ser desafiada por fatores econômicos (encurtamento do PIB) e, crucialmente, pela regulação de seus sistemas financeiros subjacentes. Uma regulação fraca ou inadequada do sistema financeiro, que é a base de sustentação desses planos previdenciários (públicos ou privados), pode levar a retornos insuficientes sobre os investimentos, custos de gestão elevados ou crises que exigem capitalização adicional. Esses custos são, em última instância, repassados aos contribuintes ou aos beneficiários através de impostos mais altos ou menores benefícios futuros, impactando o custo de vida geral.

Esses fatores setoriais demonstram que, embora o B-S explique a tendência geral de serviços mais caros em países ricos, a magnitude e as causas específicas em áreas críticas como saúde e previdência são moldadas por decisões políticas e regulatórias que fogem da simples lógica de diferenciais de produtividade.

O Contexto dos países em desenvolvimento: desafios estruturais e o B-S

A aplicação do teorema B-S a países em desenvolvimento revela um cenário distinto e mais complexo. Nesses contextos, a predominância de serviços de baixa produtividade é ubíqua, não como um resultado da alta produtividade industrial que eleva os salários (como no B-S), mas por razões estruturais e históricas:

  • Negligência de Políticas Industriais e Comerciais: A ausência de políticas industriais e comerciais coerentes e de longo prazo impede o desenvolvimento de setores transacionáveis robustos e de alta produtividade. Isso resulta em uma base industrial fraca, incapaz de gerar os ganhos de produtividade que puxariam os salários da economia.
  • Qualificação Aparente vs. Efetiva: A “superqualificação” é frequentemente aparente, dada a baixa qualidade do ensino. Há muitos formados, mas com pouca qualificação efetiva e habilidades que atendam às demandas de um mercado de trabalho sofisticado. Essa desconexão entre oferta e demanda de qualificações não permite que a educação se traduza em ganhos generalizados de produtividade ou salários elevados, como visto em economias desenvolvidas.
  • Escassez de Instrumentos de Trabalho Sofisticados: Políticas tarifárias ineficazes ou “esquizofrênicas” e a proibição ou restrição de contratação de empresas estrangeiras para executarem obras de infraestrutura ou construção civil limitam o acesso a tecnologias avançadas e “melhores práticas” internacionais. Isso restringe a capacidade dos serviços locais de se tornarem mais produtivos e modernos.
  • Serviços com Baixa Produtividade: Em países em desenvolvimento, a vasta maioria dos serviços ainda se caracteriza por baixa produtividade, alta intensidade de mão de obra não qualificada ou semi-qualificada, e pouca inovação. Isso contrasta com a realidade dos países desenvolvidos onde, mesmo nos serviços, a tecnologia e a qualificação tendem a ser elevadas, principalmente pela qualificada estrutura de equipamento e conhecimento disponíveis em larga escala a trabalhadores alocados em áreas como a construção civil ou outras de grande empregabilidade de mão de obra.

Em suma, em países em desenvolvimento, o domínio de serviços de baixa produtividade reflete falhas estruturais na política econômica e educacional, e não o efeito de um setor transacionável de alta produtividade “puxando” o restante da economia. A dinâmica de salários e preços nesses contextos é, portanto, moldada mais pela ineficiência e falta de competitividade do que pelos mecanismos de transbordamento de produtividade de um setor transacionável robusto.

Conclusão: Balassa-Samuelson reinventado, não refutado, e suas limitações contextuais

O teorema Balassa-Samuelson, embora formulado em um contexto diferente, permanece relevante para entender as diferenças de preços e câmbio real entre países. No entanto, ele não é um teorema “estático”, mas uma estrutura analítica que exige reinterpretação à luz das profundas transformações econômicas.

Os elementos dinâmicos discutidos – a crescente produtividade dos serviços, sua maior transacionabilidade e a complexa interação entre oferta e demanda de uma força de trabalho cada vez mais qualificada – moderam o efeito B-S em economias desenvolvidas. O “milagre dos números” ainda pode existir, mas suas causas e manifestações são mais multifacetadas. A convergência de preços para bens transacionáveis é notória, e alguns serviços de alto padrão também podem exibir certa convergência devido à busca por qualidade e capital humano globalmente comparável. Contudo, para a maioria dos serviços, a divergência persiste, mas parecem estar restritos a um grupo de baixíssima produtividade.

Para países em desenvolvimento, o cenário é substancialmente distinto. O predomínio de serviços de baixa produtividade reflete problemas estruturais mais profundos relacionados à ausência de políticas de fomento à produtividade, à inadequação da qualificação da força de trabalho e a barreiras à adoção de tecnologias e suas melhores práticas. Nesses contextos, o B-S pode ter uma aplicabilidade limitada para explicar o padrão de preços e produtividade, que é mais moldado por deficiências sistêmicas do que pelos mecanismos de transbordamento de produtividade de um setor transacionável robusto. Além disso, o custo de vida elevado em países desenvolvidos não se explica unicamente pelo B-S, mas também por fatores setoriais e regulatórios específicos, como a organização e eficiência dos sistemas de saúde e previdência, que têm um impacto significativo nos preços e na carga econômica para os cidadãos.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


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Marco Aurélio Bittencourt

A falsa culpa da globalização: desvendando a complexa relação entre comércio, inovação, desemprego e desigualdade

Marco Aurélio Bittencourt

A globalização, intensificada nas últimas décadas, transformou o mapa econômico mundial e tem sido frequentemente apontada como uma das principais causas do crescente desemprego e da alarmante concentração de renda observada em diversas nações. A narrativa comum sugere uma lógica aparentemente irrefutável: a intensificação da especialização produtiva em escala planetária inevitavelmente leva à realocação de empregos, com alguns países perdendo postos de trabalho em detrimento daqueles com vantagens comparativas. Essa dinâmica, argumenta-se, impulsiona a desigualdade, pois apenas uma parcela da população, altamente qualificada e inserida nos setores de ponta, colhe os frutos dessa nova ordem econômica.

Contudo, essa narrativa, embora contenha elementos de verdade, simplifica uma realidade complexa e, em última análise, desvia o foco de outros mecanismos subjacentes a esses problemas. É inegável que a globalização exerce pressão sobre os mercados de trabalho, expondo-os a uma competição acirrada. A busca incessante por eficiência e menores custos de produção pode levar à convergência dos preços de bens e serviços, o que impacta a rentabilidade de empresas em países com custos mais elevados. Os consumidores, em geral, se beneficiam dessa queda de preços, desfrutando de maior poder de compra.

A inovação, motor essencial do crescimento econômico na era globalizada, também desempenha um papel ambivalente. Embora crie novas oportunidades e impulsione a produtividade, sua natureza disruptiva frequentemente leva à obsolescência de profissões e à necessidade de requalificação em larga escala. Em um mercado idealmente competitivo, os ganhos extraordinários da inovação tendem a se diluir à medida que novas empresas adotam as tecnologias e os preços se ajustam à pressão da concorrência. No entanto, em muitos setores, a competição não é perfeita, e os ganhos da inovação podem se concentrar em poucas empresas e indivíduos, contribuindo para a desigualdade e para a crescente disparidade entre a renda do capital e a renda do trabalho.

A complexidade da experiência chinesa e a necessidade de regulação adaptada

A experiência da China oferece um caso complexo e revelador. Contrariando a tendência de perda generalizada de empregos frequentemente associada à globalização, o gigante asiático demonstra uma resiliência de algum valor em seu mercado de trabalho. Embora a questão da concentração de renda na China exija uma análise cuidadosa e diferenciada, considerando as particularidades do seu sistema político e econômico, o fenômeno do desemprego em larga escala parece ter sido mitigado de alguma forma.

A razão para essa aparente contradição reside, em grande parte, na atuação multifacetada do governo chinês. Reconhecendo os potenciais impactos negativos da globalização e da rápida modernização sobre o emprego, o Estado implementou uma série de mecanismos de intervenção e regulação do mercado de trabalho. Embora tais intervenções não sejam isentas de críticas – a imposição de certas condições para empresas, por exemplo, pode gerar ineficiências e distorções –, elas demonstram uma preocupação ativa em amortecer os choques da transformação econômica sobre a população trabalhadora e, em outra vertente, amortecer a inabilidade tecnológica dos que vêm do campo. A regulação chinesa, com suas particularidades (como o uso de políticas industriais seletivas e investimentos massivos em infraestrutura), revela uma estratégia deliberada de priorizar a estabilidade do emprego, mesmo que isso comprometa a eficiência em alguns casos e levante questões sobre a sustentabilidade de longo prazo. É importante notar, no entanto, que essa abordagem tem seus custos, podendo enfrentar desafios crescentes à medida que a China busca transitar para um modelo de crescimento mais baseado na inovação.

Essa abordagem, por mais imperfeita que seja, lança luz sobre a complexidade da questão e a necessidade de estratégias adaptadas a cada contexto, o que contrasta com a omissão ou a timidez de estratégias semelhantes em outras economias, especialmente em algumas nações da Europa e, em certa medida, nos Estados Unidos. O aumento exponencial da produtividade impulsionado pela inovação e pela adoção de tecnologias avançadas invariavelmente leva a uma redução da demanda por mão de obra nos setores modernizados, e talvez explique o encurtamento do setor industrial em sua participação no PIB algures e alhures. A ausência de políticas ativas para gerenciar essa transição pode ter como consequência o deslocamento de trabalhadores para setores menos produtivos, como serviços e comércio, onde a crescente oferta de mão de obra exerce uma pressão descendente sobre os salários e contribui para a precarização do trabalho. É crucial reconhecer que essa transição não é automática nem sempre bem-sucedida, e pode levar a um aumento da desigualdade.

A urgência de uma regulação inteligente e dinâmica no setor sofisticado

A regulação econômica, em sua essência, volta-se para a correção de falhas de mercado, com foco primordial em monopólios e oligopólios. No tocante aos monopólios, a intervenção estatal busca alinhar a precificação da empresa dominante a níveis socialmente ótimos. Duas estratégias principais emergem:

  1. Preço igual ao custo marginal: Idealmente, o Estado poderia fixar o preço do monopolista em seu custo marginal, refletindo o verdadeiro custo de produção da última unidade. Para garantir a sustentabilidade da empresa, dado que o custo marginal pode ser inferior ao custo médio total, mecanismos de compensação do custo fixo não recuperado seriam necessários, como subsídios direcionados. Essa abordagem maximiza a eficiência alocativa, mas demanda cuidadosa gestão e financiamento.
  2. Preço igual ao custo médio: Uma alternativa pragmática consiste em estabelecer o preço no nível do custo médio da empresa. Embora não alcance a mesma eficiência alocativa do preço igual ao custo marginal, essa estratégia assegura a viabilidade econômica do monopolista sem a necessidade de subsídios contínuos, cobrindo todos os custos de produção, incluindo o custo fixo, e permitindo um lucro normal.

No âmbito dos oligopólios, a regulação concentra-se na prevenção de coalizões e acordos anticompetitivos que prejudiquem consumidores e fornecedores. O objetivo é fomentar a competição, mesmo em mercados concentrados, através da fiscalização e punição de práticas como formação de cartéis, manipulação de preços e divisão de mercados.

É crucial ressaltar que ambas as formas de regulação devem ser permeáveis à possibilidade de ingresso de novas empresas e ao potencial de inovações disruptivas. A ameaça de nova concorrência e a emergência de tecnologias inovadoras atuam como importantes mecanismos de disciplina de mercado, limitando o poder das empresas estabelecidas e impulsionando a eficiência e a inovação. Uma regulação excessivamente rígida pode inadvertidamente barrar esses desenvolvimentos benéficos.

Mas agora, com a globalização e seus efeitos deletérios sobre o emprego, o enfoque se amplia. O problema, entretanto, não reside exclusivamente na globalização ou na inovação em si, mas sim na falta de estratégias e mecanismos de regulação adequados e dinâmicos para lidar com seus efeitos colaterais, particularmente no que concerne ao mercado de trabalho de alta tecnologia e inovação. A crença de que o mercado, por si só, será capaz de absorver os trabalhadores deslocados e gerar novas oportunidades semelhantes às que esses trabalhadores deslocados desfrutavam em ritmo suficiente se mostra cada vez mais frágil diante da velocidade e da magnitude das transformações tecnológicas e o aumento do contingente sem referência de trabalho e emprego.

A questão crucial que se coloca é: que tipo de regulação se faz necessária nesse setor sofisticado? A resposta não reside em um retorno a modelos protecionistas ultrapassados, mas sim na criação de um conjunto de mecanismos inteligentes e adaptáveis que conciliem a busca por inovação e eficiência com a proteção e a reinserção dos trabalhadores, buscando um equilíbrio complexo. A regulação deve ser vista não como um obstáculo à inovação, mas como um instrumento para garantir que seus benefícios concentrados se aliem, de alguma forma eficiente, aos danos causados aos trabalhadores.

O exemplo hipotético da introdução de transporte sem motorista pelo Uber ilustra o desafio. Uma transição abrupta que levasse à perda de emprego de milhares de motoristas teria graves consequências sociais e econômicas. Uma proposta, por exemplo, seria a de que os antigos motoristas se tornassem os proprietários dos veículos autônomos. O que essa proposta revela é que, buscando restringir a apropriação desmedida dos ganhos da inovação por parte dos idealizadores da plataforma e redistribuir esses benefícios àqueles que foram diretamente impactados pela mudança tecnológica, pode ter efeitos fundamentais na dinâmica da inovação. O ganho da inovação não estaria sendo dirigido a quem investiu nessa inovação, direta ou indiretamente. Portanto, a estratégia não atende ao requisito de eficiência, no sentido de que se está impondo uma restrição que fatalmente poderá aumentar custos para a empresa UBER e desincentivar futuros investimentos em inovação. É fundamental considerar cuidadosamente os incentivos à inovação e evitar medidas que possam sufocá-la, buscando, por exemplo, mecanismos de compensação que permitam às empresas recuperar seus investimentos em inovação.

Um outro exemplo seria a de adoção de um sistema de incentivo compulsório à poupança e participação dos trabalhadores nos ganhos da inovação. A proposta de um fundo de participação acionária, com garantias de recompra em casos de deslocamento tecnológico, é particularmente interessante, mas sua implementação requer um design cuidadoso para evitar distorções no mercado financeiro e garantir a viabilidade das empresas. Nesse contexto, a regulação pode assumir diversas outras formas, como as seguintes:

  • Uma delas seria a imposição de um período de transição gradual para a adoção de tecnologias disruptivas, permitindo que os trabalhadores se requalifiquem e se adaptem às novas demandas do mercado. Mas de novo, tem o inconveniente de não ser eficiente, pois pode atrasar a adoção de tecnologias que aumentam a produtividade e a competitividade. Para mitigar esse problema, a regulação poderia ser acompanhada de incentivos à inovação e de políticas de mercado de trabalho ativas que facilitem a requalificação dos trabalhadores.
  • Outra possibilidade seria a criação de fundos de apoio à transição profissional, financiados pelas empresas que se beneficiam da automação, para oferecer suporte financeiro e programas de treinamento aos trabalhadores deslocados. A proposta teria que ter atrativo a ser fornecido pela empresa, de tal forma a atrair os trabalhadores, como benefícios fiscais para as empresas que contribuem para os fundos, e programas de treinamento de alta qualidade e com certificação reconhecida pelo mercado para os trabalhadores. A gestão dos fundos poderia ser feita de forma tripartite, com a participação de representantes das empresas, dos trabalhadores e do governo, para garantir a transparência e a eficiência.
  • A ideia de “duplicação da fábrica” ou “fatiamento empresarial” também merece exploração, com o objetivo de gerar mais oportunidades de emprego e diluir o poder econômico em setores com alta concentração de mercado. Mas essa seria uma decisão exclusiva da empresa que estaria afeta às condições beneficiadoras do governo, como incentivos fiscais e subsídios para a criação de novas unidades de negócio. No entanto, é importante considerar os possíveis efeitos negativos dessa medida, como a perda de economias de escala e a redução da eficiência, e buscar formas de mitigá-los.

Pelo resumo acima, nota-se claramente que o caminho da regulação não é trivial e está carregado de possibilidades de jogar as empresas num mar de ineficiências. Esse é o desafio da regulação.

Rumo a um novo contrato social na era da inovação inclusiva

Em última análise, o desafio não é frear o progresso tecnológico ou renegar os benefícios da globalização. O verdadeiro imperativo é construir um novo contrato social que reconheça os impactos disruptivos da inovação e da competição global e estabeleça mecanismos para mitigar seus efeitos negativos sobre o emprego e a distribuição de renda, promovendo uma inovação verdadeiramente inclusiva. Isso exige uma mudança de paradigma na forma como pensamos a regulação econômica. Em vez de uma visão puramente liberal, que confia cegamente na autorregulação do mercado, é necessário adotar uma abordagem mais proativa, estratégica e adaptativa, que envolva o diálogo entre governos, empresas, trabalhadores em ação conjunta com seus sindicatos e a sociedade civil na busca de soluções inovadoras e sustentáveis. A regulação deve ser vista como um processo de aprendizado contínuo, que se ajusta às novas realidades tecnológicas e econômicas, incorporando princípios de flexibilidade, transparência e responsabilidade.

A experiência da China, com suas imperfeições e controvérsias, oferece um ponto de partida para essa reflexão, demonstrando que a intervenção estatal, mesmo que de forma não ortodoxa, pode desempenhar um papel importante na promoção do emprego e na redução da desigualdade em um contexto de rápida transformação econômica. No entanto, é crucial aprender com os sucessos e fracassos da experiência chinesa, buscando modelos de regulação que sejam mais eficientes, transparentes e democráticos.

O debate sobre o futuro do trabalho na era da inteligência artificial e da automação avançada está apenas começando. A forma como as sociedades responderão a esses desafios definirá o futuro da distribuição de riqueza, da coesão social e da própria democracia. Ignorar a necessidade de uma regulação inteligente, adaptada aos novos tempos e orientada para a inclusão seria um erro com consequências potencialmente devastadoras. A análise simplista que atribui toda a culpa à globalização não pode nos cegar para a verdadeira responsabilidade: a de construir um futuro em que a inovação sirva ao bem-estar de todos, e não apenas de uma parcela privilegiada da população, com efeitos deletérios sobre a classe média. A pobreza é o limite da classe média!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


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Arte e Nossa Realidade

Marco Aurélio Bittencourt

O debate sobre o papel das artes na nossa cultura possui uma dinâmica complexa e interdependente. Podemos nos perguntar se a cultura molda as expressões artísticas ou se são as artes que ativamente influenciam a configuração cultural. Acredito que ambas as direções causais são válidas; tanto a arte   registrando o presente, quanto sinalizando tendências futuras de nossa sociedade. Contudo, a tapeçaria cultural se torna ainda mais intrincada pela natureza multifacetada da arte, que se desdobra em diversas manifestações como a pintura, a literatura, o cinema, a música, o teatro e muitas outras formas de expressão cultural. Cada uma dessas vertentes pode exercer essa influência bidirecional ou atuar em apenas um sentido em diferentes momentos históricos, ou até mesmo em ambos simultaneamente. Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o cinema brasileiro, não como um especialista, mas como um observador que se intenciona atento.

Minha memória do cinema brasileiro me leva à época da Companhia Vera Cruz, um período significativo para a nossa cinematografia. De fato, a ambição de criar uma “Hollywood brasileira” se evaporou, ficando na memória filmes como o Cangaceiro e Sinhá Moça nos primórdios dos anos de 1950. O primeiro dirigido por Lima Barreto e o segundo por Tom Payne (consultas ao google informam os detalhes).

Apesar da constante presença de filmes estrangeiros, o cinema nacional experimentou seu impulso criativo a partir da década de 1930. Foi nesse período de 1930/40 que surgiu uma produtora, a Cinédia, que iniciou a produção de filmes que dariam origem a um gênero característico: as chanchadas. Essas produções alcançaram grande popularidade nas décadas de 1940 e 1950, perdendo gradualmente sua força nos anos 1960.

As chanchadas eram filmes que exploravam temas da cultura popular, com destaque para o Carnaval, e apresentavam narrativas que combinavam elementos dramáticos e humorísticos, frequentemente incluindo números musicais. Nesse contexto, emergiu uma figura que se tornaria um ícone da cultura brasileira: Carmen Miranda, que participou de filmes como “Alô, Alô, Brasil” e “Alô, Alô, Carnaval”.

A Companhia Vera Cruz foi uma tentativa frustrada de superar a concorrência internacional, apartada da nossa cultura. Embora a Cinédia tenha sido a pioneira e dominante por muitos anos, a Companhia Vera Cruz surgiu em um contexto diferente, com a ambição de alcançar um patamar de produção mais sofisticado e com reconhecimento internacional, inspirada no modelo de Hollywood. Enquanto a Cinédia focava em um cinema mais popular e comercial, com as chanchadas como carro-chefe, a Vera Cruz buscava uma produção com maior investimento e apelo artístico, embora tenha encontrado dificuldades em se sustentar financeiramente. Um artista solitário também teve papel importante em nossa cinematografia: O “caipira” Mazzaropi dirigiu seu primeiro filme, “Chofer de Praça”, em 1958. A característica básica dos filmes de Mazzaropi era registrar a visão da realidade brasileira a partir de um olhar de uma pessoa humilde, ele próprio numa versão jeca engraçada. Continuou o mesmo até falecer em 1981.

A partir do final da década de 1950, consolidou-se no país uma corrente cinematográfica que se tornou uma das mais relevantes da nossa história: o Cinema Novo. Essa corrente era marcada por um forte engajamento político e direcionava críticas ao panorama do cinema brasileiro da época, que sofria uma considerável influência do cinema norte-americano. Ademais, as produções do Cinema Novo buscavam expor a realidade da pobreza enfrentada pela população brasileira, questionando os entraves sociais, como a desigualdade e a marginalização da sociedade, dirigida principalmente aos descendentes da escravidão não amparados pela sociedade em geral. Pelo contrário; reforçavam em pequenos atos que lhes pareciam normais constantemente sua marginalização – estão aí o quarto de empregada, o elevador social e tantos outros arranjos a mostrar a nítida segregação. As obras desse movimento também se alinhavam com ideias que defendiam os interesses da classe trabalhadora, e a veemente denúncia da situação do país realizada por essa corrente que ficou conhecida como a “estética da fome”.

Assim, houve uma transição da chanchada para o Cinema Novo. A chanchada, com sua abordagem mais voltada para o entretenimento do público e menos focada em uma crítica direta da realidade, cedeu espaço para uma perspectiva mais analítica e engajada. Diretores importantes começaram a se destacar no cenário nacional, como Nelson Pereira dos Santos, cujo filme “Rio 40 graus” apontava para os problemas sociais brasileiros. Esse lançamento ocorreu em 1955, após o filme ter sido retido pela censura.

Naquela época, o jovem crítico de cinema baiano Glauber Rocha demonstrou interesse pelo trabalho de Nelson e se mudou para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar com ele. Glauber efetivamente se tornou assistente de direção de Nelson em seu filme seguinte, “Rio, Zona Norte” (1957), que narra a história do sambista Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, inspirado na vida de Zé Kéti, que também compôs a trilha sonora. Em reconhecimento, Nelson realizou a montagem de “Barravento” (1962), o primeiro longa-metragem de Glauber. “Rio, 40 Graus” e “Rio, Zona Norte” são considerados filmes fundamentais para o Cinema Novo, e Nelson, tendo dirigido ambos e participado da estreia de Glauber, rapidamente se tornou uma figura paterna para os cineastas do movimento. Tivemos ainda grandes nomes nessa linha do cinema novo: Ruy Guerra com Os Fuzis (1964) – que retrata a seca e a violência no Nordeste e Leon Hirszman com São Bernardo (1972) – Adaptação da obra de Graciliano Ramos.

No meio do caminho do cinema novo Anselmo Duarte manteve o ritmo cinematográfico da Vera Cruz e nos brindou com o seu premiadíssimo filme o Pagador de Promessa em 1962 – ganhou a Palma de Ouro em Cannes. De certo, a maior promoção do cinema brasileiro.

Nessa trajetória do cinema novo surgiram nomes que não se engajavam diretamente a uma corrente política, como Roberto Farias que dirigiu o filme o Assalto ao Trem Pagador em 1963. A produção de “O Assalto ao Trem Pagador” foi realizada pela Herbert Richers Produções Cinematográficas. Herbert Richers que teve um papel de destaque na indústria cinematográfica brasileira, responsável por inúmeras produções, pela dublagem de filmes estrangeiros no Brasil e pelo conhecido canal 100 que nos brindava com imagens belíssimas do nosso futebol antes das exibições dos filmes. Vale citar ainda uma recordação viva de um filme chamado “O Rei Pelé”, lançado em 1962. Este filme, dirigido por Carlos Hugo Christensen, da vida de Pelé naquele momento era uma produção que misturava elementos de dramatização e documentário, reconstruindo a trajetória de Pelé até aquele ponto da sua carreira, com o próprio Pelé participando e interpretando a si mesmo em algumas cenas.

Vieram outros nessa mesma linha: Arnaldo Jabor com Toda Nudez Será Castigada (1973) – Uma adaptação da obra Nelson Rodrigues, Bruno Barreto com Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) – Uma adaptação de uma obra Jorge Amado e Hector Babenco com Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) – Um olhar sobre a violência e a infância marginalizada.

A influência do Cinema Novo se estendeu para documentários e teledramaturgia, notavelmente através das adaptações de Dias Gomes das obras de Jorge Amado. No cinema, a influência de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Mário de Andrade direcionou uma abordagem mais metafórica da realidade brasileira. Surgiram novos diretores, como Tizuka Yamasaki, que participou da produção do curta “Fala, Brasília” (1966). Contudo, um destaque importante foi o documentário de Glauber Rocha sobre a ascensão do clã Sarney ao governo do Maranhão, retratando um coronelismo arcaico sob uma roupagem ditatorial (Maranhão 1966). Joaquim Pedro de Andrade é uma referência importante pelo trabalho cinematográfico de Macunaíma. Podemos também citar Cacá Diegues, José Padilha, Meirelles e Walter Salles como nomes relevantes dessa trajetória.

Mas o que esses cineastas buscavam expressar? A trajetória do Cinema Novo apontava para a nossa realidade mais crua e vislumbrava um futuro que, de certa forma, olhava para o passado. Muitas vezes, a mudança parecia residir apenas na nova forma de apresentar os problemas, resultando em uma certa estagnação temporal de nossa realidade. Posteriormente, surgiram diretores que abordaram a ordem e a desordem dos valores morais e éticos, com um esforço para reorientar o comportamento social em direção a um mínimo de ética. Contudo, novamente pareceu haver uma certa paralisia no tempo. Observo o passado se repetindo no presente e no futuro, e filmes como “Central do Brasil”, “Bye bye Brasil”, “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus” e “O Mecanismo” representam o estágio atual da nossa cinematografia, uma arte talvez excessivamente presa ao presente que repete em seu futuro o passado que nos acorrenta.

Atualmente, dispomos de outro meio para apreciar filmes de qualidade: as plataformas de streaming. Essa facilidade de conexão com outras culturas nos proporciona novas perspectivas sobre temas antigos. Ao analisar produções de outros países através do streaming, como o filme tailandês “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra” e a minissérie turca “Enciclopédia de Istambul”, emerge um paralelo que lança luz sobre o nosso próprio estágio cultural. Essa comparação sugere que, sob a lente do cinema, o Brasil se assemelha mais à Tailândia em termos da priorização de questões éticas, indicando um possível estágio de desenvolvimento cultural relativamente similar, embora com a ressalva de que a Tailândia possa apresentar um quadro cultural mais coeso em certos aspectos. Em contraste, a Turquia parece exibir, através de sua produção, um estágio de desenvolvimento cultural mais avançado, com valores aparentemente mais consolidados e a busca de uma postura de integração em um mundo plural com todos os riscos que uma sociedade moderna oferece pelas escolhas individuais. A percepção de um quadro urbanístico na Tailândia que ecoa similaridades com o Brasil e um cenário em Istambul mais próximo ao europeu reforça essa leitura de diferentes estágios de desenvolvimento cultural refletidos em suas produções audiovisuais e, por extensão, em suas sociedades. Para mim, sob a perspectiva cinematográfica, claramente nos encontramos em um estágio civilizatório mais próximo ao da Tailândia, onde as questões éticas ainda são prioritárias, sugerindo um certo distanciamento de um patamar de desenvolvimento cultural mais ‘maduro’, como o da Turquia. Não é atoa que a Tailandia mostra um quadro urbanístico semelhante ao Brasil e Istambul ao Europeu. É o que penso, ao observar como nosso cinema, e por extensão nossa cultura, nos posicionam em relação a outros países, sugerindo um caminho a percorrer em nosso desenvolvimento cultural, mesmo reconhecendo as complexidades e nuances dessa comparação. Em última análise, o cinema, como forma de arte, não apenas reflete a realidade, mas também atua como um termômetro cultural, indicando nosso estágio presente e, por inferência, as possíveis trajetórias futuras de nossa sociedade. Fiz minhas escolhas para que alcancemos o estágio civilizatório europeu.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


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Marco Aurélio Bittencourt

Vargas e o orçamento: ditadura eficiente ou boas regras de gestão pública?

Marco Aurélio Bittencourt

A avaliação da Era Vargas nos coloca ainda hoje diante de vários paradoxos. Um deles nos coloca diante de uma questão central: a eficiência na gestão orçamentária seria um atributo exclusivo de regimes autoritários, ou o resultado da aplicação de boas regras de gestão pública, replicáveis em diferentes sistemas políticos? Para refletir sobre isso, consideremos a seguinte afirmação (expressa no livro Orçamento Público, Viana A., 1950):

Em todas as fases do processo orçamentário, é de justiça observar que o Sr. GETULIO VARGAS, pessoalmente, determinava a observância rigorosa de todos os preceitos regulamentares da boa administração financeira, jamais proferindo qualquer decisão sem a devida fundamentação legal preparada pelos órgãos especializados. Nesse particular, nenhum órgão interessado na realização de uma despesa obtinha, no regime ditatorial, despacho definitivo do Presidente antes da audiência dos demais órgãos incumbidos de zelar pela legalidade, necessidade e oportunidade do ato solicitado……É curioso e mesmo paradoxal constatar que toda a longa , esclarecida e contínua ação dos parlamentos imperiais e republicanos jamais conseguiu assegurar ao sistema orçamentário brasileiro a veracidade, integridade e eficiência que lhe imprimiu o regime ditatorial de GETÚLIO VARGAS, a partir de 1939. Reunindo de fato e de direito os mais vastos poderes da República, o Presidente VARGAS sempre procurou, no campo financeiro, o justo limite para exercê-los. A vertigem da glória de proporcionar ao país grandes empreendimentos … não perturbou o Presidente GETÚLIO VARGAS, que através da copiosa documentação de seus atos administrativos, demonstrou ser possível conciliar os impulsos criadores com a observância dos princípios fundamentais que regem as finanças públicas nas democracias. Essa atitude de severidade, respeito e interesse pelas instituições orçamentárias – de que posso dar testemunho, em virtude de colaboração técnica prestada ao seu Governo, durante seis anos consecutivos …. – merece ser compreendida por quantos o combatem e o admiram.” (Viana, A., Págs. 35 e 36, 1950.)

É comum que ditaduras políticas se manifestem também como econômicas, aparelhando o Estado para privilegiar grupos de interesse por meio de mecanismos orçamentários ou extraorçamentários. Nesse contexto, o testemunho de Viana (1950) sugere que a observância rigorosa de preceitos regulamentares pode, ao menos em parte, mitigar a influência de interesses escusos, impondo uma disciplina que nem sempre encontra espaço nos arranjos mais flexíveis da democracia.

O texto retrata a gestão Vargas como um caso singular na história da administração pública brasileira, onde a eficiência e a probidade teriam florescido sob um regime autoritário, contrastando com as supostas ineficiências dos parlamentos. Contudo, é crucial questionar se essa eficiência é inerente à ditadura ou se reflete a adoção de práticas administrativas sólidas.

Afinal, a aplicação de regras e procedimentos, embora importante, nunca é totalmente neutra. As relações de poder e as ideologias dominantes permeiam a interpretação e a execução dos atos administrativos. Além disso, o contexto da modernização do Estado brasileiro na década de 1930 pode ter influenciado a percepção da “eficiência” da gestão varguista, que pode ter se beneficiado da centralização do poder e da capacidade de implementar decisões de forma rápida e sem oposição. No entanto, o autor contrapõe a essa visão o fato de que Getúlio Vargas documentou todos os seus atos administrativos, o que indicaria uma preocupação em registrar documentalmente que seguia os princípios orçamentários e financeiros consagrados.

Portanto, a pergunta sobre Vargas e o orçamento nos convida a um debate mais aprofundado: a eficiência administrativa é privilégio da ditadura, ou resultado de boas regras de gestão que podem e devem ser aplicadas em qualquer sistema político? Longe de apresentar uma resposta definitiva, este artigo busca estimular a reflexão crítica sobre a complexa herança de Vargas e os desafios da administração pública no Brasil. Todavia, a inferência conclusiva me parece óbvia: uma democracia fortalecida teria que seguir à risca o comportamento presidencial como Gestor (na verdade sua única atribuição de realce) a semelhança de Getúlio Vargas que tanto a exerceu no Estado Novo, bem como na sua Gestão Presidencial que resultou em seu suicídio. Foi-se uma vida e ficou o exemplo da moralidade pública. Talvez, essa tenha sido a maior preocupação dos seus algozes. E digo NÃO aos clichês!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br.


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Saiba mais sobre Getúlio Vargas:

Getúlio Dornelles Vargas

A Falácia da Gastança Excessiva: a real crise fiscal e o desmonte dos serviços públicos

Marco Aurélio Bittencourt

Desmascarado o mito do déficit da Previdência Social (Aqui), foco agora na narrativa da “gastança excessiva” do governo; um pretexto para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e o desmonte dos serviços públicos, tendo como alvo o povo brasileiro – esse coitado, desamparado e lascado. Quem liga para isso?  A realidade, contudo, revela um quadro muito mais complexo e preocupante, onde a verdadeira causa do desequilíbrio orçamentário reside nos exorbitantes juros da dívida pública; um fardo que sufoca o Estado e drena recursos cruciais para o bem-estar da população ano a ano.

A raiz do problema reside nos juros da dívida pública, um montante significativo que consome uma parcela considerável do orçamento federal de forma persistente e recorrente. Essa sangria financeira obriga o governo a realizar cortes sistemáticos nos gastos fiscais, em um ciclo vicioso que se repete a cada período, agravando a precarização dos serviços públicos e comprometendo o futuro do país. A volatilidade dos pagamentos dos juros da dívida impõe um ajuste constante e doloroso, com consequências nefastas para áreas como saúde, educação e infraestrutura  (Aqui).  

Os cortes atingem os investimentos, condenando hospitais, escolas e, na área dos investimentos já feitos, o desgaste forçado dos equipamentos públicos, impondo-lhes a obsolescência pela falta de recursos básicos para sua manutenção e a notória ausência de novos hospitais. A deterioração da saúde pública é emblemática: a falta de investimentos em novas unidades, equipamentos e pessoal resultam em filas intermináveis, falta de leitos e precariedade no atendimento, afetando principalmente os mais humildes que sequer cogitam em planos privados de saúde. A população mais vulnerável paga um preço alto por essa política de austeridade. E quando pode contar com a participação privada, estabelecem preços de remuneração aos serviços por vezes irreais. As Santas Casas sobrevivem com grande dificuldade e poucos estados mostram vontade de atualizar os preços dessas entidades filantrópicas valorosas, arcando em seus orçamentos com essa política como fez o governador de São Paulo.

A cantilena da “gastança excessiva” serve como cortina de fumaça para esconder a verdadeira natureza do problema: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida em detrimento aos investimentos sociais. Maldita Lei de Responsabilidade Fiscal que mantém o status quo dos bancos e rentistas e dos servidores públicos. Existem outros pontos de extração de recursos públicos consagrados no orçamento, como o auxílio a empresas privadas em subsídios e isenções tributárias significativos. A mídia e alguns setores da política, alinhados com os interesses do mercado financeiro, propagam essa narrativa para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e a retirada de direitos da população, porque o alvo é a previdência. Incrível que num governo que, em passado virtuoso, implementou regras de ajuste do salário-mínimo que não gerou desemprego e nem outro tipo de problema, mas, agora, cedeu.

A insistência em culpar os gastos sociais pela crise fiscal revela uma profunda desconexão com a realidade e um desprezo silencioso pelos direitos da população. O corte de investimentos em áreas essenciais como saúde e infraestrutura não apenas compromete o bem-estar da população, mas também hipoteca o futuro do país, impedindo o desenvolvimento social e econômico. A mudança na regra salarial um tiro no peito dos aposentados CLT que os deixarão agonizando por um tempo longo.

A verdadeira face da austeridade é a precarização dos serviços públicos, o aumento da desigualdade social e o aprofundamento da crise. A população, já castigada pela pandemia e pela recessão econômica, é novamente chamada a arcar com o peso de uma política fiscal que beneficia os detentores da dívida pública e o círculo empresarial que se valem de subsídios e isenções tributárias significativos em detrimento do bem-estar social.

A crítica à “gastança excessiva” ignora o fato de que o Estado brasileiro, historicamente, investe pouco em comparação com outros países de desenvolvimento semelhante. A carga tributária, elevada em comparação com outros países, não se traduz em serviços públicos de qualidade, evidenciando a ineficiência do modelo fiscal e a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida.

A defesa da austeridade fiscal, sem considerar a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, revela uma visão limitada e prejudicial ao país. A concentração de renda e riqueza, as isenções fiscais e a enorme dependência das multinacionais em seus projetos de inovação são problemas estruturais que precisam ser enfrentados para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. A triste realidade (que vale para a maioria dos países) da precarização do mercado de trabalho, tendo em vista a mudança estrutural significativa na geração de emprego, com o item serviço e comércio abarcando cerca de 70% da mão de obra, nos leva a uma redução salarial sistemática nesse segmento de baixa produtividade. Difícil uma política pública que gere oportunidades nesse ramo de produção, em que pese nossa vocação óbvia para o turismo.

A mídia e os formadores de opinião, em vez de propagar a falácia da “gastança excessiva”, deveriam pautar o debate público sobre a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. É preciso romper com a lógica que beneficia os detentores da dívida pública em detrimento do bem-estar social.

A população não pode mais ser enganada pela narrativa da “gastança excessiva”. É preciso denunciar a verdadeira natureza da crise fiscal e exigir uma política econômica que priorize o bem-estar social, a justiça fiscal e o desenvolvimento sustentável. A luta pela defesa dos serviços públicos e pela justiça social é uma luta de todos nós. Eu ainda estou aqui!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 

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Leia outro artigo do Prof. Marco Aurélio Bittencourt relacionado ao tema ao tema fiscal:

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Leia também o artigo sobre sustentabilidade fiscal do Luiz Guilherme Schymura

Tanto pela sustentabilidade fiscal quanto por razões cíclicas, chegou o momento da consolidação no Brasil

Veja o modelo de custos de serviços públicos elaborado pelo governo federal:

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Marco Aurélio Bittencourt

No Brasil, é comum ouvirmos falar sobre o “déficit” da previdência social   numa narrativa esdrúxula que tem sido amplamente difundida ao longo dos anos. Contudo, é fundamental questionarmos a veracidade dessa narrativa e analisarmos os fatores que realmente influenciam o equilíbrio financeiro do sistema previdenciário nacional.​

Historicamente, a previdência social foi concebida para ser sustentada por três pilares: trabalhadores, empregadores e governo. Ela se tornou necessária depois de ultrapassada a fase inicial da previdência que tinha recolhimento de contribuições quase ausente de pagamentos de benefícios.  Essa estrutura tripartite visa garantir a solidez e a sustentabilidade do sistema, distribuindo equitativamente as responsabilidades de financiamento. No entanto, na prática, essa divisão nem sempre ocorre de forma equilibrada.​

Atualmente, as contribuições previdenciárias dos empregados variam entre 7,5% e 14% de seus salários, conforme a faixa salarial. Por outro lado, os empregadores contribuem com 20% sobre o valor das remunerações pagas a cada mês aos seus empregados. Essa estrutura de contribuição demonstra uma disparidade em relação à proposta de divisão equitativa de 1/3 para cada ente., embora se aproxime dos 30 %. Esses 30% sobre o percentual estimado do PIB que cabe aos trabalhadores (que engloba as contribuições patronais) seria de cerca de R$ 1,35 trilhões de reais em 2023, tomando como base a participação de 50% do PIB da categoria salários.

Em 2023, o PIB do Brasil chegou a R$ 10,9 trilhões, consolidando-se como a maior economia da América do Sul e a oitava do mundo (uma bobagem que os economistas não expressam na conta correta do PIB per capita). Esse dado reforça a capacidade econômica do país em sustentar um sistema previdenciário sólido, desde que haja uma gestão pública não ideológica e uma distribuição justa das responsabilidades de financiamento.​ Se olharmos para as informações do Tesouro, temos que em 2023, o déficit conjunto dos regimes de previdência administrados pela União alcançou R$ 428 bilhões, resultantes de receitas de R$ 638 bilhões e despesas de R$ 1,066 trilhão. Mas, se de fato considerássemos a divisão tripartide, a cada ente caberia uma responsabilidade de cerca de R$ 353,3 bilhões; o que aconteceu foi que cada ente (trabalhador e empregador) recolheu, teoricamente, R$ 319 bilhões. Isso nos mostra que o propalado déficit seria de apenas R$ 50 bilhões, em que pese nessa conta olharmos uma contribuição distorciva na conta dos empregadores (20%) e trabalhadores, provavelmente menos do que a metade dos empregadores. Isso não importa muito porque a fatura final fica por conta dos trabalhadores, já que as empresas repassam seus custos aos preços ou demitem para manterem sua margem de lucro.

O governo federal, que deveria ser um dos principais financiadores do sistema, não cumpre integralmente com sua parcela de contribuição. Essa omissão está sendo rotulada como “déficit”, mascarando a real origem do desequilíbrio financeiro da previdência.​ Situação constrangedora seria o próprio pagamento do governo relativa à sua contribuição previdenciária que deveria, para seus funcionários, ser de 10% e como empregador de mais 10% e como ente próprio outros 10%, na dimensão salutar de contribuição de cerca de 30% por trabalhador.

Mas o inferno orçamentário também abriga coisas diabólicas como isenções e recolhimentos em atraso que geralmente abarrotam os escaninhos jurídicos da receita federal. Isenções e desonerações fiscais: Alguns setores econômicos recebem incentivos fiscais que reduzem ou eliminam a obrigação de contribuição previdenciária.​ Evasão e inadimplência: Empresas e indivíduos que não cumprem com suas obrigações contributivas, seja por dificuldades financeiras ou por tentativa de evasão fiscal.​

É importante destacar que a questão do envelhecimento populacional, frequentemente apontada como a vilã do déficit previdenciário, não é, de fato, fator de desequilíbrio previdenciário. O que realmente importa é se o Produto Interno Bruto (PIB) do país suporta as despesas previdenciárias. Observa-se que a contribuição previdenciária, em termos percentuais do PIB, tem se mantido relativamente constante ao longo dos anos, conforme se depreende das Contas do Tesouro em seu relatório COFOG (média de 15% PIB entre 2020 e 2022). Se envelhecermos além da conta, duas saídas de mercado se apresentam naturalmente: a imigração voluntária e bem-vinda ou a recuperação do PIB pela produtividade.

O verdadeiro desafio reside na informalidade do mercado de trabalho brasileiro. Um número significativo de trabalhadores atua na informalidade, não contribuindo para o sistema previdenciário. Curioso, contudo, é notar que, mesmo com essa informalidade, o PIB formal do país é suficientemente robusto para gerar as contribuições necessárias para a manutenção da previdência, basta considerar o montante alocado à previdência.​

Portanto, ao invés de focarmos exclusivamente no suposto déficit previdenciário, é fundamental direcionarmos nossos esforços para combater a informalidade no mercado de trabalho e assegurar que todos os entes – trabalhadores, empregadores e governo – cumpram com suas obrigações contributivas. Somente assim poderemos garantir a sustentabilidade e a justiça do nosso sistema previdenciário, sem necessidade de reformas maquiavélicas que invariavelmente atinge de morte os aposentados presentes e futuros.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

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Leia também:

O que o deficit da previdência significa para a população em geral?

Desigualdade e crescimento econômico: uma análise crítica das ideias de Stiglitz

Marco Aurélio Bittencourt

A desigualdade, um dos temas mais debatidos na economia globalizada, apresenta-se como um obstáculo para o crescimento e a estabilidade econômica. Joseph Stiglitz, renomado economista e laureado com o Prêmio Nobel, dedicou grande parte de sua obra acadêmica a essa questão complexa e multifacetada. Em seus trabalhos, ele desconstrói a crença de que o crescimento econômico, por si só, impactaria positivamente a vida de todos os cidadãos. Stiglitz argumenta que políticas que favorecem os ricos tendem a perpetuar a disparidade econômica, criando um ciclo vicioso que concentra riqueza e oportunidades nas mãos de uma minoria privilegiada. Ele retorna ao tema em seu artigo “Inequality and Economic Growth”, sobre o qual tecerei algumas considerações.

Stiglitz demonstra que a desigualdade de renda é um fenômeno generalizado nas economias mais desenvolvidas. É nesse contexto que ele enfatiza a busca por renda, definida como a obtenção de renda não pela criação de riqueza, mas sim pela apropriação de uma fatia maior da riqueza já existente. Essa captura do poder político pelos mais ricos, que implantam políticas em seu próprio benefício, invalida a hipótese do gotejamento, segundo a qual os benefícios concedidos aos ricos acabariam “pingando” para os demais agentes da economia. Pelo contrário, o que se observa é uma concentração de renda cada vez maior.

Concordo com Stiglitz que a busca desenfreada por renda é um dos principais motores da crescente desigualdade, impactando diretamente a alta dos rendimentos dos mais ricos e minando a teoria da produtividade marginal da distribuição de renda. Afinal, se a riqueza é apenas apropriada e não criada, a parcela que cabe aos menos favorecidos diminui, agravando a disparidade. No entanto, a análise de Stiglitz precisa ser complementada com uma investigação mais profunda sobre como a aversão ao risco, arraigada em diversas culturas, influencia a estagnação econômica e a nova estrutura produtiva que vem crescendo em favor do comércio e serviços onde se alojam multidões de baixa produtividade.

Culturas que privilegiam a estabilidade em detrimento da ousadia podem acabar favorecendo projetos conservadores e de baixo risco, o que, em última instância, pode prejudicar a inovação e, ironicamente, intensificar a busca por renda. Essa aversão ao risco se manifesta na resistência a investimentos em novas tecnologias, na preferência por setores tradicionais da economia e na dificuldade de implementar reformas estruturais. No Brasil, por exemplo, a aversão ao risco pode ser observada na alta concentração de investimentos em ativos de renda fixa e na relutância em investir em setores com maior potencial de crescimento, mas também com maior risco, como o setor de tecnologia.

Do lado da estrutura produtiva, é evidente que o padrão de emprego e de produção se alinha com a tendência global de terceirização da economia. Nos EUA, como mostra Parkin em seu livro de Economia, a produção agrícola representa cerca de 5% da produção americana, a indústria cerca de 20% e os serviços e comércio os restantes 75%. No lado do emprego, Parkin avalia o capital humano dos EUA: trabalhadores com ensino superior representam cerca de 23% da força de trabalho, aqueles com ensino médio completo cerca de 60%, enquanto os que não concluíram o ensino médio somam cerca de 10% e aqueles com menos de 5 anos de ensino fundamental cerca de 5%. É fácil deduzir que os profissionais de nível superior se concentram nas atividades mais produtivas, como a indústria e os serviços de alta tecnologia, enquanto a maioria dos trabalhadores com ensino médio se dirige ao setor de comércio e serviços, caracterizado por baixa produtividade e baixos salários. No Brasil, essa tendência de terceirização da economia e concentração de trabalhadores com baixa qualificação no setor de serviços contribui para a persistência crescente da desigualdade onde o piso seria o salário mínimo.

Stiglitz também se debruça sobre a relação complexa entre políticas monetárias e o valor dos ativos, defendendo que políticas que resultam em taxas de juros baixas podem inflar artificialmente o valor de ativos fixos “improdutivos”, como imóveis e ações. Embora concorde que essa valorização de ativos improdutivos possa exacerbar a desigualdade, permitindo que os mais ricos acumulem riqueza de forma desproporcional, discordo da afirmação de que a redução da taxa de juros, por si só, gere um aumento real da riqueza. Na verdade, o que impulsiona a economia de forma sustentável é o efeito relativo da taxa de juros, ou seja, a diferença entre as taxas para diferentes agentes e setores. É essa diferença que estimula o investimento produtivo, a inovação e, consequentemente, o crescimento econômico.

Outro ponto crucial na análise da desigualdade reside na influência das instituições e da política. Stiglitz acertadamente aponta que instituições e políticas distorcidas, que favorecem os ricos em detrimento da maioria da população, tendem a perpetuar a disparidade de renda, criando um sistema injusto e excludente. No entanto, sua análise peca ao negligenciar a importância da mudança estrutural na economia, especialmente o crescimento exponencial do setor de serviços, caracterizado por sua baixa produtividade, como um fator determinante na dinâmica da desigualdade. Esse crescimento desproporcional do setor de serviços, em detrimento de setores mais produtivos, pode gerar um desequilíbrio na economia, impactando a distribuição de renda e a geração de empregos de qualidade.

A desigualdade, como bem aponta Stiglitz, tem um alto custo, não apenas em termos de justiça social, mas também em termos de crescimento econômico e estabilidade. Nesse ponto, concordo plenamente com a necessidade de políticas públicas eficazes que busquem reduzir a disparidade econômica, promovendo a igualdade de oportunidades e garantindo que os frutos do crescimento sejam compartilhados de forma mais justa. Stiglitz cita ainda a diferença salarial entre trabalhadores, destacando o afastamento espetacular dos chamados Executivos (CEOs) em relação ao salário médio. Ele não consegue ver qualquer relação com a produtividade, que agora faz crer ser uma boa teoria, mas desconsidera os pactos legítimos entre o CEO e o dono da empresa. O caso dos CEOs ilegítimos não se trata de economia, mas de punição legal.

Em suas prescrições de política, Stiglitz indica: investimentos em educação, aumento do salário mínimo, fortalecimento dos sindicatos e controle salarial dos executivos. Todavia, tais medidas precisam ser implementadas com cautela e bom senso, sempre respeitando a liberdade econômica e o princípio da meritocracia. Nos EUA, o problema de inclusão social não parece ter a dimensão que aponte a necessidade de políticas inclusivas arbitrárias. Discordo, portanto, da intervenção desnecessária na remuneração de executivos, desde que esta seja “legítima e justa”, baseada na produtividade e no mérito individual, e que respeite as negociações entre executivos e donos das empresas, que certamente elevam a remuneração desses executivos muito além da sua “produtividade”. Quanto aos sindicatos, a nova estrutura produtiva explica em grande parte o enfraquecimento dos sindicatos. A globalização também seria mais uma razão para o enfraquecimento dos sindicatos. Afinal, a intervenção estatal excessiva pode sufocar a iniciativa privada, desestimular o empreendedorismo e, em última instância, prejudicar o crescimento econômico.

É preciso também questionar o sobreinvestimento em educação superior, sem que haja um redirecionamento adequado de políticas públicas para a melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio. A distribuição do capital humano na economia, com um número crescente de graduados e um déficit de profissionais qualificados em áreas técnicas e de nível médio, demonstra um limite estrutural para a absorção de mão de obra com nível superior, embora também venha crescendo; o que faz sugerir que mais educação se associa a mais produtividade e que isso se espraie por todos os setores da economia. Diante dessa realidade, torna-se imperativo implementar políticas que promovam a ascensão de trabalhadores de nível médio para cargos de maior remuneração e que, ao mesmo tempo, garantam o acesso à educação superior de qualidade para aqueles que realmente demonstrarem aptidão e interesse.

Em síntese, concordo com a crítica contundente de Stiglitz à “economia de gotejamento” e à ilusão de que o crescimento econômico, por si só, é capaz de resolver o problema da desigualdade. No entanto, a análise dessa questão complexa precisa ser aprofundada e enriquecida, considerando fatores como a aversão ao risco, o efeito relativo das taxas de juros, a mudança estrutural na economia e o papel crucial das instituições. As políticas para combater a desigualdade devem priorizar a igualdade de oportunidades, mas sem sacrificar a liberdade econômica e a remuneração justa de executivos.

Por fim, no que concerne às propostas políticas de Stiglitz para combater a desigualdade, minha discordância é profunda. Embora abordem o problema, elas se aproximam perigosamente do autoritarismo, como a intervenção arbitrária no mercado de executivos e um apoio a um fortalecimento elusivo dos sindicatos. É fundamental combater a corrupção com rigor e imparcialidade, mas cortes indiscriminados em salários, sem o devido entendimento dos fatores envolvidos diretamente com a questão, são inadmissíveis. Em relação à educação, questiono a necessidade de maiores investimentos sem que haja uma reestruturação profunda do sistema educacional em suas prioridades. O desafio consiste em adequar o ensino médio e profissionalizante à realidade estrutural do país, formando profissionais qualificados para atender às demandas do mercado de trabalho. No mais fica a certeza que faço bem em me afastar de uma visão progressista que levanta questões pertinentes, mas endereçam suas políticas em direção ao arbítrio e autoritarismo.

Leia o outro artigo do autor:

Mercado Nervoso: você acredita? Sim, eu acredito!

Leia também a Carta de Conjuntura do IPEA (Desigualdade de renda):

Desigualdade de renda | Carta de Conjuntura


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email. 0171969@etfbsb.edu.br 

Mercado Nervoso: você acredita? Sim, eu acredito!

Marco Aurélio Bittencourt

Acredito no mercado. A expressão “mercado nervoso”, frequentemente utilizada em momentos de incerteza econômica, carrega consigo uma conotação negativa que pode distorcer sua realidade. Essa visão ignora a essência do termo e sua intrínseca relação com a conjuntura política e econômica do país. O mercado não é uma entidade abstrata ou um conjunto de indivíduos movidos apenas por interesses egoístas; ele é um reflexo das condições e desafios que uma nação enfrenta, especialmente quando um plano previamente acordado se vê ameaçado, seja por fatores internos ou externos.

O arcabouço político e jurídico, aliado às políticas fiscais e monetárias, desempenha um papel crucial na configuração de um mercado inclusivo ou extrativista. No contexto brasileiro, a estrutura legal e as políticas econômicas, ao invés de promoverem inclusão e desenvolvimento sustentável, perpetuam um modelo extrativista. Isso se reflete nas decisões políticas e na distribuição orçamentária, onde regulamentações muitas vezes favorecem a exploração de recursos em detrimento do bem-estar social e da justiça econômica. Essa dinâmica desencadeia instabilidade social, mas exerce pouco impacto direto sobre o mercado na sua totalidade.

A busca por um caminho unificado e consensual é fundamental para a estabilização do mercado. Disputas e incertezas em relação aos rumos a serem tomados geram o “mercado nervoso”, caracterizado pela volatilidade e pela imprevisibilidade. Esse nervosismo é, muitas vezes, aleatório, dificultando a identificação de responsáveis específicos. A intensidade da instabilidade está diretamente ligada à resiliência do modelo vigente. Se o modelo é resiliente, o ruído no mercado é reduzido. No entanto, quando a resiliência é baixa e grupos opositores possuem igual força, as disputas tendem a se prolongar, intensificando o nervosismo. A falta de diretrizes claras inibe investimentos, impede o crescimento e perpetua a instabilidade.

A especulação surge, então, nesse cenário de indefinição. Ela também emerge quando agentes econômicos tentam afastar-se das balizas consensuais que sustentam o mercado, buscando objetivos inapropriados ou irrealistas. É como se, em um momento inadequado, tentassem alcançar metas que ultrapassam os acordos estabelecidos. Essa busca por vantagens especulativas ocorre porque os demais participantes do mercado reconhecem que tais pleitos estão fora das diretrizes previamente acordadas. Aqueles agentes fundamentais nos acordos políticos que agem de forma desarmônica estão cientes de que não enfrentarão as consequências diretas de suas ações e almejam algum tipo de retorno político. Nesse momento, cabe aos agentes privados, diluídos pelo mercado, atuarem especulativamente, como na venda a um preço fora do mercado aos agentes que embarcaram na retórica política. Essa compra de dólares em um momento de “rebeldia” pode, portanto, ter suas razões. Contudo, o lucro individual não é o verdadeiro vilão da situação, pois este sempre se manifestará em algum grau seja qual for o contexto.

Recentemente, o pronunciamento do Ministro da Economia, Fernando Haddad, no final de novembro de 2024, ilustrou a complexa inter-relação entre política e economia. Ele sugeriu a existência de duas facetas do governo: uma que adota os acordos estabelecidos e outra que flerta com bravatas em busca de retorno político. Esse discurso foi interpretado como uma abertura nas manobras políticas do governo, criando um terreno propício para estratégias de ganho financeiro rápido, o que, por sua vez, amplificou as incertezas e alimentou a especulação. Espera-se que a prudência prevaleça no mercado, mantendo os acordos estabelecidos enquanto se aguarda práticas especulativas. Assim, o nervosismo do mercado tenderá a se dissipar, sendo que a desvalorização do dólar seguirá dependendo, como sempre dependeu, da dinâmica básica de oferta e procura por divisas.

Em conclusão, a expressão “mercado nervoso” descreve momentos de incerteza e volatilidade que refletem as dificuldades enfrentadas pela economia em busca de estabilidade. Podemos identificar três cenários que caracterizam esse “nervosismo”:

a) Busca por um novo modelo : O embate entre forças antagônicas — aquelas que desejam mudança e aquelas que buscam manter o status quo — se equilibra em poder e influência. O nervosismo intensifica-se quanto mais prolongadas forem as disputas, gerando incertezas sobre o futuro.

b) Resiliência de grupos dominantes : Mesmo diante da oposição, grupos dominantes conseguem manter o controle e resistir à pressão por mudanças. Nesse caso, o nervosismo tende a ser passageiro e menos intenso, uma vez que a estabilidade — embora injusta — se mantém.

c) Consagração de um modelo em desequilíbrio : Um modelo econômico e político consagrado enfrenta um contexto de desequilíbrio significativo. Sua consolidação depende de regras legais; quando estão em discussão final, a prática de “jabutis” desperta preocupação, criando um breve período de turbulência. Neste cenário, o nervosismo é residual e de curta duração, marcando uma transição para um mercado mais tranquilo. No entanto, essa “calmaria” pode significar a consolidação de um modelo que aprofunda a desigualdade e perpetua a pobreza.

Analisar o “mercado nervoso” e suas origens é crucial para compreender as dinâmicas econômicas e políticas do Brasil. Essa reflexão nos permite perceber que, muitas vezes, o problema não reside apenas nos “jabutis”, mas nos próprios acordos que, por sua natureza, distanciam-se de soluções efetivas para os graves problemas que aprisionam a sociedade na desigualdade e na pobreza. Assim, ao compreendermos as raízes do nervosismo do mercado, podemos trabalhar em direção a um futuro mais estável e justo, onde o desenvolvimento econômico seja realmente inclusivo e sustentável.

Dessa forma, a crença no mercado é também a crença em sua capacidade de se transformar e se adaptar, por meio do entendimento e da ação consciente de todos os envolvidos na sua dinâmica.


Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


Egoísmo x Altruísmo: um debate sobre a natureza humana e as regras que nos regem

Marco Aurélio Bittencourt

A Teoria da Escolha Pública, um conceito que permeia a ciência política e a economia, propõe que as ações humanas, inclusive na esfera pública, são motivadas, em grande parte, pelo interesse próprio. Essa ideia, à primeira vista, pode parecer cínica e desanimadora, contrastando com a crença de que as políticas públicas devem visar o bem comum e a justiça social.

Mas será que o egoísmo e o altruísmo são realmente forças opostas e irreconciliáveis?

É inegável que a maioria das pessoas, incluindo cientistas e intelectuais, possuem bons sentimentos e buscam contribuir para um mundo melhor. A evolução da humanidade, com avanços significativos em áreas como saúde, educação e tecnologia, especialmente após a Revolução Industrial, sugere que o “bem”, de alguma forma, tem prevalecido.

No entanto, a boa intenção por si só nem sempre é suficiente para garantir a cooperação e o alcance do bem comum. A religião, por exemplo, apesar de pregar valores como a compaixão e a solidariedade, muitas vezes esbarra na dificuldade de traduzir esses valores em ações concretas no mundo real.

Para entender melhor essa complexidade, vamos analisar alguns exemplos práticos:

1. Regras de Trânsito:

Nos Estados Unidos, a regra básica em muitos cruzamentos é simples: quem chega primeiro, tem o direito de passar. Essa norma, aparentemente trivial, gera um efeito notável no comportamento dos motoristas. Ao saberem que serão respeitados em sua ordem de chegada, os condutores tendem a agir de forma mais cooperativa e paciente, resultando em um trânsito mais fluido e seguro.

No Brasil, a regra da preferencial define quem tem o direito de passagem nos cruzamentos. No entanto, em cruzamentos complexos com alto volume de tráfego, a identificação da preferencial pode não ser trivial, o que pode levar a confusões e dificuldades em determinar a ordem de passagem. Embora a regra exista, a falta de clareza em algumas situações, em conjunto com a ausência do hábito de ceder a passagem mesmo quando se tem a preferência, pode gerar conflitos e desordem no trânsito.

Comparando os dois sistemas, podemos observar como regras claras, simples e bem definidas influenciam o comportamento das pessoas, incentivando a cooperação e o respeito mútuo. No caso americano, a simplicidade da regra “quem chega primeiro, passa primeiro” contribui para um sistema mais eficiente e harmonioso. No Brasil, a complexidade de alguns cruzamentos e a falta de um costume de ceder a passagem, mesmo tendo a preferência, podem dificultar a fluidez do tráfego.

Uma sugestão interessante para o caso brasileiro seria a implementação de um adendo à regra da preferencial: em situações de congestionamento, independentemente de cruzamentos, a regra “quem chega primeiro, passa primeiro”, alternadamente entre as filas, poderia ser aplicada. Isso tornaria o sistema mais claro, justo e eficiente, similar ao modelo americano. Claro, aqui a suposição implícita é de que todos estariam sujeitos a, no contexto da regra válida hoje para o Brasil, ambas situações: estar na preferencial ou estar aguardando todos da preferencial passarem. Nem sempre encontramos uma situação propicia à mudanças pontuais com sucesso pleno como me parece ser o caso da regra de transito.

2. Mudança na Jornada de Trabalho (6/1 para 4/3):

A proposta de reduzir a semana de trabalho de 6 para 4 dias úteis, mantendo a remuneração dos trabalhadores, é outro exemplo que ilustra a complexa relação entre egoísmo, altruísmo e o papel do Estado.

A princípio, a semana de 4 dias parece atender aos interesses individuais de todos:

  • Trabalhadores: Mais tempo livre para lazer, família e desenvolvimento pessoal.
  • Empresas: Potencial aumento da produtividade, redução de custos com energia e infraestrutura, e atração de talentos.
  • Governo: Melhora na qualidade de vida da população, estímulo à economia e possível redução de gastos com saúde pública (devido à redução do estresse e doenças relacionadas ao trabalho).

No entanto, a Teoria da Escolha Pública nos alerta para a necessidade de ir além das boas intenções e analisar os incentivos de cada ator, bem como os possíveis desafios e obstáculos para a implementação da semana de 4 dias.

Desafios e o Papel do Estado:

  • Custos para as empresas: A reorganização do trabalho, a contratação de novos funcionários e o investimento em novas tecnologias podem gerar custos para as empresas, especialmente para pequenas e médias empresas.
  • Risco de redução salarial: É preciso garantir que a redução da jornada não implique em redução salarial, o que prejudicaria os trabalhadores.
  • Dificuldade de adaptação: Alguns setores da economia podem ter dificuldades em se adaptar à semana de 4 dias, especialmente aqueles que exigem disponibilidade contínua.
  • Desemprego: A mudança pode levar à perda de empregos em alguns setores, caso as empresas não consigam manter a produtividade com a redução da jornada.

Para enfrentar esses desafios e garantir que a semana de 4 dias seja benéfica para todos, o Estado tem um papel fundamental:

  • Garantir a proporcionalidade salarial: A legislação deve assegurar que a redução da jornada não implique em redução salarial.
  • Incentivar a flexibilidade: As regras para a organização da jornada de trabalho devem ser flexíveis, permitindo que empresas e trabalhadores negociem a melhor forma de implementar a semana de 4 dias.
  • Criar mecanismos de apoio: O governo pode oferecer incentivos fiscais e programas de apoio para auxiliar as empresas na adaptação à nova jornada.
  • Monitorar os impactos da mudança: O governo deve acompanhar e avaliar os impactos da semana de 4 dias no mercado de trabalho e na economia, ajustando as políticas públicas quando necessário.
  • Investir em requalificação profissional: Oferecer programas de requalificação para os trabalhadores que eventualmente perderem seus empregos devido à mudança na jornada de trabalho.

Conclusão:

A Teoria da Escolha Pública nos convida a repensar a relação entre egoísmo e altruísmo, mostrando que esses conceitos não são necessariamente excludentes. Ao entendermos como as pessoas tomam decisões e como as regras influenciam o comportamento humano, podemos construir uma sociedade mais justa, eficiente e cooperativa, onde o interesse individual e o bem comum caminhem lado a lado, com a lei como um importante instrumento para a promoção da solidariedade.

Assim como no caso das regras de trânsito, a semana de 4 dias exige uma análise cuidadosa dos incentivos e a criação de regras claras e eficazes para garantir que a mudança seja benéfica para todos. O Estado tem um papel fundamental nesse processo, atuando como mediador e promotor do bem-estar social. Evidentemente, numa democracia, a questão seria resolvida no voto.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


A inteligência artificial e o futuro da humanidade: um debate aberto

Marco Aurélio Bittencourt

A inteligência artificial (IA) tem se tornado onipresente em nossas vidas, moldando a maneira como interagimos com o mundo e com as outras pessoas. Se, por um lado, vislumbramos um futuro com soluções para problemas complexos e melhorias na qualidade de vida, por outro, nos deparamos com questões cruciais sobre o futuro da humanidade, a liberdade individual e o próprio significado de ser humano. O termo “inteligência artificial” em si já gera debate, questionando a natureza da inteligência e os limites da IA. Afinal, a inteligência humana é fruto de milhões de anos de evolução, inerente aos organismos vivos e não às máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Alan Turing, o pai da computação, ao reconhecer a existência de problemas não computáveis, já demonstrava a limitação da lógica digital, um obstáculo intransponível para máquinas que tentam replicar a complexidade da intuição, criatividade e emoção, inerentemente humanas.

Essa complexidade inerente à mente humana é o que Miguel Nicolelis, renomado neurocientista brasileiro, explora em sua Teoria do Cérebro Relativístico (TCR). Segundo ele, o cérebro não se limita à lógica binária dos computadores; opera de forma relativística, criativa e imprevisível, construindo seu próprio “espaço-tempo” interno para processar informações. A TCR reforça a singularidade da inteligência humana e questiona a possibilidade de uma IA realmente inteligente e autônoma, como a que muitos preveem com a singularidade tecnológica. Essa visão de um futuro em que algoritmos ditam nossas vidas e máquinas controlam a sociedade é perturbadora e exige profunda reflexão.

Vivemos em uma era onde algoritmos influenciam cada vez mais nossas escolhas, desde compras online até as notícias que consumimos. Essa influência silenciosa e persuasiva representa um risco à liberdade individual, demonstrando o poder dos algoritmos e a erosão da liberdade. Quem controla esses algoritmos detém um poder imenso, podendo manipular comportamentos e moldar opiniões. A perda da autonomia e a submissão a uma lógica determinística imposta por máquinas ameaçam a essência do ser humano. A imersão no mundo digital e a adaptação constante à lógica das máquinas podem ter consequências profundas na forma como nossos cérebros funcionam, resultando na moldagem do cérebro e na perda de habilidades humanas.

Habilidades essenciais como a intuição, a criatividade, o pensamento crítico e a empatia podem ser atrofiadas em um ambiente dominado pela lógica binária e, talvez pela evolução analógica dessas criaturas forjadas por códigos, e principalmente pela busca constante por eficiência que faz parte do nosso arsenal de inteligência. A máquina poderia ser binária e analógica, mas há dúvida que possa incluir mais um elemento crucial que a aproximaria do cérebro humano: a complexidade.

Corremos o risco de nos tornarmos seres menos humanos, menos capazes de compreender a complexidade do mundo e de nos conectarmos com os outros. Diante desse cenário potencialmente distópico, a questão das mutações genéticas traz um elemento de imprevisibilidade, podendo representar uma luz no fim do túnel. As mutações, por sua natureza aleatória, podem conferir à humanidade uma saída inesperada, tornando-nos mais resilientes à influência das máquinas ou conferindo-nos novas habilidades cognitivas. No entanto, como eventos aleatórios ocorrem de forma imprevisível e tanto para o bem quanto para o mal, não se pode contar com a sorte para que o rumo do controle da vida seja resgatável.

Assim como o cérebro busca eficiência, as pessoas buscam preservar seus valores. Se a criatividade, a independência e outros aspectos da vida estiverem em perigo, a ação rebelde contra as máquinas será mais intensa quanto maior for a ameaça. Essa resistência, enraizada na capacidade de organização de grupos minoritários com interesses bem definidos, pode ser crucial para evitar um futuro distópico, a menos que a maioria se una em torno da alienação. De fato, já hoje encontramos regiões, cidades ou países em que políticas educacionais restringem o uso de aparelhos digitais na escola.

É certo que as inovações despertam interesse, mas compreender sua oportunidade é ainda um achado no escuro. Se as máquinas dominarem essa área da inteligência humana, a luta se tornaria mais difícil, e talvez dois mundos convivam simultaneamente: o “atrasado” e o “moderno”, em uma relação de poder ainda incerta.

Resta saber se a convivência entre o “atrasado” e o “moderno” seria pacífica ou se o moderno absorveria o atrasado. Caminharíamos para uma senda intelectual mais arbitrária, um futurismo de cartomante. Sabemos, porém, que os valores democráticos só se mantêm pelo equilíbrio entre os poderes, que, com freios e contrapesos (checks and balances), impedem que um poder se sobreponha aos demais e derrube os princípios constitucionais fundamentais e as cláusulas pétreas. Portanto, creio que um mundo distópico não prevalecerá.

A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, com potencial de transformar o mundo de maneiras inimagináveis. No entanto, seu desenvolvimento e aplicação exigem cuidado, responsabilidade e uma reflexão profunda sobre seus impactos na humanidade. A busca desenfreada pela eficiência e pelo progresso tecnológico não pode se dar às custas da liberdade, da individualidade e dos valores que nos tornam humanos. É preciso garantir que a IA seja utilizada para o bem da humanidade, e não para sua subjugação. O futuro da nossa espécie depende das escolhas que fazemos hoje, e dentre elas está a liberdade que estamos perdendo por não nos posicionarmos criticamente sobre o caminho que a própria humanidade toma.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.