Arte e Nossa Realidade

Marco Aurélio Bittencourt

O debate sobre o papel das artes na nossa cultura possui uma dinâmica complexa e interdependente. Podemos nos perguntar se a cultura molda as expressões artísticas ou se são as artes que ativamente influenciam a configuração cultural. Acredito que ambas as direções causais são válidas; tanto a arte   registrando o presente, quanto sinalizando tendências futuras de nossa sociedade. Contudo, a tapeçaria cultural se torna ainda mais intrincada pela natureza multifacetada da arte, que se desdobra em diversas manifestações como a pintura, a literatura, o cinema, a música, o teatro e muitas outras formas de expressão cultural. Cada uma dessas vertentes pode exercer essa influência bidirecional ou atuar em apenas um sentido em diferentes momentos históricos, ou até mesmo em ambos simultaneamente. Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o cinema brasileiro, não como um especialista, mas como um observador que se intenciona atento.

Minha memória do cinema brasileiro me leva à época da Companhia Vera Cruz, um período significativo para a nossa cinematografia. De fato, a ambição de criar uma “Hollywood brasileira” se evaporou, ficando na memória filmes como o Cangaceiro e Sinhá Moça nos primórdios dos anos de 1950. O primeiro dirigido por Lima Barreto e o segundo por Tom Payne (consultas ao google informam os detalhes).

Apesar da constante presença de filmes estrangeiros, o cinema nacional experimentou seu impulso criativo a partir da década de 1930. Foi nesse período de 1930/40 que surgiu uma produtora, a Cinédia, que iniciou a produção de filmes que dariam origem a um gênero característico: as chanchadas. Essas produções alcançaram grande popularidade nas décadas de 1940 e 1950, perdendo gradualmente sua força nos anos 1960.

As chanchadas eram filmes que exploravam temas da cultura popular, com destaque para o Carnaval, e apresentavam narrativas que combinavam elementos dramáticos e humorísticos, frequentemente incluindo números musicais. Nesse contexto, emergiu uma figura que se tornaria um ícone da cultura brasileira: Carmen Miranda, que participou de filmes como “Alô, Alô, Brasil” e “Alô, Alô, Carnaval”.

A Companhia Vera Cruz foi uma tentativa frustrada de superar a concorrência internacional, apartada da nossa cultura. Embora a Cinédia tenha sido a pioneira e dominante por muitos anos, a Companhia Vera Cruz surgiu em um contexto diferente, com a ambição de alcançar um patamar de produção mais sofisticado e com reconhecimento internacional, inspirada no modelo de Hollywood. Enquanto a Cinédia focava em um cinema mais popular e comercial, com as chanchadas como carro-chefe, a Vera Cruz buscava uma produção com maior investimento e apelo artístico, embora tenha encontrado dificuldades em se sustentar financeiramente. Um artista solitário também teve papel importante em nossa cinematografia: O “caipira” Mazzaropi dirigiu seu primeiro filme, “Chofer de Praça”, em 1958. A característica básica dos filmes de Mazzaropi era registrar a visão da realidade brasileira a partir de um olhar de uma pessoa humilde, ele próprio numa versão jeca engraçada. Continuou o mesmo até falecer em 1981.

A partir do final da década de 1950, consolidou-se no país uma corrente cinematográfica que se tornou uma das mais relevantes da nossa história: o Cinema Novo. Essa corrente era marcada por um forte engajamento político e direcionava críticas ao panorama do cinema brasileiro da época, que sofria uma considerável influência do cinema norte-americano. Ademais, as produções do Cinema Novo buscavam expor a realidade da pobreza enfrentada pela população brasileira, questionando os entraves sociais, como a desigualdade e a marginalização da sociedade, dirigida principalmente aos descendentes da escravidão não amparados pela sociedade em geral. Pelo contrário; reforçavam em pequenos atos que lhes pareciam normais constantemente sua marginalização – estão aí o quarto de empregada, o elevador social e tantos outros arranjos a mostrar a nítida segregação. As obras desse movimento também se alinhavam com ideias que defendiam os interesses da classe trabalhadora, e a veemente denúncia da situação do país realizada por essa corrente que ficou conhecida como a “estética da fome”.

Assim, houve uma transição da chanchada para o Cinema Novo. A chanchada, com sua abordagem mais voltada para o entretenimento do público e menos focada em uma crítica direta da realidade, cedeu espaço para uma perspectiva mais analítica e engajada. Diretores importantes começaram a se destacar no cenário nacional, como Nelson Pereira dos Santos, cujo filme “Rio 40 graus” apontava para os problemas sociais brasileiros. Esse lançamento ocorreu em 1955, após o filme ter sido retido pela censura.

Naquela época, o jovem crítico de cinema baiano Glauber Rocha demonstrou interesse pelo trabalho de Nelson e se mudou para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar com ele. Glauber efetivamente se tornou assistente de direção de Nelson em seu filme seguinte, “Rio, Zona Norte” (1957), que narra a história do sambista Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, inspirado na vida de Zé Kéti, que também compôs a trilha sonora. Em reconhecimento, Nelson realizou a montagem de “Barravento” (1962), o primeiro longa-metragem de Glauber. “Rio, 40 Graus” e “Rio, Zona Norte” são considerados filmes fundamentais para o Cinema Novo, e Nelson, tendo dirigido ambos e participado da estreia de Glauber, rapidamente se tornou uma figura paterna para os cineastas do movimento. Tivemos ainda grandes nomes nessa linha do cinema novo: Ruy Guerra com Os Fuzis (1964) – que retrata a seca e a violência no Nordeste e Leon Hirszman com São Bernardo (1972) – Adaptação da obra de Graciliano Ramos.

No meio do caminho do cinema novo Anselmo Duarte manteve o ritmo cinematográfico da Vera Cruz e nos brindou com o seu premiadíssimo filme o Pagador de Promessa em 1962 – ganhou a Palma de Ouro em Cannes. De certo, a maior promoção do cinema brasileiro.

Nessa trajetória do cinema novo surgiram nomes que não se engajavam diretamente a uma corrente política, como Roberto Farias que dirigiu o filme o Assalto ao Trem Pagador em 1963. A produção de “O Assalto ao Trem Pagador” foi realizada pela Herbert Richers Produções Cinematográficas. Herbert Richers que teve um papel de destaque na indústria cinematográfica brasileira, responsável por inúmeras produções, pela dublagem de filmes estrangeiros no Brasil e pelo conhecido canal 100 que nos brindava com imagens belíssimas do nosso futebol antes das exibições dos filmes. Vale citar ainda uma recordação viva de um filme chamado “O Rei Pelé”, lançado em 1962. Este filme, dirigido por Carlos Hugo Christensen, da vida de Pelé naquele momento era uma produção que misturava elementos de dramatização e documentário, reconstruindo a trajetória de Pelé até aquele ponto da sua carreira, com o próprio Pelé participando e interpretando a si mesmo em algumas cenas.

Vieram outros nessa mesma linha: Arnaldo Jabor com Toda Nudez Será Castigada (1973) – Uma adaptação da obra Nelson Rodrigues, Bruno Barreto com Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) – Uma adaptação de uma obra Jorge Amado e Hector Babenco com Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) – Um olhar sobre a violência e a infância marginalizada.

A influência do Cinema Novo se estendeu para documentários e teledramaturgia, notavelmente através das adaptações de Dias Gomes das obras de Jorge Amado. No cinema, a influência de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Mário de Andrade direcionou uma abordagem mais metafórica da realidade brasileira. Surgiram novos diretores, como Tizuka Yamasaki, que participou da produção do curta “Fala, Brasília” (1966). Contudo, um destaque importante foi o documentário de Glauber Rocha sobre a ascensão do clã Sarney ao governo do Maranhão, retratando um coronelismo arcaico sob uma roupagem ditatorial (Maranhão 1966). Joaquim Pedro de Andrade é uma referência importante pelo trabalho cinematográfico de Macunaíma. Podemos também citar Cacá Diegues, José Padilha, Meirelles e Walter Salles como nomes relevantes dessa trajetória.

Mas o que esses cineastas buscavam expressar? A trajetória do Cinema Novo apontava para a nossa realidade mais crua e vislumbrava um futuro que, de certa forma, olhava para o passado. Muitas vezes, a mudança parecia residir apenas na nova forma de apresentar os problemas, resultando em uma certa estagnação temporal de nossa realidade. Posteriormente, surgiram diretores que abordaram a ordem e a desordem dos valores morais e éticos, com um esforço para reorientar o comportamento social em direção a um mínimo de ética. Contudo, novamente pareceu haver uma certa paralisia no tempo. Observo o passado se repetindo no presente e no futuro, e filmes como “Central do Brasil”, “Bye bye Brasil”, “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus” e “O Mecanismo” representam o estágio atual da nossa cinematografia, uma arte talvez excessivamente presa ao presente que repete em seu futuro o passado que nos acorrenta.

Atualmente, dispomos de outro meio para apreciar filmes de qualidade: as plataformas de streaming. Essa facilidade de conexão com outras culturas nos proporciona novas perspectivas sobre temas antigos. Ao analisar produções de outros países através do streaming, como o filme tailandês “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra” e a minissérie turca “Enciclopédia de Istambul”, emerge um paralelo que lança luz sobre o nosso próprio estágio cultural. Essa comparação sugere que, sob a lente do cinema, o Brasil se assemelha mais à Tailândia em termos da priorização de questões éticas, indicando um possível estágio de desenvolvimento cultural relativamente similar, embora com a ressalva de que a Tailândia possa apresentar um quadro cultural mais coeso em certos aspectos. Em contraste, a Turquia parece exibir, através de sua produção, um estágio de desenvolvimento cultural mais avançado, com valores aparentemente mais consolidados e a busca de uma postura de integração em um mundo plural com todos os riscos que uma sociedade moderna oferece pelas escolhas individuais. A percepção de um quadro urbanístico na Tailândia que ecoa similaridades com o Brasil e um cenário em Istambul mais próximo ao europeu reforça essa leitura de diferentes estágios de desenvolvimento cultural refletidos em suas produções audiovisuais e, por extensão, em suas sociedades. Para mim, sob a perspectiva cinematográfica, claramente nos encontramos em um estágio civilizatório mais próximo ao da Tailândia, onde as questões éticas ainda são prioritárias, sugerindo um certo distanciamento de um patamar de desenvolvimento cultural mais ‘maduro’, como o da Turquia. Não é atoa que a Tailandia mostra um quadro urbanístico semelhante ao Brasil e Istambul ao Europeu. É o que penso, ao observar como nosso cinema, e por extensão nossa cultura, nos posicionam em relação a outros países, sugerindo um caminho a percorrer em nosso desenvolvimento cultural, mesmo reconhecendo as complexidades e nuances dessa comparação. Em última análise, o cinema, como forma de arte, não apenas reflete a realidade, mas também atua como um termômetro cultural, indicando nosso estágio presente e, por inferência, as possíveis trajetórias futuras de nossa sociedade. Fiz minhas escolhas para que alcancemos o estágio civilizatório europeu.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


Visite a página do colunista Marco Aurélio Bittencourt:

Marco Aurélio Bittencourt

Views: 13

Vargas e o orçamento: ditadura eficiente ou boas regras de gestão pública?

Marco Aurélio Bittencourt

A avaliação da Era Vargas nos coloca ainda hoje diante de vários paradoxos. Um deles nos coloca diante de uma questão central: a eficiência na gestão orçamentária seria um atributo exclusivo de regimes autoritários, ou o resultado da aplicação de boas regras de gestão pública, replicáveis em diferentes sistemas políticos? Para refletir sobre isso, consideremos a seguinte afirmação (expressa no livro Orçamento Público, Viana A., 1950):

Em todas as fases do processo orçamentário, é de justiça observar que o Sr. GETULIO VARGAS, pessoalmente, determinava a observância rigorosa de todos os preceitos regulamentares da boa administração financeira, jamais proferindo qualquer decisão sem a devida fundamentação legal preparada pelos órgãos especializados. Nesse particular, nenhum órgão interessado na realização de uma despesa obtinha, no regime ditatorial, despacho definitivo do Presidente antes da audiência dos demais órgãos incumbidos de zelar pela legalidade, necessidade e oportunidade do ato solicitado……É curioso e mesmo paradoxal constatar que toda a longa , esclarecida e contínua ação dos parlamentos imperiais e republicanos jamais conseguiu assegurar ao sistema orçamentário brasileiro a veracidade, integridade e eficiência que lhe imprimiu o regime ditatorial de GETÚLIO VARGAS, a partir de 1939. Reunindo de fato e de direito os mais vastos poderes da República, o Presidente VARGAS sempre procurou, no campo financeiro, o justo limite para exercê-los. A vertigem da glória de proporcionar ao país grandes empreendimentos … não perturbou o Presidente GETÚLIO VARGAS, que através da copiosa documentação de seus atos administrativos, demonstrou ser possível conciliar os impulsos criadores com a observância dos princípios fundamentais que regem as finanças públicas nas democracias. Essa atitude de severidade, respeito e interesse pelas instituições orçamentárias – de que posso dar testemunho, em virtude de colaboração técnica prestada ao seu Governo, durante seis anos consecutivos …. – merece ser compreendida por quantos o combatem e o admiram.” (Viana, A., Págs. 35 e 36, 1950.)

É comum que ditaduras políticas se manifestem também como econômicas, aparelhando o Estado para privilegiar grupos de interesse por meio de mecanismos orçamentários ou extraorçamentários. Nesse contexto, o testemunho de Viana (1950) sugere que a observância rigorosa de preceitos regulamentares pode, ao menos em parte, mitigar a influência de interesses escusos, impondo uma disciplina que nem sempre encontra espaço nos arranjos mais flexíveis da democracia.

O texto retrata a gestão Vargas como um caso singular na história da administração pública brasileira, onde a eficiência e a probidade teriam florescido sob um regime autoritário, contrastando com as supostas ineficiências dos parlamentos. Contudo, é crucial questionar se essa eficiência é inerente à ditadura ou se reflete a adoção de práticas administrativas sólidas.

Afinal, a aplicação de regras e procedimentos, embora importante, nunca é totalmente neutra. As relações de poder e as ideologias dominantes permeiam a interpretação e a execução dos atos administrativos. Além disso, o contexto da modernização do Estado brasileiro na década de 1930 pode ter influenciado a percepção da “eficiência” da gestão varguista, que pode ter se beneficiado da centralização do poder e da capacidade de implementar decisões de forma rápida e sem oposição. No entanto, o autor contrapõe a essa visão o fato de que Getúlio Vargas documentou todos os seus atos administrativos, o que indicaria uma preocupação em registrar documentalmente que seguia os princípios orçamentários e financeiros consagrados.

Portanto, a pergunta sobre Vargas e o orçamento nos convida a um debate mais aprofundado: a eficiência administrativa é privilégio da ditadura, ou resultado de boas regras de gestão que podem e devem ser aplicadas em qualquer sistema político? Longe de apresentar uma resposta definitiva, este artigo busca estimular a reflexão crítica sobre a complexa herança de Vargas e os desafios da administração pública no Brasil. Todavia, a inferência conclusiva me parece óbvia: uma democracia fortalecida teria que seguir à risca o comportamento presidencial como Gestor (na verdade sua única atribuição de realce) a semelhança de Getúlio Vargas que tanto a exerceu no Estado Novo, bem como na sua Gestão Presidencial que resultou em seu suicídio. Foi-se uma vida e ficou o exemplo da moralidade pública. Talvez, essa tenha sido a maior preocupação dos seus algozes. E digo NÃO aos clichês!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br.


Acesse a página do colunista Marco Aurélio Bittencourt:

Marco Aurélio Bittencourt

Saiba mais sobre Getúlio Vargas:

Getúlio Dornelles Vargas

Views: 22

A Falácia da Gastança Excessiva: a real crise fiscal e o desmonte dos serviços públicos

Marco Aurélio Bittencourt

Desmascarado o mito do déficit da Previdência Social (Aqui), foco agora na narrativa da “gastança excessiva” do governo; um pretexto para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e o desmonte dos serviços públicos, tendo como alvo o povo brasileiro – esse coitado, desamparado e lascado. Quem liga para isso?  A realidade, contudo, revela um quadro muito mais complexo e preocupante, onde a verdadeira causa do desequilíbrio orçamentário reside nos exorbitantes juros da dívida pública; um fardo que sufoca o Estado e drena recursos cruciais para o bem-estar da população ano a ano.

A raiz do problema reside nos juros da dívida pública, um montante significativo que consome uma parcela considerável do orçamento federal de forma persistente e recorrente. Essa sangria financeira obriga o governo a realizar cortes sistemáticos nos gastos fiscais, em um ciclo vicioso que se repete a cada período, agravando a precarização dos serviços públicos e comprometendo o futuro do país. A volatilidade dos pagamentos dos juros da dívida impõe um ajuste constante e doloroso, com consequências nefastas para áreas como saúde, educação e infraestrutura  (Aqui).  

Os cortes atingem os investimentos, condenando hospitais, escolas e, na área dos investimentos já feitos, o desgaste forçado dos equipamentos públicos, impondo-lhes a obsolescência pela falta de recursos básicos para sua manutenção e a notória ausência de novos hospitais. A deterioração da saúde pública é emblemática: a falta de investimentos em novas unidades, equipamentos e pessoal resultam em filas intermináveis, falta de leitos e precariedade no atendimento, afetando principalmente os mais humildes que sequer cogitam em planos privados de saúde. A população mais vulnerável paga um preço alto por essa política de austeridade. E quando pode contar com a participação privada, estabelecem preços de remuneração aos serviços por vezes irreais. As Santas Casas sobrevivem com grande dificuldade e poucos estados mostram vontade de atualizar os preços dessas entidades filantrópicas valorosas, arcando em seus orçamentos com essa política como fez o governador de São Paulo.

A cantilena da “gastança excessiva” serve como cortina de fumaça para esconder a verdadeira natureza do problema: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida em detrimento aos investimentos sociais. Maldita Lei de Responsabilidade Fiscal que mantém o status quo dos bancos e rentistas e dos servidores públicos. Existem outros pontos de extração de recursos públicos consagrados no orçamento, como o auxílio a empresas privadas em subsídios e isenções tributárias significativos. A mídia e alguns setores da política, alinhados com os interesses do mercado financeiro, propagam essa narrativa para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e a retirada de direitos da população, porque o alvo é a previdência. Incrível que num governo que, em passado virtuoso, implementou regras de ajuste do salário-mínimo que não gerou desemprego e nem outro tipo de problema, mas, agora, cedeu.

A insistência em culpar os gastos sociais pela crise fiscal revela uma profunda desconexão com a realidade e um desprezo silencioso pelos direitos da população. O corte de investimentos em áreas essenciais como saúde e infraestrutura não apenas compromete o bem-estar da população, mas também hipoteca o futuro do país, impedindo o desenvolvimento social e econômico. A mudança na regra salarial um tiro no peito dos aposentados CLT que os deixarão agonizando por um tempo longo.

A verdadeira face da austeridade é a precarização dos serviços públicos, o aumento da desigualdade social e o aprofundamento da crise. A população, já castigada pela pandemia e pela recessão econômica, é novamente chamada a arcar com o peso de uma política fiscal que beneficia os detentores da dívida pública e o círculo empresarial que se valem de subsídios e isenções tributárias significativos em detrimento do bem-estar social.

A crítica à “gastança excessiva” ignora o fato de que o Estado brasileiro, historicamente, investe pouco em comparação com outros países de desenvolvimento semelhante. A carga tributária, elevada em comparação com outros países, não se traduz em serviços públicos de qualidade, evidenciando a ineficiência do modelo fiscal e a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida.

A defesa da austeridade fiscal, sem considerar a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, revela uma visão limitada e prejudicial ao país. A concentração de renda e riqueza, as isenções fiscais e a enorme dependência das multinacionais em seus projetos de inovação são problemas estruturais que precisam ser enfrentados para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. A triste realidade (que vale para a maioria dos países) da precarização do mercado de trabalho, tendo em vista a mudança estrutural significativa na geração de emprego, com o item serviço e comércio abarcando cerca de 70% da mão de obra, nos leva a uma redução salarial sistemática nesse segmento de baixa produtividade. Difícil uma política pública que gere oportunidades nesse ramo de produção, em que pese nossa vocação óbvia para o turismo.

A mídia e os formadores de opinião, em vez de propagar a falácia da “gastança excessiva”, deveriam pautar o debate público sobre a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. É preciso romper com a lógica que beneficia os detentores da dívida pública em detrimento do bem-estar social.

A população não pode mais ser enganada pela narrativa da “gastança excessiva”. É preciso denunciar a verdadeira natureza da crise fiscal e exigir uma política econômica que priorize o bem-estar social, a justiça fiscal e o desenvolvimento sustentável. A luta pela defesa dos serviços públicos e pela justiça social é uma luta de todos nós. Eu ainda estou aqui!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 

Visite a página do Prof. Marco Aurélio Bittencourt:

Marco Aurélio Bittencourt

Leia outro artigo do Prof. Marco Aurélio Bittencourt relacionado ao tema ao tema fiscal:

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Leia também o artigo sobre sustentabilidade fiscal do Luiz Guilherme Schymura

Tanto pela sustentabilidade fiscal quanto por razões cíclicas, chegou o momento da consolidação no Brasil

Veja o modelo de custos de serviços públicos elaborado pelo governo federal:

Views: 29

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Marco Aurélio Bittencourt

No Brasil, é comum ouvirmos falar sobre o “déficit” da previdência social   numa narrativa esdrúxula que tem sido amplamente difundida ao longo dos anos. Contudo, é fundamental questionarmos a veracidade dessa narrativa e analisarmos os fatores que realmente influenciam o equilíbrio financeiro do sistema previdenciário nacional.​

Historicamente, a previdência social foi concebida para ser sustentada por três pilares: trabalhadores, empregadores e governo. Ela se tornou necessária depois de ultrapassada a fase inicial da previdência que tinha recolhimento de contribuições quase ausente de pagamentos de benefícios.  Essa estrutura tripartite visa garantir a solidez e a sustentabilidade do sistema, distribuindo equitativamente as responsabilidades de financiamento. No entanto, na prática, essa divisão nem sempre ocorre de forma equilibrada.​

Atualmente, as contribuições previdenciárias dos empregados variam entre 7,5% e 14% de seus salários, conforme a faixa salarial. Por outro lado, os empregadores contribuem com 20% sobre o valor das remunerações pagas a cada mês aos seus empregados. Essa estrutura de contribuição demonstra uma disparidade em relação à proposta de divisão equitativa de 1/3 para cada ente., embora se aproxime dos 30 %. Esses 30% sobre o percentual estimado do PIB que cabe aos trabalhadores (que engloba as contribuições patronais) seria de cerca de R$ 1,35 trilhões de reais em 2023, tomando como base a participação de 50% do PIB da categoria salários.

Em 2023, o PIB do Brasil chegou a R$ 10,9 trilhões, consolidando-se como a maior economia da América do Sul e a oitava do mundo (uma bobagem que os economistas não expressam na conta correta do PIB per capita). Esse dado reforça a capacidade econômica do país em sustentar um sistema previdenciário sólido, desde que haja uma gestão pública não ideológica e uma distribuição justa das responsabilidades de financiamento.​ Se olharmos para as informações do Tesouro, temos que em 2023, o déficit conjunto dos regimes de previdência administrados pela União alcançou R$ 428 bilhões, resultantes de receitas de R$ 638 bilhões e despesas de R$ 1,066 trilhão. Mas, se de fato considerássemos a divisão tripartide, a cada ente caberia uma responsabilidade de cerca de R$ 353,3 bilhões; o que aconteceu foi que cada ente (trabalhador e empregador) recolheu, teoricamente, R$ 319 bilhões. Isso nos mostra que o propalado déficit seria de apenas R$ 50 bilhões, em que pese nessa conta olharmos uma contribuição distorciva na conta dos empregadores (20%) e trabalhadores, provavelmente menos do que a metade dos empregadores. Isso não importa muito porque a fatura final fica por conta dos trabalhadores, já que as empresas repassam seus custos aos preços ou demitem para manterem sua margem de lucro.

O governo federal, que deveria ser um dos principais financiadores do sistema, não cumpre integralmente com sua parcela de contribuição. Essa omissão está sendo rotulada como “déficit”, mascarando a real origem do desequilíbrio financeiro da previdência.​ Situação constrangedora seria o próprio pagamento do governo relativa à sua contribuição previdenciária que deveria, para seus funcionários, ser de 10% e como empregador de mais 10% e como ente próprio outros 10%, na dimensão salutar de contribuição de cerca de 30% por trabalhador.

Mas o inferno orçamentário também abriga coisas diabólicas como isenções e recolhimentos em atraso que geralmente abarrotam os escaninhos jurídicos da receita federal. Isenções e desonerações fiscais: Alguns setores econômicos recebem incentivos fiscais que reduzem ou eliminam a obrigação de contribuição previdenciária.​ Evasão e inadimplência: Empresas e indivíduos que não cumprem com suas obrigações contributivas, seja por dificuldades financeiras ou por tentativa de evasão fiscal.​

É importante destacar que a questão do envelhecimento populacional, frequentemente apontada como a vilã do déficit previdenciário, não é, de fato, fator de desequilíbrio previdenciário. O que realmente importa é se o Produto Interno Bruto (PIB) do país suporta as despesas previdenciárias. Observa-se que a contribuição previdenciária, em termos percentuais do PIB, tem se mantido relativamente constante ao longo dos anos, conforme se depreende das Contas do Tesouro em seu relatório COFOG (média de 15% PIB entre 2020 e 2022). Se envelhecermos além da conta, duas saídas de mercado se apresentam naturalmente: a imigração voluntária e bem-vinda ou a recuperação do PIB pela produtividade.

O verdadeiro desafio reside na informalidade do mercado de trabalho brasileiro. Um número significativo de trabalhadores atua na informalidade, não contribuindo para o sistema previdenciário. Curioso, contudo, é notar que, mesmo com essa informalidade, o PIB formal do país é suficientemente robusto para gerar as contribuições necessárias para a manutenção da previdência, basta considerar o montante alocado à previdência.​

Portanto, ao invés de focarmos exclusivamente no suposto déficit previdenciário, é fundamental direcionarmos nossos esforços para combater a informalidade no mercado de trabalho e assegurar que todos os entes – trabalhadores, empregadores e governo – cumpram com suas obrigações contributivas. Somente assim poderemos garantir a sustentabilidade e a justiça do nosso sistema previdenciário, sem necessidade de reformas maquiavélicas que invariavelmente atinge de morte os aposentados presentes e futuros.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Acesse a página do colunista Marco Aurélio Bitttencourt:

Marco Aurélio Bitttencourt

Leia também:

O que o deficit da previdência significa para a população em geral?

Views: 43

Desigualdade e crescimento econômico: uma análise crítica das ideias de Stiglitz

Marco Aurélio Bittencourt

A desigualdade, um dos temas mais debatidos na economia globalizada, apresenta-se como um obstáculo para o crescimento e a estabilidade econômica. Joseph Stiglitz, renomado economista e laureado com o Prêmio Nobel, dedicou grande parte de sua obra acadêmica a essa questão complexa e multifacetada. Em seus trabalhos, ele desconstrói a crença de que o crescimento econômico, por si só, impactaria positivamente a vida de todos os cidadãos. Stiglitz argumenta que políticas que favorecem os ricos tendem a perpetuar a disparidade econômica, criando um ciclo vicioso que concentra riqueza e oportunidades nas mãos de uma minoria privilegiada. Ele retorna ao tema em seu artigo “Inequality and Economic Growth”, sobre o qual tecerei algumas considerações.

Stiglitz demonstra que a desigualdade de renda é um fenômeno generalizado nas economias mais desenvolvidas. É nesse contexto que ele enfatiza a busca por renda, definida como a obtenção de renda não pela criação de riqueza, mas sim pela apropriação de uma fatia maior da riqueza já existente. Essa captura do poder político pelos mais ricos, que implantam políticas em seu próprio benefício, invalida a hipótese do gotejamento, segundo a qual os benefícios concedidos aos ricos acabariam “pingando” para os demais agentes da economia. Pelo contrário, o que se observa é uma concentração de renda cada vez maior.

Concordo com Stiglitz que a busca desenfreada por renda é um dos principais motores da crescente desigualdade, impactando diretamente a alta dos rendimentos dos mais ricos e minando a teoria da produtividade marginal da distribuição de renda. Afinal, se a riqueza é apenas apropriada e não criada, a parcela que cabe aos menos favorecidos diminui, agravando a disparidade. No entanto, a análise de Stiglitz precisa ser complementada com uma investigação mais profunda sobre como a aversão ao risco, arraigada em diversas culturas, influencia a estagnação econômica e a nova estrutura produtiva que vem crescendo em favor do comércio e serviços onde se alojam multidões de baixa produtividade.

Culturas que privilegiam a estabilidade em detrimento da ousadia podem acabar favorecendo projetos conservadores e de baixo risco, o que, em última instância, pode prejudicar a inovação e, ironicamente, intensificar a busca por renda. Essa aversão ao risco se manifesta na resistência a investimentos em novas tecnologias, na preferência por setores tradicionais da economia e na dificuldade de implementar reformas estruturais. No Brasil, por exemplo, a aversão ao risco pode ser observada na alta concentração de investimentos em ativos de renda fixa e na relutância em investir em setores com maior potencial de crescimento, mas também com maior risco, como o setor de tecnologia.

Do lado da estrutura produtiva, é evidente que o padrão de emprego e de produção se alinha com a tendência global de terceirização da economia. Nos EUA, como mostra Parkin em seu livro de Economia, a produção agrícola representa cerca de 5% da produção americana, a indústria cerca de 20% e os serviços e comércio os restantes 75%. No lado do emprego, Parkin avalia o capital humano dos EUA: trabalhadores com ensino superior representam cerca de 23% da força de trabalho, aqueles com ensino médio completo cerca de 60%, enquanto os que não concluíram o ensino médio somam cerca de 10% e aqueles com menos de 5 anos de ensino fundamental cerca de 5%. É fácil deduzir que os profissionais de nível superior se concentram nas atividades mais produtivas, como a indústria e os serviços de alta tecnologia, enquanto a maioria dos trabalhadores com ensino médio se dirige ao setor de comércio e serviços, caracterizado por baixa produtividade e baixos salários. No Brasil, essa tendência de terceirização da economia e concentração de trabalhadores com baixa qualificação no setor de serviços contribui para a persistência crescente da desigualdade onde o piso seria o salário mínimo.

Stiglitz também se debruça sobre a relação complexa entre políticas monetárias e o valor dos ativos, defendendo que políticas que resultam em taxas de juros baixas podem inflar artificialmente o valor de ativos fixos “improdutivos”, como imóveis e ações. Embora concorde que essa valorização de ativos improdutivos possa exacerbar a desigualdade, permitindo que os mais ricos acumulem riqueza de forma desproporcional, discordo da afirmação de que a redução da taxa de juros, por si só, gere um aumento real da riqueza. Na verdade, o que impulsiona a economia de forma sustentável é o efeito relativo da taxa de juros, ou seja, a diferença entre as taxas para diferentes agentes e setores. É essa diferença que estimula o investimento produtivo, a inovação e, consequentemente, o crescimento econômico.

Outro ponto crucial na análise da desigualdade reside na influência das instituições e da política. Stiglitz acertadamente aponta que instituições e políticas distorcidas, que favorecem os ricos em detrimento da maioria da população, tendem a perpetuar a disparidade de renda, criando um sistema injusto e excludente. No entanto, sua análise peca ao negligenciar a importância da mudança estrutural na economia, especialmente o crescimento exponencial do setor de serviços, caracterizado por sua baixa produtividade, como um fator determinante na dinâmica da desigualdade. Esse crescimento desproporcional do setor de serviços, em detrimento de setores mais produtivos, pode gerar um desequilíbrio na economia, impactando a distribuição de renda e a geração de empregos de qualidade.

A desigualdade, como bem aponta Stiglitz, tem um alto custo, não apenas em termos de justiça social, mas também em termos de crescimento econômico e estabilidade. Nesse ponto, concordo plenamente com a necessidade de políticas públicas eficazes que busquem reduzir a disparidade econômica, promovendo a igualdade de oportunidades e garantindo que os frutos do crescimento sejam compartilhados de forma mais justa. Stiglitz cita ainda a diferença salarial entre trabalhadores, destacando o afastamento espetacular dos chamados Executivos (CEOs) em relação ao salário médio. Ele não consegue ver qualquer relação com a produtividade, que agora faz crer ser uma boa teoria, mas desconsidera os pactos legítimos entre o CEO e o dono da empresa. O caso dos CEOs ilegítimos não se trata de economia, mas de punição legal.

Em suas prescrições de política, Stiglitz indica: investimentos em educação, aumento do salário mínimo, fortalecimento dos sindicatos e controle salarial dos executivos. Todavia, tais medidas precisam ser implementadas com cautela e bom senso, sempre respeitando a liberdade econômica e o princípio da meritocracia. Nos EUA, o problema de inclusão social não parece ter a dimensão que aponte a necessidade de políticas inclusivas arbitrárias. Discordo, portanto, da intervenção desnecessária na remuneração de executivos, desde que esta seja “legítima e justa”, baseada na produtividade e no mérito individual, e que respeite as negociações entre executivos e donos das empresas, que certamente elevam a remuneração desses executivos muito além da sua “produtividade”. Quanto aos sindicatos, a nova estrutura produtiva explica em grande parte o enfraquecimento dos sindicatos. A globalização também seria mais uma razão para o enfraquecimento dos sindicatos. Afinal, a intervenção estatal excessiva pode sufocar a iniciativa privada, desestimular o empreendedorismo e, em última instância, prejudicar o crescimento econômico.

É preciso também questionar o sobreinvestimento em educação superior, sem que haja um redirecionamento adequado de políticas públicas para a melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio. A distribuição do capital humano na economia, com um número crescente de graduados e um déficit de profissionais qualificados em áreas técnicas e de nível médio, demonstra um limite estrutural para a absorção de mão de obra com nível superior, embora também venha crescendo; o que faz sugerir que mais educação se associa a mais produtividade e que isso se espraie por todos os setores da economia. Diante dessa realidade, torna-se imperativo implementar políticas que promovam a ascensão de trabalhadores de nível médio para cargos de maior remuneração e que, ao mesmo tempo, garantam o acesso à educação superior de qualidade para aqueles que realmente demonstrarem aptidão e interesse.

Em síntese, concordo com a crítica contundente de Stiglitz à “economia de gotejamento” e à ilusão de que o crescimento econômico, por si só, é capaz de resolver o problema da desigualdade. No entanto, a análise dessa questão complexa precisa ser aprofundada e enriquecida, considerando fatores como a aversão ao risco, o efeito relativo das taxas de juros, a mudança estrutural na economia e o papel crucial das instituições. As políticas para combater a desigualdade devem priorizar a igualdade de oportunidades, mas sem sacrificar a liberdade econômica e a remuneração justa de executivos.

Por fim, no que concerne às propostas políticas de Stiglitz para combater a desigualdade, minha discordância é profunda. Embora abordem o problema, elas se aproximam perigosamente do autoritarismo, como a intervenção arbitrária no mercado de executivos e um apoio a um fortalecimento elusivo dos sindicatos. É fundamental combater a corrupção com rigor e imparcialidade, mas cortes indiscriminados em salários, sem o devido entendimento dos fatores envolvidos diretamente com a questão, são inadmissíveis. Em relação à educação, questiono a necessidade de maiores investimentos sem que haja uma reestruturação profunda do sistema educacional em suas prioridades. O desafio consiste em adequar o ensino médio e profissionalizante à realidade estrutural do país, formando profissionais qualificados para atender às demandas do mercado de trabalho. No mais fica a certeza que faço bem em me afastar de uma visão progressista que levanta questões pertinentes, mas endereçam suas políticas em direção ao arbítrio e autoritarismo.

Leia o outro artigo do autor:

Mercado Nervoso: você acredita? Sim, eu acredito!

Leia também a Carta de Conjuntura do IPEA (Desigualdade de renda):

Desigualdade de renda | Carta de Conjuntura


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email. 0171969@etfbsb.edu.br 

Views: 70

Mercado Nervoso: você acredita? Sim, eu acredito!

Marco Aurélio Bittencourt

Acredito no mercado. A expressão “mercado nervoso”, frequentemente utilizada em momentos de incerteza econômica, carrega consigo uma conotação negativa que pode distorcer sua realidade. Essa visão ignora a essência do termo e sua intrínseca relação com a conjuntura política e econômica do país. O mercado não é uma entidade abstrata ou um conjunto de indivíduos movidos apenas por interesses egoístas; ele é um reflexo das condições e desafios que uma nação enfrenta, especialmente quando um plano previamente acordado se vê ameaçado, seja por fatores internos ou externos.

O arcabouço político e jurídico, aliado às políticas fiscais e monetárias, desempenha um papel crucial na configuração de um mercado inclusivo ou extrativista. No contexto brasileiro, a estrutura legal e as políticas econômicas, ao invés de promoverem inclusão e desenvolvimento sustentável, perpetuam um modelo extrativista. Isso se reflete nas decisões políticas e na distribuição orçamentária, onde regulamentações muitas vezes favorecem a exploração de recursos em detrimento do bem-estar social e da justiça econômica. Essa dinâmica desencadeia instabilidade social, mas exerce pouco impacto direto sobre o mercado na sua totalidade.

A busca por um caminho unificado e consensual é fundamental para a estabilização do mercado. Disputas e incertezas em relação aos rumos a serem tomados geram o “mercado nervoso”, caracterizado pela volatilidade e pela imprevisibilidade. Esse nervosismo é, muitas vezes, aleatório, dificultando a identificação de responsáveis específicos. A intensidade da instabilidade está diretamente ligada à resiliência do modelo vigente. Se o modelo é resiliente, o ruído no mercado é reduzido. No entanto, quando a resiliência é baixa e grupos opositores possuem igual força, as disputas tendem a se prolongar, intensificando o nervosismo. A falta de diretrizes claras inibe investimentos, impede o crescimento e perpetua a instabilidade.

A especulação surge, então, nesse cenário de indefinição. Ela também emerge quando agentes econômicos tentam afastar-se das balizas consensuais que sustentam o mercado, buscando objetivos inapropriados ou irrealistas. É como se, em um momento inadequado, tentassem alcançar metas que ultrapassam os acordos estabelecidos. Essa busca por vantagens especulativas ocorre porque os demais participantes do mercado reconhecem que tais pleitos estão fora das diretrizes previamente acordadas. Aqueles agentes fundamentais nos acordos políticos que agem de forma desarmônica estão cientes de que não enfrentarão as consequências diretas de suas ações e almejam algum tipo de retorno político. Nesse momento, cabe aos agentes privados, diluídos pelo mercado, atuarem especulativamente, como na venda a um preço fora do mercado aos agentes que embarcaram na retórica política. Essa compra de dólares em um momento de “rebeldia” pode, portanto, ter suas razões. Contudo, o lucro individual não é o verdadeiro vilão da situação, pois este sempre se manifestará em algum grau seja qual for o contexto.

Recentemente, o pronunciamento do Ministro da Economia, Fernando Haddad, no final de novembro de 2024, ilustrou a complexa inter-relação entre política e economia. Ele sugeriu a existência de duas facetas do governo: uma que adota os acordos estabelecidos e outra que flerta com bravatas em busca de retorno político. Esse discurso foi interpretado como uma abertura nas manobras políticas do governo, criando um terreno propício para estratégias de ganho financeiro rápido, o que, por sua vez, amplificou as incertezas e alimentou a especulação. Espera-se que a prudência prevaleça no mercado, mantendo os acordos estabelecidos enquanto se aguarda práticas especulativas. Assim, o nervosismo do mercado tenderá a se dissipar, sendo que a desvalorização do dólar seguirá dependendo, como sempre dependeu, da dinâmica básica de oferta e procura por divisas.

Em conclusão, a expressão “mercado nervoso” descreve momentos de incerteza e volatilidade que refletem as dificuldades enfrentadas pela economia em busca de estabilidade. Podemos identificar três cenários que caracterizam esse “nervosismo”:

a) Busca por um novo modelo : O embate entre forças antagônicas — aquelas que desejam mudança e aquelas que buscam manter o status quo — se equilibra em poder e influência. O nervosismo intensifica-se quanto mais prolongadas forem as disputas, gerando incertezas sobre o futuro.

b) Resiliência de grupos dominantes : Mesmo diante da oposição, grupos dominantes conseguem manter o controle e resistir à pressão por mudanças. Nesse caso, o nervosismo tende a ser passageiro e menos intenso, uma vez que a estabilidade — embora injusta — se mantém.

c) Consagração de um modelo em desequilíbrio : Um modelo econômico e político consagrado enfrenta um contexto de desequilíbrio significativo. Sua consolidação depende de regras legais; quando estão em discussão final, a prática de “jabutis” desperta preocupação, criando um breve período de turbulência. Neste cenário, o nervosismo é residual e de curta duração, marcando uma transição para um mercado mais tranquilo. No entanto, essa “calmaria” pode significar a consolidação de um modelo que aprofunda a desigualdade e perpetua a pobreza.

Analisar o “mercado nervoso” e suas origens é crucial para compreender as dinâmicas econômicas e políticas do Brasil. Essa reflexão nos permite perceber que, muitas vezes, o problema não reside apenas nos “jabutis”, mas nos próprios acordos que, por sua natureza, distanciam-se de soluções efetivas para os graves problemas que aprisionam a sociedade na desigualdade e na pobreza. Assim, ao compreendermos as raízes do nervosismo do mercado, podemos trabalhar em direção a um futuro mais estável e justo, onde o desenvolvimento econômico seja realmente inclusivo e sustentável.

Dessa forma, a crença no mercado é também a crença em sua capacidade de se transformar e se adaptar, por meio do entendimento e da ação consciente de todos os envolvidos na sua dinâmica.


Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


Views: 28

Egoísmo x Altruísmo: um debate sobre a natureza humana e as regras que nos regem

Marco Aurélio Bittencourt

A Teoria da Escolha Pública, um conceito que permeia a ciência política e a economia, propõe que as ações humanas, inclusive na esfera pública, são motivadas, em grande parte, pelo interesse próprio. Essa ideia, à primeira vista, pode parecer cínica e desanimadora, contrastando com a crença de que as políticas públicas devem visar o bem comum e a justiça social.

Mas será que o egoísmo e o altruísmo são realmente forças opostas e irreconciliáveis?

É inegável que a maioria das pessoas, incluindo cientistas e intelectuais, possuem bons sentimentos e buscam contribuir para um mundo melhor. A evolução da humanidade, com avanços significativos em áreas como saúde, educação e tecnologia, especialmente após a Revolução Industrial, sugere que o “bem”, de alguma forma, tem prevalecido.

No entanto, a boa intenção por si só nem sempre é suficiente para garantir a cooperação e o alcance do bem comum. A religião, por exemplo, apesar de pregar valores como a compaixão e a solidariedade, muitas vezes esbarra na dificuldade de traduzir esses valores em ações concretas no mundo real.

Para entender melhor essa complexidade, vamos analisar alguns exemplos práticos:

1. Regras de Trânsito:

Nos Estados Unidos, a regra básica em muitos cruzamentos é simples: quem chega primeiro, tem o direito de passar. Essa norma, aparentemente trivial, gera um efeito notável no comportamento dos motoristas. Ao saberem que serão respeitados em sua ordem de chegada, os condutores tendem a agir de forma mais cooperativa e paciente, resultando em um trânsito mais fluido e seguro.

No Brasil, a regra da preferencial define quem tem o direito de passagem nos cruzamentos. No entanto, em cruzamentos complexos com alto volume de tráfego, a identificação da preferencial pode não ser trivial, o que pode levar a confusões e dificuldades em determinar a ordem de passagem. Embora a regra exista, a falta de clareza em algumas situações, em conjunto com a ausência do hábito de ceder a passagem mesmo quando se tem a preferência, pode gerar conflitos e desordem no trânsito.

Comparando os dois sistemas, podemos observar como regras claras, simples e bem definidas influenciam o comportamento das pessoas, incentivando a cooperação e o respeito mútuo. No caso americano, a simplicidade da regra “quem chega primeiro, passa primeiro” contribui para um sistema mais eficiente e harmonioso. No Brasil, a complexidade de alguns cruzamentos e a falta de um costume de ceder a passagem, mesmo tendo a preferência, podem dificultar a fluidez do tráfego.

Uma sugestão interessante para o caso brasileiro seria a implementação de um adendo à regra da preferencial: em situações de congestionamento, independentemente de cruzamentos, a regra “quem chega primeiro, passa primeiro”, alternadamente entre as filas, poderia ser aplicada. Isso tornaria o sistema mais claro, justo e eficiente, similar ao modelo americano. Claro, aqui a suposição implícita é de que todos estariam sujeitos a, no contexto da regra válida hoje para o Brasil, ambas situações: estar na preferencial ou estar aguardando todos da preferencial passarem. Nem sempre encontramos uma situação propicia à mudanças pontuais com sucesso pleno como me parece ser o caso da regra de transito.

2. Mudança na Jornada de Trabalho (6/1 para 4/3):

A proposta de reduzir a semana de trabalho de 6 para 4 dias úteis, mantendo a remuneração dos trabalhadores, é outro exemplo que ilustra a complexa relação entre egoísmo, altruísmo e o papel do Estado.

A princípio, a semana de 4 dias parece atender aos interesses individuais de todos:

  • Trabalhadores: Mais tempo livre para lazer, família e desenvolvimento pessoal.
  • Empresas: Potencial aumento da produtividade, redução de custos com energia e infraestrutura, e atração de talentos.
  • Governo: Melhora na qualidade de vida da população, estímulo à economia e possível redução de gastos com saúde pública (devido à redução do estresse e doenças relacionadas ao trabalho).

No entanto, a Teoria da Escolha Pública nos alerta para a necessidade de ir além das boas intenções e analisar os incentivos de cada ator, bem como os possíveis desafios e obstáculos para a implementação da semana de 4 dias.

Desafios e o Papel do Estado:

  • Custos para as empresas: A reorganização do trabalho, a contratação de novos funcionários e o investimento em novas tecnologias podem gerar custos para as empresas, especialmente para pequenas e médias empresas.
  • Risco de redução salarial: É preciso garantir que a redução da jornada não implique em redução salarial, o que prejudicaria os trabalhadores.
  • Dificuldade de adaptação: Alguns setores da economia podem ter dificuldades em se adaptar à semana de 4 dias, especialmente aqueles que exigem disponibilidade contínua.
  • Desemprego: A mudança pode levar à perda de empregos em alguns setores, caso as empresas não consigam manter a produtividade com a redução da jornada.

Para enfrentar esses desafios e garantir que a semana de 4 dias seja benéfica para todos, o Estado tem um papel fundamental:

  • Garantir a proporcionalidade salarial: A legislação deve assegurar que a redução da jornada não implique em redução salarial.
  • Incentivar a flexibilidade: As regras para a organização da jornada de trabalho devem ser flexíveis, permitindo que empresas e trabalhadores negociem a melhor forma de implementar a semana de 4 dias.
  • Criar mecanismos de apoio: O governo pode oferecer incentivos fiscais e programas de apoio para auxiliar as empresas na adaptação à nova jornada.
  • Monitorar os impactos da mudança: O governo deve acompanhar e avaliar os impactos da semana de 4 dias no mercado de trabalho e na economia, ajustando as políticas públicas quando necessário.
  • Investir em requalificação profissional: Oferecer programas de requalificação para os trabalhadores que eventualmente perderem seus empregos devido à mudança na jornada de trabalho.

Conclusão:

A Teoria da Escolha Pública nos convida a repensar a relação entre egoísmo e altruísmo, mostrando que esses conceitos não são necessariamente excludentes. Ao entendermos como as pessoas tomam decisões e como as regras influenciam o comportamento humano, podemos construir uma sociedade mais justa, eficiente e cooperativa, onde o interesse individual e o bem comum caminhem lado a lado, com a lei como um importante instrumento para a promoção da solidariedade.

Assim como no caso das regras de trânsito, a semana de 4 dias exige uma análise cuidadosa dos incentivos e a criação de regras claras e eficazes para garantir que a mudança seja benéfica para todos. O Estado tem um papel fundamental nesse processo, atuando como mediador e promotor do bem-estar social. Evidentemente, numa democracia, a questão seria resolvida no voto.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.

Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


Views: 41

A inteligência artificial e o futuro da humanidade: um debate aberto

Marco Aurélio Bittencourt

A inteligência artificial (IA) tem se tornado onipresente em nossas vidas, moldando a maneira como interagimos com o mundo e com as outras pessoas. Se, por um lado, vislumbramos um futuro com soluções para problemas complexos e melhorias na qualidade de vida, por outro, nos deparamos com questões cruciais sobre o futuro da humanidade, a liberdade individual e o próprio significado de ser humano. O termo “inteligência artificial” em si já gera debate, questionando a natureza da inteligência e os limites da IA. Afinal, a inteligência humana é fruto de milhões de anos de evolução, inerente aos organismos vivos e não às máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Alan Turing, o pai da computação, ao reconhecer a existência de problemas não computáveis, já demonstrava a limitação da lógica digital, um obstáculo intransponível para máquinas que tentam replicar a complexidade da intuição, criatividade e emoção, inerentemente humanas.

Essa complexidade inerente à mente humana é o que Miguel Nicolelis, renomado neurocientista brasileiro, explora em sua Teoria do Cérebro Relativístico (TCR). Segundo ele, o cérebro não se limita à lógica binária dos computadores; opera de forma relativística, criativa e imprevisível, construindo seu próprio “espaço-tempo” interno para processar informações. A TCR reforça a singularidade da inteligência humana e questiona a possibilidade de uma IA realmente inteligente e autônoma, como a que muitos preveem com a singularidade tecnológica. Essa visão de um futuro em que algoritmos ditam nossas vidas e máquinas controlam a sociedade é perturbadora e exige profunda reflexão.

Vivemos em uma era onde algoritmos influenciam cada vez mais nossas escolhas, desde compras online até as notícias que consumimos. Essa influência silenciosa e persuasiva representa um risco à liberdade individual, demonstrando o poder dos algoritmos e a erosão da liberdade. Quem controla esses algoritmos detém um poder imenso, podendo manipular comportamentos e moldar opiniões. A perda da autonomia e a submissão a uma lógica determinística imposta por máquinas ameaçam a essência do ser humano. A imersão no mundo digital e a adaptação constante à lógica das máquinas podem ter consequências profundas na forma como nossos cérebros funcionam, resultando na moldagem do cérebro e na perda de habilidades humanas.

Habilidades essenciais como a intuição, a criatividade, o pensamento crítico e a empatia podem ser atrofiadas em um ambiente dominado pela lógica binária e, talvez pela evolução analógica dessas criaturas forjadas por códigos, e principalmente pela busca constante por eficiência que faz parte do nosso arsenal de inteligência. A máquina poderia ser binária e analógica, mas há dúvida que possa incluir mais um elemento crucial que a aproximaria do cérebro humano: a complexidade.

Corremos o risco de nos tornarmos seres menos humanos, menos capazes de compreender a complexidade do mundo e de nos conectarmos com os outros. Diante desse cenário potencialmente distópico, a questão das mutações genéticas traz um elemento de imprevisibilidade, podendo representar uma luz no fim do túnel. As mutações, por sua natureza aleatória, podem conferir à humanidade uma saída inesperada, tornando-nos mais resilientes à influência das máquinas ou conferindo-nos novas habilidades cognitivas. No entanto, como eventos aleatórios ocorrem de forma imprevisível e tanto para o bem quanto para o mal, não se pode contar com a sorte para que o rumo do controle da vida seja resgatável.

Assim como o cérebro busca eficiência, as pessoas buscam preservar seus valores. Se a criatividade, a independência e outros aspectos da vida estiverem em perigo, a ação rebelde contra as máquinas será mais intensa quanto maior for a ameaça. Essa resistência, enraizada na capacidade de organização de grupos minoritários com interesses bem definidos, pode ser crucial para evitar um futuro distópico, a menos que a maioria se una em torno da alienação. De fato, já hoje encontramos regiões, cidades ou países em que políticas educacionais restringem o uso de aparelhos digitais na escola.

É certo que as inovações despertam interesse, mas compreender sua oportunidade é ainda um achado no escuro. Se as máquinas dominarem essa área da inteligência humana, a luta se tornaria mais difícil, e talvez dois mundos convivam simultaneamente: o “atrasado” e o “moderno”, em uma relação de poder ainda incerta.

Resta saber se a convivência entre o “atrasado” e o “moderno” seria pacífica ou se o moderno absorveria o atrasado. Caminharíamos para uma senda intelectual mais arbitrária, um futurismo de cartomante. Sabemos, porém, que os valores democráticos só se mantêm pelo equilíbrio entre os poderes, que, com freios e contrapesos (checks and balances), impedem que um poder se sobreponha aos demais e derrube os princípios constitucionais fundamentais e as cláusulas pétreas. Portanto, creio que um mundo distópico não prevalecerá.

A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, com potencial de transformar o mundo de maneiras inimagináveis. No entanto, seu desenvolvimento e aplicação exigem cuidado, responsabilidade e uma reflexão profunda sobre seus impactos na humanidade. A busca desenfreada pela eficiência e pelo progresso tecnológico não pode se dar às custas da liberdade, da individualidade e dos valores que nos tornam humanos. É preciso garantir que a IA seja utilizada para o bem da humanidade, e não para sua subjugação. O futuro da nossa espécie depende das escolhas que fazemos hoje, e dentre elas está a liberdade que estamos perdendo por não nos posicionarmos criticamente sobre o caminho que a própria humanidade toma.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Views: 26

Por que os juros altos são uma desgraça?

Marco Aurélio Bittencourt

Antes de tudo, é necessário definir o que são juros altos e como os juros nominais são estimados pelos agentes econômicos. Apelo para a equação de Fisher: taxa de juros nominal = taxa de juros real + inflação esperada,  . Você pode olhar essa equação da seguinte forma: você tem 100 reais hoje e sabe que pode comprar 10 pães. Aí você empresta esses 10 pães, ou se estiver no mundo nominal, a uma taxa de juros nominal, , por 5% ao período (qualquer período, mas temos que escolher um para que taxa e período sejam compatíveis. Escolho ano). Espero ganhar ½ pão ou 5 reais de juros mais o capital que investi. O que pode atrapalhar minha conta? A inflação esperada,  . Eu tenho que chutar uma . Chuto zero, porque a coisa no Brasil está preta, ou seja, não espero crescimento e assim todo mundo tem problema, inclusive os empresários que não se arriscam a aumentar o preço (o engraçado é que estamos vendo as embalagens dos produtos encolherem ou pesarem menos. Gosto do Chicabom. Hoje pago o mesmo preço, mas o picolé é a metade). Então a minha taxa de juros nominais,  coincide com a taxa de juros de real, . O que isso significa? Que posso voltar ao mercado e comprar meus dez pães e mais meio pão; o que era o que esperava. Foi o quanto quis ganhar por emprestar meus 100 reais.

Mas onde está o problema? Está na expectativa da inflação. Se o preço do pão mudar (para cima, inflação e para baixo, deflação) posso perder. Suponha que a inflação seja de 6%. Como ganhei 5 reais, tenho em caixa 105 reais. Mas vou agora comprar o pão por (1+0,06) *10= 10,6. Quantos pães agora posso comprar? Posso comprar 9,90 pães (105/10,6). O que aconteceu? Eu errei na previsão da inflação. Eu chutei que era zero, mas foi de 6%. Fiquei mais pobre, porque agora, além de retardar meu consumo, tenho uma quantidade de pães menor do que tinha antes de emprestar minha grana. Em termos de fórmulas: a minha taxa de juros nominal tem que corresponder a uma taxa de juros real mais uma expectativa de inflação. Se eu tivesse acertado, teria cobrado acertadamente  Teria um ganho bruto de (1+0,11) *100=111 e assim poderia comprar 111/10,6 = 10,47 pães. (não dá exatamente 5 pães a mais, por conta de aproximações que fiz com a fórmula).

Quais as implicações da nossa brincadeira. Primeiro, a taxa de juros real eu chutei. Vale lembrar que é uma variável não observável, mas pode ser inferida com pouca precisão, é certo. Por que pode ser aferida? Por conta da arbitragem planetária. Se alguém ganha acima do que os demais estão ganhando, há uma corrida em direção ao mercado lucrativo, fazendo com que a arbitragem produza seu efeito: os ganhos seriam iguais e assim uma taxa de juros real ficaria de fato inabalada. A razão da corrida? Chame do que você quiser. De inveja, de cobiça, seja lá o que você quiser chamar, mas a razão econômica é simples: se deixar passar a oportunidade, sou engolido pelo sistema capitalista. Então se alguém ganha acima dos demais, a turma vai ao mercado ganhador e investe aos montes até que a rentabilidade extra desapareça e a taxa de juros reais prevaleça em todos os negócios. Essa taxa de juros real pode ser mascarada por outra razão. A nossa segunda observação. Se há incerteza na economia, a taxa de juros real pode ser encoberta por esse fenômeno, de tal forma que tenho que calibrar mais minha taxa de juros nominal, supondo que as expectativas inflacionarias sejam conhecidas e dadas. Então se soma a incerteza à inflação esperada.

No caso do Brasil, nossas taxas de juros nominais são altas por conta da expectativa inflacionaria que é ajustada pelo Banco Central pelo cenário econômico no visor de sua tela prospectiva. Então, calibra-se a taxa de juros básica, na crença de que se ajustando essa taxa, as demais caminhariam em linha, com a esperança de que o deslocamento de todo o feixe de juros seja coerente com a taxa básica. Como provavelmente a calibração não está correta, a taxa de juros real da fórmula de Fisher é estimada de forma exagerada. O que faz a turma de empresários que precisam investir no seu próprio negócio? Vão comparar o que ganham investindo no seu negócio (a taxa de juros real que eles conhecem que está abaixo da que o Banco Central faz a turma crer que seja a verdadeira) com o ganho investindo no mercado financeiro. Se seu negócio é menos atrativo do que o financeiro, retardam o investimento no seu negócio. Como podem fazer isso? Usando as máquinas e os seus equipamentos por um tempo maior do que outra forma o fariam. Mas certamente seus custos vão aumentar e perderão competitividade. Como resolvem o problema? Alguém tem que ajudar essa turma tupiniquim, para não serem engolidos pela arbitragem planetária. Se ficam por muito tempo no mercado financeiro, de duas uma: ou os juros sobem mais ainda para compensar seus custos elevados ou alguma proteção explicita do governo está a postos (Estado, se a proteção é duradoura, ou seja, a proteção estaria incorporada ao modelo). A redução de custos vai ocorrer de forma exógena ao negócio – por redução salarial, modificação no câmbio, incentivo fiscal, etc. A consequência disso pode ser uma armadilha da qual não conseguimos nos libertar. Esse padrão é autofágico e em algum momento ele terá que ser corrigido e, pelo rastro histórico, continuará tudo como dantes, mas piorando para a turma do andar debaixo cada vez mais. Contudo, fácil ver a saída econômica. Só que o problema é político! Está tudo bem para os de sempre, não importa quem pague a conta.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Views: 22

Como é que me defino politicamente? LIBERAL!

Marco Aurélio Bittencourt

Aproveito ideia de outro blogueiro e faço minha confissão pública sobre minhas preferências em política. Lembro meu entendimento sobre o modelo brasileiro: o do rent seeking (na minha linguagem, o modelo da pilhagem). Lembro ainda o objetivo: tratar de assuntos pertinentes a sociedade e economia brasileira, com implicações econômicas. O foco é de economia política (não consigo ver o estudo da economia de outra forma).

A bem da transparência, é instrutivo estruturar o meu pensamento político. Até porque podem os raríssimos leitores inferirem posturas que abomino, caso sejam levados por clichês. Evidentemente, sigo a recomendação de David Hume (discutir com idiota, você sempre perderá, pois esses estão presos a clichês e verdades absolutas). Todavia, reconheço que não é fácil fugir dos clichês. Às vezes usamos expressões que podem ter interpretações diversas, mas podem encurtar caminhos. Eu mesmo me valho dessa estratégia. Reconheço que há uma mixórdia no entendimento do que seja liberal.

Começo então minha preleção me declarando liberal, com muitos pontos de contato com a socialdemocracia e alguns com o conservadorismo. Sou a favor de um Estado com funções robustas, mas não de um Estado excessivamente ativista. As funções que fazem o Estado robusto se prendem basicamente: à justiça, segurança, defesa nacional, saúde, educação, previdência social e assistência social, a infraestrutura, a conservação dos recursos naturais e à regulação das atividades econômicas que não estejam no contexto competitivo. Na órbita municipal, principalmente o controle do plano diretor a tornar as cidades agradáveis para se viver. Essas atividades devem ser públicas, mas, exceto a segurança e a defesa, justificariam o funcionalismo público. As demais poderiam ser executadas pelo setor privado ou ter forma de seleção simplificada, com salários equiparados ao do setor privado. Quanto ao funcionalismo em si, deveria ser apenas uma categoria e não importa se executivo, judiciário ou legislativo. Deveríamos ter dois níveis: superior e técnico, seguindo as profissões já reconhecidas. A regra básica para postos de gestão em todas as esferas públicas seria a de rodízio e indicação eletiva. No tocante as empresas estatais, lembro a lógica de sua criação (a valer para a grande maioria das empresas): a recusa do setor privado em colocar dinheiro nesses negócios. Sendo assim, não vejo razão para privatizá-las. Se argumentam ineficiência, que pode ser verdade, mas o remédio não seria privatizar e sim estabelecer boa governança. De qualquer forma, havendo interesse em privatizar, duas regras a observar: a) não pode haver aumento de poder de mercado e b) tem que haver aumento no investimento. Quanto à regulação, de forma geral, tem que manter o ambiente competitivo. Regulação que aumenta o poder de mercado ou a empresa privatizada não gerar investimento devem ser consideradas ilegais.

O Estado também pode e deve ter algum papel redistributivo e alocativo. Os programas assistenciais devem se guiar por dois parâmetros: social e financeiro. Fome não pode existir. Moradores de rua devem contar com suporte municipal. Educação básica garantida a todas as crianças e jovens com um padrão de qualidade definido e pelo menos idêntico ao do setor privado.  Dada a realidade econômica (ver http://chutandoalata.blogspot.com/2020/11/olhando-o-brasil-de-uma-maneira-simples.html), uma profissão em nível técnico deve ser garantida a todos. A universidade só seria custeada para os reconhecidamente pobres e para esses seria concedido uma remuneração básica, com contrapartida social de trabalho condizente com a atividade estudantil, em tempo e modo. O segundo parâmetro é que o custo do programa deverá ser decrescente ao longo do tempo.

No tocante ao aspecto alocativo, todas as funções de governo devem estar retratadas no orçamento público e, portanto, com o aval da sociedade. Destaque deve ser dada às atividades de infraestrutura e de conservação dos recursos naturais, tendo em vista principalmente os efeitos de externalidade. A omissão aos princípios legais e constitucionais deve ser considerado crime cometido pelo gestor público afeto à questão específica.

Toda atividade pública tem que contar com apoio legal expresso na Constituição ou lei específica relativo ao gasto específico. Não constando, não pode ser objeto de pauta orçamentária. Por fim, o orçamento público deve ser equilibrado em todas as esferas institucionais (união, estado e município). O ente federal poderá, em casos de notória recessão, que desbalanceia receitas e despesas, apelar para o endividamento público temporário. Todo e qualquer ajuste nas despesas só poderá ocorrer na forma de redução das remunerações, quer para empresários beneficiados orçamentariamente, quer para funcionários. O desequilíbrio se não revertido e tiver implicações sobre o pagamento de juros sobre a dívida pública e revelando-se excessivo, deve ser monetizado.

Além de tudo isto, para poder financiar os bens públicos fundamentais, o Estado não pode ser fraco a nível fiscal, pelo que tem de travar uma guerra sem tréguas à evasão fiscal, interna e externa (paraísos fiscais). A eficiência burocrática deve ser uma política sem fim.

Podem carimbar o que descrevi acima como direita liberal, mas será uma simplificação porque apenas uma dimensão (esquerda-direita) é insuficiente para descrever o meu pensamento sobre as todas as escolhas políticas necessárias para o mundo complexo à nossa volta. Por exemplo, sou católico não praticante e sempre fui “de esquerda” a nível dos costumes. Considero muito positiva a política de descriminalização do consumo de drogas em que os viciados são tratados como doentes e não como criminosos. Em relação a lei do aborto, sou tolerante com a possibilidade e recomendo observarem o debate que se travou no Uruguai, mas meu voto seria contrário. Quanto à ideologia de gênero, sou contrário. Mas não endosso nenhum comportamento contrário à opção sexual. Em resumo, entendo que o preconceito é uma máscara para manter os mais fracos socialmente nessa condição de fraqueza para exploração pura e simples da força de trabalho. Em relação ao politicamente correto, sou totalmente contra. Atitude é tudo. O amparo legal entendo que já existe o suficiente para proteção dos que se consideram desamparados na órbita dos costumes. Mas isso não implica que não devemos rever as políticas públicas e leis que dão amparo aos atingidos pela discriminação e preconceito. Por fim, sou plenamente favorável ao estabelecimento de ONGs. A regra para participação pública nessas entidades é simples: acatar o modelo de ONG do governo e só conceder benefício se a ONG contar com benefício privado, tendo limite governamental de um % dos gastos privados menor do que 60%.

Pode ser que tenha deixado de fora alguns itens para definição clara de uma posição política. Em tempo poderei fazer o devido ajuste. Deixo ainda expresso que apoio integralmente a rebeldia verdadeira. Infelizmente nossa constituição, diferentemente de outras como a alemã, não dá amparo legal a tal situação de rebeldia verdadeira (cada um que defina a sua).

Retirei esse artigo de minha coletânea de artigos que publiquei em meu blog http://chutandoalata.blogspot.com , antes da pandemia. Pode ser que agora, pelo efeito da covid-19, possa ter mudado minha posição política, quer por interesse, quer seja por paixão. Evidentemente, não gastarei do meu colesterol bom para mimos. Para aqueles acompanhados por querubins em purgatório que travam cancelamento tosco, apenas usarei o ruim, já seguindo a abreviação não oficial e nem recomendável: VPPQP!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Views: 49