Os movimentos dos candidatos no processo eleitoral: a busca pelos eleitores do centro.
EditorialEstamos à beira das eleições majoritárias no Brasil e nada mais interessante que apresentarmos algumas...
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Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça
As democracias são sempre frágeis[1], podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder[2] e a sua erosão é, para muitos, quase imperceptível.[3]
A democracia é dinâmica, é diária, é dialética. Exige um esforço hercúleo de autocontrole dos Poderes, demanda harmonia, independência, serenidade, responsabilidade, respeito irrestrito ao desenho institucional de atribuições de competências feito pelo legislador constituinte, reclama bom senso, razão, sabedoria.
A democracia se assemelha a um equilibrista e o seu exercício implora pelo desempenho nos estritos limites da legalidade dos três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário –. Não permite excessos, abusos de poder, rompantes autocráticos. E, assim como um equilibrista, a democracia precisa caminhar diariamente pela corda bamba, com atenção, com vagar, com habilidade própria. Se assemelha ao tormento de Sísifo e de sua luta incansável para colocar “todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada”.[4] A autocontenção é diária porque o poder inebria, consome, embaralha as ideias, corrompe.
Esopo, escritor da Grécia Antiga (620 a.C a 564 a.C) em sua sabedoria nata narrou a fábula sobre “O javali, o cavalo e o caçador” que bem demonstram a sedução e o arrebatamento do “poder” sobre a natureza humana.
Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou, mas disse: ‘Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo”. O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: ‘Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas’. ‘Não tão rápido, amigo’, disse o caçador. ‘Eu o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim’.[5]
O enevoamento provocado pelo poder e pela possibilidade e probabilidade de seu abuso é da natureza humana. Mas, como controlá-lo? Encontrar esses limites não é tarefa fácil. A primeira Constituição brasileira de 1824 previu o Poder Moderador em seu artigo 98[6], entendido como a chave de toda a organização política, delegado ao Imperador, com o objetivo de se alcançar a independência, o equilíbrio e a harmonia dos demais poderes políticos, tendo sido extinto logo após a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889.
A partir desse momento histórico, as Constituições brasileiras passaram a adotar a Teoria da Separação dos Poderes, também conhecida como sistema de freios e contrapesos (checks and balances systems) consagrada por Montesquieu, em sua obra, “O Espírito das Leis”, a partir dos ensinamentos deixados por Aristóteles (Política) e John Locke (Segundo Tratado do Governo Civil). O art. 2º da Constituição Federal de 1988 prevê que “[s]ão poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
O cerne do sistema de freios e contrapesos está em que cada poder seja autônomo e exerça a sua função típica nos limites de suas atribuições constitucionais. Para contrabalancear cada poder, sobretudo, apoiado na ideia de que só o poder controla o poder, a própria Constituição prevê o exercício das funções atípicas por cada um dos Poderes, controlando-se uns aos outros. Essa é a grande chave para o sucesso das democracias. Com a adoção dessa teoria, Montesquieu defendia que seriam evitados governos absolutistas, de modo que a teoria da separação dos poderes é princípio básico de organização da maioria dos Estados democráticos. De igual modo, J.J Gomes Canotilho diz que “[e]stado de direito é a da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes”.[7]
A grande preocupação é, pois, a estabilidade do poder. Se, de um lado, a independência e a harmonia dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário)[8] são a chave para o sucesso da democracia, encontrar esse equilíbrio, na prática, apresenta-se como uma tarefa mais árdua do que se possa imaginar.
Levitsky & Ziblatt, ao escreverem o best-seller “Como as democracias morrem” chamam à atenção de como as democracias estão sendo enfraquecidas em dezenas de países – e de modo perfeitamente legal, com a utilização do próprio Direito, do mesmo modo em que ocorreu no nazifascismo alemão praticado sob a égide da República de Weimer de 1919, a primeira Constituição democrática alemã.
Georges Abboud registra que
“[d]urante o regime Nacional-Socialista, o direito produzido democraticamente foi manejado para fins diversos, subordinado aos interesses do partido de Hitler e à sua agenda genocida e autoritária. Ao contrário do que se imagina, o sangue derramado não se deu sob o império cego das leis positivistas. As ferramentas de degeneração agiram de forma escamoteada, tendo, nas decisões judiciais sem limites, o instrumento de consolidação daquele projeto político totalitário.”[9]
Entre a ditadura e a democracia, há uma distância. Entre o Estado de Direito e o Estado de não Direito também há. Em ambos os casos, trata-se de dois pontos de uma mesma reta e o Estado será mais democrático ou mais ditatorial, conforme uma confluência de fatores externos, sobretudo, como os Três Poderes exercem as suas competências e reconhecem seus limites.
Nesse ponto, registre-se que “[o] não direito não é a funcionalização da barbárie. O não direito produz a barbárie sob o signo do direito, mediante corrupção e apodrecimento de suas instituições.”[10] Além disso, “[p]reservar o direito, encará-lo como um produto democrático pelo qual todos temos de zelar, é preservar, sempre, a democracia em si mesma.[11]
O direito precisa ser preservado da degeneração. E a degeneração do direito não significa somente que novas leis – autocráticas – serão publicadas ou que uma nova ditadura virá por decreto como ocorreu na história brasileira em 1964 com o Ato Institucional nº 5. A sutileza está na interpretação e na aplicação das leis tidas como “legais”. É preciso separar o Estado de Direito do Estado de não-Direito e não permitir que não-direitos sejam produzidos sob a maquiagem de um Estado de Direito. Estejamos ainda mais atentos.
[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 13.
[2] Idem, p. 15.
[3] Idem, p. 17.
[4] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. 9. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 122.
[5] Esopo (620 a.C. – 564 a.C.), escritor da Grécia Antiga, foi o responsável pela criação e divulgação do gênero literário.
[6] Art. 98, Constituição de 1824. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.
[7] CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de Direito, p. 3.
[8] Art. 2º, CRFB/1988. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
[9] ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thompson Reuteurs Brasil, 2021, p. 37.
[10] Idem, p. 109.
[11] Idem, p.36.