Defesa da concorrência

Algumas reflexões sobre o mercado relevante na economia digital: uma nova agenda de pesquisa

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Pensar nunca foi uma tarefa fácil. Temos sempre escrito e feito menção incansável ao ensinamento de Albert Camus no sentido de que “[p]ensar é reaprender a ver, a ser atento, a dirigir a própria consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado,”[1]de tal modo que toda vez que se identifica rupturas paradigmáticas que modificam totalmente a forma como a humanidade se vê no mundo, há um inegável impacto na sociedade, na economia e, também nas leis que compõem os ordenamentos jurídicos. Assim, tem ocorrido com o conceito de mercado relevante que foi elaborado no âmbito da teoria antitruste sob o prisma de uma economia analógica, bastante diferente da realidade econômica (digital) como a que vivemos hoje.

Diante dessa nova economia digital, muitos dos pilares do direito antitruste precisam ser repensados e analisados, de modo a verificar se as estruturas legais que existem hoje, criadas no âmbito de uma economia analógica, são suficientes e eficazes para lidar com os novos tempos.

Para relembrar, o mercado relevante é um conceito que envolve duas dimensões: dimensão produto e dimensão geográfica. A dimensão produto está associada com a substitutibilidade entre os bens e a dimensão geográfica é representada pelo locus geográfico onde a concorrência se dá.

Estas duas dimensões são clássicas e são muito bem aplicadas para bens e serviços maduros que são negociados em ambientes não influenciados diretamente pela economia digital. O exemplo clássico que vem à mente é o do cimento que, segundo a jurisprudência do CADE, tem a sua dimensão produto como sendo o próprio cimento não havendo substitutos, e tem como dimensão geográfica o raio de 500 km a partir da cimenteira.

No entanto, o que acontece quando a economia não é mais só física? Quais são os pilares que sustentam uma economia digital e como o direito antitruste deve se posicionar diante de uma economia mista – física e digital? Pensemos.

Atualmente, a economia digital está inserida em todos os mercados de produtos físicos existentes, e nos mercados de produtos da nova economia, que são produtos definidos por mudanças rápidas e contrastes acentuados[2], conforme definição apresentada por Charles Alexander[3].

A economia digital atua produzindo bens e serviços totalmente digitais e viabilizando a comercialização dos produtos físicos em lugares que não eram economicamente viáveis. Três situações distintas podem acontecer: (i) mercados de produtos físicos sem substitutos digitais; (ii) mercados de produtos físicos com substitutos digitais; e (iii) mercados de produtos somente digitais.

Adicionalmente, os produtos digitais e físicos podem ser vendidos por meio de: (i) plataformas digitais com centro de distribuição; (ii) plataformas digitais de produtos digitais; (iii) lojas físicas de venda de produtos digitais; e (iv) lojas físicas de vendas de produtos físicos.

No mercado de bens físicos que não encontram substitutos digitais, como é o caso de bens de engenharia pesada, as dimensões produto e geográfica dos seus mercados relevantes pouco se alteram, pois, ainda que o acesso à informação de novos produtos tenha se ampliado para os consumidores com a revolução digital, se este desenvolvimento não for capaz de reduzir os custos de transporte e/ou de internalização de forma significativa, não é o fato do consumidor identificar outras marcas de produtos em outras localidades que garantirá que este produto seja um substituto efetivo. Nesse caso, o custo do transporte da mercadoria é um fator determinante para a definição do mercado relevante.

No mercado em que os produtos físicos possuem substitutos digitais, o advento da economia digital pode afetar a dimensão produto quando os produtos da economia digital são substitutos dos produtos físicos tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta e, também podem afetar a dimensão geográfica quando o consumidor tem a possibilidade de consumir os dois bens em um determinado locus geográfico.

Diz-se que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da demanda quando o consumidor é indiferente entre consumir um ou outro bem. (ex. este é o caso do livro e do e-book) e se diz que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da oferta quando a empresa consegue intercambiar a produção de um bem pelo outro sem que isso se torne economicamente inviável.  Os produtos digitais e físicos serão consumidos dentro do mesmo locus geográfico sempre que o custo do consumidor para consumir um ou outro bem não inviabilize a demanda do consumidor pelo bem.

Define-se a dimensão geográfica dos produtos físicos como sendo o raio em que o consumidor está disposto a se deslocar a partir da sua origem para adquirir o bem. Vale mencionar que a disposição a se deslocar do consumidor está associada com o custo para a realização desta aquisição.

A dimensão geográfica dos produtos digitais, no entanto, não envolve qualquer raio para aquisição, pois o consumidor precisa apenas adquirir o produto instantaneamente em seu computador ou smartphone.

Portanto, para produtos físicos que tenham substitutos digitais, a economia digital ampliou as dimensões produto e geográfica, chegando o produto físico, em alguns casos, a ser eliminado do mercado. O mercado de formulários e darfs físicos é um exemplo de como um produto físico foi extinto em detrimento de um substituto digital. Isto aconteceu para todos os serviços públicos que exigem pagamentos e atestados públicos. Para estes mercados, a dimensão geográfica perdeu a sua efetividade, pois passou a ser todo o mundo onde houver internet e equipamentos eletrônicos que permitam a sua conexão.

Por fim, no mercado de produtos digitais que não encontram produtos físicos como substitutos, a única dimensão do mercado relevante que faz sentido analisar é a dimensão produto.

No limite, o que se verifica é que o avanço da economia digital tem tornado sem eficácia a análise da dimensão geográfica do mercado relevante quando os produtos digitais encontram ou não substitutos físicos.

No entanto, para os produtos físicos que não encontram substitutos na economia digital, as dimensões produto e geográficas continuam relevantes e as suas alterações dependerão do diferencial de desenvolvimento digital existente entre as regiões do mundo. Se os ganhos da economia digital em termos de custo afetarem igualmente todos os mercados físicos no mundo, as dimensões não se alteram, pois “pau que dá em Chico dá em Francisco”. No entanto, se a economia digital afetar mais algumas localidades do que outras, os mercados relevantes daquelas localidades em que se apropriarem menos do ganho digital tenderá a se ampliar comparativamente com as demais regiões.

A lição que fica é a de que em uma economia mista – analógica e digital – é inquestionável que as autoridades antitrustes do mundo devam avaliar em que mercado o produto, objeto de avaliação, está inserido (puramente físico, físico e digital ou puramente digital) e, conforme a sua substituibilidade, adotar um dos critérios, adequando os seus conceitos diante da nova realidade digital que se impõe. O direito antitruste não pode fechar seus olhos para as transformações sociais (novo paradigma da tecnologia da informação), sob pena de se perder a própria essência do que se busca proteger. Estejamos atentos!


[1] CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman. 9.ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 38.

[2] “Yet even as the lights are dimming in some old-line industries, technology is spawning boundless opportunities in such esoteric fields as microelectronics, lasers, fiber optics and genetic engineering.” [ALEXANDER, 1983].

[3] ALEXANDER, Charles P. The new economy. Time. May 30, 1983. Disponível em: The New Economy – TIME.

O controle empresarial externo no Direito da Concorrência

Angelo Prata de Carvalho

É uma grande alegria compor o corpo de colunistas do Web Advocacy, e, para a coluna de estreia, tratarei de um assunto de grande relevância para o controle de concentrações que conta com importantes intersecções com o Direito Societário: o controle empresarial externo. Não obstante a sua relevância tanto para o Direito da Concorrência quanto para o Direito Societário, o controle externo ainda carece de critérios dogmáticos consistentes que sejam capazes de identificar grupos econômicos e, ao mesmo tempo, não desnaturem modelos de negócio legítimos e que não instituam direção unitária.

Isso porque, diante da inventividade dos agentes econômicos e da acelerada dinâmica dos mercados, a efetividade do controle prévio de concentrações depende fundamentalmente da existência de ferramentas de análise capazes de dar efetividade ao pricípio da primazia da realidade sobre a forma no Direito da Concorrência. Diante desse cenário, é preciso que sejam desenvolvidos critérios capazes de minimamente verificar a ocorrência do fenômeno, sem que, de um lado, sejam prejudicados modelos de negócio baseados na cooperação interempresarial, e, de outro, se instaure verdadeiro ambiente de irresponsabilidade organizada[1].  

O poder econômico, nesse sentido, não está limitado formalmente aos contornos do Direito Societário, tendo em vista que arranjos societários tradicionais têm dado lugar a arranjos contratuais complexos por meio dos quais, não obstante a conformação aparentemente paritária da relação, são estabelecidos vínculos de dependência e virtude dos quais uma das partes detém fundamentalmente o controle sobre a atividade financeira da outra. Não é sem motivo que, no âmbito da Resolução n. 2/2012 do CADE, a definição de grupo econômico envolve “as empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo”.

            O próprio CADE reconhece, por conseguinte, que os grupos econômicos se estruturam por formas distintas daquela verificável na titularização de participações societárias, notadamente por meio do chamado controle não-societário ou externo. Daí dizer Fábio Konder Comparato que, nesses casos, “o controlador […] não é necessariamente membro de qualquer órgão social, mas exerce o seu poder de dominação ab extra[2]. É preciso, pois, verificar a partir de que momento a influência fática pode traduzir-se em poder de controle, com todos os efeitos jurídicos daí decorrentes, sobretudo no que diz respeito aos efeitos concorrenciais.

                   Evidentemente que nem toda autoridade ou influência externa causada por dependência se traduz em controle externo, na medida em que tais elementos podem fazer parte do próprio modus operandi de alguns negócios empresariais nos quais, não obstante, as partes mantêm suas esferas de autonomia. Por certo, o controle externo não consiste em mera influência ou mera autoridade, mas sim em poder de dominação por meio do qual um determinado agente econômico pode definir a política financeira de uma dada sociedade.

                   A convivência do fenômeno da autoridade com a autonomia das partes contratantes é fenômeno comum em contratos empresariais de colaboração (como a franquia, a distribuição, dentre outros), nos quais as partes se engajam em relação cooperativa bastante intensa, muitas vezes caracterizada pela dependência econômica e por certa ingerência administrativa de uma parte sobre a outra, porém ainda mantendo interesses contrapostos[3].

                   Acontece que, a partir do momento em que a dependência econômica se traduz em dominação sobre a política financeira da sociedade, pode-se obter situação típica de grupo econômico em que, diante da unidade da política financeira das contratantes, verifica-se verdadeira direção unitária[4]. Assim, o controle externo não se configura simplesmente em virtude da existência de ingerência de uma sociedade sobre a outra ou diante de situação de dependência econômica, mas sim quando uma das partes tem o poder de vincular as decisões sobre a política financeira da controlada, tendo em vista que: (i) a influência administrativa não necessariamente vincula a gestão financeira e, por conseguinte, pode modificar tão somente questões periféricas aos planos de ação mais centrais da sociedade; e (ii) a definição de estratégias administrativas não necessariamente importa em controle, mas tão somente pode levar a relação de dependência econômica que, como já se demonstrou, não é suficiente para instaurar controle externo e é parte integrante dos contratos empresariais de cooperação (nomeadamente os relacionais ou híbridos) de maneira geral[5].      

                   Observe-se, por conseguinte, que a identificação de controle externo para a finalidade de configuração de grupo econômico, por mais que dependa fundamentalmente da constatação de indícios concretos de dominação financeira, não deve ser pautada por análises casuísticas que eventualmente concluam pela existência de controle não-societário em qualquer relação que produza dependência econômica. Pontua Champaud, nesse sentido, que pode ser interessante a estruturação de um sistema de indícios de dependência destinados a evidenciar manifestações efetivas da dominação econômica. Isso porque, segundo o autor, a mera dependência ou a existência de algum grau de subordinação de uma sociedade perante outra deve no mínimo constituir indício para que se possa investigar se a sociedade “dominada” faz parte de grupo econômico, porém não se trata de elemento suficiente para tanto[6].

                   Dessa maneira, indício relevante de dependência econômica seria justamente a existência de arranjo contratual por meio do qual a sociedade dominante determina a escolha dos produtos ou condições de produção da sociedade dominada, situação que se confirma mediante a análise das origens, as condições de exercício e das perspectivas de implementação dessa sujeição. Acontece que a existência de contratos especificamente voltados à instauração de relação de dependência é apenas exemplo mais explícito de fenômeno que pode ocorrer no âmbito de cláusulas específicas que fixem margens de comercialização, regras de ação comercial, obrigações de recorrer a prestadores de serviço específico (como, por exemplo, a uma determinada instituição financeira), regras de conduta financeira específica e, em última análise, objetivos relacionados ao orçamento, aos investimentos e às finanças da sociedade subordinada[7].

                   Seja no Direito da Concorrência, seja no Direito Societário, é fundamental que se construa critério operacional de identificação e definição do controle externo, que deve consistir na definição da política financeira da empresa controlada, a refletir a dominação sobre as decisões verdadeiramente estratégicas. Assim, para além da menção ao controle externo na Resolução n. 2/2012 do CADE, faz-se necessária reflexão aprofundada sobre os critérios a serem adotados para a identificação de grupo econômico, de tal maneira que, para os efeitos pretendidos pelo Direito da Concorrência, é importante que no mínimo o controle externo seja constatado a partir de parâmetro claro que tanto seja capaz de constatar as diversas formas de dominação que possam vir a existir quanto seja sensível às funções econômicas dos negócios jurídicos analisados.


[1] TEUBNER, Gunther. Networks as connected contracts [edição eletrônica]. Oxford: Hart Publishing, 2011.

[2] COMPARATO, Fabio Konder SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio e Janeiro: Forense, 2005. p. 89.

[3] PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Os contratos híbridos como categoria dogmática: características gerais de um conceito em construção. Revista Semestral de Direito Empresarial, n. 19, pp. 181-229, jul./set. 2016.

[4] ANTUNES, José Engrácia. Os grupos das sociedades: estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. Coimbra : Almedina, 2002. pp. 116-117.

[5] Ver: PRATA DE CARVALHO, Angelo. Controle empresarial externo: a intervenção sobre a política financeira como critério de responsabilização do controlador. Rio de Janeiro: Processo, 2020.

[6] CHAMPAUD, Claude. Recherche des critères d’appartenance à um groupe. In: _______. Droit des groupes de sociétés. Paris: Librairies techniques, 1972. pp. 29-36.

[7] CHAMPAUD, Op. cit., 1972, pp. 29-36.

Benjamin Shieber e os mitos fundadores do Direito da Concorrência brasileiro

Angelo Prata de Carvalho

Ao passo que a busca por fundamentos históricos ou mitos fundadores insistentemente permanece nos capítulos introdutórios de manuais das mais diversas searas jurídicas, o Direito da Concorrência tende a associar seus fundamentos ao necessário dinamismo dos mercados e, portanto, a cercar-se de atualidade para que permaneça capaz de compreender adequadamente os influxos econômicos e suas repercussões jurídicas. Trata-se, assim, de ramo do direito altamente especializado e fortemente marcado por aportes interdisciplinares e, portanto, por formas distintas de ver-se o mundo que não raro atribuem ao Direito da Concorrência funções aparentemente elementares – como, por exemplo, qual deve ser a sua finalidade.

A busca por sentido da defesa da concorrência é, de fato, uma constante nas discussões sobre a matéria a nível global, porém no contexto brasileiro recebe especial destaque diante de problemas como a construção de uma cultura de concorrência nos mercados nacionais e a sedimentação, ao longo do tempo, de bases institucionais sólidas. Isso porque, apesar de se tratar de seara jurídica positivada no ordenamento brasileiro há várias décadas, remontando a 1945, o Direito da Concorrência brasileiro oscila na eleição de marcos históricos e, em última análise, na adoção de estruturas explicativas para suas finalidades.

A história recente do Direito da Concorrência brasileiro foi, de fato, extremamente marcante, de tal maneira que não raro é tomada apenas como o período compreendido entre a criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) como hoje o conhecemos (especialmente a partir da Lei nº. 8.884/1994) e os dias atuais. Tal compreensão, no entanto, acaba por gerar um verdadeiro paradoxo, na medida em que não se ignora a existência de uma vida pretérita desse ramo do direito no Brasil, porém, tornando real o adágio de que “no Brasil até o passado é incerto”, as origens do Direito da Concorrência brasileiro são, no mínimo, nebulosas, com menções esparsas a poucos casos e poucos autores centrais.

Tal cenário ganha aspectos tão marcantes que os primórdios do antitruste nacional se atrela a verdadeiros “mitos fundadores”, como é o caso da contenda entre Agamenon Magalhães e o empresariado brasileiro para a criação do Decreto-Lei nº. 7.666/1945, pejorativamente denominado “Lei Malaia”[1]. A incerteza quanto aos próprios marcos explicativos da disciplina, assim, impede muitas vezes que se retroceda a período anterior a 1994 no intuito de mais bem compreender-se a razão de ser de determinados institutos ou mesmo identificar-se determinadas influências.

Dentre esses mitos fundadores certamente se situa Benjamin Shieber, advogado trabalhista norte-americano, professor da Universidade do Estado da Louisiana, que veio ao Brasil por diversas vezes ao longo dos momentos mais preliminares da formação de nosso Direito da Concorrência. Por diversas vezes ao longo da década de 1960 e mesmo em períodos posteriores, Shieber vem para o Brasil – ora como advogado interessado em novas áreas de atuação, ora como bolsista e pesquisador interessado em estudar a matéria ou mesmo como representante da American Bar Association – e dedica-se a estudar tanto o Direito Antitruste em construção quanto a própria língua portuguesa, contando com o auxílio de professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e da rica biblioteca da instituição (tanto que, mesmo no prefácio de sua obra clássica, faz especial menção às bibliotecárias que o ajudaram).

Esses períodos de verdadeira imersão no nascente Direito da Concorrência brasileiro redundaram no clássico Abusos do Poder Econômico[2], que permaneceu por vários anos como a principal obra de referência no contexto brasileiro e ainda mantém inegável atualidade, seja por seu esforço de sistematização das instituições recém-inseridas no contexto brasileiro, seja por abordar discussões sobre a pertinência de determinadas metodologias que perduram até o presente momento – como, aliás, as finalidades do Direito da Concorrência.

Exemplo disso é a noção de mercado relevante e a polêmica quanto à metodologia para a sua definição, que deve estar constantemente atenta a alterações dos mercados reais com vistas a gerar adequadas representações analíticas, sobretudo em um contexto em que premissas tradicionais são colocadas em xeque, seja pela liberalização dos mercados nacionais à sua época, seja pelo advento da economia digital na atualidade. Daí ser possível dizer que Shieber tinha por intuito endereçar duas questões fundamentais: “o que seriam os mercados nacionais e como devemos julgar se uma empresa domina para os fins da lei”[3]

Cabe recordar, nesse sentido de um dos juristas que esteve em contato com Shieber durante suas vindas ao Brasil, Antonio Cândido de Azevedo Sodré Filho, que veio a publicar, em 1992, seus próprios Comentários à legislação antitruste, com referência então à Lei nº. 8.158/1991, que não tardou a ser revogada pelo advento da mais conhecida Lei nº. 8.884/1994. Na obra em questão, Sodré Filho relata que seu interesse com relação ao Direito da Concorrência adveio justamente de seu contato com Shieber nos anos 1960, concluindo, após rememorar sua experiência nos primeiros anos de Antitruste no Brasil, que “Passados 28 anos, praticamente nada mudou”[4].

A construção de um Direito da Concorrência brasileiro comprometido com as premissas do ordenamento brasileiro e capaz de estruturar seus próprios pressupostos teóricos e analíticos – por mais que retire inspiração do direito estrangeiro, o que, aliás, foi justamente o que inspirou a vinda de Benjamin Shieber dos Estados Unidos para estudar o Antitruste brasileiro – passa fundamentalmente pela compreensão de alguns dos mitos fundadores que, quando desmistificados, talvez contribuam muito mais para a elucidação de alguns problemas contemporâneos do que quando se apresentam como lendas.

Este artigo, aliás, integra uma pesquisa mais extensa, ainda em andamento, que contou com a inestimável e honrosa ajuda do próprio professor Benjamin Shieber, que conta com uma memória invejável, um português impecável e um interesse ainda muito vívido sobre suas contribuições para o Direito da Concorrência brasileiro. Termino este texto, assim, com devido agradecimento por toda sua generosidade nas conversas que tivemos, e que certamente ainda servirão para que não nos esqueçamos de um texto tão influente quanto Abusos do poder econômico.


[1] Ver: BAPTISTA, Luiz Olavo. Origens do direito da concorrência. Revista da Faculdade de Direito da USO. v. 91, pp. 3-26, 1996.

[2] SHIEBER, Benjamin M. Abusos do poder econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966.

[3] CORDOVIL, Leonor. Comentário: Benjamin Shieber e o antitruste: das lacunas de 1962 à Lei 12.529/2011. Revista dos tribunais. v. 918, pp. 50-60, abr. 2012.

[4] SODRÉ FILHO, Antonio C. de Azevedo; ZACLIS, lionel. Comentários à legislação antitruste. São Paulo: Atlas, 1992. p. 17.

Quosque tandem Robert Bork abutere patientia nostra?

Angelo Prata de Carvalho

Um dos principais objetivos desta coluna é refletir a respeito das premissas teóricas do Direito da Concorrência brasileiro, razão pela qual vários dos artigos anteriormente aqui publicados procuraram tratar seja das bases constitucionais do antitruste, seja de alguns dos “mitos fundadores” que orientam a compreensão dos operadores do direito sobre a defesa da livre concorrência. Este artigo, assim, tem por objetivo apontar as contradições associadas a um “mito fundador” mais recentemente agregado ao Direito da Concorrência brasileiro, por mais que tenha sido também importado da prática norte-americana: a obra de Robert Bork.

Bork, com sua famosa obra The Antitrust Paradox, firmou profundas raízes na literatura e mesmo na prática concorrencial brasileira, figurando como citação quase obrigatória para tratar-se da matéria. No entanto, a forte presença do autor nos debates contemporâneos causa estranhamento não somente em virtude do enfraquecimento das premissas da escola da Chicago, mas também diante da construção de uma aura de autoridade quase inquestionável em torno de figura altamente controversa mesmo no contexto norte-americano.

Não é por acaso, aliás, que o obituário de Bork na revista The New Yorker escrito pelo jornalista Jeffrey Toobin afirmou que o jurista era “um reacionário impenitente que esteve do lado errado de todas as grandes controvérsias jurídicas do século XX”[1]. Isso porque Bork, paralelamente à difusão de sua obra em Direito da Concorrência, foi o protagonista de uma das maiores controvérsias associadas à nomeação de um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos quando, ao ser indicado pelo Presidente Reagan em 1987 para ocupar um assento na corte, foi alvo de contundentes críticas de diversos juristas relevantes em virtude de suas opiniões controversas, especialmente quanto à posição segundo a qual a Constituição norte-americana deveria ser lida segundo a intenção original dos constituintes. Uma das principais vozes contra Bork foi a de Ronald Dworkin, que chegou a apontar publicamente que Bork – ao defender platitudes como a de que juízes não devem buscar princípios mais gerais do que os admitidos pelas palavras, pela estrutura e pela história da Constituição – desdenhava do raciocínio jurídico ao sentir-se desobrigado a tratar a Constituição como uma estrutura integrada de princípios morais e políticos, sem qualquer responsabilidade inclusive diante dos princípios subjacentes a decisões da Suprema Corte das quais o jurista discordava[2].

Ao passo que o movimento contra Bork foi bem-sucedido ao evitar que fosse alçado à Suprema Corte, causa algum estranhamento que, ao analisarmos a sua obra no campo do Direito da Concorrência, não seja comum que venha ao caso o fato de que o autor tenha falhado miseravelmente em obter o cargo que buscava e em aprofundar e solidificar suas compreensões a respeito da interpretação constitucional. Pelo contrário, a constante utilização de sua obra muitas vezes parece fazer referência a outro Bork, descolado da realidade que o circundou e que verdadeiramente o consumiu após o fracasso de suas pretensões.

Acontece, no entanto, que Bork procurava aplicar ao Direito da Concorrência metodologia bastante semelhante àquela que procurava utilizar para interpretar a Constituição norte-americana, de tal maneira que a sua famosa conclusão quanto à finalidade do Direito Antitruste – isto é, o bem-estar do consumidor, que se alcança mediante o incremento da eficiência econômica –  não decorre da aplicação de metodologias econômicas rígidas que vieram a caracterizar as análises que adotam suas premissas, mas sim de uma pretendida interpretação originalista do Sherman Act.

Em outras palavras, por mais puristas que se pretendam as análises econômicas associadas à Escola de Chicago tão inspirada por Bork, o ponto de partida teórico do autor passa justamente por uma leitura açodada e limitada da legislação concorrencial norte-americana,  partindo não de uma visão sistemática do sistema jurídico em questão, mas de uma suposta vontade legislativa que, em última análise, macula qualquer pretensão de objetividade com profundo decisionismo[3].

Evidentemente que a influência de Robert Bork sobre o Direito da Concorrência – seja o norte-americano, seja o brasileiro – é inegável, no entanto acolher suas premissas sob o pretexto de que seriam sustentadas por um método consistente significa ignorar o contexto em que foram desenvolvidas e as profundas críticas que se pode a elas fazer diante de um sistema jurídico fundado em determinados princípios estruturantes – preocupação que ainda mais salta aos olhos em países que, como o Brasil, vinculam seu Direito da Concorrência a uma ordem econômica constitucional voltada a promover valores diversos.

Cabe indagar para Bork, dessa maneira, tal qual fez Cícero para Catilina perante o Senado Romano, não somente até quando abusará de nossa paciência – com teorias travestidas de tecnicismos para ocultar visões inconsistentes com o sistema jurídico –, mas também “Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?” e “A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?”.


[1] TOOBIN, Jeffrey. Postcript: Robert Bork, 1927-2012. The New Yorker. 19 dez. 2012. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/postscript-robert-bork-1927-2012.

[2] Ver: DWORKIN, Ronald. The Bork Nomination. The New York Review. 13 ago. 1987.

[3] Ver: ORLAND, Leonard. Robert Bork: An evaluation. Disponível em: http://digitalcollections.library.cmu.edu/awweb/awarchive?type=file&item=691329.

Sham litigation e a importância do desenvolvimento de parâmetros para o abuso de petição no direito brasileiro

Angelo Prata de Carvalho

A evidente influência do Direito da Concorrência norte-americano sobre o direito brasileiro já foi, por diversas vezes, objeto das discussões trazidas por esta coluna. No artigo de hoje, pretende-se tomar como exemplo uma conduta específica – o abuso de direito de petição com finalidade anticoncorrencial, conhecido como sham litigation – para demonstrar as dificuldades oriundas dos potenciais descompassos entre os fundamentos que orientam os ordenamentos jurídicos de cada uma das jurisdições.

A conduta conhecida como sham litigation¸ referente ao uso abusivo de procedimentos administrativos ou processos judiciais com a finalidade de afastar concorrentes do mercado, nasce no direito norte-americano como exceção à chamada doutrina Noerr-Pennington, segundo a qual a legislação antitruste não poderia impedir o acesso dos cidadãos aos poderes públicos[1], reconhecendo a validade de ações legítimas para influenciar decisões de agentes públicos[2]. Contudo, o direito de petição é assegurado tão somente até o limite do razoável, não podendo ser utilizado como estratégia para mascarar a implementação de estratégia tendente a lesionar a livre concorrência. Trata-se, sem dúvida, de conduta de fundamental relevância, na medida em que tem o condão de afetar fortemente a concorrência sem sequer exigir poder de mercado considerável, já que seus efeitos decorrem de decisões do poder público[3], o que se agrava em grande medida quando se referem a searas delicadas como a propriedade intelectual[4].

Assim, a jurisprudência norte-americana desenvolveu uma série de testes para a verificação do sham litigation, destacando os conhecidos testes PRE e POSCO. O teste PRE, desenvolvido no âmbito do caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. (508 U.S. 49), quando se afirmou que, para que se excepcione a doutrina Noerr-Pennington, é necessário cumprir dois requisitos: (i) um subjetivo, referente à intenção de utilização de um procedimento estatal como instrumento para a implementação de objetivos anticompetitivos; e (ii) um objetivo, que exige que os pleitos sejam objetivamente infundados (objective baseless claims). O teste POSCO[5], por sua vez, refutou o requisito objetivo do teste PRE ao inferir que o sucesso ou os fundamentos legítimos de um pleito isolado não legitimam uma estratégia anticompetitiva como um todo, sendo necessário verificar, em perspectiva macroscópica, a legitimidade do padrão de conduta verificado no âmbito das diversas ações judiciais apresentadas.

No entanto, deve-se observar esses testes com parcimônia, uma vez que foram desenvolvidos sob cultura jurídica diversa e sob aspectos concretos que não necessariamente se coadunam com os preceitos do ordenamento brasileiro. No Brasil, o sham liigation foi recepcionado como abuso de direito de petição, o que congrega não apenas a doutrina do abuso de direito, mas também uma concepção específica do direito de ação que, na cultura jurídica pátria, foi construída sobre bases distintas daquela pensada no common law.

É necessário, pois, que se desenvolvam parâmetros que sejam consentâneos com os princípios processuais e concorrenciais vigentes o ordenamento brasileiro, sob pena não apenas de indevidamente transplantar institutos jurídicos alienígenas para a ordem interna, mas também de irremediavelmente subverter a lógica constitucional que deve perpassar a aplicação do Direito da Concorrência. Da mesma maneira, é preciso que eventual limitação ao direito de ação por meio do antitruste se justifique segundo a mesma ordem constitucional que garante o acesso aos poderes públicos. 

Por mais que o CADE já adote sentido mais amplo da noção de sham litigation, já que – como não poderia ser diferente[6] –, adota como elementos de análise os princípios da livre concorrência e livre iniciativa constantes da Constituição em lugar de pura e simplesmente aplicar testes importados da jurisprudência norte-americana, um conceito mais amplo de abuso de direito de petição ainda carece que densificação a partir das próprias premissas teórico-normativas que orientam a aplicação do direito brasileiro, sob pena de despir a análise antitruste de critérios operacionais mínimos[7].

O adequado desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer reflexão igualmente adequada sobre suas premissas e pressupostos, seja por integrar sistema constitucional complexo, seja por estar inserido em conjuntura histórica e tradição dogmática específicas. É imprescindível, portanto, que as categorias punitivas do antitruste sejam elaboradas segundo critérios próprios ao ordenamento pátrio, e não somente a partir de categorias importadas do direito norte-americano. Tal necessidade fica ainda mais patente quando o Direito da Concorrência apresenta intersecções com outros ramos jurídicos, muito mais associados à tradição romano-germânica do que aos parâmetros do case law anglo-saxão. É o caso do sham litigation, vinculado tanto ao imperativo constitucional de proteção à livre concorrência quanto ao direito fundamental de acesso aos poderes públicos.

O Direito da Concorrência brasileiro, no entanto, idoso em existência, porém jovem em relevância, ainda luta para adquirir autonomia em relação aos mais desenvolvidos direitos antitruste dos países centrais. Desse modo, o antitruste brasileiro se encontra em constante tensão entre a necessidade de reafirmação de parâmetros seguros, consagrados pela jurisprudência internacional, para demonstrar sua autonomia e independência, e sua emancipação enquanto ramo jurídico decorrente da ordem econômica constitucional brasileira, que dialogue de maneira fluente com os conceitos que informam o ordenamento pátrio.

Assim, para utilizar – e subverter – a interessante construção de Marcelo Neves[8], o CADE prossegue no complexo paradoxo de atuar a partir da aplicação de ideias em outro lugar (o emprego de conceitos consagrados norte-americanos em realidade jurídico-social completamente distinta) e de, ao mesmo tempo, no mesmo lugar (uma vez que o CADE não opera isoladamente, mas no espaço global de discussão e aplicação de princípios de defesa da concorrência). A continuidade do desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer não somente que o CADE fale na língua compreendida pelas demais autoridades da concorrência de destaque no cenário internacional, mas também que o antitruste nacional faça jus a seu estatuto constitucional ao promover a harmonização de sua atuação com os demais preceitos regentes do ordenamento brasileiro. Com isso, aos poucos, o Direito da Concorrência brasileiro poderá passar a falar com linguagem própria, mais consentânea com o lugar em que se desenvolve – ainda que com algum sotaque.


[1] Eastern Railroad Presidents’ Conference v. Noerr Motor Freight, Inc., 365 U.S. 127.

[2] United Mineworkers of America v. Pennington, 381 U.S. 657. Ver: WOOD, Lisa. In praise of the Noerr-Pennington doctrine. Antitrust. v. 18, pp. 72-77, 2003.

[3] FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017.

[4] FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. The relation between antitrust and intellectual property on CADE’S case law. In: SILVEIRA, Paulo Burnier. Competition Law and Policy in Latin America: recent developments. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2017.

[5] USS-POSCO Indus. v. Contra Costa County Bldg. & Constr. Trades Council, 31 F.3d 800.

[6] Ver, em análise mais aprofundada da jurisprudência do CADE sobre o tema: PRATA DE CARVALHO, Angelo. Do sham litigation ao abuso de direito de petição: desafios e parâmetros de análise para o abuso do direito de petição no direito brasileiro. Revista de direito da concorrência. v. 7, n. 2, 2019.

[7] RECENA, Martina Gaudie Ley; LUPION, Ricardo. Breves reflexões sobre a aplicação da sham litigation. Revista jurídica luso-brasileira. v. 4, n. 4, pp. 1519-1554, 2018.

[8] NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista brasileira de ciências sociais. v. 30, n. 88, jun. 2015.

As Escolas de Direito Antitruste: o que a história revela

Polyanna Vilanova & Catharina Araújo Sá

Ao escrever sobre Direito Antitruste, nos deparamos com uma infinidade de temas. Um dos mais caros se relaciona com as Escolas de Direito Antitruste, por trazer diversas nuances no que se refere aos objetivos e finalidades deste ramo do Direito. É um debate que aborda como o Direito Antitruste é e como deveria ser. Nesse sentido, hoje em dia, muito se fala em superação do antitruste tradicional, principalmente tendo em vista os desafios trazidos pelas famosas big techs e o elevado poder econômico que as permeia, por exemplo. Contudo, para entender o que seria a superação do antitruste tradicional, bem como os objetivos deste ramo de estudo, é fundamental revisitar as Escolas de Direito Antitruste.

Tendo em vista as recentes alterações no contexto norte-americano, de elevada preocupação com o poder político-econômico das plataformas digitais, o presente artigo abordará as escolas norte-americanas, por meio da história, buscando demonstrar como cada uma delas foi influenciada pelo contexto em que se inseriu ou se insere.

Na década de 1880, o poder estava concentrado nas mãos de poucos agentes econômicos que atuavam por meio da formação de trustes. Os Estados Unidos passavam por um processo de aumento da produção e as pequenas empresas deram lugar a monopólios e oligopólios, mediante processos de integração vertical e horizontal.[1] Nesse contexto, as discussões sobre a necessidade de combater os trustes e o poder econômico que concentravam ganharam força. Normas como o Sherman Act (1890), o Clayton Act (1914) e o FTC Act (1914) surgiram nesse objetivo de acabar com as grandes concentrações econômicas.

As discussões sobre o combate aos grandes monopólios tiveram influência de uma grande personalidade para o Direito Antitruste: Louis Brandeis, considerado precursor da Escola de Harvard. Com o seu slogan “regulação da competição”, elaborou o Programa antitruste do Governo de Woodrow Wilson, denominado “New Freedom”, que defendia, dentre outras medidas, o fortalecimento do Sherman Act e o combate aos trustes.[2]

Os ideais de Brandeis, bem como este contexto norte-americano apresentado, influenciaram o surgimento da Escola de Harvard (ou estruturalista), que possuía foco nas estruturas de mercado. Para seus defensores, empresas com poder de mercado podem utilizá-lo para implementar condutas anticoncorrenciais e assim, devem ser evitadas elevadas concentrações, evitando disfunções no mercado.[3]

Em seus primórdios, não se defendia uma finalidade única para o Direito da Concorrência, mas sim diversas finalidades que coexistiam. Assim, os objetivos poderiam estar relacionados com “a defesa dos pequenos agentes econômicos contra os grandes”, “a proteção da concorrência”, “a proteção do consumidor”, dentre vários outros. Por sua vez, quando ocorresse choque entre os objetivos, o julgador ponderaria sobre qual deveria prevalecer.

De outra monta, essa visão de múltiplos objetivos já foi arduamente criticada. Para John Wright, por exemplo, o resultado da abordagem “multi-dimensional” do Direito Antitruste trouxe “decisões conflitantes” e “pouca noção se a doutrina antitruste estaria alcançando seus diversos objetivos”.[4]

No extremo oposto dos ideais da Escola de Harvard, surgiu a Escola de Chicago que nasceu com o economista Aaron Director, com a aplicação do Price Theory ao antitruste e atingiu seu auge na década de 1980. Essa escola apresenta a análise econômica para o antitruste e defende o menor grau de intervenção possível no que se refere à regulamentação da economia pelo Estado.[5] Para os defensores dessa escola, as concentrações econômicas e as restrições verticais podem ser justificáveis, pois garantem eficiências econômicas que não poderiam ser alcançadas de outra forma.[6]

No que se refere aos doutrinadores dessa escola, destaca-se Robert Bork e sua obra The Antitrust Paradox (1978) que aborda as finalidades do Direito Antitruste. Para ele, a política antitruste apenas pode tornar-se racional ao responder as perguntas: “qual é a finalidade da lei?”, “quais são seus objetivos?”. Na visão de Bork, o objetivo do Direito Antitruste deve ser perseguir o “bem-estar do consumidor”, conceito pautado no paradigma econômico neoclássico de análise com foco em eficiências econômicas.

O conceito de bem-estar do consumidor recebeu diversas críticas dos defensores da Escola Neoestruturalista, como Lina Kahn e Tim Wu, que entendem que o Direito Concorrencial não possui uma finalidade única. Em seu artigo Amazon’s Antitrust Paradox, Lina Kahn propõe uma expansão das finalidades do Direito Concorrencial e critica a definição de Bork de bem-estar do consumidor, uma vez que não consegue atender os desafios trazidos por novos mercados na economia moderna.[7]

De acordo com Tim Wu, também é necessário repensar a finalidade de proteção do consumidor. Segundo o professor, há dois grupos que visam este objetivo. O primeiro, denominado Escola Pós-Chicago, acredita que este objetivo do bem-estar do consumidor foi mal interpretado ou mal utilizado. [8] Por sua vez, para o segundo grupo, os Neoestrutalistas ou Neobrandeisianos, o objetivo correto do antitruste foi perdido. Os neoestruturalistas defendem que o problema da análise antitruste não é relacionado à economia, mas sim à lei, uma vez que houve falha ao entender a intenção do legislador e, por essa razão,necessário resgatar o real objetivo da lei antitruste.[9] Tim Wu é um dos críticos da interpretação das leis antitruste norte-americanas. Para ele, o antitruste possui vários objetivos e cabe ao Judiciário ponderar qual deve prevalecer quando ocorrer choque entre os valores.[10]

Assim, os neoestruturalistas apresentam ideias de reformas, principalmente dentro do contexto dos mercados digitais, sob a alegação de que o paradigma neoclássico de análise antitruste não é suficiente para abarcar todos os desafios concorrenciais trazidos por estes mercados inovadores. Ou seja, defendem uma necessidade de afastamento de fundamentos econômicos, mas uma aproximação aos fundamentos políticos.

Do mesmo modo que os defensores da Escola de Chicago recebem críticas quanto à uma limitação do conceito de bem-estar do consumidor, pautado exclusivamente em eficiências econômicas, os neobrandeisianos também recebem críticas, principalmente considerando que a suposição trazida pela Escola Neoestruturalista de que os indivíduos estariam melhores em um mundo com empresas menores e preços mais altos ainda não foi testada.[11]

Diante do quanto exposto, é evidente que a pergunta de qual deve ser a finalidade do Direito Antitruste é bastante complexa. O que se sabe é que, ao menos atualmente, as análises antitrustes são pautadas, em sua maioria, no paradigma de análise neoclássico. Ademais, fato é que apesar de no Direito Concorrencial, e em vários outros ramos do Direito, termos uma análise muito pautada em olhar para modelos de fora, é preciso considerar a realidade de um país emergente como o Brasil e ainda mais do que isso: é preciso lembrar que o Direito Antitruste não é solução para todos os problemas.[12]  


[1] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 67.

[2] MCCRAW, Thomas K., et al. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984. p. 126

[3] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 166.

[4] WRIGHT, Joshua. The dubious rise and inevitable fall of hipster antitrust. George Mason Law & Economics Research Paper No. 18-29, 2019. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3249524. Acesso em 03.05.2022. p. 8.

[5] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 169.

[6] BECKER, Bruno Bastos; MATTIUZZO, Marcela. Plataformas Digitais e a Superação do Antitruste Tradicional: Mapeamento do Debate Atual. In: PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva (org.). Defesa da Concorrência em Plataformas Digitais. São Paulo: FGV Direito SP, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30031/Defesa%20da%20Concorrência%20em%20Plataformas%20Digitais.pdf?sequence=1&isAllowed=y. p. 48.

[7] KHAN, Lina M. Amazon´s Antitrust Paradox. The Yale Law Journal, v. 126, n. 710, 2017. Disponível

em: https://www.yalelawjournal.org/pdf/e.710.Khan.805_zuvfyyeh.pdf. Acesso em 10.05.2022.

[8] WU, Tim. After Consumer Welfare, Now What? The ‘Protection of Competition Standard´ in Practice.

The Journal of the Competition Policy International, 2018. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3249173. Acesso em: 09.05.2021. p. 2.

[9] Ibidem, p. 5.

[10] Ibidem, p. 6.

[11] HOVENKAMP, Herbert J. Is antitrust’s consumer welfare principle imperiled? Faculty Scholarship at

Penn Law, 1985, 2019. Disponível em: https://scholarship.law.upenn.edu/faculty_scholarship/1985/. Acesso em 17.04.2022. p. 103.

[12] CORDEIRO, Alexandre; SIGNORELLI, Ana Sofia Cardoso Monteiro. Os objetivos do Direito Antitruste: evolução e perspectivas para o pós-Covid-19. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-objetivos-do-direito-antitruste-evolucao-e-perspectivas-para-o-pos-covid-19-01082020. Acesso em 04.05.2022.


[*] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[**] Catharina Araújo Sá é advogada no escritório Vilanova Advocacia.

Ativos não-operacionais e a obrigação de notificação

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde a entrada em vigor da 12.529/2011, lei que recentemente completou sua primeira década de vida, o controle dos chamados atos de concentração tem sido realizado de maneira “ex ante”, de modo que as operações notificáveis somente possam ser consumadas após a autorização da autoridade concorrencial brasileira.

Dentre as principais alterações do regime de controle de estruturas anterior para o modelo atual encontra-se a especificação no que diz respeito à necessidade de notificar ao Cade as operações envolvendo a aquisição de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis.

Na última sessão de julgamento do ano passado, ocorrida em 15/12/2021, o Tribunal do Cade resolveu, por unanimidade, absolver a JBS, havendo entendido, conforme dispôs o voto condutor, que a aquisição do frigorífico localizado em Iguatemi/MS não deveria ser entendida como uma operação de notificação obrigatória, uma vez que, à época da consumação do ato, ou seja, em 08/08/2014, inexistia outro direcionamento da Autarquia senão o entendimento manifestado pelo então conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, que ao julgar o possível descumprimento de seis Atos de Concentração envolvendo a JBS[1], pontuou:

“Ora, é evidente que o arrendamento de uma unidade fabril em pleno funcionamento equivale, em tudo e por tudo, e ao menos pelo prazo em que durar o arrendamento, a uma operação societária de aquisição dos mesmos ativos por meio da aquisição de controle societário. O ponto, aqui, é antes substantivo que formal. Trata-se de perceber que o conceito de “empresa” em direito não diz respeito a uma certa estrutura societária, mas sim à organização de um conjunto de fatores produtivos destinada a produzir certos resultados que seriam impossíveis de serem produzidos pelos fatores isoladamente, ou seja, a um organismo econômico que põe esses fatores em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, para produzir um certo resultado de lucro, na famosa conceituação de Cesare Vivante. Portanto, ter acesso a esse sistema de fatores produtivos, ordenados para a produção, é ter acesso à própria empresa, ainda que isso não implique participação societária formal e ainda que esse acesso seja transitório, como no caso das operações de arrendamento de unidades fabris. O critério, para que tais operações possam ser consideradas “atos de concentração”, é que elas incidam sobre a empresa como um todo, e não sobre seus elementos isolados. Em outras palavras, é que incidam sobre o conjunto dos elementos que forma a empresa entendidos como um sistema em plena atividade. Por isso, não tenho dúvida que as operações de arrendamento de unidades em atividade deveriam ter sido submetidas ao CADE, mas concordo que os arrendamentos de ativos que já não estavam mais a serviço de uma certa atividade empresarial não”. (grifo próprio)”[2]

De fato, como bem asseverou a Conselheira-Relatora, existem dois cenários jurisprudenciais que não podem ser ignorados, isto é, o cenário que remonta o entendimento do Cade à época da aquisição (agosto de 2014) e o cenário mais recente, no qual a Autarquia tem reiteradamente manifestado seu entendimento no sentido de que, mesmo a aquisição de ativos não-operacionais seria de notificação obrigatória.

Entretanto, há que se atentar para o fato de que, em 2013, quando o então Conselheiro Marcos Paulo manifestou seu entendimento, ele procurava interpretar os fatos (descumprimento dos seis atos de concentração) à luz da Lei 8.884/1994, que vigorava à época das operações sob análise, e cuja redação dispunha:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE” (grifo próprio)

A Lei 12.529/2011, por sua vez, entende que um ato de concentração realizar-se-á quando, in verbis:

Art. 90 (…) (I) 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (II) 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; (III) 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (IV) 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. (grifo próprio)

Ora, não precisa de muito para se perceber que a distinção entre os dois tratamentos legislativos é latente, isto é, ao passo em que a lei anterior dá ampla discricionariedade para que o legislador interprete o que será entendido como atos que limitem ou possam vir a prejudicar a livre concorrência (ou mesmo resultar na “dominação de mercados relevantes”)[3], a nova norma define de forma objetiva as hipóteses que devem ser entendidas como possíveis atos de concentração, especificando, dentre elas, a aquisição de ativos, seja ela contratual ou não.

Reabre-se então a discussão sobre se a aquisição de um ativo não-operacional deveria despertar preocupação da Autarquia. O “novo cenário jurisprudencial” entendido pela Conselheira-Relatora demonstra que, para além da operacionalidade do ativo à época da aquisição, é importante também analisar qual viria a ser a destinação deste ativo na atividade econômica em questão, considerando-se ainda quais seriam os investimentos necessários para o desenvolvimento desta atividade.

Assim, para além dos casos citados pela Conselheira, a saber, o AC nº 08700.006524/2016-02, que envolveu as empresas Biomm S.A. e Novartis Biociências S.A., e o AC nº 08700.002190/2020-76, envolvendo a Aircastle Holding Corporation Limites. e a General Electric Company, há outros precedentes em que o tema foi tratado no contexto de decisões sobre o conhecer ou não da operação, como foi o caso, por exemplo, do AC 08700.003501/2020-14, onde argumentou-se que a aquisição de um imóvel inativo onde estava localizado o antigo resort Club Med Itaparica pela hoteleira Eidom não deveria ser de conhecimento do Cade, tendo-se em vista não apenas a inatividade do imóvel, mas também o fato de que, à época da operação, o comprador ainda não havia definido a sua finalidade.

Na ocasião, a SG manifestou o entendimento de que tal aquisição conferiria sim capacidade produtiva ao grupo, vez que lhe permitiria desenvolver atividades no ramo hoteleiro ou ainda imobiliário, mesmo que o ativo, à época da aquisição, ainda não estivesse operacional. Explicou ainda que a estrutura instalada existente poderia produzir reflexos no mercado, não obstante a sua inatividade momentânea, vez que os requisitos para a construção de um hotel são exatamente disponibilidade imobiliária, adequação da propriedade e aprovações ambientais e regulatórias – todos estes, presentes no imóvel adquirido, mesmo sendo de difícil constituição.

Noutra oportunidade, inclusive citada no precedente anterior, a SG igualmente manifestou-se no sentido de que a transferência de ativos, apesar de não estarem operacionais à época da apreciação da operação, poderia “implicar um aumento na capacidade de oferta de um player relevante do mercado em questão, em detrimento dos demais concorrentes (que, eventualmente, podem enfrentar dificuldades para expandir sua capacidade de oferta)” – AC nº 08700.008315/2016-95 (Silcar Empreendimentos, Comércio e Participações LTDA. e Polimix Concreto LTDA).

Ora, a evolução neste entendimento em nada contraria o conceito de empresa segundo Cesare Vivante, conforme parafraseou o ex-Conselheiro Veríssimo, isto é, de “um organismo econômico que põe os fatores produtivos em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, visando um resultado de lucro”. De fato, isoladamente, é impossível que um ativo não-operacional atinja esse status, exatamente por faltar-lhe a capacidade de coordenação. Também no contexto de uma aquisição, só é possível atingir a funcionalidade conjunta na medida em que haja uma identificação entre a possível finalidade do ativo e o ramo de atividade da adquirente – é precisamente o que se verificou nos precedentes citados e também na situação da JBS, ao adquirir o frigorífico inativo de Iguatemi/MS.

Assim, em que pese a decisão unânime dada pelo Conselho, respeitando a segurança jurídica, no sentido de manter a instrução dada pelo ex-Conselheiro Veríssimo, no ano de 2013, de que a aquisição de ativos não-operacionais não deveria ser submetida à notificação obrigatória, é necessário que este precedente não seja interpretado de forma equivocada, ou seja, como um passo atrás para a instituição. 


[1] AC no 08012.008074/2009-11 (JBS S.A. e Bertin S.A.); AC no 08012.002148/2012-01 (JBS S.A. e JEMA Participações Ltda.); AC no 08012.002149/2012-48 (JBS S.A. e MJE Administração de Bens Ltda.); AC no 08012.003367/2012-08 (JBS S.A. e FR Participações Ltda.); AC no 08700.004230/2012-12 (JBS S.A. e SSB Administração e Participações Ltda.); AC no. 08700.004226/2012-46 (JBS S.A., Tiroleza Alimentos Ltda. e Rodo GS – Transportes e Logística Ltda.)

[2] Ato de Concentração 08012.002148/2012-01, Volume 2, Página 290.

[3] Ao analisar o Ato de Concentração 08012.009064/2009-95, o então Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan entendeu que, por se tratar de um bem imóvel, a aquisição indireta de imóveis da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) não seria de notificação obrigatória, devendo ser considerado como crescimento orgânico ou crescimento interno da empresa.

Os ventos do norte não movem moinhos? O Direito da Concorrência brasileiro diante das transformações do Antitruste norte-americano

Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro contemporâneo parte de bases constitucionais sólidas, é disciplinado por robusto diploma normativo, com institutos já amplamente testados na prática, e conta com uma dogmática nacional já bastante desenvolvida a partir dessas bases normativas. Não obstante, não se pode ignorar as profundas influências que tanto a teoria quanto a prática do Direito da Concorrência brasileiro ainda sofrem diante dos influxos do Antitruste dos Estados Unidos – que remontam à primeira lei antitruste brasileira e mesmo aos comentários de Benjamin Schieber (cuja influência será objeto do próximo artigo desta coluna), mas que também podem ser verificadas nas posturas jurisprudenciais mais recentemente adotadas ao norte.

Basta ver que, na medida em que o Antitruste norte-americano acolheu as ideias da Escola de Chicago, notadamente a partir da adoção dos critérios propostos por Robert Bork para, a pretexto de defender o bem-estar do consumidor, substituir a racionalidade jurídica pelo critério da eficiência econômica, as metodologias de análise desenvolvidas naqueles contexto foram em larga medida adotadas também na prática do Direito da Concorrência brasileiro.

De fato, Bork soube apresentar a sua proposta de forma interessante e sedutora, porém o “bem-estar do consumidor” propalado pelo autor, além de descolado da realidade, não apresentava nenhum componente ético ou jurídico, assim como era indiferente a qualquer problema relacionado à pobreza ou à distribuição de renda, na medida em que dizia respeito exclusivamente à eficiência – por mais controversos e limitados que sejam critérios como o de Pareto e o de Kaldor-Hicks.

A adoção desses critérios metodológicos, como aponta Tim Wu, levou a um intenso movimento de concentração no contexto norte-americano, com inúmeros exemplos de monopólios e oligopólios formados com a anuência das autoridades da concorrência[1]. Exemplo disso são as posições hoje detidas pelos chamados gigantes da internet, que ao longo dos anos beneficiaram-se da postura leniente das autoridades para adquirir concorrentes efetivos ou potenciais para perpetuar seu poder de mercado e originar estrutura de mercado que dificilmente poderá ser desafiada.

Diante desse cenário, com a eleição do Presidente Joe Biden, os ventos do Direito Antitruste nos Estados Unidos pareceram iniciar uma mudança, tendo em vista que determinados autores com posições críticas relevantes contra as metodologias de Chicago e o movimento concentracionista dos últimos anos assumiram importantes nas autoridades norte-americanas. É o caso das indicações de Lina Khan para a Federal Trade Commission e de Tim Wu para o National Economic Council, que produziram importantes repercussões: basta ver que, no dia 9 de julho, a FTC publicou comunicado manifestando sua intenção de alterar as suas Merger Guidelines diante da excessiva permissividade a autoridade com a concentração de mercado e da realidade econômica contemporânea[2].

Após vários anos de reafirmação das metodologias de Chicago, o Direito Antitruste norte-americano parece estar incorporando às suas práticas institucionais tanto achados empíricos recentes sobre estruturas de mercado – notadamente no âmbito de mercados digitais – quando novas perspectivas metodológicas, assim iniciando um processo de verdadeira transformação na análise antitruste. De fato, pode ainda ser muito cedo para que se conclua que tais mudanças alterarão fundamentalmente as bases do Direito da Concorrência, porém minimamente representam uma oportunidade de incorporar perspectivas críticas às metodologias e sobretudo à ideologia de Chicago, que não raro serve muito mais para ocultar aspectos relevantes da realidade econômica do que para analisar o funcionamento de mercados reais.

Restar aguardar, nesse sentido, se o Direito da Concorrência brasileiro terá com essas transformações a mesma permeabilidade que teve para com a incorporação das premissas da Escola de Chicago e outros institutos oriundos da prática dos Estados Unidos. Do contrário, será possível verificar se a influência norte-americana no contexto brasileiro limita-se a um determinado período histórico cujas perspectivas somente seguirão sendo aplicadas em virtude de um inexplicável movimento inercial – em que, ao passo que os ventos do norte mudam de direção, os moinhos do sul giram no mesmo sentido.


[1] Ver: WU, Tim. The curse of bigness. Nova York: Columbia University Press, 2018.

[2] Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2021/07/statement-ftc-chair-lina-khan-antitrust-division-acting-assistant.

As Fake News são passíveis de serem analisadas pela teoria antitruste?

Elvino de Carvalho Mendonça

O mercado de informações é composto por editores e produtores de conteúdo. Os produtores de conteúdo podem produzir Fake News e notícias verdadeiras, onde as Fake News possuem custo próximo de zero, ao passo que as notícias verdadeiras apresentam custos positivos.

Os editores de mídias tradicionais se remuneram pela venda de assinaturas e pelo faturamento com anúncios publicitários, enquanto os  editores de mídias sociais disputam os mesmos recursos no mercado publicitário.

Os produtores de conteúdo verdadeiro se remuneram a partir da venda do seu conteúdo, ao passo que os produtores de conteúdo Fake News se remuneram a partir de grupos interessados na veiculação da informação fraudulenta.

O mercado de informações tende a ser encharcado por Fake News e a razão está associada com o problema da seleção adversa observado no modelo de Akerlof. No modelo em comento, os carros bons tendem a ser excluídos do mercado, uma vez que o consumidor somente observa o custo médio do salão de vendas. Sendo assim, carros com qualidade que impliquem em preços superiores à média nunca serão demandados.

Com as informações acontece a mesma coisa. O consumidor de notícias observa o preço médio das informações, de maneira que informações que tenham preços superiores aos preços médios nunca serão demandadas e, nesse caso, somente serão demandadas Fake News.

As empresas de mídias sociais ofertam informações a custo zero para os consumidores, ao passo que as empresas de mídia tradicional exigem pagamentos e assinaturas para a obtenção da informação. No entanto, as empresas de mídias sociais somente são capazes de ofertar informações a custo zero porque existem produtores de conteúdo que desenvolvem essas informações a custo zero.

A diferença fundamental entre os editores de mídias sociais e os editores tradicionais (i) está na capacidade dos primeiros de possuir os dados de grande parte da população, inclusive de gostos e preferências, e (ii) na elevada concentração de empresas de mídias sociais.

É importante lembrar que o produtor de conteúdo de informações verídicas pode disponibilizar os seus produtos de forma remunerada ou gratuita, significando dizer que este produtor de conteúdo pode atuar nas mídias sociais ou nas mídias tradicionais. Entretanto, este fato não acontece para o produtor de conteúdo de Fake News, pois ele somente tem acesso para veicular as suas informações nas mídias sociais.

Tendo em vista que o produtor de conteúdo Fake News somente pode trabalhar com as mídias sociais e que o custo para fazer a publicação das informações é zero junto a essa mídia, o incentivo deste tipo de produtor é o de entender a forma como o algoritmo funciona e, a partir daí, reproduzir o seu conteúdo.

O editor de mídia social, por seu turno, necessita da informação (qualquer que seja ela) para gerar conteúdo para o seu espaço virtual. Tendo em vista que o custo de obtenção do conteúdo Fake News é zero, empresas como as Big Techs tendem a divulgar uma quantidade de Fake News muito superior à divulgação das informações verdadeiras.

De acordo com Hubbard (2017)[1], as Fake News tornam-se um problema de defesa da concorrência porque as empresas do mercado de Big Techs ganham participação de mercado a partir das informações fraudulentas, elevando, dessa forma, os custos dos editores da mídia tradicional.

A aquisição de informação fraudulenta como forma de ampliação de participação de mercado, haja vista que as Big Techs possuem elevadas participações de mercado, nada mais é que abuso de posição dominante.

Hubbard (2017) entende que a solução das Fake News como problema de defesa da concorrência está na necessidade de haver concorrência nos mercados de informação das mídias sociais, pois assim, o produtor de conteúdo Fake News[2]  se defrontaria com os custos de aprendizagem dos algoritmos das empresas, o que tenderia a fazer com que o preço da produção desse conteúdo se tornasse próximo ao preço do conteúdo verdadeiro.

Portanto, não parece haver dúvidas que as Fake News também devem ser tuteladas pela defesa da concorrência e, a partir dessa assertiva, passa-se a analisar que remédio deve ser aplicado para minimizar o efeito anticompetitivo das informações fraudulentas.


[1] HUBBARD, Sally. Fake News Is A Real Antitrust Problem. Competition Policy International. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/fake-news-is-a-real-antitrust-problem/. Acesso em: 24.11.2021

[2] https://laweconcenter.org/wp-content/uploads/2018/01/CPI-Hurwitz.pdf

A análise de defesa da concorrência no Brasil: aplicação da Escola Harvard, da Escola de Chicago ou de ambas?

Elvino de Carvalho Mendonça

Certa vez eu fui convidado por um amigo para dar uma aula inaugural no curso de pós-graduação de direito econômico em uma importante universidade brasileira.

Comecei por explicar que o guia de análise de concentrações horizontais brasileiro, americano e da comunidade europeia compreendiam um misto do paradigma Estrutura-Conduta-Desempenho (ECD) e da Escola de Chicago.

Qual não foi a minha surpresa quando o anfitrião mencionou que nunca havia pensado que um instrumento como o Guia brasileiro e outros tantos carregavam consigo tantos fundamentos teóricos e que os pontos de vistas tão antagônicos pudessem conviver em um único documento orientativo.

Aqueles que militam na defesa da concorrência, quer seja submetendo atos de concentração ao CADE quer seja instruindo e julgando os mesmos atos, partem, inexoravelmente, dos mesmos elementos e sempre começam dos mesmos pontos: definição de mercado relevante; análise de posição dominante; avaliação das barreiras, da rivalidade e das condições de entrada; e estudo das eficiências da operação.

Prima facie, estes elementos nada mais são do que a confluência de elementos da escola de Harvard (paradigma ECD) e da Escola de Chicago.

Pois é!! A controvérsia “saudável” entre a escola de Harvard e de Chicago é muito conhecida pelos amantes da defesa da concorrência, mas nem todo mundo se dá conta de que convivemos com as duas escolas na elaboração dos seus afazeres diários. Senão Vejamos!!!

O paradigma ECD, nas próprias palavras de Bain (1951), significa que a estrutura dos mercados (concentração) conduz a condutas nestes mesmos mercados e o seu desempenho (efeitos preços e quantidades) depende inevitavelmente de quão concentrados são os mercados[1].

A escola de Chicago, por seu turno, inverte a relação de causalidade, afirmando que o desempenho precede a estrutura, o que significa, em apertada síntese, que a concentração de mercado é, na verdade, responsável pelos ganhos de eficiência na economia, uma vez que as empresas com maiores poderes de mercados são aquelas mais capazes de fazerem inovações.

De fato, o Guia de Análise de Concentração Horizontal do CADE é fundamentado no paradigma ECD até o ponto em que se chega à análise de eficiências. Nesta etapa, avalia-se a possibilidade de que as eficiências geradas pela operação contraponham a ampliação da concentração de mercado ou, em outras palavras, que os benefícios das eficiências compensam a eliminação de um concorrente no mercado.

Na verdade, o que é certo é que controle de estruturas no Brasil e em grande parte das jurisdições se utiliza dos ensinamentos da Escola de Harvard e da Escola de Chicago, sendo que a análise sempre começa pelo paradigma ECD da Escola de Harvard e pode, em alguns casos, terminar com a prevalência das eficiências sobre a concentração de mercado postulada pela Escola de Chicago.

Entretanto, vale registrar que a combinação destas teorias em um documento não impede que o CADE adote uma ou outra teoria de forma mais prevalente, pois prevalência depende, em grande medida, da composição do plenário, não sendo fato estranho nem incomum observar, ao longo da história da autoridade de defesa da concorrência brasileira, decisões colegiadas que oscilam entre a Escola de Harvard e a Escola de Chicago.


[1] O paradigma ECD foi dominante nas décadas de 1960, 1970 e 1980 com Bain, Mason, Kaysen eTurner e recebeu o nome de Escola Estrutural de Harvard.

BAIN, J. Barriers to New Competition: Their Character and Consequences in Manufacturing Industries (1956); J. Bain, ‘Relation of Profit Rate to Industry Concentration: American Manufacturing, 1936-40’ 65 Quarterly Journal of Economics 293. 1951.

MASON, E. Economic Concentration and the Monopoly Problem. 1964.

KAYSEN, C; TURNER, D.  Antitrust Policy: An Economic and Legal Analysis. 1959.