Defesa da concorrência

A água escolhe o seu percurso de acordo com o terreno que atravessa: desconsideração da personalidade jurídica na lei antitruste

Eduardo Molan Gaban

A Lei Antitruste Brasileira (Lei n. 12.529/2011), em seu artigo 36, tipifica as infrações à ordem econômica e, embora as condutas ali previstas também caracterizem infrações a outras leis[1], é esta que em regra contém as sanções pecuniárias mais significativas[2], conforme artigos 37 e seguintes.

O artigo 33 da Lei Antitruste garante, ainda, uma ampla legitimação passiva na responsabilização dos agentes econômicos por condutas anticoncorrenciais e ilícitos concorrenciais de modo geral[3], ao prever que “[s]erão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, quando pelo menos uma delas praticar infração à ordem econômica”.

Assim, o texto atual admite a solidariedade entre integrantes do grupo econômico quando ao menos uma das empresas pratica infração. Caracterizada a existência de grupo econômico, no âmbito do qual determinada entidade praticou infração, seria aplicável a regra da responsabilidade solidária aos demais integrantes[4].

Para além da solidariedade do grupo econômico, a lei permite ainda que a responsabilidade pelo ilícito concorrencial seja estendida à pessoa do sócio, conforme redação do artigo 34, caput e parágrafo único:

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A redação do parágrafo único é expressa ao estabelecer que a falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica autorizam a “desconsideração”, ou seja, a retirada do véu da personalidade jurídica para cobrança da sanção administrativa imposta pelo CADE diretamente dos sócios.

A partir desta previsão, denota-se que a mera insolvência da pessoa jurídica autoriza que se atinja o patrimônio do sócio, independentemente da necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio da finalidade, como originalmente preveem as teorias clássicas subjacentes ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como, por exemplo, a teoria ultra vires societatis.

Tal norma assemelha-se às hipóteses previstas no Código de Defesa do Consumidor, no Direito do Trabalho e no Direito Ambiental, às quais se aplicaria a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica[5].

E, de fato, a redação do artigo – em seu parágrafo único – contém apenas o termo “desconsideração”, sem remeter ao instituto previsto no artigo 50 do Código Civil, atualmente alterado com a edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), que adota a teoria maior, em que a responsabilização do sócio pelos débitos da pessoa jurídica somente pode ocorrer “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.

Contudo, o emprego do termo “desconsideração” pode causar certa confusão no intérprete da lei. Tanto é verdade que parcela da doutrina[6] defende que, no âmbito da Lei Antitruste, aplica-se a teoria maior da desconsideração, prevista no Código Civil, inclusive com a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (artigos 133 a 137), sob pena de violação dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

No entanto, no caso da Lei Antitruste, em especial o parágrafo único do artigo 34, denota-se que a real intenção do legislador é garantir uma verdadeira responsabilidade subsidiária do sócio, com o redirecionamento da execução, à semelhança do Código Tributário Nacional, em seus artigos 134 e 135.

Sobretudo porque o artigo 94[7] da Lei Antitruste prevê expressamente a aplicação da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal) para cobrança da multa pecuniária aplicada pelo CADE.

Nesse sentido, ante a adoção pela Lei Antitruste de legislação específica para reger o procedimento de execução da sanção pecuniária (Lei de Execução Fiscal), resta afastada a incidência das normas do Código de Processo Civil – e, via de consequência, a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para a responsabilização da pessoa do sócio.

Trata-se de uma questão de direito positivo: a moldura normativa existente é da aplicação da norma específica em relação à norma geral nos casos de conflito (lex specialis derogat lex generali). E, uma vez que a Lei de Execução Fiscal permite a adoção de um caminho mais simplificado para o redirecionamento da execução, o Estado e o Contribuinte não estão obrigados a seguir o caminho mais tortuoso (incidente de desconsideração da personalidade jurídica) previsto no Código Civil.

No âmbito das execuções fiscais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já fixou o entendimento de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é incompatível com o procedimento da Lei n. 6.830/1980, visto que, pelo princípio da especialidade, a aplicação do Código de Processo Civil é subsidiária nos casos em que a demanda é regida por lei específica[8].

Com isso, independe de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica a pretensão da Fazenda Pública de redirecionar a execução fiscal para alcançar pessoa distinta daquela contra a qual a execução fiscal foi originariamente ajuizada, já que o artigo 4º, incisos V e VI, da Lei de Execução Fiscal explicita a possibilidade de ajuizamento da execução fiscal contra o responsável legal por dívidas, tributárias ou não, das pessoas jurídicas de direito privado e contra os sucessores a qualquer título[9].

Este entendimento se estende às execuções fiscais das sanções pecuniárias aplicadas pelo CADE, à medida que a Lei Antitruste prevê diretamente as hipóteses de redirecionamento do débito à pessoa do sócio (artigo 34, parágrafo único).

Nesta lógica, em caso de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, é desnecessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para execução da multa por ilícito concorrencial em face do sócio, que poderá ser diretamente responsabilizado, sem a necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio de finalidade, havendo verdadeiro caráter de responsabilidade subsidiária.

Ao fim e ao cabo, verificar-se algo semelhante ao que se passa com a natureza: a água escolhe o seu percurso de acordo com o terreno que atravessa. Isto é, embora seja defensável a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica para o caput do artigo 34, da Lei Antitruste, a previsão de seu parágrafo único torna o “terreno” mais propício à aplicação pura e simples da responsabilização subsidiária dos sócios, dispensando-se quaisquer das teorias de desconsideração da personalidade jurídica e seus conhecidos custos de transação processuais de implementação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.775.269/PR. Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020

CARVALHOSA, Modesto et. al (org.). Tratado de Direito Empresarial: Direito Concorrencial. Vol. VII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999.

FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.

TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.


[1] Por exemplo, a Lei n. 8.137/1990, que previne os crimes contra a ordem econômica; o Código de Defesa do consumidor (Lei n. 8.070/1990) e a Lei de Licitações (Lei n. 14.133/2021).

[2] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 170.

[3] Ibidem, p. 175.

[4] FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

[5] Há quem aponte três teorias para a aplicação da desconsideração no direito brasileiro: teoria maior subjetiva (fundada na fraude e no abuso do direito), teoria maior objetiva (fundada na confusão patrimonial) e teoria menor (fundada no mero inadimplemento da obrigação). Nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44.

[6] Neste sentido: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. Volume VII – Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 94-95; e TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.

[7] Art. 94, Lei n. 12.529/2011. A execução que tenha por objeto exclusivamente a cobrança de multa pecuniária será feita de acordo com o disposto na Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

[9] O entendimento da 1ª Turma do STJ é que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica será necessária apenas nas hipóteses em que não haja previsão legal autorizando o redirecionamento para pessoa diversa da qual a execução foi originariamente ajuizada. (STJ, EREsp n. 1.775.269/PR, Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020).

MP do Ticket Alimentação: benefício para quem?

Marcelo Nunes de Oliveira

Na semana que passou o Congresso Nacional aprovou o texto da MP 1108/2022, que, dentre outras medidas, altera algumas regras do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, mais conhecido como ticket refeição ou alimentação.

A discussão do texto final foi cercada de polêmicas, em especial, quanto a três pontos: (i) possibilidade do trabalhador receber o valor em espécie; (ii) a proibição da chamada taxa negativa na negociação entre empregadores e empresas de meios de pagamentos eletrônicos; e (iii) a possibilidade do trabalhador efetuar a portabilidade do saldo do seu benefício para outra administradora.

O Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT foi instituído pela Lei 6.321/76 e regulado posteriormente pelo Decreto 05/1991, com o objetivo de melhorar as condições nutricionais e de qualidade de vida dos trabalhadores, a redução de acidentes e o aumento da produtividade, tendo como unidade gestora a Secretaria de Inspeção do Trabalho/Departamento da Saúde e Segurança no Trabalho.

Por meio do programa, os empregadores tributados com base no Lucro  Real podem deduzir do Imposto de Renda devido, a título de incentivo fiscal, entre outros, o valor correspondente à aplicação da alíquota do imposto sobre a soma das despesas de custeio realizadas no período em Programas de Alimentação do Trabalhador (PAT).

O Programa pode ser ofertado de diferentes formas: (i) manutenção de serviço próprio de refeições; (ii) distribuição de alimentos in natura; e (iii) convênios com entidades que fornecem ou prestam serviços de alimentação coletiva, desde que essas entidades sejam credenciadas pelo Programa e se obriguem a cumprir o disposto na legislação do PAT e na Portaria MPT 672/2021, condição que deverá constar expressamente do texto do convênio entre as partes interessadas. Nesta última categoria se enquadram as empresas emissoras de vales refeição e alimentação, geralmente ofertados por meio de cartões eletrônicos passíves de utilização nas redes credenciadas pelos respectivos arranjos de pagamento.

Contudo, a disponibilização do benefício por meios eletrônicos, formato prevalente no mercado, decorre de uma negociação entre empregadores e as empresas emissoras. Não raro – muito pelo contrário, nessas negociações as empresas emissoras dos cartões oferecem aos empregadores uma taxa negativa ou deságio sobre o valor do benefício contratado. Por exemplo, se um empregador possui um montante mensal de benefícios alimentação a pagar aos seus colaboradores de R$ 100.000 (cem mil reais), a administradora de cartões de benefícios pode oferecer esses benefícios por talvez R$ 95.000 (noventa e cinco mil reais), ou seja, com 5% de desconto sobre o valor nominal dos benefícios. Ora, como isso seria possível, considerando que a emissora ainda tem todos os custos administrativos e comerciais para emissão dos cartões, cadastramento da rede de estabelecimentos parceiros, dentre outros?

Simples: o custo de deságio, somado aos demais custos da operação e a margem dos emissores é repassada para a taxa de desconto cobrada dos estabelecimentos comerciais que aceitam esses cartões. Não por outro motivo as taxas de desconto para cartões de benefícios são consideravelmente mais elevadas do que as taxas de desconto de cartões de débito/crédito comuns. Segundo a nota Técnica nº 20/2019/DEE/CADE, que analisou aspectos concorrenciais em uma operação entre o Itaú e a Ticket Serviços S.A., enquanto a taxa média de débito e crédito girava em torno de 2,5%, nos vales alimentação/refeição esse desconto seria de aproximadamente 4,7%. Naturalmente, o custo da operação acaba sendo repassado para o preço dos alimentos adquiridos pelo trabalhador, ou seja, o desconto obtido pelo empregador na negociação com o emissor dos cartões de benefícios é compensado na forma de preços mais elevados aos trabalhadores, uma política “Robin Hood” às avessas.

 Essa é a falha de mercado que a MP 1108 busca endereçar, ao propor a proibição de “qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado” (art. 3º, I, da MP 1108/2022). O Texto aprovado pelo Congresso ainda acrescentou dois pontos adicionais: i) a possibilidade de saque do benefício em espécie após 60 dias do recebimento do benefício; e ii) a possibilidade de portabilidade do benefício para outra empresa administradora.

Sem dúvidas a proposta de proibição do deságio na contratação dos benefícios por parte dos empregadores tem potencial de reduzir o custo das taxas de desconto praticadas pelos arranjos de pagamento que atuam no mercado de benefícios alimentação/refeição. Contudo, são as mudanças inseridas pela Câmara dos Deputados – e também as que mais provocaram reações contrárias, aquelas que podem, de fato alcançar o objetivo de redução de custos via aumento da competição.

A primeira, que permite o saque integral dos recursos após 60 dias do crédito do benefício, viabiliza, ainda que via uma escolha intertemporal, uma competição entre o meio eletrônico e o dinheiro em espécie: usar o benefício imediatamente, com os custos embutidos; ou, aguardar um período de tempo para sacar o benefício em espécie e, com isso, ter maior barganha no momento da aquisição dos produtos de seu interesse.

A segunda medida, aquela que potencialmente mais interfere positivamente a competição no mercado, permite ao trabalhador fazer a portabilidade do benefício para outro cartão, como se fosse uma conta-salário. A portabilidade torna quase desnecessária a proibição da prática do deságio, já que a empresa emissora não tem a garantia de retenção do consumidor na sua rede – único meio de recuperar o deságio ofertado ao empregador. Além de inibir o deságio, a portabilidade fomenta a competição entre as administradoras dos benefícios por custo e também por qualidade, aspecto que abrange desde o atendimento ao usuário até a qualidade/diversidade da rede credenciada. Em sendo um mercado de dois lados, quanto maior a rede credenciada – fator que depende significativamente das taxas de desconto cobradas, mais atrativo é determinado emissor.

Contudo, ambas as medidas já são alvo de ataques, inclusive com menção a possibilidade de veto às duas alterações promovidas pelo Congresso.

A possibilidade de saque do valor em espécie após 60 dias é criticada pelo setor de comércio e serviços alimentícios, que teme a perda de até R$ 30 bilhões de recursos cativos para o setor. A portabilidade dos valores é atacada, de maneira genérica, como uma perda de direitos dos trabalhadores.

É importante se ter em mente que se trata de um direito e um benefício destinado aos trabalhadores, ainda que sujeito a críticas quanto à sua necessidade, já que poderia constituir parte do salário, embora não seja este o objetivo deste texto. Os interesses desse grupo de indivíduos deve nortear as discussões em detrimento de interesses de setores porventura “prejudicados” com a perda de demanda cativa ou com o aumento da competição, seja entre estabelecimentos comerciais, seja entre administradoras de benefícios.

Vale ressaltar, ainda, que os servidores públicos federais recebem o benefício, há muito anos, de maneira pecuniária. Ampliar as possiblidades de recebimento e administração dos benefícios alimentícios por parte dos trabalhadores é, antes de tudo, conferir maior liberdade para que possam utilizar um recurso que lhes é de direito, e com menor custo. O que for dito em sentido contrário tende a ser tão somente defesa de interesse corporativo travestido de virtude.

Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência? O caso da saúde suplementar

Sandro Leal Alves

  1. Introdução

O propósito desse artigo é avaliar a relação entre a regulação prudencial e a concorrência no mercado de seguros em geral, e o de saúde suplementar em particular. Busca-se apontar alguns caminhos e escolhas de políticas públicas quando dois objetivos são postos lado a lado. Como escolher entre objetivos igualmente desejáveis e aparentemente concorrentes entre si? Este parece ser o caso quando se pensa na regulação prudencial, que busca garantir a solvência de mercados que trabalham com riscos e a regulação da concorrência, que busca garantir diversidade e preços menores para os consumidores. A falta de regulação prudencial pode gerar insolvências e riscos sistêmicos enquanto a falta de concorrência leva a abuso de poder de mercado. Como escolher entre dois males?

Ao se criar licenças e requerimentos técnicos para entrada no mercado, elevam-se as barreiras à entrada, reduzindo a concorrência. Essa foi a opção adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar no início de sua regulação, no ano 2000. Naquele momento, com exceção das seguradoras, que já eram reguladas pela SUSEP, as demais operadoras não observaram regras prudenciais e tampouco se submetiam ao acompanhamento econômico-financeiro. Após 22 anos de regulação, o número de operadoras se reduziu de cerca de 2000 para algo em torno de 700 enquanto os preços dos planos de saúde seguem uma tendência crescente. Uma leitura rápida poderia levar ao entendimento de que preços elevados são consequência de uma concentração de mercado oriunda da regulação prudencial.  No entanto, para preservar a solvência do sistema é essencial que os preços sigam acompanhando a dinâmica peculiar da variação dos custos médico-hospitalares, acima dos índices de preços no Brasil e no mundo.[1]

O preço do plano de saúde depende evidentemente dos custos assistenciais e da própria estrutura do mercado. Tratei especificamente da precificação dos planos de saúde em coluna anterior.[2]Saindo das ciências atuariais e acrescentando microeconomia, sabemos que os preços de mercado dependem da estrutura do mercado, ou seja, das condições básicas (e elasticidades) de oferta e demanda. Um mergulho mais profundo vai nos mostrar que dependem também das características do produto, dos consumidores, da tecnologia (expressas na função de produção), da existência de economias de escala. Passaríamos então a uma análise do número de compradores e vendedores, o grau de diferenciação de produto, a estrutura de custos, integração vertical e as barreiras de entrada e saída. Não é objetivo deste artigo examinar as condições de organização industrial do mercado, mas chamar a atenção de que elas têm um papel fundamental na determinação do preço.

Nesse sentido, analisar as barreiras à entrada, em geral regulatórias, mas também derivadas das economias de escala, é fundamental para compreender a estrutura do mercado e a formação de preços. E dentre as barreiras regulatórias, as licenças e a regulação prudencial emergem como as principais formas de regulação de mercados que operam com riscos futuros como bancos, seguros e planos de saúde. Nesse segundo ponto que queremos focar.

  • Seguro e mutualismo

Uma breve exposição do mecanismo de funcionamento do seguro e da saúde suplementar é importante para compreendermos a importância da regulação prudencial. Sabemos que a exposição aos diferentes tipos de riscos faz parte da natureza humana. Antes mesmo do nascimento, já convivemos com o risco associado ao desenvolvimento do embrião até o momento do parto. Geralmente, os riscos geram “desutilidades” para os indivíduos na medida em que, na hipótese de sua materialização, impõem perdas físicas e monetárias para as pessoas. Desde a antiguidade, diante das incertezas e dos riscos, as comunidades desenvolveram maneiras de mitigar ou diluir este risco entre pessoas igualmente afetadas por sua ocorrência. Carregar o risco sozinho é um ato de coragem, mas não parece ser a atitude mais sensata sob o ponto de vista econômico, principalmente quando oportunidades de diluição se encontram disponíveis no mercado segurador.

O seguro é socialmente desejável por compartilhar riscos. Já que nem sempre é possível eliminá-los, muitas vezes é possível dividi-lo com outras pessoas que também se encontram na mesma situação. Diversificando o risco, ou seja, não colocando todos os ovos na mesma cesta, o indivíduo consegue reduzir a variabilidade da ocorrência do evento incerto tornando-o mais previsível. O mutualismo foi o termo cunhado da biologia para definir a cooperação entre indivíduos mediante a agregação de seus riscos. Na biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo.[3]

O alicerce para o funcionamento dos mercados securitários é o mutualismo. Neste mecanismo, há um grupo solidário com todos contribuindo com suas mensalidades/prêmios para um fundo mútuo comum. A contribuição individual custeia as despesas do próprio indivíduo (se necessário) e as de todas as pessoas do grupo que necessitarem. O seguro fornece, portanto, uma possibilidade de troca mutuamente benéfica ao reduzir o custo do risco para os segurados. Se a troca é voluntária, a sua efetivação é um jogo de soma positiva em que ambos os agentes ganham, melhorando sua situação inicial. O seguro permite que um agente avesso ao risco consiga transferi-lo, mediante o pagamento de um prêmio de risco, para um agente comprador de riscos que é a seguradora. [4]

Cabe ressaltar que o contrato de seguros é disciplinado no Código Civil dos artigos 757 a 802, estabelecendo as obrigações e direitos das partes que o subscrevem. No art. 757, é destacado que, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou à coisa, contra riscos predeterminados”. Ou seja, o segurador só se obriga pelos riscos que forem predeterminados no contrato, desde que receba o prêmio correspondente como condição fundamental para o atendimento do interesse legítimo do segurado (objeto do contrato de seguro) que incida sobre a pessoa ou a coisa (sobre bem material, patrimonial, de valor econômico).

A delimitação do risco é o DNA do seguro e fundamental para o equilíbrio financeiro da operação. Permite ao segurador medir o risco, taxar o prêmio, dimensionar sua responsabilidade e estabelecer as provisões técnicas pertinentes. Com isso, confere segurança jurídica e contratual, pois cabe ao gestor da mutualidade zelar para que os riscos cobertos sejam suscetíveis de indenização ou de pagamento do capital segurado. [5]

A relevância econômica do seguro é expressa em números. Em 2021, o mundo faturou US$ 6,8 trilhões em seguros, o Brasil estando na 17ª posição no ranking por países. A previsão é que o número mundial passe de US$ 7 trilhões em 2022. Mas, nesse ano, a taxa de inflação mundial e a queda do PIB vão trazer efeitos, sobretudo nas economias mais desenvolvidas.[6] A Tabela 1 apresentada a seguir mostra os dados de arrecadação do setor segundo ramos do seguro.

Fontes: DIOPS (ANS) – Extraído em 01/05/2022 SES (SUSEP) – Extraído em 14/07/2022. Elaboração CNseg.

  • O que é e a razão de ser da regulação prudencial

Guilaume e Rochet (2007) listam duas principais razões para que as seguradoras sejam submetidas à regulação prudencial. Em primeiro lugar, devido ao ciclo de produção invertido, ou seja, a seguradora recebe prêmios antecipadamente para posterior pagamento de indenizações, a gestão financeira da companhia pode ser incentivada a adotar comportamentos mais arriscados. Ocorre que o pagamento das indenizações contratadas pode ser prejudicado devido a imprudência da gestão, gerando externalidades negativas para os segurados.

O fluxo financeiro invertido acaba criando estímulo para um comportamento excessivamente arriscado na gestão. Em segundo lugar, a ausência de titulares de direitos (apólices) com poder de influência na gestão, faz com que essa dinâmica não termine até que um problema real de liquidez se revele. Neste caso, pode ser tarde demais para recuperar a empresa e honrar os compromissos contratados. Em suma, há uma dificuldade de os detentores de apólices controlarem o risco assumido pela gestão da seguradora.

Trata-se do conflito clássico de agência entre segurados e os proprietários de empresas seguradoras. O problema de assimetria de informação entre o agente e o principal suscita o comportamento típico de moral hazard. Nesse sentido, Jensen e Mackling (1976), definem a relação Principal-Agente como um contrato em que uma das partes (o principal) engaja a outra parte (o agente) a desempenhar algum serviço em seu nome, e que envolve uma delegação de autoridade para o agente. No caso em questão, o principal, que é o detentor da apólice (segurado), tem poucos mecanismos de monitoramento e incentivo para que o agente (seguradora) tome as melhores decisões sob o ponto de vista dele.

Diante dessa assimetria, o alinhamento de incentivos não ocorre e falências podem resultar da interação entre eles. Para controlar o risco de insolvência, surge a regulação prudencial que em síntese produz regras disciplinando o capital regulatório, as reservas, a alocação do capital da seguradora e de seus investimentos. Cada autoridade reguladora define suas regras de acordo com os objetivos de sua área de atuação.

No caso do sistema bancário, por exemplo, a regulação prudencial “estabelece requisitos para as instituições financeiras com foco no gerenciamento de riscos e nos requerimentos mínimos de capital para fazer face aos riscos decorrentes de suas atividades.  O gerenciamento de riscos e os requerimentos mínimos de capital contribuem para que eventual quebra de uma instituição financeira não gere um efeito dominó no sistema financeiro e, em última instância, perdas para a sociedade como um todo. Esse efeito dominó é conhecido como risco sistêmico”[7].

No setor segurador, a regulação prudencial “diz respeito ao estabelecimento de regras que visem a resguardar a solvência das sociedades e entidades supervisionadas pela Susep (ou seja, sua capacidade financeira para cumprir os compromissos assumidos junto aos segurados e beneficiários) mesmo em face de eventuais acontecimentos desfavoráveis. Seu objetivo é reduzir a probabilidade de eventos de insolvência (embora seja impossível garantir sua completa eliminação) e, caso estes ocorram, mitigar seus impactos para os segurados, o mercado segurador e o sistema financeiro como um todo. Alguns dos principais temas tratados no contexto da Regulação Prudencial são Provisões Técnicas, Ativos, Requerimentos de Capital, Governança, Gestão de Riscos, Controles Internos e Contabilidade”. [8]

No caso da ANS, conforme Serra (2016), “A regulação prudencial do mercado de saúde suplementar tem por objetivo a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do ente regulado como forma de garantir a continuidade e a qualidade do serviço contratado pelo consumidor. O ciclo invertido pode gerar falsa percepção de solidez, o que pode ocasionar decisões equivocadas e perigosas para a sustentabilidade do negócio.” Ainda segundo o autor, “a regulação prudencial, pretende que as operadoras reconheçam adequadamente as obrigações assistenciais a que estão sujeitas, minimizando a possibilidade de percepção irreal de liquidez, de forma que sejam mantidos recursos suficientes para a garantia de suas atividades. Como é mercado que envolve significativos riscos (a ocorrência do evento médico é imprevisível, tanto em termos de “quando” como principalmente em termos de “quanto”), traduzidos muitas vezes em prejuízos substanciais, é fundamental que haja, também, solidez patrimonial. A regulação busca, portanto, que sejam fortalecidos dois conceitos fundamentais: liquidez e solvência. Liquidez é o correto dimensionamento das obrigações assistenciais e a manutenção de uma estrutura de ativos suficiente para sua cobertura e solvência é manutenção de capital próprio em volume capaz de fazer frente a eventuais prejuízos, de forma que a operadora consiga atravessar períodos adversos sem comprometer a continuidade de suas operações.”

No caso da regulação prudencial da ANS, importante ressaltar que o mercado calcula seus riscos em modelos paramétricos e fórmulas padrões como a margem de solvência. No entanto, a regulação tem evoluído na direção de modelos de capital baseado em riscos. Até 2022 operam regras transitórias, mas a partir de 2023, entra em operação o capital baseado em riscos (RN 526/2022). Já foram regulados os riscos de subscrição, crédito, mercado e operacional. Adicionalmente, a comprovação da aderência às práticas mínimas de governança corporativa, permitem à operadora utilizar fatores reduzidos de capital (RN 518/2022). Há previsão inclusive da substituição do modelo de capital base regulatório pelo modelo interno, desde que aprovado pela ANS.

Os requisitos prudenciais não impedem necessariamente que uma instituição financeira enfrente dificuldades ou vá à falência, mas minimizam efeitos negativos de eventual encerramento das atividades de uma instituição financeira. A abordagem teórica padrão subjacente à regulação de seguros se origina em métodos atuariais e, mais especificamente, na teoria da ruína. De um modo geral, esta abordagem postula que o objetivo da regulação prudencial é garantir que a probabilidade de ruína das companhias de seguros esteja abaixo de um determinado valor “aceitável”. O segundo pressuposto é que a principal ferramenta de que o regulador dispõe para atingir este objetivo é a fixação de uma margem de solvência obrigatória, o montante mínimo de capital próprio de uma empresa que pode ser utilizado como buffer. O Gráfico apresentado a seguir mostra o volume de recursos alocados em termos de ativo, provisões e patrimônio líquido do setor.

  • Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência?

Feitas essas digressões sobre seguro e a regulação prudencial, cabe retornarmos à pergunta: Quanto a sociedade está disposta a sacrificar, em termos de menor garantia de solvência das empresas, para obter maiores ganhos de bem-estar resultantes de mais concorrência no mercado? Essa pergunta somente faz sentido se acreditarmos na existência de um trade-off entre esses dois objetivos. O primeiro certamente é tarefa primordial da autoridade reguladora dos mercados de riscos enquanto o segundo é o objetivo das políticas de defesa da concorrência. Evidentemente o custo regulatório não se limita ao esforço de cumprimento das exigências econômico-financeiras e de capitalização das empresas. Há que se considerar todos os demais custos de atendimento da regulação que encarecem a operação e reduzem a margem de lucro esperada e o retorno do investimento ao acionista. Mas para ficarmos apenas na questão prudencial, pode-se argumentar que há um nível ótimo em que a solvência fica preservada, mas ao mesmo tempo não cria barreiras à entrada a ponto de tornar-se o mercado não contestável, no sentido de Baumol.

O que se conclui neste artigo é que a agenda de elaboração de políticas de regulação e de defesa da concorrência precisaria ser colaborativa no sentido de atuarem em uma mesma direção. Se no curto prazo os objetivos parecem ser concorrentes, no longo prazo, com liberdade de entrada sujeita às regras prudenciais, a qualidade da concorrência tem dominância sobre a quantidade de concorrentes, permitindo uma agenda conciliatória entre as autoridades da concorrência e regulatória.

Não podemos deixar de considerar que em mercados de risco, a escala mínima viável, tradicional barreira à entrada, se submete à inevitável lei dos grandes números e a massa segurada é fundamental para a estabilidade dos resultados. No caso da saúde suplementar, o movimento em direção à concentração é impulsionado não somente pela melhoria das regras prudenciais, mas principalmente pelo risco assumido pelas operadoras que cresce a cada nova incorporação ao rol de procedimentos com inclusões de drogas cada vez mais caras.  

Nesse sentido, a regulação prudencial é a função de reação do próprio órgão regulador ao processo de inclusão vertiginosa de novas tecnologias que acrescentam custos ao setor de forma acelerada, nem sempre com a adequada verificação de sua custo-efetividade e, principalmente, da capacidade financeira da população suportar o aumento de custos da saúde, consistentemente acima dos índices oficiais de inflação. O Gráfico a seguir apresenta a redução da quantidade de operadoras no mercado de saúde suplementar. Muitas delas saíram voluntariamente, foram adquiridas ou foram retiradas do mercado pela ANS, após a decretação de liquidação extrajudicial ocasionada por problemas econômico-financeiros. Neste caso, a escolha tem sido sacrificar a concorrência em benefício da solvência do mercado. Com a aceleração nesse processo, a tendência é de redução ainda maior na oferta. Um bom ponto para discussão integrada entre os policy-makers regulatórios e concorrenciais.

Referências

ALVES, SL (2005). Regulação Prudencial e Concentração na Saúde Suplementar. Revista Cadernos de Seguro, Ed. Maio/2005, p. 52-54.

ALVES, SL (2022). Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos. Webadvocacy. Brasília. DF. Coluna de junho.

BAUMOL (1982). Contestable Markets and the Theory of Industry Structure, with J.C. Panzar and R.D. Wilig.

BERNSTEIN, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

CONTADOR, C.R. (2014). Economia do Seguro. Fundamentos e Aplicações. Versão revisada e ampliada. Ed. Atlas

CORIOLANO, M (2022). Nota: Há uma escala mínima de beneficiários para a operação segura de um plano de saúde regulado? https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6955907350318706688/

GALIZA, F (2011). Economia e Seguros: Uma Introdução. Ed. Funenseg, 3ª ed revisada e atualizada.

GUILAUME AND ROCHET, JC (2007). When Insurers go Bust. An Economic Analysis of the Role and Design of Prudential Regulation. Princeton University Press.

JENSEN, M.; MECKLING, W. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, v. 3, n. 4, p. 305-360, 1976.

SERRA, C. (2016). Entendendo a regulação prudencial no mercado de saúde suplementar. A operação em preço preestabelecido e o incentivo à descapitalização. Revista Cadernos de Seguro nº 186, p.27-33.


[1] A Variação do Custo Médico Hospitalar – VCMH/IESS – para um conjunto de 688,9 mil beneficiários de planos individuais atingiu 27,7% nos 12 meses terminados em setembro de 2021 relativamente aos 12 meses terminados em setembro de 2020. Nesse mesmo período, o IPCA foi de 10%. Fonte: IESS.

[2] ALVES, SL (2022).

[3] Alguns autores contam ter se originado durante a travessia de cameleiros no deserto. Como durante as longas travessias, alguns camelos morriam, havia um acordo entre os cameleiros de reporem as perdas do participante que sofreu o infortúnio. Bernstein, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

[4] Para informações mais técnicas sobre a economia do seguro, sugere-se consultar a obra de Contador (2014) e Galiza (2011).

[5] É comum dizer que o risco é uma medida da incerteza. São conceitos distintos, como proposto pelo economista Frank Knight.  Se não sabemos o que acontecerá, mas conhecemos as probabilidades, temos o conceito de risco. Se não conhecemos nem mesmo as probabilidades, estamos falando de incerteza.  A incerteza é não quantificável, com regras de formação e causas desconhecidas.

[6] World insurance: inflation risks front and centre. Swiss Re Institute, 2022.  Disponível em: https://www.swissre.com/institute/research/sigma-research/sigma-2022-04.html

[7] www.bacen.gov.br.

[8] www.susep.gov.br

“If you can’t buy the art, buy the artist”: efeitos da verticalização e considerações acerca da conduta de self-preferencing

Polyanna Vilanova & Matheus Carvalho

Na série Billions, o coprotagonista Bobby Axelrod, em dado momento, afirma que se você não pode comprar a obra de arte, compre o artista. Transplantando a premissa para a realidade empresarial, surge uma ideia sempre presente para qualquer agente em processo de expansão: o controle das etapas do processo produtivo.

Em outras palavras, melhor do que negociar, muitas vezes é mais vantajoso adquirir um outro agente que esteja no mercado verticalmente relacionado. Quando isso acontece, a tendência é que o ente verticalizado passe a dar tratamento preferencial aos seus próprios produtos ou serviços, prática conhecida como self-preferencing.

Nesses casos, argumenta-se que é normal (até esperado) que as empresas que controlem diversas etapas do processo produtivo deem preferência aos seus próprios produtos em detrimento daqueles produzidos por concorrentes[1]. Trata-se de uma conduta em tese previsível e que muitas vezes é a pedra angular de uma concentração econômica. Contudo, em algumas situações, é possível que preocupações concorrenciais surjam a partir desse arranjo.

A grande questão, portanto, é estabelecer parâmetros confiáveis que possam indicar quando a conduta deve ser objeto de reprovação pelo ordenamento jurídico e qual o teste a ser aplicável para aferir a ilicitude.

Linhas gerais, para a caracterização da conduta, dois pressupostos são necessários. O primeiro pressupõe a existência de dois mercados que podem ser horizontais ou verticalmente relacionados[2]. Em segundo lugar, é preciso que haja algum mecanismo pelo qual o agente que atua no mercado “A” favoreça as suas atividades no mercado “B”[3].

Trata-se, conforme exposto, de uma estratégia pela qual um agente utiliza a posição dominante que dispõe em um mercado para alavancar sua posição em outro. Esta prática, conforme reconhecido pela OCDE, pode gerar eficiências para o consumidor além de proporcionar uma recompensa para o agente que inovou ou que adotou diferenciação competitiva[4].

Contudo, é possível que ao agir desta forma, o self-preferencing seja utilizado como instrumento de distorção do processo competitivo, comprometendo a livre concorrência e a contestabilidade do mercado.

Por esta razão, seguindo o que sugere a literatura econômica, a OCDE recomenda que a análise mais adequada de uma conduta de self-preferencing seja feita por efeitos, justamente por ser necessário analisar o que levou à conduta, quais os efeitos da prática no mercado analisado e quais as justificativas econômicas associadas à prática[5].

A grande questão é: quando a conduta é lícita e quando não é? Qual a teoria do dano aplicável? Nesse ponto, há quem diga que self-preferencing carece de balizas suficientemente claras na medida em que se sobrepõe a categorias legais distintas sujeitas a testes distintos, o que macula a justificativa econômica por trás da conduta[6][7].

Assim, advoga-se que não é propriamente o self-preferencing que deveria ser coibido – porque não haveria uma conduta autônoma a ser censurada – mas a consequência prática que ele traz no caso concreto (refuse to deal, tying, bundling etc.).

Ainda em termos de identificação da conduta, para alguns autores, o self-preferencing seria uma expressão da competição por mérito e que somente em hipóteses muito específicas, como no caso de essential facilities, é que haveria a obrigação de não discriminar[8][9]. Há, contudo, quem discorde frontalmente desta afirmação[10].

Na jurisprudência, o tema não é menos controverso. Na Europa, caso paradigmático foi a multa imposta ao Google por suposta violação ao artigo 102 do TFUE em razão do abuso de posição dominante (investigação semelhante foi instaurada nos EUA[11] com resultado diametralmente oposto).

No Brasil, recentemente, a Superintendência-Geral debruçou-se sobre o tema em, ao menos, 3 oportunidades no ano de 2022 (duas no setor portuário e uma no mercado de plataformas de delivery de refeições)[12].

De tudo quanto exposto (e não exposto), nota-se que há um vasto oceano a ser desbravado quando o assunto é self-preferencing. Longe do consenso, os debates são sofisticados e a tendência é o aprofundamento da discussão (para mercados tradicionais e digitais) no campo acadêmico e jurisprudencial.

Considerando que há efeitos pró-competitivos com a conduta, o desafio será identificar as exatas circunstâncias em que a conduta é anticompetitiva e qual a melhor forma de endereçar a discussão (via autoridade concorrencial ou regulação[13]) sem desestimular o incentivo à inovação e à diferenciação.


[1] No original: “Self-preferencing is an expected – if not inevitable – consequence of the integration of different activities under common ownership”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[2] No original: “First, the case involves two markets, which may be horizontally (for instance, two applications running on an operating system) or vertically related (for instance, an application and the operating system on which it runs). In: COLOMO, Pablo Ibañez. Self-Preferencing: Yet Another Epithet in Need of Limiting Principles (July 17, 2020). Forthcoming in (2020) 43 World Competition. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3654083

[3] No original: “Second, there must be a (unilateral or contractual) mechanism through which a firm favours its activities on one of the markets at the expense of others.” In: COLOMO, Pablo Ibañez. Id. Ibid.

[4] No original: “Like vertical integration, leveraging can generate efficiencies for consumers and provide legitimate rewards for innovation or competitive differentiation”. In: OECD. Abuse of dominance in digital markets. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/abuse-of-dominance-in-digital-markets.htm

[5] No original “As with the other theories of harm associated with leveraging and refusals to deal, economic intuition suggests a need for a case-by-case approach to abusive leveraging.”. In: OECD. Op. cit.

[6] No original: “It follows from the analysis above that self-preferencing, as a label, overlaps (partially or totally) with several existing legal categories – including tying and refusal to deal. What is more, the latter apply to conduct that varies widely in its nature and effects and that, for the same reason, is subject to legal tests that are also different”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[7] No original: “As already explained, self-preferencing lacks clear boundaries. It overlaps with well-established categories which are, moreover, subject to different legal tests. However, the single most important problem with self-preferencing as a label is that it might lead to the abandonment of the case law without an appropriate examination of the rationale underpinning it and without evaluating the consequences of departing from it”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[8] No original: “It follows that favouring one’s own business or product is not anti-competitive even if it leads to the marginalization or even disappearance of certain individual competitors, so long as the favouring is competition on the merits”. In: VESTERDORF, Bo. Theories of Self-Preferencing and Duty to Deal – Two Sides of the Same Coin? (January 31, 2015). Competition Law & Policy Debate, Volume 1, Issue 1, February 2015, p.4-9. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2561355

[9] No original: “There can therefore be no obligation on a dominant undertaking to treat its competitors in downstream or related markets in the same or substantially the same way as its own operations in such markets […] without establishing the existence of an “essential facility”. VESTERDORF, Bo. Id. Ibid.

[10] Ver: PETIT, Nicolas. THEORIES OF SELF-PREFERENCING UNDER ARTICLE 102 TFEU:

A REPLY TO BO VESTERDORF. Competition Law & Policy Debate 1 CLPD (2015). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2592253 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2592253

[11] “One of the first of these investigations internationally was the FTC’s inquiry into whether Google’s search results were “biased” towards its own “properties” and, if so, whether such self-preferencing was an unfair method of competition under Section 5 of the Federal Trade Commission Act. After a 19-month investigation, the FTC closed the investigation. In its strongly-worded closing statement, the FTC went well beyond saying that Google’s behavior did not violate U.S. competition law. Rather, it asserted that the behavior at issue was the sort of competitive behavior that competition statutes encourage”. In: SALINGER, Michael A. Self-Preferencing (November 11, 2020). The Global Antitrust Institute Report on the Digital Economy 10. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3733688 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3733688

[12] Ver NT nº 20/2022 (IA nº 1797/2022-09); NT nº 9/2022 (IA nº 3945/2020-50); Parecer nº 12/2022 (AC nº 7341/2021-63).

[13] A União Europeia largou na frente e tornou-se a primeira jurisdição a regular o tema. Para maiores aprofundamento, ver: COUTINHO, Diogo R. GONÇALVES, Priscila Brolio. KIRA, Beatriz. As big techs e a nova onda de regulação digital: o caso União Europeia. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-big-techs-e-a-nova-onda-de-regulacao-digital-o-caso-uniao-europeia-21072022.

Um duelo entre direito e economia? Desmistificando o Guia de Análise de Preços*

Juliana Oliveira Domingues

Houve um pequeno engano, [….] numa comprida complicação”.[1]

No conto “Duelo”, de Guimarães Rosa (de onde se extraiu o trecho, acima) há duas histórias de vingança correlacionadas: de um lado, a do marido buscando o amante da esposa e, de outro, a do homem buscando o assassino do irmão.

O conto foi rememorado em uma conversa com um ex-orientando, professor e amigo diante de outro “duelo” mais sofisticado entre articulistas experientes: de um lado, um economista e, de outro, um advogado. Surpreendentemente, o referido duelo envolveu recorte de argumentos do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços[1] numa espécie de réplica do segundo artigo para o primeiro. A divergência entre os autores poderia ter se dado de diversas formas, como em todo espaço em que se discutem ideias, mas chama a atenção a utilização, in casu, do referido “Guia”. 

Explico, pois estive na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), entre janeiro de 2020 e março de 2022, ou seja, no ápice da pandemia. “Fora da cadeira”, não posso me furtar a trazer luz ao debate. 

Para essa finalidade, não preciso entrar no caso concreto que motivou o “duelo”. Também não discutirei outras questões sensíveis ainda que, como professora de Direito, eu me preocupe com o uso de espaços acadêmicos para defesas de teses sem o chamado full disclosure. Aliás, essa não é uma particularidade da academia brasileira[2].

Voltemos ao foco: o histórico do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Como responsável à época (desde o início da pandemia) explicarei, de forma sintética, a gênese, a motivação e os objetivos centrais que culminaram no Guia, construído com esmero, ao longo da pandemia. 

Como Secretária Nacional do Consumidor, eu fui a primeira presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), composto por representantes de entidades públicas estaduais e municipais de defesa do consumidor, do CADE, do Ministério da Economia, do Banco Central, de agências reguladoras, de entidades civis de defesa de consumidores, entre outros, promovendo um ambiente plural para debater temas desafiadores. A ideia central da criação do CNDC é meritória, proporcionando um foro de debate institucional para a redução de insegurança jurídica e a proposição de recomendações aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

Vale lembrar que a Secretaria Nacional do Consumidor atua diante da atração das competências que envolvem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Portanto, não se discute – e muito menos se coloca em dúvida – o interesse da Senacon em analisar supostas condutas que possam afetar os consumidores, por diversos motivos. O CDC traz um rol extenso de possíveis práticas lesivas/abusivas aos consumidores: falta de transparência, publicidade enganosa ou abusiva, venda casada, entre outras. Mas, o grande debate que antecedeu e motivou a elaboração do guia foi, especificamente, a dificuldade de definição do que seria “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços” (art. 39, X, do Código de Defesa do Consumidor), popularmente chamado de “preço abusivo” [3], especialmente em um livre mercado[4] durante uma grande pandemia.

Afinal, como aferir os tais preços arbitrários, leoninos ou abusivos? E o que pode configurar “abusividade”?

Pois bem, o tema é desafiador “per se”: logo, poderia se fazer nada (caminho mais simples) ou buscar mínimos denominadores comuns (caminho mais desafiador). Houve esforço do CNDC para estabelecer parâmetros mínimos, garantindo previsibilidade, segurança jurídica e um padrão uniforme de análise caso a caso.

Ou seja, pensando na defesa do consumidor compatibilizada com outros princípios constitucionais da ordem econômica, a orientação que o guia traz é analisar a cadeia produtiva a fim de identificar: i) o produto que se quer verificar abusividade; ii) as empresas que atuam como concorrentes nesse mercado; iii) a cadeia produtiva, incluindo a matéria-prima do produto; iii) racionalidade econômica no aumento de preços. Todas essas etapas são analisadas antes de qualquer conclusão. Em nenhum momento, o guia foi pensado ou direcionado à avaliação de uma relação puramente comercial, visto que cada análise depende de dados relacionados a cada produto e serviço individualizado e seu efeito (e preço final) na relação de consumo[5].

Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços é resultante dos 02 (dois) anos de debates e de relatórios de uma comissão presidida pela Senacon, que também contou com tripla relatoria: do Cade, da Seae/ME e de Procons. Foram colocados atores que possuíam entendimentos diferentes para um esforço inédito de padronização que decorreu das diversas demandas surgidas e que subsidiaram as atividades dos órgãos de proteção e defesa do consumidor, em um período desafiador[6]. Nesse sentido, foi salutar a experiência adquirida na pandemia.

No referido “Guia Prático”, houve cuidado ao explicar as competências de cada órgão (i.e. Senacon, Procons, SEAE, CADE, Ministério Público, Defensorias Públicas etc.) e princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica foram destacados[7]. Por esse motivo, há explicações sobre os efeitos deletérios das tentativas artificiais de controle de preços[8] (como o tabelamento) vividos nos anos 80: experiências malsucedidas que geraram o desabastecimento de produtos à população, mercados informais e o aumento da cartelização[9]

Assim, o roteiro apresentado descreve quatro etapas[10]: i) a identificação dos possíveis indícios de comportamento abusivo, envolvendo o exame dos índices de inflação e, também, a definição do mercado. É preciso separar, por exemplo, setores regulados dos não-regulados; ii) encaminhamento de acordo com essa identificação (diante de uma possível atração da regulação setorial e concorrencial) avaliando-se os choques de oferta/demanda. Quando forem identificadas práticas anticoncorrenciais, encaminha-se, por exemplo, para a análise do CADE ou da Seae/ME; iii) exame de especificidades do período (i.e. casos de emergência ou de calamidade) e a especulação de preços dos fornecedores; iv) análise econômico-jurídica das causas dos aumentos, com base em critérios técnicos e objetivos, com possível identificação de falhas de mercado.

O Guia tem caráter de soft law e é orientativo. Seu lançamento como uma cartilha didática trouxe referenciais que reforçam que o Brasil é uma economia de mercado onde há liberdade para que as empresas estabeleçam seus preços. Abusividades devem ser analisadas de forma adequada para evitar interferências desnecessárias, ou medidas desproporcionais.

Portanto, o Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços sintetiza as orientações aprovadas no âmbito do CNDC, com um passo a passo, facilitando a sua correta aplicação, com base sólida constitucional, consumerista, regulatória e também com fundamentos tradicionais da Análise Economica de Direito. Pensando na imprescindível segurança jurídica, é preciso destacar: o guia se baseou em uma construção jurídica racional, baseada em dados e evidências, sempre voltada a avaliar preços finais de produtos e serviços ao consumidor.

As relações estabelecidas na cadeia produtiva são capazes de gerar externalidade negativas ao consumidor e ao bem-estar social? Sim, claro! Essas externalidades geradas por relações comerciais podem ser analisadas de outras formas, com base nos instrumentos jurídicos/regulatórios que existem para essa finalidade. “Nem tudo que reluz é ouro”, assim como nem todas as condutas com potenciais reflexos na relação de consumo atraem a aplicação do guia.


[1] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[2] Veja-se, nesse sentido, o documentário “Inside Job”, vencedor do Oscar em 2011 que retrata, também, as atividades dos acadêmicos.

[3] Sobre o conceito de preço, veja-se: GABAN, Eduardo M.: “O preço reflete o valor de um bem ou serviço, sendo este o resultado da interação simultânea do comportamento de todos os agentes econômicos (ofertantes e demandantes) em uma economia livre, isto é, em um ambiente concorrencial. Nessa linha, se posicionam desde os clássicos como Adam Smith (1776) e Stuart Mill (1848), aos neoclássicos Vilfredo Pareto (1909), John Hicks (1939) e Samuelson (1945). Preço é um sinal de quão desejado e disponível é um determinado bem ou serviço em um dado momento e localidade. Quanto maior a procura e maiores as dificuldades de acesso, maiores são os preços. Quanto maior o ganho, mais agentes se dispõem a ofertar o bem ou serviço. Essa é a ideia subjacente ao conceito de equilíbrio geral, o qual resulta da constante e dinâmica interação dos agentes econômicos no mercado. Em sentido similar, podemos empregar o conceito de eficiência potencial de Pareto, ou mais conhecido como critério Kaldor-Hicks de bem-estar, em alusão aos seus precursores Nicholas Kaldor – Welfare Propositions in Economics and Interpersonal Comparisons of Utility – (1939) e John Hicks – The foundation of welfare economics – (1939).” In: Coronavírus, preços abusivos e a deterioração do Estado Democrático de Direito, Coluna da ABDE do JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/coronavirus-precos-abusivos-e-a-deterioracao-do-estado-democratico-de-direito-31032020 Acesso em: Julho de 2022.

[4] Sobre esse tema e a Lei da Liberdades Econômica, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SANTACRUZ, A; GABAN, E. M. (coord). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – Comentários À Lei 13.874/2019 (2020). 1. Ed.Juspodvum. 2020, 640 p.

[5] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[6] Cf. JOTA. Economia. Disponível em https://www.jota.info/jotinhas/senacon-institui-comissao-para-tratar-do-aumento-de-preco-em-itens-da-cesta-basica-15092020 Acesso em 30 de julho 2022.

[7] Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SILVA, B. F. M.  A liberdade econômica tem limites? – Reflexões sobre a aplicação do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência. In. RODAS, João Grandino; ATTIÉ JUNIOR, Alfredo (Org.). 30 anos da Constituição Federal. São Paulo: CEDES, 2019, p. 279-300.

[8] Parece não haver divergência sobre o tema entre PRATES TEIXEIRA, C; e MATTOS, C. “Os problemas de se interferir nas estruturas de preços”: “[…] Para além do dilema entre o Código de Defesa do Consumidor e a lei de Liberdade Econômica, o conceito pouco objetivo do que seja aumento abusivo de preços ou arbitrário dos lucros colocam sérias dificuldades analíticas. Muitas vezes o que pode se entender que seria algo abusivo não é mais do que o reflexo natural de mudanças de oferta e demanda. Devemos lembrar que preços são sinais na economia que definem o comportamento do consumidor e, principalmente, das empresas.” Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precos-problemas-interferir-estrutura-08102020. Acesso em 30 de julho de 2022. E, também, em um passado recente: […] liberdade econômica ou livre iniciativa significa a liberdade de atuar e de participar do mercado (produzindo, vendendo ou adquirindo bens e serviços, alienando sua força de trabalho). Dito de outro modo é um princípio que estabelece, a priori, uma liberdade econômica, que antecede a sua regulação pelo Estado. Cf. TIMM, L. B. “O direito fundamental à livre iniciativa (ou à liberdade econômica)”. In. JOTA, Coluna da ABDE, 2019. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/o-direito-fundamental-a-livre-iniciativa-ou-a-liberdade-economica-22052019> Acesso em julho de 2022.

[9] Cf. DOMINGUES, J. O.; GABAN, E. M. Direito Antitruste. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[10] Vale a pena conferir todo Guia: “BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

 


[1] […] “E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas.” Cf. ROSA, João Guimarães. Duelo. Sagarana. 7a ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.

* Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.

O califa está de olho no decote dela: as implicações do caso Alibaba para a concorrência em mercados digitais

Angelo Prata de Carvalho

As permanentes discussões sobre o futuro do Direito da Concorrência e as disputas dogmáticas e narrativas quanto às suas finalidades têm há muito dominado a literatura antitruste, que constantemente se debruça sobre a dicotomia entre as premissas metodológicas tradicionalmente fixadas pelo direito norte-americano – baseadas, em larga medida, nos fundamentos estruturados pela Escola de Chicago e na teoria econômica neoclássica – e os entendimentos dissonantes advindos da Europa – com postura considerada mais intervencionista, na medida em que tende a limitar a concentração e a tomar decisões mais rigorosas no âmbito do controle de condutas.

No entanto, com a crescente integração da economia global, e especialmente com a avassaladora influência transnacional das chamadas big techs ou gigantes da internet – o que tem levantado preocupações relevantes inclusive nos Estados Unidos, notadamente com as autoridades nomeadas pelo governo Biden, marcadamente partidárias de visão crítica quanto às perspectivas dominantes que permitiram o grande movimento de concentração econômica das últimas décadas –, diversas vozes relevantes têm inclusive apontado ou para a necessidade de convergência de abordagens (perspectiva que também é potencialmente problemática, mas que será abordada em outra oportunidade), ou ao menos para problemas compartilhados que mereceriam a construção soluções holísticas. Pode-se mencionar, nesse sentido, recente discurso no qual a Comissária Europeia para a Concorrência Margrethe Vestager expressamente afirmou que mercados abertos e justos são um objetivo compartilhado por ambos os lados do Atlântico, de tal maneira que haveria forte convergência quanto às preocupações das duas jurisdições[1].

Por mais emocionantes que possam ser as disputas pelo protagonismo da defesa da concorrência, notadamente no que se refere aos mercados digitais, e por mais heroicas que sejam as iniciativas europeias e norte-americanas pelo controle do poderio econômico das big techs, tal narrativa insere o restante do mundo na plateia da exibição de um filme com legendas mal traduzidas. Causa inclusive alguma perplexidade que, apesar de os gigantes dos mercados digitais projetarem seu poder sobre todas as demais jurisdições, estas parecem estar, parafraseando-se a famosa carta de Aristides Lobo, assistindo bestializadas a tal processo, atônitas e surpresas, sem saber o que significa, acreditando seriamente estarem acompanhando mais um desfile de ideias.

No entanto, não somente há outros Direitos da Concorrência distintos daqueles ao norte, como há posturas firmes que desafiam diversas das premissas lá estabelecidas. Exemplo disso é o que vem ocorrendo na China, que desencadeou processo resumido pela manifestação do presidente Xi Jinping após sessão plenária da Comissão de Inspeção Disciplinar do Partido Comunista Chinês, segundo o qual “esforços deverão ser tomados para investigar e punir o comportamento corrupto por trás da expansão desordenada do capital e do monopólio das plataformas, e para cortar a ligação entre poder e capital”[2].

O pronunciamento vem na esteira da avassaladora condenação da gigante chinesa de tecnologia Alibaba, condenada em multa equivalente a 2.8 bilhões de dólares, em 2021, pela Administração Estatal de Regulação do Mercado da China (conhecida pela sigla em inglês SAMR), pela prática de conduta anticompetitiva consistente na criação de estrutura de incentivos que forçava vendedores a comercializarem seus produtos exclusivamente na plataforma da empresa. Conforme explica Sandra Colino, a rigorosa postura da autoridade concorrencial chinesa não consiste propriamente no ingresso do país asiático no movimento global de combate às big techs, mas no resultado de uma estratégia sui generis de controle do poder econômico, fundada na ideia de “observar e então agir” (observe-then-act)[3]. O caso da Alibaba, nesse sentido, é lapidar: após longo período de desenfreado e descontrolado crescimento, no qual o conglomerado liderado por Jack Ma conquistou habilmente mercados dominados por agentes ligados ao governo central (como ocorreu com a Alipay, braço financeiro do grupo Alibaba que rapidamente ocupou relevantes espaços dos pouco eficientes bancos chineses), vem sendo mais rigorosamente controlado pelas autoridades de regulação do mercado.

A distinção, aqui, não é meramente política e tampouco se trata tão somente de um novo golpe em uma complexa disputa por espaços de poder, mas diz respeito a uma forma particular de visualizar-se o desenvolvimento e a proteção de mercados. Isso porque, como explica Lillian Li, existe uma relação simbiótica entre as instituições públicas chinesas tradicionais e as instituições digitais privadas em ascensão, de tal maneira que a tecnologia se desenvolve da China a partir da premissa de que se trata de um país em desenvolvimento com instituições em desenvolvimento, de tal maneira que a tecnologia não está aprimorando instituições já existentes, mas verdadeiramente criando-as[4]. Trata-se, em síntese, segundo a autora, do processo enunciado por Deng Xiaoping ao propagar que “é preciso cruzar o rio sentindo as pedras sob os pés”: diante da ausência de consenso sobre a melhor forma de lidar com a inovação, pode ser interessante verificar como os agentes econômicos se comportam para então reequilibrar os mercados quando necessário.

Considerando que a inovação franca passou a dar lugar a uma série de abusos – como é o caso da conduta anticompetitiva perpetrada pela Alibaba, dentre outros exemplos[5] – o arcabouço regulatório e concorrencial chinês vem sendo robustecido com soluções originais, como a recente recomendação da Administração do Ciberespaço da China que vedou a utilização de algoritmos para a imposição de restrições indevidas sobre provedores da internet que obstem o regular funcionamento dos serviços informacionais ou produzam condutas monopolistas ou anticompetitivas[6].

            A postura adotada pela China serve, assim, para questionar diretamente o recorrente truísmo segundo o qual as autoridades concorrenciais dos Estados Unidos teriam historicamente adotado postura mais contida em razão da circunstância de que os gigantes da internet encontram-se sediados em território americano, ao passo que a União Europeia teria a possibilidade de tomar decisões mais arrojadas por não seguir as mesmas tendências protecionistas – e, ao contrário, contaria com incentivos para proteger-se da dominância das big techs norte-americanas. Evidentemente que não se ignora que tanto Estados Unidos quanto União Europeia podem ser movidos por anseios protecionistas ou outras finalidades políticas (tendo em vista que o Direito da Concorrência é, invariavelmente, político).

No entanto, igualmente não se pode deixar de levar em consideração o fato de que se trata de posturas teórico-ideológicas em disputa sobre o Direito da Concorrência que dificilmente serão verdadeiramente efetivas (especialmente se carregarem o ônus de promover a convergência) se não dialogarem com as idiossincrasias daqueles que terão de segurar o Tchan.


[1] https://ec.europa.eu/commission/commissioners/2019-2024/vestager/announcements/speech-evp-margrethe-vestager-american-chamber-commerces-transatlantic-business-works-summit-europes_en.

[2] http://www.news.cn/politics/2022-01/20/c_1128283479.htm.

[3] COLINO, Sandra Marco. The case against Alibaba in China and its wider policy repercussions. Journal of Antitrust Enforcement. v. 10, pp. 217-229, 2022.

[4] https://lillianli.substack.com/p/let-the-bullets-fly-for-a-while

[5] Ver: https://www.cigionline.org/articles/how-antitrust-facilitates-chinas-goal-to-achieve-technological-self-sufficiency/

[6] Disponível em: https://digichina.stanford.edu/work/translation-internet-information-service-algorithmic-recommendation-management-provisions-effective-march-1-2022/.

A atual composição do Tribunal do Cade e a oxigenação dos debates da relação entre tributação e concorrência

Polyanna Vilanova[i]

Henrique Muniz[ii]

Os diversos efeitos da tributação na economia e os eventuais impactos de distorções tributárias no ambiente competitivo vêm ganhando espaço nos debates da comunidade antitruste.

Muito embora tais debates ainda necessitem de bastante aprofundamento, é possível identificar a formação de análises doutrinárias que buscam entender em que medida práticas tributárias (p. ex. sonegação fiscal e benefícios e incentivos fiscais) podem afetar a concorrência ao ponto de atrair a competência dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e, em especial, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Por outro lado, verifica-se que, historicamente, o Cade opta por afastar sua competência quando se depara com casos de ilícitos tributários como meio de infração à ordem econômica, seja sob o fundamento de que quaisquer distúrbios na concorrência seriam sanados após o enfrentamento da questão no foro competente (Poder Judiciário, Receita Federal e demais órgãos), seja sustentando a impossibilidade de penalizar agentes econômicos que fazem uso de benefícios ou isenções fiscais concedidos pelo poder público, que, embora gerem diferenciação de agentes, não seriam práticas evasivas e tratar-se-iam de medidas positivadas no ordenamento jurídico.[1]

Inclusive, logo após tomar posse na presidência da autarquia antitruste, Alexandre Cordeiro, em entrevista ao Jota, quando questionado qual deveria ser o posicionamento do Cade na hipótese de outras infrações, como a sonegação de impostos, terem impacto no direito concorrencial, afirmou seguramente que seria um equívoco atuar, uma vez que o órgão teria que “ficar na seara da concorrência”. Complementou, em seguida, que a solução seria o correto funcionamento do sistema tributário, não sendo possível se transferir para o Conselho a responsabilidade que não é dele.[2]

Assim, diante de um cenário em que, de um lado, o Cade apresenta um histórico, reafirmado por seu atual Presidente, de afastar sua competência para analisar os efeitos de práticas tributárias na concorrência e em que, de outro, a comunidade antitruste está cada vez mais atenta para tal discussão e vem cobrando posicionamentos da autarquia sobre o tema, haveria alguma expectativa de mudança de paradigma pelo Cade em sua atual formação?

Pois bem. A gênese da discussão do tema tributação e concorrência no Brasil está intimamente ligada à questão dos impactos concorrenciais da guerra fiscal, com inspiração no latente debate europeu sobre a harmful tax competition[3]na ordem jurídica europeia.

Ainda em 1998, na União Europeia, onde o estudo das questões relacionadas à tributação e seus efeitos sobre o mercado já parecia ter um elevado amadurecimento, ficou estabelecido o Código de Conduta de Fiscalidade das Empresas, reconhecendo a existência de uma concorrência fiscal prejudicial entre os países-membros capaz de distorcer os padrões de comércio e de investimento e outros defeitos na esfera concorrencial. Nesse sentido, diversos são os casos julgados pela Corte Europeia de Justiça envolvendo a concessão de incentivos fiscais e seus impactos na dinâmica do mercado comum europeu[4]. Além disso, a OCDE, tendo em conta o cenário europeu, desenvolveu o relatório “Guidelines on Harmful Preferential Tax Regimes” com o objetivo de desencorajar a guerra fiscal entre os países europeus e trazer diretrizes para mitigação dos paraísos fiscais.

Paralelamente a essa relevante discussão europeia acerca da concorrência fiscal, o Cade, nos autos da Consulta nº 0038/99, foi instado a se manifestar quanto à “nocividade ou não à livre concorrência da prática conhecida como guerra fiscal, realizada principalmente entre estados e através de mecanismos fiscais e financeiro-fiscais relacionados ao ICMS[5]”. Isto é, questionou-se se uma determinada empresa detentora de benefício fiscal estaria em situação de vantagem em relação às suas concorrentes, na medida em que teria condições de praticar um preço inferior ou obter maior lucratividade. A conclusão do Conselho foi de que a guerra fiscal prejudica a concorrência e ocasiona efeitos danosos ao bem-estar da coletividade.

Inspirada no parecer exarado pelo Cade, a comunidade antitruste brasileira voltou os olhos para o tema da guerra fiscal e dos benefícios e incentivos fiscais como vantagem competitiva, produzindo literatura e acionando a autarquia para analisar tal imbróglio. Ocorre que em diversas oportunidades[6], o Conselho optou por afastar sua competência por entender que tais questões deveriam ser levadas à análise do Judiciário, uma vez que não estariam no rol de condutas abarcadas pela legislação antitruste, não havendo como imputar, ademais, aos entes federados infração à ordem econômica.

Nesse ínterim, contudo, outras práticas tributárias ganharam espaço no debate  da relação entre tributação e concorrência. Passou-se a defender que determinadas práticas de evasão fiscal, que consistem em condutas praticadas por particulares em descumprimento a obrigações tributárias, podem estar na origem de distúrbios concorrenciais e, portanto, deveriam ser caracterizadas como infrações à ordem econômica.

Nesse ponto, não há entendimento unitário na jurisprudência do Cade a respeito da competência da autoridade antitruste para tratar de tais casos. Vê-se que, em algumas oportunidades, o órgão optou por negar sua competência ao entender que as distorções no mercado provocadas pela sonegação fiscal eram delimitadas no tempo. Em outros casos, quando avançou a etapa de análise de sua competência e se engajou numa análise concorrencial da questão, comumente o fez sob a ótica de preço predatório, concluindo invariavelmente por sua inexistência devido às diversas dificuldades de configurar tal conduta em concreto.[7]

Ocorre que recentes manifestações de atuais conselheiros conferem razões para se crer em uma possibilidade de análises mais acuradas do Cade sobre os impactos de práticas tributárias na concorrência.

Após o despacho de arquivamento da Superintendência-Geral nos autos do inquérito administrativo nº 08700.002532/2018-33, o Conselheiro Luis Braido apresentou proposta de avocação pelo tribunal administrativo, sustentando a necessidade de instrução complementar para apurar suposta conduta anticompetitiva decorrente do não pagamento de tributos, o que conferiria a possibilidade de praticar, de forma indevida e sem relação com sua maior eficiência, preços inferiores aos dos concorrentes adimplentes com suas obrigações tributárias, de modo a incrementar participação no mercado relevante e a causar prejuízos à livre concorrência. Muito embora tenha concluído pela não avocação, o Conselheiro Sérgio Ravagnani confirmou a competência legal do Cade para analisar práticas tributárias que possam produzir danos à concorrência, uma vez que a prática de sonegação fiscal reiterada, referida como “macrodelinquência tributária reiterada[8]”, poderia ser caracterizada como infração à ordem econômica. No entanto, durante a 1ª Sessão Extraordinária de Julgamento, realizada no dia 20 de janeiro de 2021, o plenário, por maioria, não homologou o despacho de avocação.

Desfecho diferente se deu no caso do Procedimento Preparatório nº 08700.001571/2022-08, em que o tribunal administrativo homologou o despacho de avocação (Despacho Decisório nº 5/2022) proferido pelo Conselheiro Gustavo Augusto Lima para instaurar o inquérito administrativo e proceder com o prosseguimento das investigações com o objetivo de apurar possível prática de discriminação de preços no mercado de comercialização de combustíveis derivados do petróleo produzidos na Refinaria de Mataripe, localizada no Estado da Bahia.

Segundo o Presidente Alexandre Cordeiro, durante a 197ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade, realizada no dia 25 de maio de 2022, considerando que o setor econômico está em evidência e que sua abertura consiste em uma medida estrutural objetivada pela autarquia, a investigação pode originar trabalhos de advocacy no sentido de elaborar normas interessantes para o setor junto à regulação setorial e a importante discussão tributária relacionada ao preço de referência do petróleo e seus critérios de fixação previstos na Resolução ANP nº 874/2022.

Nesse sentido, a Conselheira Lenisa Prado também registrou “me anima muito saber que grande parte deste tribunal está inclinada a investigar questões tributárias que surtem reflexo no âmbito concorrencial”. A conselheira afirmou que a questão de diferenciação de preço a maior de combustível adquirido dentro da Zona Franca de Manaus sugere a possibilidade de utilização de algum tipo de benefício fiscal ou a adoção de regime especial de tributação para favorecer um determinado grupo econômico ou concorrente. Complementou, ainda, que o Cade, por vezes, apreciou questões em que, infelizmente, por motivos alheios, não foi possível aprofundar o tema tributário com o concorrencial, mas que nesse caso seria possível identificar uma “curva ótima entre tributação e concorrência”.

Assim, é possível concluir que a oxigenação do debate da relação entre tributação e concorrência no direito brasileiro indica uma tendência para a mudança de paradigma no histórico de análises do Cade acerca do tema. Todavia, a confirmação da tendência se encontra nas mãos do atual quadro de conselheiros da autarquia e são cenas para os próximos capítulos.


[1] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Tributação e concorrência: uma análise da evasão fiscal como ilícito concorrencial. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 9, nº 2, dez. 2021, p. 54.

[2] Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/concorrencia/intervencao-estatal-inseguranca-juridica-cade-01092021

[3] PEROTTO, Gabriella. How to cope with harmful tax competition in the eu legal order: going beyond the elusive quest for a definition and the misplaced reliance on state aid law. European journal of legal studies, 2021, Vol. 13, No. 1, pp. 309-340. Retrieved from Cadmus, European University Institute Research Repository. Disponível em: https://cadmus.eui.eu/handle/1814/71283

[4] C-173/73 (Italy v. Comission); C-259/87 (France v. Comission); C-465/20 (Commission vs. Ireland and others). In: CAMPANILE, Vinicius Tadeu. Livre concorrência, tributação e desenvolvimento econômico: utilização de legítimas vantagens tributárias em prejuízo da livre concorrência. Dissertação (mestrado). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2017, p. 127.

[5] BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Consulta nº 0038/99, p. 1.

[6] Processos Administrativos: 08012.000668/1998-06, 08012.006746/1997-41, 08000.018405/1997-11 e 08700.003984/2010-85, Consulta 08700.002380/2006-35; Averiguação Preliminar 08012.006665/2001-99.

[7] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Op. cit., p. 56/57.

[8] Expressão cunhada pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski, no julgamento do RE 550.769, para práticas ilícitas perpetradas por devedores contumazes, que por meio da inadimplência reiterada e sistemática alcançam expressiva vantagem concorrencial.


[i] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[ii] Henrique Muniz é trainee no escritório Vilanova Advocacia.

Percepções sobre a ampliação de dispositivos do R-Ciber aos agentes PPP

Andrey Vilas Boas de Freitas

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti

Alessandro Guimarães Pereira

Coerente à Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (E-Ciber), regida pelo Decreto nº 10.222/2020, a Anatel editou a Resolução Normativa nº 740/2020, que contém o R-Ciber, regulamento que estabelece condutas e procedimentos para promoção da segurança nas redes e serviços de telecomunicações, incluindo a segurança cibernética e a proteção das infraestruturas críticas de telecomunicações.

Alguns dispositivos do R-Ciber aplicam-se a todas as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo, independentemente de seu porte, havendo, todavia, artigos que não alcançam os Prestadores de Pequeno Porte (PPP). São os artigos 6º ao 11º, os quais, resumidamente, definem as seguintes obrigações às prestadoras:

Art. 6º: elaborar, implementar e manter uma Política de Segurança Cibernética;

Art. 7º: utilizar produtos e equipamentos de telecomunicações provenientes de fornecedores que possuam política de segurança cibernética compatíveis com o R-Ciber;

Art. 8º: alterar a configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários;

Art. 9: notificar a Agência e comunicar as demais prestadoras e aos usuários incidentes relevantes que afetem de maneira substancial a segurança das redes de telecomunicações e dos dados dos usuários;

Art. 10: realizar ciclos de avaliação de vulnerabilidades relacionadas à Segurança Cibernética;

Art. 11: enviar à Anatel informações sobre suas Infraestruturas Críticas de Telecomunicações.

Por meio da recente Consulta Pública nº 63/2021, a Anatel propôs Instrução Normativa visando a ampliar a incidência destes artigos aos PPP e, assim, alcançar empresas que, independentemente de seu porte, detenham infraestruturas críticas de telecomunicações e incrementar o enforcement do Ato Anatel nº 77/2020, o qual define requisitos de segurança cibernética para equipamentos para telecomunicações e que possui recomendações não mandatórias de segurança cibernética.

A ampliação proposta baseia-se na premissa de que as infraestruturas, sistemas e equipamentos utilizados tanto por grandes empresas como pelos PPP são similares e amplamente conectados, já que incidentes cibernéticos ocasionados por quaisquer agentes podem resultar em danos sistêmicos.

A ampliação do alcance do R-Ciber aos PPP ocorrerá, todavia, de forma distinta, a depender dos tipos de infraestrutura que detém e dos mercados em que atuam. Os PPP que possuem infraestruturas críticas, como redes próprias para SMP, de suporte para transporte de tráfego interestadual e cabos submarinos com destino internacional[1] deverão cumprir as exigências dos artigos 6º a 11, igualando-se, portanto, às grandes empresas do setor, detentoras de Poder de Mercado Significativo (PMS).

Já as empresas que, dentre os PPP, são de menor porte, como os típicos ISP[2] que operam localmente e que não possuem infraestruturas críticas, deverão submeter-se apenas ao artigo 8º do R-Ciber, o qual exige a alteração na configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários, como os modens de acesso à banda larga e as antenas wifi. Por tal exigência, estes pequenos agentes deverão alterar as configurações de fábrica[3] dos equipamentos antes de entregá-los aos usuários, ampliando os códigos e protocolos de segurança neles inseridos. Igualmente, os aparelhos já instalados aos seus clientes também deverão ser atualizados.

Resta claro que esta exigência tem o condão de reduzir inúmeros incidentes cibernéticos com potencial de danos sistêmicos e ao usuário final, sendo este último um alvo constante de invasões por crackers[4] às suas informações e aplicações pessoais e financeiras, resultando em golpes e ampliando a desconfiança quanto à segurança das redes em geral. A própria Anatel bem explica:

nestes equipamentos é comum que a configuração realizada pelos fabricantes, ou até mesmo pelo instalador, utilize credenciais (usuário e senha) padrão conhecidas ou facilmente identificáveis por atacantes. Pelo domínio ou acesso pelo atacante a estes equipamentos é possível realizar ataques à toda a rede de suporte de serviços, tais como Distributed Denial of Service (DDoS) ou alteração do cache de Domain Name System (DNS), possibilitando o redirecionamento de usuários para sites falsos onde são realizados o phishing de senhas de acesso ou a coleta de informações relevantes dos usuários.”[5]

Contudo, não se pode esquecer de que os PPP de menor porte atendem a franjas do mercado, principalmente em banda larga fixa por fibra ótica, em áreas periféricas de grandes cidades e municípios menores. Sua competitividade é ditada por sua capilaridade e pelos seus menores custos operacionais. Assim, em tese, o aumento das exigências de segurança cibernética aos equipamentos que venha a instalar e àqueles já em operação pode significar um aumento de seus custos, à medida em que será necessário o emprego de adicional de mão de obra e o investimento em sistemas para reduzir vulnerabilidades dos equipamentos que ofertam em comodato.

Tal preocupação, todavia, deve ser ponderada à luz dos benefícios sistêmicos – inclusive econômicos – que estas melhorias de segurança tendem a gerar tanto no médio quanto no longo prazo. A redução de incidentes cibernéticos favorece modelos de competição mais equânimes e com menor margem a free riders, reduz os imprevistos operacionais das próprias empresas e estimula à inovação de produtos e serviços. Favorece também a ampliação da percepção, pelo consumidor, de que produtos e serviços ofertados por estes agentes menores e menos conhecidos podem ter qualidade e segurança compatíveis, ou mesmo superiores, aos grandes agentes do mercado.

Desta forma, a ampliação do R-Ciber aos PPP pode, ao fim, representar uma redução de custos de transação a todos os agentes, à medida que diminuem os incidentes de segurança cibernética, minorando a necessidade de atendimentos e resolução de incidentes causados graças a vulnerabilidades do tipo ‘senhas fracas’, ‘acessos não autorizados’ ou ‘ausência de credenciais’, os quais têm grande potencial de danos econômicos.

Assim, a ampliação regulamentar proposta na Consulta Pública, se corretamente dosada – permitindo-se inclusive um vacatio legis adequado à adaptação destes agentes – é oportuna. Fundamental, neste sentido, que a Anatel aprecie as contribuições trazidas por empresas e associações especializadas, as quais vêm sistematicamente enriquecendo os debates sobre o ambiente concorrencial em mercados de telecomunicações.

Como já vem sustentando a Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competividade do Ministério da Economia, são mercados que demandam ações regulatórias efetivas, mas discretas, permitindo o alcance de objetivos importantes sem ampliar desnecessariamente o seu ônus regulatório: a busca deste equilíbrio exige diálogo constante com múltiplos agentes e um olhar multidimensional sobre seus impactos, notadamente à segurança, sem relaxar no necessário estímulo à competitividade.


[1] Como ilustra o seguinte estudo: VICHI, L.P., PINTO, D.J.A., de SÁ, A.L.N. A defesa da infraestrutura de cabos submarinos: por uma interface entre a defesa cibernética e a segurança marítima no Brasil. 2020. In: Revista Escola de Guerra Naval. Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 326-346. maio/agosto. 2020. pp. 333-334.

[2] Internet Services Provider (“ISP”) ou Provedor de Serviços de Internet, é uma empresa que fornece acesso à internet a usuários que a contratam, podendo agregar outras soluções, como hospedagem de sites, armazenamento na nuvem, serviços de telefonia e pacotes de streaming

[3] Como bem o explica o Cyber Security Policy Guidebook, “these out-of-the box digital identities are called “generic IDs” because they do not belong to any one person. Often, generic IDs remain configured with the default password supplied by the technology vendor for the entire lifetime of the product. These Ids are well known to criminal elements and are often used to impersonate technology administrators.” In: BAYUK, J. L, Healey J., Rohmeyer P., Sachs M., Schmidt J. , Weiss J.. 2012. Cyber Security Policy Guidebook (1st. ed.). Wiley Publishing.

[4] Os crackers são indivíduos que praticam a quebra de segurança de softwares de forma ilegal, agindo de forma criminosa.

[5] ANATEL. Informe nº 200/2021/COGE/SCO (Doc. SEI Anatel nº 7040861)


Andrey Vilas Boas de Freitas. É Subsecretário de Advocacia da Concorrência na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti. É Coordenadora-Geral de Inovação, Indústria de Rede e Saúde na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Alessandro Guimarães Pereira. É Coordenador de Inovação e Telecomunicações na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

As Verdades e os Mitos da Marca e Qualidade no Mercado de Combustíveis Brasileiros

Rodrigo Zingales*

Quando vamos a um restaurante, não perguntamos ao garçom a marca do sal ou do açúcar consumido? No entanto, quando vamos ao supermercado costumamos pagar mais caro pelo sal e açúcar de marcas mais renomadas, como, por exemplo, o sal Cisne ou o açúcar União.

No mesmo sentido, usualmente há uma tendência maior dos consumidores de optarem por abastecer os veículos em um posto de bandeiras renomadas como Shell, Ipiranga ou BR, mesmo que para isso acabam pagando dez, vinte ou trinta centavos mais caro pelo litro de combustível, se comparado com os preços praticados por postos de marca própria (bandeira branca) ou de “marcas” menos conhecidas.

Qual a razão para termos esse comportamento?

Akerlof foi um dos primeiros a estudar e explicar esse comportamento dos consumidores em seu artigo “The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism[1], denominando-o de “seleção adversa”.

Resumidamente, segundo o autor, a seleção adversa ocorre em mercados onde existe grande “assimetria informacional” entre ofertantes e demandantes quanto à qualidade do bem comercializado e adquirido. Essa assimetria informacional é usualmente verificada em bens homogêneos e de experimentação, como são o açúcar, o sal, a gasolina, o etanol e o diesel, exatamente porque a qualidade desses bens somente é verificada após a sua aquisição e o seu consumo.

Note-se que em bens homogêneos, suas características físico-químicas tendem a ser as mesmas ou muito similares, a não ser que haja uma “desonestidade” por parte do ofertante, conforme destaca Akerlof, e que pode ser refletida, por exemplo, a partir da “adulteração” de suas características físico-químicas regulares.

Uma das soluções trazidas pelo autor para esse problema de ofertantes “desonestos” seria o investimento na reputação da marca do bem (“brand-name good[2]), pelos seus ofertantes “honestos”.

Por esta razão, o açúcar União, o sal Cisne e as distribuidoras BR, Ipiranga e Raízen / Shell investem montanhas de dinheiro na divulgação de suas marcas e sempre visando chamar a atenção dos consumidores para a “qualidade” de seus produtos.

No entanto, deve-se aqui indagar se realmente essas marcas ofertam produtos de melhor qualidade ou se sua reputação é apenas fruto de seu maior poder econômico para investir em propaganda “reputacional”?

No caso específico dos combustíveis, é um fato que praticamente desde a abertura do mercado brasileiro a distribuidoras e postos bandeira própria (ou bandeira branca), verificou-se uma forte tendência de os consumidores enxergarem esses postos com certa suspeita e optarem por adquirir combustíveis em postos de marcas mais bem estabelecidas reputacionalmente, como BR, Ipiranga ou Shell.

Segundo dados divulgados pela ANP no “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis, 2ª Edição, 2020”[3], percebemos, contudo, uma certa tendência de alteração desse hábito dos consumidores brasileiros.

Nesse contexto, vale citar, por exemplo, que segundo a ANP a participação conjunta das três principais distribuidoras do país (BR, Ipiranga e Raízen/Shell) na comercialização de gasolina C no mercado brasileiro, em 2014, correspondia a aproximadamente 68,67 da oferta total; já, em 2019, essa participação conjunta estaria em torno de 63,25%[4]. Ou seja, durante esse período, houve uma migração no consumo de combustíveis para redes de distribuidoras menores ou para postos bandeira própria superior a 5 pontos percentuais.

Este mesmo fenômeno também foi constatado no caso do etanol hidratado, onde a participação conjunta das três principais distribuidoras do país passou de 58,4%, em 2014, para 53,52%[5]; e, ainda, do óleo diesel, onde esta participação conjunta passou de 78,81%, em 2014, para 71,03%, em 2019[6].

Esta migração de demanda de combustíveis ofertados pelos postos bandeirados para aqueles de bandeira própria (ou de marcas menos conhecidas) pode ser explicada por duas razões principais cumulativas e que não possuem qualquer relação com a melhoria na qualidade dos combustíveis ofertados por esses últimos.

A primeira delas decorre da recessão econômica iniciada a partir de 2014 e que apenas se agravou com a Pandemia da COVID-19. Com efeito, esta recessão acarretou uma considerável perda de renda para a maioria da população brasileira, obrigando uma revisão considerável de seus gastos e consequentemente de suas preferências de consumo. Nesse contexto, parte dos consumidores passou a “experimentar” produtos mais baratos e que antes dessa recessão não se encontravam dentre aqueles de sua primeira opção. Os combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou de marcas menos conhecidas se enquadram nesse conceito de “produto mais barato”.

A segunda explicação, que se encontra diretamente relacionada à primeira, resume-se exatamente à elevação no nível de “experimentação” dos combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou bandeira de menor reputação. A partir dessa maior experimentação, os consumidores passaram a perceber que referidos postos, em sua maioria, comercializam combustíveis de qualidade igual àquela dos postos das principais bandeiras, porém com preços mais baixos. Ou seja, o mito de que haveria diferenciação na qualidade caiu ou passou a ser mitigado entre esses consumidores.  

De fato, a grande maioria dos consumidores desconhece que a Resolução ANP nº 807/20[7] classifica os diferentes tipos de combustíveis líquidos ofertados no país como: “comuns”, “aditivados” e “premium” e que os diferencia segundo o nível mínimo de octanagem ou a inclusão de aditivo em sua mistura[8].

Segundo esta resolução, a gasolina “comum” se diferencia daquela “premium“, em razão, principalmente, do nível mínimo de octanagem (“IAD” – Índice Antidetonante): comum 87; e premium 91[9]. Já, o que diferencia a gasolina “aditivada” da “comum” seria apenas a inclusão na primeira de um “aditivo”, cujo função seria auxiliar a limpeza do motor e de seus componentes, com o objetivo de garantir uma melhor eficiência funcional[10].

Assim, seguindo a lógica da regulação atualmente em vigor, não haveria distinção entre a gasolina comum comercializada por distribuidoras bandeiradas ou sem bandeira, de grande ou pequeno porte.

Nesse mercado, há ainda comentários no sentido de os combustíveis (gasolina A e diesel A), produzidos pelas refinarias da Petrobras e conhecidos como “combustíveis de bombeio”, serem de melhor qualidade do que aqueles produzidos por outras refinarias, petroquímicas ou importados.

Esta diferenciação de qualidade não se encontra especificada nas normas editadas pela ANP, razão pela qual não haveria razão para acreditar que esses comentários teriam algum fundo de verdade.

No entanto, se for tecnicamente confirmado que os combustíveis produzidos e ofertados pelas refinarias da Petrobras são de melhor qualidade, é indispensável que a ANP reveja imediatamente a sua regulação que trata da qualidade dos combustíveis para que esta diferenciação esteja corretamente contemplada, além de divulgar amplamente essa diferenciação a todos os atores desse mercado (distribuidoras, revendedores e consumidores).

Também é fundamental que seja alterada a regulamentação da ANP sobre as informações da origem dos combustíveis comercializados pelos postos, com o objetivo de constar nas bombas e placas, não mais o nome da distribuidora que forneceu o combustível, mas, sim, o nome do produtor ou do importador que vendeu a gasolina A ou o diesel A, utilizado pela distribuidora na mistura que gerou a gasolina C ou o diesel B comercializado aos consumidores finais pelo posto revendedor. Ressalte-se, nesse sentido, que no caso da gasolina C e do diesel B comuns, a função principal da distribuidora é a realização da mistura de gasolina A com o etanol anidro; e do diesel A com o biodiesel. No caso do etanol hidratado, a distribuidora sequer exerce essa atividade, sendo mera intermediária entre produtor e posto revendedor. 

Outra informação relevante que merece ser destacada nesse artigo e amplamente divulgada aos consumidores, refere-se ao fato de as três principais distribuidoras do país também serem as principais ofertantes de gasolina, diesel e etanol comum para postos bandeira própria (bandeira branca), os quais muitas vezes adquirem esses combustíveis junto a essas distribuidoras por preços mais baixos do que aqueles pagos pelos postos que ostentam suas marcas, conforme dados disponibilizados pela ANP até junho de 2020.

A principal razão para as três principais distribuidoras bandeiradas do país serem as principais fornecedoras dos postos bandeira própria (ou bandeira branca) está na ausência de uma concorrência efetiva no elo da distribuição, na maioria dos estados da Federação.

Esta ausência de concorrência tem relação direta com o fato de as três principais distribuidoras bandeiradas do país controlarem e compartilharem entre si a maioria das bases primárias e secundárias de distribuição instaladas; e, ainda, em decorrência da política de cotas de fornecimento de gasolina A e diesel A, definida pela Petrobras e baseada nas vendas pretéritas de cada distribuidora. A partir dessa política, a Petrobras aloca cotas máximas a cada distribuidora, definindo multas elevadas caso a distribuidora não cumpra com o volume de combustível solicitado, seja demandando volumes inferiores ou superiores àqueles previamente solicitados e definidos na cota determinada. Este modelo de cotas acaba gerando desincentivos para distribuidoras menores elevarem sua oferta de combustíveis no mercado doméstico e, consequentemente, reduzirem drasticamente seus preços para ganhar mercado. Afinal, quase 50% dos postos instalados no país estão sob contratos de embandeiramento e nos 50% há forte concorrência das principais distribuidoras bandeiradas, conforme explicamos a seguir.

Em relação à cobrança de preços mais baixos a postos bandeira própria (bandeira branca), do que aos postos contratualmente vinculados às principais distribuidoras bandeiradas do país, a justificativa econômica está exatamente nesses contratos e em seu efeito prático de monopólio sobre a oferta e demanda de combustível junto a esses postos.

Ou seja, ao celebrar um contrato de “embandeiramento” com uma distribuidora, o revendedor se compromete também a comercializar apenas combustíveis fornecidos por essa distribuidora. Assim, como a maioria desses contratos não traz um preço definido ou definível e essas distribuidoras bandeiradas não têm qualquer obrigação legal ou infralegal de divulgar sua política de preços e descontos – diferentemente do que ocorre com a Petrobras e os postos revendedores –, acabam detendo o monopólio sobre esses postos e o direito de cobrarem destes os preços que bem entenderem.

Já, no caso dos postos bandeira própria (bandeira branca), esse vínculo contratual inexiste. Isso significa que, em relação a esses postos, as distribuidoras bandeiradas concorrem entre si – e com outras distribuidoras bandeiradas ou não de menor porte, quando presentes no mercado local / regional – pelo fornecimento de combustíveis, sendo, portanto, obrigadas a cobrar preços mais baixos para tê-los como clientes.

Reitera-se que o combustível comum ofertado pelas distribuidoras, bandeiradas ou não, de grande ou pequeno porte, aos postos revendedores, bandeirados ou não, é o mesmo segundo a Resolução ANP nº 807/20. Assim, não haveria razão, do ponto de vista das características físico-químicas e de qualidade para as distribuidoras bandeiradas cobrarem cinco, dez, quinze ou vinte centavos mais caro pelo litro de combustível adquirido por um posto bandeirado, só porque este ostenta a sua marca. O mesmo vale em relação aos consumidores quando optam por abastecer em postos bandeirados.

Esta conclusão não é, contudo, válida para o caso dos combustíveis “aditivados” e “premium”, os quais possuem uma certa tecnologia desenvolvida ou adquirida pelas distribuidoras que os “produzem” ou comercializam. Tanto isso é verdade que, nos Estados Unidos da América, a exclusividade de fornecimento de combustíveis somente é aplicada para os combustíveis “premium” e “aditivados”, sendo aqueles “comuns” considerados como verdadeira commodity, podendo o proprietário do posto, bandeirado ou não, adquiri-lo de qualquer refinaria – ou distribuidora –, independentemente da marca que ostenta[11]. Este poderia ser um bom exemplo a ser seguido pela ANP, em sua regulamentação, com o objetivo de baratear os preços dos combustíveis no país e incentivar o desenvolvimento, por refinarias, petroquímicas e distribuidoras, de combustíveis “premium” ou “aditivados” cuja qualidade tenderá a ser superior àquelas da gasolina e do diesel comuns, dependendo das características do veículo e recomendações de seu fabricante.


[1] Disponível em <http://wwwdata.unibg.it/dati/corsi/8906/37702-Akerlof%20-%20Market%20for%20lemmons.pdf>. Acessado em 25.05.21. Observe que o termo “lemons” utilizado por Akerlof em seu artigo refere-se a carros usados com problemas, que no vernáculo seria traduzido como um “abacaxi”.

[2] O autor ainda cita como possíveis soluções para este problema da “desonestidade”: (i) a concessão de “garantias” pelo fornecedor do produto; (ii) estruturas de “redes” / “licenciamentos” (genericamente conhecidas como franquias); e, ainda, (iii) organizações certificadoras. Op. cit. p. 13 e 14.

[3] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/livros-e-revistas/arquivos/diagnostico-sdc-2020.pdf>. Acessado em 25.05.21.

[4] Observa-se que a participação da Distribuidora Alesat, quarta colocada, também sofreu uma queda no período, passando de 5,76%, em 2014, para 4,20%, em 2019, o que reforça o argumento apresentado acima. Op. cit. p. 46,

[5] Op. cit. p. 55.

[6] Op. cit. p. 64.

[7] Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-807-de-23-de-janeiro-de-2020-239635261>. Acessado em 25.05.21.

[8] Sobre a diferença de qualidade entre gasolina comum, aditivada e premium, recomendo a leitura desse artigo: https://www.economist.com/babbage/2012/09/17/difference-engine-who-needs-premium?utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gclid=CjwKCAjwtcCVBhA0EiwAT1fY70y9TWGs9xMJLmQni8ocRHaSq8k6oWVPDLXvHAslDbzN2MLTOv98tBoCAncQAvD_BwE&gclsrc=aw.ds

[9] Vide ainda informações prestadas pela Petrobras em: <https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/entenda-10-questoes-sobre-a-nossa-gasolina.htm>. Disponível em 25.05.21.

[10] Sobre aditivo, vide, por exemplo, explicação resumida constante no “Blog Bardhal”, disponível em <https://blog.bardahl.com.br/entenda-a-diferenca-entre-o-aditivo-vendido-em-frasco-e-a-gasolina-aditivada/>. Acessado em 25.05.21.

[11] Vide, por exemplo: <https://kendrickoil.com/the-differences-between-branded-vs-unbranded-fuel/>. Acessado em 25.05.21.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. O presente artigo reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.

Os Advogados nas sessões do CADE. Referência a uma lei que amplia os direitos dos advogados, na defesa de seus clientes, no processo administrativo do Cade.

Mauro Grinberg

A presença dos advogados nos julgamentos dos processos administrativos pelo Plenário do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já chegou a passar por algumas controvérsias. Vale lembrar, para início expositivo, o que Paulo Lobo diz a respeito da função do advogado: “sem embargo da natureza não estatal de sua atividade, imprescindível para assegurar-lhe a independência diante do próprio Estado, o Estatuto[1] equipara-a a serviço público, em suas finalidades. Assim é porque a atividade de advocacia participa da administração pública de justiça. No Estado Moderno é comum que pessoas e entes privados executem funções e serviços públicos”[2]. Cumpre invocar aqui o art. 133 da Constituição: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Uma lei recente acaba de abrir maiores possibilidades para a atuação dos advogados em processos administrativos – incluindo aqueles do Plenário do Cade – em seus julgamentos. Com efeito, estabelece o § 2º do art. 2º do EA que “no processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público”. É consolidada a ideia de que o múnus público do advogado, previsto em lei, serve para a realização da Justiça, de tal sorte que, sem a presença do advogado, não há a realização da Justiça. Não passa despercebida a menção específica, no artigo acima, ao processo judicial; mas o que vem adiante faz acréscimo substancial.

A recente Lei 14.365/2022 – que enfrenta, no momento da escrita deste artigo, a possibilidade de revogação, pelo Congresso Nacional, de vetos de artigos que nada têm a ver com a matéria aqui tratada – acrescentou ao art. 2º do EA o § 2º-A: “No processo administrativo, o advogado contribui com a postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e seus atos constituem múnus público”. Fica claro, desde logo, que a participação do advogado no processo administrativo é uma contribuição ao próprio processo – e ao sistema, obviamente – e não apenas um exercício de defesa (que também é). Vê-se assim que ao processo judicial foi acrescido o processo administrativo.

Também pela nova lei, a redação do inciso X do art. 7º do EA (Caput: “São direitos do advogado”) passa a ser a seguinte: “usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão”.Isto é importante porque, de acordo com José Henrique M. Araújo e Rodrigo Nery, “a sustentação oral acaba sendo o único momento em que, de fato, a parte, por meio do seu advogado, tem o direito de ser `ouvida´, no sentido literal da palavra”[3]

Vale examinar o que esse dispositivo traz de novidade: (i) inclui expressamente o processo administrativo quando antes (no parágrafo anterior) falava apenas “em qualquer juízo ou tribunal”; (ii) agora existe a especificação, além do processo administrativo (que já seria suficiente), a “órgão de deliberação coletiva da administração pública”, em que certamente está encaixado o Cade, aplicando-se ao seu processo administrativo.

Ficam também enriquecidos o art. 123 e seu § 1º do Regimento Interno do Cade (Ricade): “A tribuna será ocupada para formular requerimento, produzir sustentação oral ou para responder às perguntas que forem feitas pelos membros do Plenário do Tribunal”; “aos advogados e ao representante legal da empresa é facultado requerer que conste de ata suas presenças na sessão de julgamento, podendo prestar esclarecimentos em matéria de fato, quando assim o Plenário do Tribunal entender necessário”.

O que muda substancialmente é que agora os questionamentos e esclarecimentos em audiência passam a ser um direito do advogado e não mais dependem de que o Plenário do Tribunal entenda que tais questionamentos e esclarecimentos sejam necessários. Vale lembrar que o Plenário do Tribunal do Cade tem costumeiramente sido favorável a tais questionamentos e esclarecimentos, sempre que tratam de questões de fato. Mas agora há a especificação a “equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão” (tudo isso além da óbvia sustentação oral).

Esta mudança caracteriza a aplicação do princípio da lealdade processual. Explicam Cândido Rangel Dinamarco, Gustavo Badaró e Bruno Lopes que “as regras que impõem esses deveres de moralidade e probidade a todos aqueles que participam do processo (partes, juízes e auxiliares da Justiça, advogados e membros do Ministério Público) compõem o que se denomina princípio da lealdade processual[4].

Mais ainda, existindo previsão legal, aplica-se aqui o devido processo legal, sobre o qual diz Maria Elizabeth Queijo: “A observância das garantias do devido processo legal, em qualquer processo, seja de que natureza for, é condição de legitimação da decisão proferida”[5]. Daí se pode concluir também que esses novos direitos dos advogados no processo administrativo do Cade constituem parte integrante do devido processo legal. Não é possível terminar este artigo sem expressar que todos esses direitos dos advogados contribuem para o processo, o bom direito e as boas decisões, seja pelo Poer Judiciário, seja pelo Cade.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio e fundador de Grinberg Cordov


[1] O Estatuto a que o autor se refere é o a Lei 8.906/1994, conhecida como Estatuto da Advocacia (EA)

[2] “Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB”, Saraiva, São Paulo, 2016, pág. 44 sus

[3] “Novas Possibilidades de Sustentação Oral: Avanços e Omissões da Lei 14.365”, Consultor Jurídico, 10.06.2022

[4] “Teoria Geral do Processo”, Juspodim/Malheiros, São Paulo, 2021, pág. 121

[5] “Defesa Técnica no Processo Administrativo Sancionador”, em “Direito Administrativo Sancionador”, org. Luiz Maurício Souza Blazeck e Laerte Marzagão Jr, Quartier Latin, São Paulo, 2015, pág. 270