Artigos de opinião

Você sabe o que é um Trustee?

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O Manual para Uso de Trustee*, elaborado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, assim define:

“Trustees são terceiros independentes (podendo ser firmas de consultoria e auditoria, consultores independentes, escritórios de advocacia, entre outros) contratados pelos administrados sujeitos a remédios antitruste (genericamente referidos como Compromissárias), a pedido das autoridades concorrenciais, para auxiliá-las no cumprimento ou monitoramento de decisões adotadas, seja pela falta de recursos disponíveis ou pela necessidade de expertise específica para execução de alguma tarefa ou adoção de medida necessária para implementação de remédios mais complexos. Ou seja, os Trustees são designados para executar procedimentos, sob ordens do Cade, nos processos de fiscalização do cumprimento das decisões, compromissos e acordos aprovados.”[1]

A atuação do Trustee tem ganhado relevância, já que ele é a figura que auxilia o CADE no cumprimento e no acompanhamento de suas decisões, principalmente nos casos em que, em razão do volume de dados e informações, ou em razão da expertise, a autoridade possui uma limitação ou inexistência de recursos necessários para tal. Ele age no interesse do CADE, apesar de ser ele contratado e remunerado pela Compromissária[2], ou seja, a parte que celebra com o CADE um Termo de Cessação de Conduta (TCC[3]) ou um Acordo em Controle de Concentração (ACC[4]).

A atividade por ele desenvolvida encontra respaldo na legislação vigente, mais especificamente nos artigos 9º, 10, 13, 52, 85 e 91, da Lei nº 12.529/2011, no Regimento Interno do CADE e na Resolução CADE nº 35/2024. Em referidos dispositivos, encontramos informações acerca da função da Superintendência-Geral do CADE (SG) fiscalizar o cumprimento das decisões, compromissos e acordos aprovados pelo Tribunal do CADE, razão pela qual será ela a responsável pela seleção e contatos com o Trustee.

Conforme esclarece o CADE em seu Manual, “ainda que haja previsão, no ACC ou no TCC, de necessidade de uso de Trustee ou similar, as obrigações impostas às Compromissárias não são suspensas até que o Trustee ou similar seja nomeado, sendo as Compromissárias, em última linha, responsável por essas obrigações e por sua implementação”[5]. Neste sentido, e dentro de um prazo determinado pela autoridade[6], a Compromissária deverá apresentar, ao menos, 3 indicações para exercer essa função.

Após a aprovação[7] do Trustee pelo Tribunal, este reportará seu trabalho ao CADE por meio de relatórios periódicos e pareceres, conforme definidos na decisão, ou relatórios extraordinários, sempre que for o caso, onde deverão constar tanto as informações relacionadas ao cumprimento dos compromissos assumidos pela Compromissária, seu eventual descumprimento e/ou denuncia de terceiros relacionada ao objeto da fiscalização. Ademais, além de ter o dever de confidencialidade com relação às informações recebidas no desenvolvimento de sua atividade, deverá prestar informações claras, verídicas e coerentes, nos prazos estipulados pela autoridade e, em não o fazendo, poderá estar sujeito às penalidades dispostas nos artigos 40 e 43 da Lei nº 12.529/2011, que preveem o pagamento de multas com valores que variam de acordo com cada situação. 

Em contrapartida, a Compromissária, além do dever de pagar pelos serviços prestados pelo Trustee, tem ainda o dever de dar condições para que ele desempenhe este trabalho, fornecendo informações verídicas, assistência, documentos e o que mais for necessário, tempestivamente, sendo esta cooperação limitada ao escopo da atuação do Trustee, conforme definido em TCC ou ACC. O não atendimento pode levar ao descumprimento parcial da decisão, compromisso ou acordo, além das demais sanções previstas na Lei nº 12.529/2011.

O prazo de vigência das obrigações do Trustee será estabelecido no ACC ou TCC. Após o seu último reporte, a SG realizará a análise e, entendendo que a Compromissária “cumpriu as obrigações relacionadas à implementação do remédio que estejam atreladas ao escopo de atuação do Trustee – e que, portanto, a atuação do Trustee não será mais necessária –, emitirá nota técnica entendendo pela conveniência de desoneração do Trustee”[8]. Em seguida, os autos são remetidos à Presidência para referendo pelo Tribunal.  Importante ressaltar que a decisão sobre o cumprimento ou descumprimento de decisão, compromisso ou acordo é exclusiva do CADE, sendo, desta forma, a manifestação do Trustee apenas de caráter sugestivo.

Por fim, com a publicação, no Diário Oficial da União, da ata da sessão de julgamento do Tribunal referendando o Despacho proferido pela Presidência, concordando com a Nota Técnica da Superintendência-Geral, o Trustee será considerado definitivamente exonerado de suas funções/obrigações.


[1] Item 2, página 6 – Manual Trustee.

[2] Apesar desta obrigação, a Compromissária não poderá interferir, de qualquer forma, no relacionamento entre Trustee e CADE.

[3] Neste caso, são adotados Trustees de monitoramento.

[4] Neste caso, podem ser adotados Trustees de monitoramento, de desinvestimento e “de operação” (hold separate manager ou operating Trustee).

[5] Item 3, página 14 – Manual Trustee.

[6] Para maiores informações, vide item “3.1.1. Prazo” do Manual Trustee.

[7] A aprovação passará por duas instâncias, SG e Tribunal, conforme Resolução CADE nº 35/2024. Para saber mais sobre os critérios/requisitos para a aprovação do Trustee (plano de trabalho, capacidade operacional, qualificação técnica), acesse o Manual Trustee do CADE.

[8] Item 10, página 35 – Manual Trustee,


[*] Fonte: Manual Trustee – Conselho de Defesa Econômica (CADE). Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/superintendencia-geral-do-cade-publica-manual-para-uso-de-trustee/Manualdetrusteefinal.pdf   .Acesso em 11.04.2024.

Geração ditadura – Envelhecida e confusa

Adriana da Costa Fernandes

No Brasil atual, assuntos encadeados, funcionando como elo de corrente, interligados de alguma forma e impactando outros, relevantes e essenciais. Tantas vezes apresentados de forma isolada, sem que alguém conecte o pertinente esclarecimento, com vistas à adoção da melhor tomada de decisão.

Um exemplo típico vem sendo a postura adotada pela dita Geração de Idosos que frequenta os Comícios da Ultradireita Brasileira e que vivenciou, mais que todos, os tempos de Ditadura Militar no país. A chamada Geração Ditadura, hoje considerada envelhecida e certamente confusa com tudo o que vem acontecendo no País. Chocada e perdida com a real chegada da Revolução Digital cumulada com a Biotecnologia, com o uso excessivo e massivo de Drogas, das simples às pesadas adotadas quase como usuais, com os casais de mesmo sexo circulando livremente na rua, com os nomes binários tidos como comuns e com tantas informações novas e rápidas que não tiveram tempo e costume de absorver na virada da 4ª Revolução Industrial que se acentuou da Pandemia da COVID-19 para cá.

Tirando alguns itens de excesso, o resto nada tem a ver com pautas efetivas de conservadorismo a serem atacadas frontalmente, mas pontos a serem simplesmente compreendidos como virada de tempo, como outrora ocorrera mudanças de comportamentos com a chegada do vapor e da luz elétrica. Quem teve, por exemplo, a oportunidade de assistir a Série “The Crown”, entenderá os diversos impactos e ajustes que o Palácio de Buckingham, na Inglaterra, foi obrigado a fazer na Corte, na época da chegada a Energia Elétrica. Inclusive extirpando a alta e interna corrupção das velas. Ou seja, a seu tempo, cada problema.

Na época da Ditadura Militar Nacional, o que ocorrera é que uma parte da população brasileira foi, de certa forma, blindada em consciência acerca do que se passava.

Deste grupo, uma parcela, mais humilde, total ou parcialmente, verdadeiramente desconhecia o que acontecia em essência, uma vez que saía de casa muito cedo, às vezes de madrugada, nas grandes Cidades e Centros Urbanos, encarando o pesado fluxo de transportes, rumo aos empregos e retornando somente ao fim do dia, refazendo a mesma saga, muitas vezes sem dispor de televisão e sem sequer tempo hábil de ouvir pelo rádio o noticiário do dia, mas apenas vivendo e, achando que os soldados ao redor, aparentavam, segurança. Reinava, até então, uma suposta pacífica aura nas ruas, até começar a correria dos protestos e das reações de quem se mantinha acordado e em luta por liberdade e consciência.

A outra parcela do grupo, em linha oposta, bem mais beneficiada economicamente e consciente do que ocorria, simplesmente não tinha a menor intenção de se envolver ou, estava, em antagonismo, completamente envolvida, protegendo a Ditadura.

Esta era grande parte da realidade dos Boomers de alta classe. Uns apenas silentes. Outros, Empresários e Socialites, que protegiam Militares e, portanto, seus bens e hábitos. Poucos deles, apenas, tiveram mesmo que lidar com seus filhos supostamente rebeldes, os últimos rescaldos daquela geração e os primeiros da Geração X, passando a questionar seus valores, atuando em jornalecos e diretórios acadêmicos, bebendo em bares, fumando abertamente e, assim, sendo torturados e sumindo assassinados, como Stuart e a própria mãe, Zuzu Angel.[i][ii]

O tempo passou. O que aconteceu de lá para cá a maioria sabe. E o Brasil envelheceu.

E, de acordo com os resultados do Censo Demográfico de 2022, o número de pessoas com 65 anos ou mais de idade aumentou 57,4% em 12 anos. Os brasileiros desta faixa etária chegaram a aproximadamente 22,2 milhões de pessoas (10,9%) em 2022 contra 14 milhões (7,4%) em 2010[iii]. E a maior faixa populacional está concentrada entre a faixa de 24 a 44 anos, sendo que desta, o exponencial está entre 24 a 29 anos de idade.

Em linha oposta, o total de crianças com até 14 anos de idade decresceu 12,6%, mudando de 45,9 milhões (24,1%) em 2010 para 40,1 milhões (19,8%) em 2022.

Ao se avaliar as proporções entre os grupos etários específicos e por Regiões, percebe-se que a Região Norte é a mais jovem entre as demais, contando com 25,2% de sua população com até 14 anos, seguida da Nordeste, com 21,1%.

Entretanto, é justamente no Sudeste e no Sul que estão presentes as estruturas mais envelhecidas nacionais, com 18% e 18,2% de jovens de 0 a 14 anos apenas, e de 12,2% e 12,1% de pessoas com 65 anos ou mais.

A Região Centro-Oeste ainda se encontra em uma faixa intermediária, sendo a sua distribuição etária próxima da média do país, até mesmo por sua alta rotatividade habitual em razão dos Concursos Públicos, o que pode, perfeitamente, ter influenciado a pesquisa. Assim, na Região, a mediana divide a população na proporção de 50% de mais jovens e 50% de mais velhos. Imagina-se, pois, os pioneiros, seus filhos e os que chegaram.

Perceba-se, assim, que no Brasil, de 2010 a 2022, a idade mediana aumentou de 29 para 35 anos, refletindo o envelhecimento da população. E que nas cinco grandes Regiões, houve crescimento: Norte (de 24 para 29 anos), Nordeste (de 27 para 33 anos), Sudeste (de 31 para 37 anos), Sul (de 31 para 36 anos) e Centro-Oeste (de 28 para 33 anos). O País envelhece como um todo.

Mas afinal, o que tudo isto tem a ver com Ditadura, Populismo e Polarização? Absolutamente tudo.

Se forem analisados os locais de maior envelhecimento e maior poder aquisitivo, observe-se que é justamente onde o Populismo é mais arraigado, o medo mais concentrado e o efetivo grau de debate aberto entre as famílias menor.

De fato, os Boomers não foram criados para empreender debates abertos, mas para acatar regras. Em especial, as mulheres, as quais hoje, encontrando o eco de suas vozes finalmente, pintam o rosto e se vestem de verde amarelo, uma vez nunca acostumadas a, sequer, questionarem seus próprios maridos, tantos já falecidos. Porém, onde estão estes filhos? Juntos, em maioria, normalmente os filhos de militares, a não ser os que adquiram visão amplificada.

Destaque-se que, de lá para cá, o Brasil vem ganhando terreno e avançando em vários aspectos afetos ao campo dos Direitos e Garantias Individuais, especialmente desde a promulgação da Constituição de 1988, porém, essa geração foi a que menos absorveu, aparentemente, os avanços obtidos. Até mesmo por sua característica geral mais refratária quanto à absorção de novas ideias e concepções, com exceção, ao certo, de quem tem o hábito de desafiar a si mesmo constantemente a ponderar, pensar e enfrentar desafios e de lidar constantemente com culturas diferenciadas, mais abertas e, de fato, mais democráticas.

Ainda que pareça, a pretensão aqui não é criticar, mas demonstrar o imenso grau de preocupação com o tema. Somos todos responsáveis.

Do que importa deste texto, em verdade, ao serem apresentados esses números é que se entenda a importância do incremento do diálogo e do esclarecimento dentro das famílias e das instituições voltadas para esta faixa etária, bem como da adoção de programas e políticas públicas, privadas e de PPs, que permitam que esses Srs. e Sras. real e finamente compreendam: (i), em TV aberta, simultaneamente com o Streaming, o que ocorreu no Brasil da época da Ditadura Militar; (ii) que seja realmente melhor esclarecido o que, de fato ocorreu no Governo anterior e as diferenças, ainda que nada seja perfeito; e (iii) que sejam promovidos debates abertos entre representes das várias gerações, tanto fisicamente quanto on-line para a pulverização dos saberes e dos conceitos jurídicos no bojo das instituições nacionais, por meio de personalidades de renome que tenham penetração adequada na faixa etária.

Esta camada precisa ouvir e ser ouvida do Legislativo, do Judiciário e do Executivo.

É tempo de conscientização e não de omissão. É tempo, em realidade, de esclarecimento de todas as camadas populacionais acerca do que realmente se passa, para que, aí sim, cada um, conscientemente, possa fazer suas próprias escolhas.

Em tempos de Eleições, ainda, é premente que se avalie, que palanque há de ter regras e regulamentação. Tempo. Pauta. Falar para uma massa pressupõe responsabilidade e responsabilização grave. Impõe observância e acompanhamento o que, nada tem a ver com censura. Ao contrário, manipular informações e mentir é que é efetivamente uma forma de censurar os Direitos do Cidadão, o que o Político e a Figura Pública têm por dever a observação.

As pessoas ouviram um dia falar de “Liberdade de Expressão” e exaltam o conceito sem entender exatamente o contexto e seu grau de aplicabilidade, sem considerar a forma deste exercício, sem utilizar a agressão, a ofensa e a ameaça. Acham que podem simplesmente se vestir com a bandeira oficial de uma nação, um símbolo de alto respeito e simbolismo, como tolinhos da corte perante quem os manipula clara e ardilosamente e bradando meia dúzia de estratagemas que sequer entendem bem.

Os Boomers estão vivendo a rebeldia infantil retardatária que não puderam viver quando jovens nos anos 40, 50 e alguns até nos 60 quando o mundo explodia em clímax e ardor.

Lamento, prezados Vovôs e Vovós, está na hora de sentar novamente e estudar. Não apenas a aprender a usar smartphones para mandar whatsapp de correntes que são repassadas com flores e fotos de boa noite e orações cheias de vírus uns para os outros, mas ler e estudar bons livros sobre política sim, já que os srs. ainda se sentem habilitados e fortes o suficiente para encarar uma passeata, rastejando suas perninhas cambaleantes e carregando cartazes com suas letrinhas já infantis, com dizeres que nada condizem com o real.

Aos filhos e familiares, o lembrete das regras valiosas do Estatuto da Pessoa Idosa Brasileiro, a saber, a Lei  Federal 10.741, de 2003, a Carta de São José sobre os Direitos das Pessoas Idosas da América Latina e do Caribe, o Pacto Nacional da Pessoa Idosa (PNDPI), a Carta de Princípios para as Pessoas Idosas da ONU, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos Como Ferramenta para Promover a Década do Envelhecimento Saudável e, ainda, os Plano de Ação Internacionais de Viena e de Madrid sobre Envelhecimento.

E na linha essencial de que Direitos pressupõem Deveres, adotemos como premissa, em coletivo, que Pais, Avós e Familiares mais velhos fizeram muito, ou até mesmo que não, mas que foram a base da nação outrora e que, não podem e não devem continuar sendo objeto de escárnio, de piada, de manipulação escrachada e, acima de tudo, de desconhecimento de um passado, de joguete de um presente tão sujo e da ausência de um projeto de futuro.

Aos verdadeiros Democratas, um conclave. É tempo de debate e união.

Chega.


[i] O Caso Stuart Angel: https://observatorio3setor.org.br/noticias/ela-lutou-ate-a-morte-pelo-filho-que-foi-torturado-e-morto-pela-ditadura-2/

[ii] O Caso Zuzu Angel: https://claudia.abril.com.br/noticias/justica-reconhece-que-zuzu-angel-foi-assassinada-pelo-estado?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=eda_claudia_audiencia_institucional&gad_source=5&gclid=EAIaIQobChMI9OOwrpPUhQMVv2JIAB2qVgavEAAYASAAEgL9nvD_BwE#google_vignette

[iii] Fonte: IBGE: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18318-piramide-etaria.html

Efeitos do Tratado de Westhalia na atual guerra do Oriente Médio entre Israel e Palestina

Carolina Mendonça Guimaraes de Alencar Meneses

Em 1648, foi firmado o Tratado de Westphalia que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, um conflito travado entre nações europeias, sobretudo por razões religiosas, o qual é frequentemente apontado como o marco zero do sistema internacional moderno, baseando-se na soberania estatal e na não intervenção nos assuntos internos dos estados. Segundo Mazzuoli (2023, p. 46), a Paz de Westphalia foi um “divisor de águas” que permitiu o desprendimento de regras fundamentais que passaram a presidir as relações entre os Estados europeus, reconhecendo princípios e normas que, teoricamente, definem as relações internacionais até os dias de hoje. Entretanto, o conflito atual entre Israel e Palestina revela a complexa interação e contradição desses princípios estabelecidos pelo Tratado de Westphalia com as dinâmicas de reivindicações territoriais e intervenções
externas que hoje são observadas não só na “Terra Santa” como também
em todo o Oriente Médio.

Veja-se que, influenciado pelo Tratado de Westphalia, o conceito de soberania estatal implica que cada estado tem autoridade exclusiva sobre seu território e as pessoas nele, sendo uma das características que compõe o Estado Moderno. Para Mazzuoli (2023, p. 46 apud Brierly, 1954, p. 7-8):

 

Esse tipo de Estado, desenvolvido a partir da reforma protestante e dos tratados de Westfália, deu origem à chamada doutrina da soberania (que já contava com sua formulação teórica desde 1576, no De Republica de Jean Bodin), segundo a qual a força capaz de agregar seres humanos em um dado território é a unidade do poder (summa potestas), sem a qual o Estado seria – na expressão de Bodin – como um “barco sem quilha”.

 

No contexto do conflito Israel-Palestina, ambos os lados reivindicam o direito à soberania sobre determinados territórios. Israel, estabelecido como um estado soberano em 1948, controla terras que os palestinos reivindicam para a formação de seu próprio Estado.

Assim, nota-se que a soberania estatal, nascida da Paz de Westphalia, se relaciona com as reivindicações territoriais de Israel e Palestina na medida em que trata-se de um dos objetos de disputa entre as duas nações frente às realidades de reivindicações nacionais e identitárias conflitantes. Paralelamente, entende-se que o conflito não se limita apenas às nações mencionadas. Segundo Seitenfus:

 

O discurso que defende o paradigma da soberania, inspirado nos primórdios de Vestefália, apresenta grande atualidade nos países do Sul. As pressões exercidas pelo exterior são apresentadas como neocoloniais, desrespeitosas do domínio reservado e da independência dos Estados.

 

Apesar do autor referir-se de forma ampla aos ditos “países do Sul” de forma análoga pode ser aplicado aos conflitos do Oriente que de forma reiterada e contínua, vem sendo influenciados por atores externos à sua política e cultura. A interferência de atores externos no conflito Israel-Palestina contradiz diretamente o princípio de não intervenção estabelecido pelo Tratado de Westphalia. Diversos países e organizações internacionais tê tomado partido, fornecendo apoio político, econômico e, em alguns casos, militar para Israel ou à Palestina. Um exemplo disso é o próprio Irã que tem apoiado de forma militar os ataques contra Israel. O Dr. Amit Chamoli (2024, p. 781) aponta que:


O Irã está apoiando completamente o Hamas, a prova disso é que comemorações foram feitas no Irã depois dos ataques realizados pelo Hamas. O apoio total do Irã ao Hamas tem aumentado a força do Hamas, fazendo-o capaz de atacar Israel. (…) O Irã tem providenciado suporte militar assim como assistência econômica para o Hamas no passado, para que em tempos de guerra, não haja falta. (…) Junto com o Irã, o Líbano (…) e muitos países mulçulmanos são vistos se unindo.

 

A intervenção tem inflamado o conflito, o que pode, a longo termo, dificultar esforços de paz e dificultar o descobrimento de soluçõe baseadas no respeito mútuo pela soberania e pela autodeterminação dos povos.

Sobre a retromencionada busca de soluções, entende-se que para que as hostilidades sejam cessadas é imperioso o reconhecimento internacional da soberania dos estados em conflito. Para isso, os esforços diplomáticos têm sido essenciais para legitimar suas reivindicações à luz dos princípios do Tratado de Westphalia. Israel já alcançou amplo reconhecimento internacional, embora sua soberania sobre certos territórios ainda seja contestada. A Palestina, por outro lado, em busca do reconhecimento como estado
tem encontrado sucesso variado. A princípio, assim como aconteceu em Westphalia, a paz entre Israel e Palestina não nascerá em uma única reunião entre os representantes das partes, mas por uma profunda compreensão da necessidade de paz e de cessões de ambos os lados.

Dessa forma, chega-se à conclusão que o Tratado de Westphalia até hoje influencia o mundo, e os conflitos entre Israel e Palestina ilustram os desafios de aplicar princípios do Tratado em um mundo que mudou drasticamente desde 1648. As realidades de reivindicações territoriais sobrepostas, intervenções de atores externos e a luta pelo reconhecimento internacional, revelam as tensões entre a teoria da soberania estatal e as práticas internacionais contemporâneas.

Mesmo assim, nota-se que a paz e o período de reconstrução da Europa que seguiram o fim da Guerra dos Trinta Anos foi marcada pelos dizeres declarados nos tratados: “paz e a amizade cristã, universal, perpétua, verdadeira e sincera”. Da mesma forma, os conflitos sobre a soberania de territórios no Oriente Médio por Israel e Palestina não durarão para sempre e a necessidade de paz, reconstrução de vidas, laços e pontes se fará necessária. Nestes termos, espera-se que o maior efeito dos Tratados de Westphalia não seja no atual conflito entre as nações do Oriente, mas sim em sua futura conciliação. Para que a paz e a amizade entre israelenses e palestinos seja igualmente, universal, perpétua, verdadeira e sincera.


Desordem financeira, democratização da informação e crises de crédito

Cristina Ribas Vargas

As notícias recentes no mundo, em meio a guerras, e o debate sobre o acesso desigual a informação, trouxeram-me a lembrança um estudo que sempre apreciei, de Fred Block: As origens da desordem econômica internacional.

Block descreve a economia no período entre as duas grandes guerras mundiais, quando a Europa foi assolada pela desordem econômico-financeira. Antes disso a Inglaterra era então a potência industrial, militar e financeira da Europa, e sua moeda era a mais valorizada do continente. Sua liderança na defesa do livre comércio confirmava-se na atuação dos banqueiros ingleses, que concediam crédito independentemente do país no qual os recursos seriam gastos, ao contrário dos banqueiros alemães e franceses, que apenas concediam os empréstimos se os recursos fossem gastos em seus próprios países. A Inglaterra entendia que lucraria independentemente do país onde esses recursos fossem empregados. Foi um país deficitário durante a maior parte do século XIX devido à forte dependência de importações de recursos naturais, necessários à movimentação de sua indústria, e quando o balanço de pagamentos se tornava deficitário, a solução convencional era elevar a taxa de juros internamente e arcar com redução nos níveis de renda e emprego. No entanto, a partir de 1900, com a ascensão de EUA e Alemanha, a postura Inglesa mudou. Os déficits tornaram-se exorbitantes e o país se negou a fazer o ajuste internamente via aumento da taxa de juros e redução de emprego.  E foi justamente no período do entre guerras que a Inglaterra, cuja moeda era o padrão de referência internacional, decidiu abandonar o padrão ouro, provocando instabilidade e insegurança nas transações financeiras entre os países. A primeira guerra veio como resultado de uma tentativa de restabelecimento do padrão ouro, que resultou infrutífera, já que nenhum país queria assumir a responsabilidade de ter a moeda como padrão de referência internacional. Para agravar mais o quadro e acabar tornando a guerra inevitável os banqueiros ingleses mudaram de postura, e passaram a restringir o crédito externo, além de iniciarem a cobrança aos devedores, o que resultou em declarações de moratórias e adoção de controles cambiais por parte de outros países, dificultando mais ainda a situação econômica da Inglaterra. Neste momento da história os banqueiros acreditavam que a crise poderia ser solucionada se houvesse o retorno ao padrão ouro. No entanto, de acordo com Block, o que parecia mais difícil de ser notado é que a crise vinha do lado real da economia. A Inglaterra já não era mais a potência econômica mundial. As cotações das moedas passaram a flutuar e as taxas de câmbio a serem determinadas pelos níveis de divisas, sem uma paridade fixa direta com o ouro. Isso gerou grandes movimentos especulativos de capital e ataques contra as moedas mais fracas. Com o auxílio dos EUA em 1925 a Grã-Bretanha restabeleceu o padrão ouro ao nível do pré-guerra. O acordo previa grandes vantagens aos EUA, que apresentava taxas de juros mais atrativas: empréstimos de longo prazo começaram a migrar de Londres para Nova York. Aos poucos os grandes capitais dos EUA influenciavam o seu governo na tentativa de assumir o controle das finanças mundiais e iniciar o processo de cobrança sobre Inglaterra e França, orientando-os a imputarem ao país perdedor, a Alemanha, a responsabilidade pelos pagamentos de suas dívidas. Nascia a segunda guerra e a triste ascensão do nazismo. Como diria Mark Twain, a história não repete trajetórias, mas frequentemente ela rima. A inabilidade em incentivar a retomada do crescimento econômico a partir de uma postura menos restricionista conduziu o mundo à grande depressão, e na sequencia a segunda guerra. A partir dai o padrão monetário ouro foi abandonado definitivamente, e o que passou a viger foi o ‘não sistema financeiro internacional’.

Essa história é apenas para lembrar a importância da política de crédito. Do ponto de vista interno, nos faz pensar sobre como a informação perfeita sobre o perfil de crédito por parte instituições financeiras pode ser utilizada para restringir mais ainda o acesso ao crédito às famílias de menor renda, e portanto de maior risco, enquanto o acesso à informação por parte das Bigtechs nos remete ao risco de avaliações no mercado externo sem regras claras sobre as condições de concessão de crédito internacional. Em mundo pouco pacífico, o detentor de grande poder de informação associado ao poder de concessão de crédito, pode engendrar a desordem econômica mundial, ao contrário do que esperam os mais otimistas defensores da informação irrestrita aos agentes econômicos financeiros. É o início de uma reflexão sobre o quanto o conhecimento total da informação por parte daqueles que controlam a oferta de crédito no Brasil e no mundo pode de fato promover um maior acesso aqueles que historicamente não dispuseram de acesso ao crédito. Em outras palavras, o crédito é importante justamente quando mais precisamos dele, em situações de crise. Do contrário, como diria Mark Twain, será o mesmo que dar um relógio como garantia ao sistema financeiro para poder descobrir que horas são.  A informação completa sobre o agente que solicita o crédito pode piorar as condições sob as quais ele contrata esse serviço. Lembrem-se que os EUA conhecia muito bem a situação financeira da Inglaterra quando resolveu “socorre-la”.  A restrição do crédito inibe o investimento, a renda e a possibilidade de geração de um efeito multiplicador. Imaginem agora todas as informações perfeitas sobre cada família, empresa e governo de posse dos maiores oligopólios financeiros mundiais: como seria a política de crédito internacional? Os impactos sobre a economia real e a produção de riqueza poderiam ser determinados por agentes que não receberam a delegação de poder para determinar os rumos da política econômica mundial.  Não desanimemos, um outro mundo sempre é possível, mesmo que a história repita trajetórias.

Referências

BLOCK, F. L. The Origins of International Economic Disorder, 1977. (Las Orígenes del Desorden Económico Internacional, Fondo de Cultura, México, 1980).

WebAdvocacy. O “X” do Xandão. Editorial, 9 de abril de 2024.

Principais alterações na regulamentação da Lei da Empresa Limpa (Lei Anticorrupção), por meio do Decreto 11.129/2022

Fernando de Magalhães Furlan

O Decreto 11.129 entrou em vigor em 18 de julho de 2022, alterando a regulamentação da Lei nº 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

O Novo Decreto trouxe as seguintes principais alterações à Lei da Empresa Limpa:

  1. Dosimetria das multas:

Em relação à dosimetria das multas, foram modificados alguns critérios e alíquotas que determinam precisamente o valor final da penalidade, quais sejam, base de cálculo, circunstâncias agravantes e atenuantes, e limites mínimo e máximo. 

Apesar de a base de cálculo padrão da multa ainda consistir no faturamento bruto da pessoa jurídica no último exercício anterior ao da instauração do PAR, o Novo Decreto inovou ao:

      (I) ampliar as formas de apuração do faturamento, por meio da inclusão da estimativa e da identificação do montante total de recursos recebidos pela pessoa jurídica sem fins lucrativos no referido período; 

      (II) estabelecer que, na hipótese de empresas de um mesmo grupo econômico terem praticado os atos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção ou concorrido para a sua prática, a base de cálculo consistirá na soma dos faturamentos brutos de todas as empresas envolvidas; e 

      (III) determinar que, excepcionalmente, caso a pessoa jurídica comprovadamente não tenha tido faturamento no último exercício anterior ao da instauração do PAR, a base de cálculo consistirá no último faturamento bruto apurado pela pessoa jurídica, atualizado até o último dia do exercício anterior ao da instauração do PAR (arts. 20 e 21).

Quanto às circunstâncias agravantes e atenuantes aplicáveis ao cálculo da multa após o estabelecimento da respectiva base de cálculo, o Novo Decreto não só alterou determinadas hipóteses de incidência, como também modificou, ainda que pouco, a quase totalidade das respectivas alíquotas aplicáveis ao cálculo sob análise (artigos 22 e 23).

Por exemplo, o decreto aumentou de 4% para 5% o fator de redução da multa, no caso de a empresa possuir um programa de integridade efetivo. Confira:

Art. 23.  Do resultado da soma dos fatores previstos no art. 22 serão subtraídos os valores correspondentes        aos seguintes percentuais da base de cálculo:

      V – Até cinco por cento no caso de comprovação de a pessoa jurídica possuir e aplicar um programa de       integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo V”.

Essa medida busca incentivar as empresas e instituições a adotarem reais medidas de aprimoramento de seus programas de integridade. Para isso, o novo decreto agora traz detalhamento maior de alguns parâmetros para avaliar a efetividade de tais programas.

Por exemplo: a necessidade de realizar diligências apropriadas para contratar e supervisionar terceiros, agora com a menção expressa a despachantes, consultores e representantes comerciais, que deverão ter verificações prévias nos chamados background checks e poderão responsabilizar a empresa pela Lei Anticorrupção, caso pratiquem atos de corrupção, agindo em seu interesse ou benefício.

Com relação à dosimetria da multa prevista no art. 6º, I, da Lei Anticorrupção, o decreto 11.129 trouxe modificações expressivas em relação à norma anterior (Decreto 8.420/15). O primeiro destaque é o da inserção de um novo fator para o cálculo da multa, o da existência de concurso de atos lesivos. A regulamentação anterior não era clara quanto a essa hipótese, o que proporcionava insegurança jurídica. Doravante, quando a prática de mais de um ato lesivo estiver sendo objeto de um processo administrativo de responsabilização, haverá a imposição de multa de até 4% sobre o faturamento bruto da empresa, vejamos (art. 22, I, do Decreto 11.129/2023):

Art. 22.  O cálculo da multa se inicia com a soma dos valores correspondentes aos seguintes percentuais da base de cálculo:

I – Até quatro por cento, havendo concurso dos atos lesivos;

2. Acordos de Leniência:

Os preceitos sobre a celebração de acordos de leniência também foram objeto de modificações significativas. Em vez de exigir o reconhecimento de participação da empresa signatária na infração, como previa o decreto 8.420/15, o decreto 11.129/22 permite a mera admissão da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica pelo ato lesivo à Administração Pública.

Também foi incluída previsão de que, para a assinatura do acordo de leniência, deve haver a reparação integral da parcela incontroversa do dano causado e a perda/devolução dos valores correspondentes ao acréscimo patrimonial indevido ou ao enriquecimento ilícito.

Outra novidade consiste na previsão de que a assinatura de memorando de entendimentos seria causa interruptiva do prazo prescricional de 5 anos previsto na lei 12.846. Tal previsão, contudo, pode ser alvo de questionamentos futuros, pois essa hipótese não está prevista na lei como causa interruptiva da prescrição.

Além disso, eventuais infrações à Lei da Empresa Limpa, que também representem violação administrativa à Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) ou a outras normas de licitações e contratos da administração pública, serão julgadas em conjunto em um mesmo processo.

O novo decreto também confere algumas proteções ao proponente do acordo de leniência, como por exemplo, o sigilo da negociação.

3. Cálculo da vantagem auferida:

O decreto também prevê, em seu art. 26, três novas possibilidades para se calcular a vantagem auferida ou pretendida para fins de multa ou acordo:

“Art. 26.  O valor da vantagem auferida ou pretendida corresponde ao equivalente monetário do produto do ilícito, assim entendido como os ganhos ou os proveitos obtidos ou pretendidos pela pessoa jurídica em decorrência direta ou indireta da prática do ato lesivo.

§ 1º  O valor da vantagem auferida ou pretendida poderá ser estimado mediante a aplicação, conforme o caso, das seguintes metodologias:

I – pelo valor total da receita auferida em contrato administrativo e seus aditivos, deduzidos os custos lícitos que a pessoa jurídica comprove serem efetivamente atribuíveis ao objeto contratado, na hipótese de atos lesivos praticados para fins de obtenção e execução dos respectivos contratos;

II – pelo valor total de despesas ou custos evitados, inclusive os de natureza tributária ou regulatória, e que seriam imputáveis à pessoa jurídica caso não houvesse sido praticado o ato lesivo pela pessoa jurídica infratora; ou

III – pelo valor do lucro adicional auferido pela pessoa jurídica decorrente de ação ou omissão na prática de ato do Poder Público que não ocorreria sem a prática do ato lesivo pela pessoa jurídica infratora”.

4. Contratação de Pessoas Politicamente Expostas – PEPs:

Além de diligências na contratação de terceiros, o novo decreto regulamentador exige que sejam realizadas diligências apropriadas, baseadas em riscos, para contratar e supervisionar as pessoas expostas politicamente (PEPs), ou seja, pessoas que ocupam ou ocuparam, nos últimos cinco anos, cargos de escalão superior ou funções públicas proeminentes, seus familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas das quais participem.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


A quantidade de investigações antitruste das big techs reflete a deficiência do controle de estruturas para a economia digital

Elvino de Carvalho Mendonça

Na semana passada as big techs Apple e Google voltaram a cena nos EUA e na França.

O Departamento de Justiça dos EUA (USDOJ) condenou a gigante Apple por prática de monopolização no mercado de smartphones[1] e a Autoridade Francesa da Concorrência (Autorité de la Concurrence) impôs uma multa de 250 milhões de Euros ao Google em razão do descumprimento de compromissos previstos na decisão 22-D-13, de 21 junho 2022[2].

O combate das principais jurisdições concorrenciais contra condutas anticompetitivas de empresas com as características das conhecidas big techs é algo corriqueiro no mundo da defesa da concorrência.

Por que isso acontece?

Em primeiro lugar, deve-se pontuar que as empresas mencionadas e as demais big techs são detentoras de elevadas participações de mercado nos mercados onde atuam, condição necessária para que o poder se transforme em abuso.

Em segundo lugar, o crescimento destas empresas não se deu somente pela aquisição de empresas concorrentes, mas também pelo crescimento orgânico advindo da natureza dos negócios em que atuam[3].

O crescimento por meio de fusões e aquisições é controlado por grande parte das autoridades de defesa da concorrência no mundo via controle de estruturas. Neste caso, o controle do poder de mercado se dá pela imposição de filtros para a submissão obrigatória de operações às autoridades de defesa da concorrência.

Entretanto, quando o crescimento do market share é obtido de forma orgânica[4] não há nada que as autoridades de defesa da concorrência possam fazer em sede de estrutura e toda a intervenção em que podem atuar se dá no âmbito de investigação de condutas anticompetitivas.

No entanto, ainda que as principais autoridades de defesa da concorrência atuassem para identificar o nexo de causalidade entre a operação e o abuso de poder de mercado, a natureza de preço zero presente nos produtos das big techs tornaram ineficazes os métodos para identificação das fusões e aquisições sobre os preços e sobre o bem-estar do consumidor.

Associado a dificuldade de medir os efeitos da operação está o crescimento orgânico das big techs, cujo acompanhamento, conforme já afirmado, foge ao controle das autoridades de defesa da concorrência. Neste caso, todos os esforços de controle de estruturas neste mercado complexo não foram suficientes para evitar que estas empresas detivessem poderes de mercado próximos do monopólio.

Notícias de imposição de sanções a empresas com características das big techs por parte das autoridades de defesa da concorrência do mundo é e continuará a ser um expediente comum por um bom tempo, pois, muito embora a teoria antitruste já tenha evoluído bastante em matéria de análise de fusões e aquisições na economia digital[5] e possa evitar acréscimos de participação de mercado e exclusão de startups do mercado: (i) as operações de fusão e aquisição que deram origem a posição dominante das big techs já ocorreram; e (ii) a natureza do mercado digital gera por si só crescimento orgânico.


[1] Office of Public Affairs | Justice Department Sues Apple for Monopolizing Smartphone Markets | United States Department of Justice

[2] A decisão 22-D-13, de 21 junho 2022 trata de direitos conexos existentes entre o Google e os Google e os editores ou agências de notícias.

[3] É importante ressaltar que estas empresas, ao captarem volumes gigantescos de dados, são capazes de predizer os comportamentos de seus clientes e de determinar o seu consumo, o que tem uma relação direta com a conquista de participação de mercado.

[4] No Brasil, por exemplo, a legislação exige notificação obrigatória para operações em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.

[5] Federal Trade Commission Withdraws Vertical Merger Guidelines and Commentary | Federal Trade Commission (ftc.gov)

Big Government vs. Big Business – o déjà vue no caso DoJ vs. Apple

Lucia Helena Salgado

O DoJ (Departamento de Justiça norte-americano) anunciou no final de março de 2024 ter dado entrada em ação contra a Apple por práticas que têm conduzido à monopolização e à manutenção do monopólio.

A acusação básica é a monopolização do mercado de smartphones, com práticas que retêm os consumidores, – impedem a compatibilização com produtos, acessórios e aplicativos produzidos em outros sistemas operacionais e deterioram a comunicação e interoperabilidade com smartphones de outros fabricantes. Essas práticas tornam elevado o custo de troca por parte dos consumidores do iphone da Apple por outras marcas de smartphone.

Recentemente (2023), o DoJ entrou em outra disputa judicial, dessa feita com a Google, também pela monopolização e manutenção de monopólio do mercado de propaganda digital, enquanto o FTC (Federal Trade Commission), desde o início da administração Biden em 2021, vem questionando judicialmente aquisições tanto da Meta (dona do Facebook, Instagram e Whatsapp) quanto da Microsoft.

Essa mudança de rota radical na condução da política antitruste nos Estados Unidos, de décadas de “bigness is beautiful” para um retorno às origens do “bigness is awful” tem sofrido derrotas no Judiciário e pode vir a ser abandonada no caso do retorno de Donald Trump à Casa Branca.

Contudo, o atual caso DOJ vs. Apple guarda particularidades que vale a pena detalhar. A primeira, mais simples e circunstancialmente importante, é que a investigação sobre as práticas adotadas pela Apple para manter inexpugnável sua posição de mercado (mais de 60% do mercado norte-americano de smartfones), teve ainda em 2019, no curso da administração Trump. O fato serve como indicador da possibilidade da continuidade desse caso, mesmo com mudança do comando do governo federal, da administração democrata para a republicana.

O segundo ponto a salientar é a coincidência de temas do caso Apple com outros leading cases que marcaram a história do antitruste, a começar pelo caso Xerox passando por Kodak, Nespresso na França e Apple (na Europa e agora nos EUA)[1]. Em todos os casos, estamos falando de um modelo de negócios alicerçado sobre a fidelização dos consumidores, processo iniciado com uma inovação (de produto ou serviço) que conquista a adesão e confiança de número expressivo de consumidores, tornando o empreendimento viável no novo front de mercado. Tal adesão baseia-se na conveniência, qualidade e disponibilidade do novo bem/serviço e é reforçada pela propaganda que acentua a diferenciação daquele produto – sempre associado a uma marca – com relação a qualquer candidato a substituto.

A partir dessa base, que em organização industrial conhecemos por “a vantagem do pioneiro”, o ofertante constrói barreiras que lhe permitem cobrar preços elevados e mantê-los em patamar elevado sem preocupação de que poderia perder seu público (e com ele seu faturamento), mantendo-se protegido da concorrência pela falta de disposição de seus clientes de se aventurarem a experimentar produtos/serviços de outros ofertantes, em função das inconveniências associadas ao custo de troca.

Até aí, estamos diante de uma estratégia bem-sucedida de criação de mercado por inovação e construção (real e/ou imaginária) de diferenciação, que atende tanto aos anseios de lucratividade como aos desejos dos consumidores.

Saliente-se que novos mercados foram criados pelas inovações: máquinas reprográficas da Xerox substituíram carbonos e mimeógrafos; rolos de filmes e kits de revelação disponíveis no comercio varejista popularizaram a fotografia, antes restrita a estúdios profissionais; a máquina de café Nespresso trouxe para dentro dos lares e escritórios europeus (principalmente franceses) o requinte do café expresso italiano; por fim chegamos ao iphone, cuja inovação consistiu em reunir em um único dispositivo inovações fundamentais desenvolvidas por anos de pesquisa e desenvolvimento com financiamento público (no âmbito de universidades e do complexo industrial de defesa norte-americano): a internet, o gps, a tela de cristal líquido, dentre outras.

Todos esses produtos e serviços inovadores, ultrapassados os dois estágios iniciais já descritos, consolidaram-se adotando um modelo de negócios que vincula a oferta principal à oferta de produtos e serviços adjacentes, de extrema utilidade – muitas vezes, cruciais para a própria utilidade do produto principal. No caso Xerox, era (sobretudo, mas não somente) o toner; no caso Kodak, eram os insumos de revelação; no caso Nespresso, as cápsulas de café, e agora no caso Apple, os carregadores, fones, relógios inteligentes e aplicativos que, ou não são acessíveis a usuários em outros aparelhos (como a carteira eletrônica), ou não permitem uma conectividade de qualidade (como o aplicativo de mensagens de texto, que funciona mal com smartphones que não o iphone).

Está aí o ponto central da questão antitruste associada a esse modelo de negócios: uma vez estabelecida a dominância, com a captura e retenção de parcela expressiva do mercado – senão a totalidade dele – o impulso inovativo inicial arrefece, porque qualquer inovação com potencial disruptivo porá em risco a dominância conquistada. A empresa dominante passa a inviabilizar o surgimento de alternativas, seja impedindo a interoperabilidade, seja adquirindo rivais potenciais, eliminando seu potencial criativo.

No presente caso, é estatisticamente insignificante o número de usuários nos Estados Unidos dispostos a trocar de smartphone – e por conseguinte, de sistema operacional, de acesso a facilidades exclusivas como a Apple Wallet e de compatibilidade com smartwatches e outros acessórios – do iphone para um mais barato, pela perda de conveniência e os custos com a necessidade de aquisição de outros acessórios, o que caracteriza um quadro de clientela locked in.

A defesa já trazida à luz pela Apple é ingênua senão anacrônica: que ela não seria dominante – muito menos monopolista – pois o DoJ estaria equivocadamente considerando o mercado relevante geográfico como sendo os Estados Unidos, quando sua participação global é em torno de 20%. É nos Estados Unidos, mercado onde o Iphone foi originalmente introduzido, que o poder de mercado da Apple é exercido, e justamente as barreiras estratégicas criadas pela empresa são os elementos que inviabilizam o estabelecimento sustentável de concorrentes.

 Contudo, o caso para o DoJ é para lá de complicado: levantar evidências de que o modelo de negócios da Apple além de prejudicar a curto prazo os consumidores, extraindo renda de monopólio, prejudica a dinâmica da economia norte-americana, ao arrefecer o desenvolvimento e introdução de inovações, o mecanismo que mantém a liderança tecnológica daquela economia, é tarefa para lá de desafiadora.

Por outro lado, espera-se que a Apple vá defender ao limite seu modelo de negócios, como tem feito na Europa, ao contestar na Corte Europeia decisão da Comissão que recentemente a multou em bilhões de euros pela não adoção da padronização universal de conectores em seus smartphones.

Se a “dependência de trajetória” se manifestar também neste caso, veremos uma longa batalha sem vencedores e derrotados: em algum momento um acordo será fechado, a empresa fará algumas concessões, o governo valorizará o resultado obtido e no curso da disputa, distraída pelo processo da preocupação em combater a concorrência potencial, a Apple acabará por se defrontar com rivais que encontrarão espaço para apresentar novas alternativas, novos encantos para os consumidores norte-americanos. Cenário promissor, em que se mantém vivo o impulso da inovação tecnológica.


[1] A lista complete de casos similares incluiria IBM e Microsoft, porém ambos carregam diferenciais sendo em um caso que o mercado de computadores dominado por IBM foi desconstruído pelo surgimento de tecnologia disruptiva, e no outro que a inovação representada pelo navegador de internet não ter sido introduzida pela Microsoft e sim pela rival vítima de práticas exclusionárias, a Netscape.

Banco Central do Brasil no G20 e o reconhecimento internacional por sua atuação

Leandro Oliveira Leite

O Banco Central do Brasil (BCB) foi recentemente premiado com o título de “Autoridade Monetária do Ano” pelo Central Banking Awards 2024, uma honra concedida pelo renomado site Central Banking. Esse reconhecimento destaca as notáveis conquistas e contribuições do BCB para o cenário financeiro nacional e internacional, destacando sua liderança em várias áreas-chave.

Segundo o Central Banking, o BCB foi agraciado com este prêmio devido à sua melhoria na transparência e comunicação, bem como suas reformas nas intervenções cambiais e apoio à estabilidade financeira. O Banco Central brasileiro também foi elogiado por sua transformação digital interna e por seus esforços na inclusão ambiental e financeira. Além disso, foi ressaltado o trabalho do BCB na atualização do ecossistema de pagamentos instantâneos, incluindo iniciativas para incorporar um ‘real digital’ em sua estrutura, mostrando um compromisso com a modernização do sistema financeiro.

A avaliação internacional destaca que o BCB mantém um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo, promovendo a estabilidade econômica e financeira do Brasil. O prêmio também reconhece o importante papel desempenhado pelo Banco Central na sociedade brasileira, especialmente desde a aprovação de sua autonomia em 2021.

Com a autonomia técnica e operacional garantida pela Lei Complementar 179/2021, o BCB possui a proteção legal necessária para garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, promovendo um sistema financeiro sólido e competitivo, e promovendo o bem-estar econômico da sociedade.

Durante a pandemia de COVID-19, o BCB desempenhou um papel crucial na mitigação dos impactos econômicos, conduzindo operações nos mercados de títulos públicos e de ativos privados para mitigar os danos causados pela crise. Além disso, o banco central implementou importantes ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas no sistema financeiro, destacando-se como líder na promoção da sustentabilidade.

A comunicação do BCB também evoluiu, com abordagens simplificadas sobre temas como política monetária, pagamentos instantâneos, educação financeira e CBDC (‘drex’ é o real brasileiro em formato digital). Isso fortaleceu a credibilidade do banco central e aumentou a confiança dos brasileiros no sistema financeiro e na instituição. O BCB também ampliou seu alcance nas redes sociais, mantendo contato direto com os cidadãos por meio de sete redes sociais e criando um canal direto com o público por meio de transmissões ao vivo.

Embora algumas críticas locais tenham sido levantadas sobre a taxa de juros e a velocidade na redução da Selic, o reconhecimento internacional do BCB é inegável. O Banco Central brasileiro já recebeu diversos prêmios internacionais, incluindo o Beacon of Innovation Award[1] em outubro de 2023, em reconhecimento ao lançamento bem-sucedido do Pix. Além disso, o BCB foi homenageado como o melhor gestor de reservas em março de 2023, pelo Central Banking Awards 2023, devido à sua gestão exemplar de mais de US$ 300 bilhões em reservas durante a pandemia. Em 2022, o presidente do BCB foi reconhecido como o melhor do ano de bancos centrais pelo LatinFinance Banks of the Year Awards.

O Papel do Banco Central do Brasil na Presidência do G20

Recentemente, o Banco Central do Brasil (BCB) teve a privilégio de sediar a reunião de ministros de finanças e presidentes de bancos centrais do G20 em São Paulo, sob a presidência do Brasil. Nesse importante encontro, foram discutidos temas cruciais para a economia global, incluindo inclusão financeira, governança global, combate à inflação, estabilidade financeira e renegociação de dívidas.

Para Paulo Picchetti, diretor de Assuntos Internacionais e de Gestão de Riscos Corporativos do BCB, a pandemia da COVID-19 trouxe à tona a necessidade urgente de promover um crescimento econômico mais inclusivo. Durante uma coletiva de imprensa realizada no âmbito do G20, em São Paulo, Picchetti destacou o consenso entre os países membros do G20 sobre a importância de garantir melhores condições de igualdade no processo de recuperação econômica pós-pandemia.

Uma das contribuições fundamentais dos bancos centrais para a redução das desigualdades é a promoção da inclusão financeira. Ressalta-se que o Brasil tem sido um exemplo nesse sentido, sendo estudado por países avançados. Ele citou o sucesso do Pix, sistema de pagamentos instantâneos do Brasil, como um caso exemplar que não só facilita transações financeiras, mas também amplia o acesso ao mercado financeiro e às condições de crédito, possibilitando negócios que anteriormente não eram viáveis. O diretor enfatizou que dar às pessoas acesso ao crédito é um passo crucial para melhorar suas condições de vida de maneira sustentável, impulsionando-as em direção a uma trajetória de crescimento econômico. Ele destacou que a inclusão financeira não deve se limitar apenas à quantidade, mas também à qualidade dos serviços financeiros oferecidos.

Assumir a presidência do G20 é uma oportunidade única para o Brasil colocar em pauta questões prioritárias para a economia global. Desde 1º de dezembro, o Brasil tem liderado esse fórum de cooperação econômica internacional, que reúne dezenove das principais economias do mundo, além da União Europeia, da União Africana e países convidados pelo membro que ocupa a presidência a cada ano.

Durante o mandato brasileiro, o BCB desempenhará um papel de liderança na condução dos trabalhos da Trilha de Finanças do G20, buscando promover a estabilidade monetária como um meio eficaz de combater a desigualdade e impulsionar o crescimento econômico sustentável em todo o mundo.

Em suma, o reconhecimento internacional do Banco Central do Brasil é um testemunho de sua liderança, inovação e compromisso com a estabilidade econômica e financeira. Durante a condução dos trabalhos da Trilha de Finanças do G20, busca-se promover a estabilidade monetária como um meio eficaz de combater a desigualdade e impulsionar o crescimento econômico sustentável e social, consolidando sua posição como um dos principais bancos centrais do mundo.


[1] É prêmio dado pelo Council of the Americas (COA), uma organização internacional que representa uma série de segmentos, como bancos e finanças, serviços de consultoria, consumo de produtos, minas e energia, setor manufatureiro, mídia, tecnologia e transporte.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.