Artigos de opinião

Importância do sistema SISCORI na fiscalização das operações de comércio exterior

Josefina Guedes & Rogério Pitta

Durante longos anos de ausência de um sofisticado e transparente sistema de estatísticas de comércio exterior no Brasil, dificultou os atores que atuam de forma legal e de boa fé, consequentemente favorecendo os importadores e exportadores que atuaram de má fé, resultando num enorme prejuízo ao Erário, ao emprego, investimentos e produção no país, por décadas.

A partir de 2007 até final de 2015, os operadores de comércio exterior e a indústria nacional passaram a contar, por parte da Secretaria da Receita Federal do Brasil, com dados das importações brasileiras e informações detalhadas, divulgados em bases acess no próprio site da SRFB, porém restritos a apenas alguns poucos Capítulos da Nomenclatura de Comércio Exterior (NCM) tidos como sensíveis no comércio exterior.

Com as rápidas e significativas mudanças no comércio internacional, ficou clara a necessidade de um novo sistema de divulgação de dados, com maior transparência e complexidade, tendo em vista as novas formas e regras que foram sendo incorporadas nos acordos comerciais de preferências tarifárias e da Organização Mundial do Comércio.

Além desses acordos, o comércio internacional tem se mostrado dinâmico a ponto de surgirem novas práticas, realizadas pelos novos players do comércio mundial. Então, todo esse novo cenário, fez com que as autoridades brasileiras tenham elaborado um novo sistema de divulgação de estatísticas de comércio exterior, o Siscori.

Pela primeira vez na história do comércio exterior brasileiro, o sistema de informações estatísticas de comércio exterior passou a ser formado com base de dados mais detalhados que o anterior, sendo que, o mais importante, foi disponibilizar ao público em geral, a partir de janeiro de 2016, informações mensais das operações, tanto de importação como de exportação.

Dados relativos às NCM, origens e destinos das operações, descrições detalhadas dos produtos, volumes, valores, fretes, seguros, preços unitários das operações, unidades de despacho (exportação) e de desembaraço (importação), entre outros, eram disponibilizados a todos os operadores no comércio exterior brasileiro.

Cabe ressaltar que, em ambos os métodos de divulgação de dados pela SRFB, a confidencialidade das empresas importadoras e exportadores sempre foi garantida, inclusive com a restrição da divulgação de operações realizadas por menos de quatro empresas em uma mesma NCM e mês.

De divulgação pública, o sistema Siscori era único em relação ao detalhamento dos dados das importações, e se mostrou fundamental no acompanhamento para o combate de ilicitudes no comércio exterior brasileiro, cada vez mais visado dentro desse novo cenário do comércio mercado mundial competitivo.

Esse sistema estatístico de comércio exterior teve papel fundamental e, durante sua duração, foi sine qua non para o combate de várias práticas ilegais e/ou desleais no comércio internacional brasileiro, como importações de produtos subfaturados e fraudes diversas, tais como falsa declaração de origem ou de classificação fiscal ou produtos que não cumprem requisitos regulatórios importantes para a proteção da saúde pública e do meio ambiente, exigidos dos produtores nacionais.

Principalmente em razão do aumento da complexidade de ações indevidas e/ou ilegais realizadas, por agentes do comércio exterior pelo mundo, prejudicando o combate às práticas lesivas ao Erário, aos empregos, aos investimentos e produção. Infelizmente esses agentes que atuam de forma irregular e prejudicial, obrigam as empresas que atuam de boa fé acompanhar e monitorar a atuação dos demais atores do mercado.      

Após o grande avanço no sistema estatístico de comércio exterior brasileiro, em 17 de dezembro de 2021, por meio da publicação no Diário Oficial da União da Portaria SRFB nº 100, de 16 de dezembro de 2021, foi determinada a descontinuidade do funcionamento do sistema Siscori, o que pode ser avaliado como um grande retrocesso para todo o ganho que o comércio exterior realizou após décadas de atraso.

Voltamos a época da falta de transparência, fator determinante para o combate às práticas ilícitas no comércio exterior brasileiro, décadas perdidas! Precisamos avaliar quem ganha com esse retrocesso, urge uma análise rápida e objetiva dessa questão!

É importantíssimo notar que, contrariamente à justificativa apresentada pelo governo brasileiro para o encerramento do sistema Siscori, este Sistema se diferencia de forma significativa dos dados disponibilizados pela Secretaria de Comércio Exterior do Brasil no Comexstat, e de qualquer outro sistema estatístico, pois é o único que fornecia descrição detalhada dos produtos importados e/ou exportados dentro de cada NCM, dado de total relevância para o combate de práticas ilícitas.

Diversos produtos classificados em uma mesma NCM têm características bastante amplas, com variações que afetam valores e preços das mercadorias transacionadas. Podem-se citar, como exemplo, produtos químicos com inúmeras composições e fórmulas, produtos têxteis produzidos com as mais diversas matérias-primas e produtos siderúrgicos, com uma infinidade características de tamanhos, espessuras, diâmetros, revestimentos e acabamentos, classificados dentro de um mesmo código tarifário.

Assim, tendo em vista a extensa gama de classificações dispostas pelos códigos da NCM, em muitos casos, é impossível identificar o verdadeiro produto, sem uma descrição detalhada da mercadoria comercializada. A ausência destas informações inviabiliza que os operadores nacionais denunciem, junto aos agentes públicos brasileiros, para colaborar no combate a práticas irregulares, como subfaturamento, falsa declaração de origem do produto, desvio de NCM para pagar menos impostos (Imposto de Importação, Imposto sobre Produtos Industrializados e impostos estaduais), bem como práticas de dumping, subsídios e outras estabelecidas em nossa legislação nacional.

Com o crescimento acelerado do comércio internacional e a diversificação cada vez maior das mercadorias vendidas pelo e ao Brasil, é fundamental que a informação do produto seja a mais detalhada possível permitindo assim, que o setor privado identifique as características específicas das mercadorias, tornando as medidas de combate às irregularidades no comércio internacional mais apuradas e precisas. De outra forma, a análise dos dados detalhados permite melhor identificação da “doença”, possibilitando a aplicação do “remédio” mais adequado.

Assim sendo, infere-se ao sistema Siscori extrema importância para que os setores público e privado possam, em colaboração mútua, monitorar o mercado e auxiliar no combate a fraudes, garantindo assim o comércio justo e legal, evitando prejuízos milionários ao Erário. Ademais, os dados detalhados são também absolutamente imprescindíveis nos casos de instrumentos de políticas comerciais, que o Brasil como membro da Organização Mundial do Comércio pode aplicar.

É sempre fundamental salientar, que a competição justa de comércio e dentro dos padrões e regras internacionais colaboram na geração de renda e empregos, o pagamento de impostos, a produção e o desenvolvimento industrial do país.

É muito importante o diálogo da SRFB e todo o setor privado nacional e a Secretaria tem se mostrado sensível à essa questão. Mas se faz necessária uma solução rápida e eficiente diante das necessidades do Brasil nesse momento. Recentemente, novos dados de importação passaram a ser divulgados pela SRFB, contemplando as seguintes informações:

Fonte: RFB (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/resultados/aduana/dados-estatisticos/importacao)

Entretanto, estes dados estão apresentados de forma pouco didática, de difícil compreensão e não contemplam informações primordiais às análises do setor privado, como dados de volume importado (kg, toneladas, etc) e origem das importações.

Portanto, a questão segue sem solução. A indisponibilidade de ferramentas de consulta às operações, há mais de seis meses, tem dificultado a apresentação de denúncias, facilitando que o mercado nacional fique exposto às irregularidades citadas. É necessária absoluta celeridade, seja no restabelecimento do sistema Siscori, seja na criação de um sistema similar de divulgação de dados do comércio exterior brasileiro, pois enquanto não houver uma solução, as irregularidades/ilegalidades continuam a ocorrer e aumentar, uma vez que certos da impunidade, os criminosos se tornaram cada vez mais ousados, causando cada vez mais prejuízo para o Erário e todo país.

Especialização dos juízes como recurso para a administração da justiça[1]

Fernando de Magalhães Furlan

Os juízes são responsáveis pela última palavra do Estado nas relações sociojurídicas numa democracia. Representam o derradeiro controle dos atos do próprio Estado e das relações entre particulares. Mas ao juiz não cabe somente interpretar e aplicar a lei, a ele se espera que corresponda à Justiça, ainda que dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.

A administração da Justiça é, portanto, não somente o melhor direito aplicado a situações concretas, mas o direito aplicado da forma a mais eficiente, rápida e consistente, por julgadores empenhados, informados e atualizados. Conferir justiça é mais do que a distribuir equitativamente, é mantê-la funcionando de forma qualificada, rápida e estável. Isso demanda diagnóstico, planejamento e execução.

O fato de que os recursos judiciais são escassos e não podem ser ampliados infinitamente apresenta um problema familiar: como fazer o melhor uso de uma “mercadoria limitada”[1]. A própria teoria econômica fornece uma resposta típica: a divisão do trabalho por meio da especialização do sistema judicial.

Este artigo trata brevemente de diferentes experiências internacionais na criação e operação de cortes especializadas em temas específicos, com ênfase nas matérias econômico-empresariais, bem como as melhores práticas e, naturalmente, a doutrina. O artigo busca contribuir com o debate sobre a criação e operação de varas federais especializadas em temas econômico-comerciais no Brasil e, eventualmente, no MERCOSUL e BRICS.

A Justiça especializada não é novidade. Na França[2], por exemplo, o Conselho de Estado (Conseil d’État) é um órgão do governo nacional francês que atua como consultor jurídico do Poder Executivo e como órgão jurisdicional, de última instância, para casos envolvendo o Estado francês, seja por atos administrativos ou como parte numa controvérsia. As decisões de juízes administrativos espalhados pelo país também poderão ser revistas pelo conselho. Foi criado em 1799 por Napoleão Bonaparte.

Além da Franca, a Inglaterra[3], a Bélgica[4] e a Alemanha[5], dentre vários outros países europeus, também adotam sistemas judiciais com variados graus de especialização[6]. Na verdade, de acordo com o relatório Doing Business[7] do Banco Mundial, trata-se de um fenômeno global, pois a criação de cortes especializadas foi uma das reformas mais comuns empreendidas no mundo entre 2005 e 2006, por exemplo.

Nos Estados Unidos, onde a organização do Poder Judiciário é competência exclusiva do Congresso, a última mudança legislativa criou, além da estrutura clássica dos juízes federais com jurisdição abrangente[8], os juízes administrativos, também conhecidos como juízes legislativos[9], com atuação limitada a áreas específicas e vinculados a agências e órgãos da Administração Pública Federal, com poderes quasi-judiciais e cujas decisões podem ser revistas pelos tribunais federais clássicos[10].

Na própria América Latina temos exemplos bastante recentes e bem-sucedidos como o do Tribunal da Concorrência do Chile, cujas decisões somente podem ser revistas pela Corte Suprema do país; e dos juizados especializados em defesa da concorrência e regulação das telecomunicações, no México, seguindo uma recente reforma constitucional.

Mesmo no Brasil, a Justiça também se especializou e as áreas mais conhecidas são a eleitoral, a militar e a do trabalho. Mas há também especializações em nível estadual como as varas de falência e recuperação judicial e as da Fazenda Pública. Mais recentemente também houve louváveis especializações como:

  1. Varas federais especializadas em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem ou ocultação de bens[11], famosas internacionalmente por conta, inclusive, do caso “Lava-Jato” e do juiz especializado Sergio Moro[12]; e as diversas varas empresariais[13] no estado do Rio de Janeiro;
  1. Varas federais especializadas[14] em propriedade industrial e intelectual, inclusive marcas e patentes, e benefícios previdenciários do regime geral (INSS), no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ, ES)[15];

III.     Varas empresariais no estado de Minas Gerais[16].

  1. Varas federais especializadas em matéria de saúde (3ª vara de Curitiba e 1ª, 2ª, 4ª e 5ª varas de Porto Alegre); além de outras iniciativas estratégicas importantes.

Tais iniciativas, em prol de melhor administrar a Justiça, ao menos no caso brasileiro, vêm ao encontro de pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP), em 2000, que demonstrou que 89% da classe empresarial brasileira avaliava a agilidade do Poder Judiciário como “ruim” ou “péssima”[17].

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) lançou em junho de 2016 a “Agenda Internacional da Indústria”[18], e dentre as mais importantes medidas defendidas está a “Desburocratização do Comércio Exterior – por meio do aumento da segurança jurídica e da redução dos tempos de decisões com varas especializadas em comércio exterior no Judiciário brasileiro”. Foi a primeira vez que a CNI elaborou um documento específico para ampliar a inserção internacional das empresas brasileiras.

O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), ao realizar estudo[19] em 2005 para avaliar a confiança da população brasileira em suas instituições, revelou que dentre quatorze organizações investigadas, o Poder Judiciário ocupava a sétima colocação, atrás da Igreja Católica, das Forças Armadas, dos jornais, das redes de televisão, dos sindicatos e dos advogados.

De acordo com Sadek[20], para “ilustrar o descontentamento social para com o serviço prestado pelo Poder Judiciário”, levantamentos de institutos especializados, como Vox Populi, Data Folha, IBOPE e Gallup, mostram que, em média, 70% dos entrevistados não confiam no sistema de justiça brasileiro.

Uma das conclusões de estudo sobre a criação de varas especializadas em Defesa Comercial, publicado em 2012[21], foi a de que havia necessidade de melhoria do nível de conhecimento técnico-jurídico especializado em temas de comércio exterior por parte dos julgadores federais.

A confusão entre conceitos fundamentais[22] como: (i) características, objetivos e limitações de cada um, além de diferenças decisivas entre o antidumping, as medidas compensatórias e as salvaguardas; e (ii) o momento determinante da incidência da norma para fins de cobrança de medidas aplicadas, por exemplo, foram as situações mais apontadas.

A especialização judicial é um fenômeno mundial que acompanha a tendência de especialização profissional não somente na seara jurídica, mas em todas as áreas do conhecimento humano.

A necessidade de especialização de juízes não é diferente daquela dos advogados e acadêmicos, que buscam se adaptar às exigências de uma sociedade crescentemente complexa e que depende da atividade jurisdicional do Estado para uma miríade de situações e soluções.

É uma questão que irá se repetir, com crescente frequência, à medida em que os “atrasos judiciais conspirarem com a maior complexidade social e tecnológica[23] para estimular cada vez mais cortes especializadas em áreas jurídicas amplamente diversificadas.

A crescente penetração de entidades e órgãos do Poder Executivo nas finanças, nos negócios e na economia, exatamente para contrabalançar as poderosas forças econômicas, exige uma crescente preocupação em tornar o controle sobre os atos administrativos realmente efetivo.

Posner considera que talvez o problema jurídico central do nosso tempo seja “harmonizar o ‘direito em ação’ com o ‘direito dos livros’[24]. A enorme atividade legislativa iniciada há cerca de uma geração se preocupava com questões intrincadas e técnicas. A doutrina geral que governava os serviços públicos era bastante simples. Contudo, as “mais sutis dificuldades foram encontradas na sua aplicação. Problemas de direito tornaram-se problemas de administração[25]. Foram, então, necessários novos instrumentos de especialização e precisão. O direito tinha que atender às exigências de uma era de especialização.

Para fazer frente a essas exigências de uma sociedade industrial mais complexa, as cortes ou tribunais especializados surgem como uma resposta possível para exercer o controle sobre os sucessivos campos de legislação emanada do Executivo. Para Root, “as questões jurídicas administradas por eles chegam a ser tão diversificadas que fazem nascer novos ramos do direito administrativo[26].

Afinal, às vezes se diz que os juízes implementam políticas públicas feitas por outros Poderes. Mas para muitas questões, o oposto é verdadeiro: os juízes fazem política pública e outras instituições respondem à sua liderança[27], pois as restrições de jurisdição, impostas pelo princípio da inércia judicial, podem limitar a capacidade de formulação de políticas públicas dos juízes, mas “não os impedem de participar ativamente do processo de sua construção[28]. As decisões judiciais podem “antecipar metas de políticas públicas e mostrar que a justiça individual pode também influenciá-las[29].

Contudo, se os juizados e tribunais crescerem somente de forma horizontal, haverá mais juízes e oficiais judiciais a entregar mais decisões, elaboradas sob as mesmas premissas e sobre as mesmas questões. Isso produzirá maior incoerência jurídica, dando origem a ainda mais litígios.

Embora o problema da incoerência possa ser resolvido por meio da introdução de novas esferas recursais, ainda assim haverá uma proliferação de decisões, mesmo que de forma vertical. Nesse contexto, “se os tribunais não podem crescer para fora, e se crescer para cima também não é útil, o que resta é a diferenciação[30].

Cortes especializadas aliviam substancialmente os encargos de outros juizados e tribunais generalistas. Medir o alívio na sobrecarga de trabalho não é, no entanto, simplesmente uma questão de contar processos deslocados de uma corte ou de um tribunal para outro. O que importa é a quantidade de tempo e esforço poupados aos juízes. O truque, portanto, é “encontrar os casos que impõem os maiores encargos de recursos (tempo e pessoal) sobre os tribunais, em comparação com a sua importância[31].

Cortes judiciais que desempenham bem a função de controle judicial e prestação jurisdicional são um “determinante indireto da performance econômica[32] de um país. Elas promovem a produção e distribuição eficientes de bens e serviços e asseguram “dois pré-requisitos essenciais das economias de mercado: a segurança dos direitos de propriedade e o cumprimento e execução de contratos[33]”.

A segurança dos direitos de propriedade reforça os incentivos à poupança e aos investimentos, protegendo os retornos e a sustentabilidade dessas atividades. O cumprimento adequado dos contratos induz os participantes do mercado a manter relações econômicas, “desencorajando comportamentos oportunistas[34] e diminuindo os “custos de transação”[35].

Nesse contexto, é mister estudar a relevância, a viabilidade e os resultados sociais líquidos da criação de varas especializadas em matérias “econômico-empresariais”.

Emprestar segurança jurídica e institucional, além de credibilidade e confiança a investidores caprichosos, num ambiente internacional crescentemente competitivo, não é tarefa simples. Todavia, os juízes estão excepcionalmente qualificados para realizar um equilíbrio dos princípios processuais e substantivos na aplicação dos diversos ramos do direito econômico e empresarial, devido a pelo menos três razões principais[36]:

a)      independência de outros Poderes e entidades do Estado, o que lhes permite imparcialidade e coerência na interpretação do direito aplicável;

b)      experiência no processo de discernimento do(s) objetivo(s) subjacente(s) da lei e reconciliação de seus objetivos fundamentais com a necessidade de sua aplicação justa e transparente;

c)      especialização na interpretação da lei.

Órgãos jurisdicionais especializados, com competência para julgar causas relativas a assuntos que demandam notória especializaçãoe que, em regra, não são objeto de maiores aprofundamentos, quer na graduação, quer nos próprios concursos e cursos da magistratura, podem indicar uma solução viável ao crescente e desafiante problema do volume e acúmulo de processos no Judiciário brasileiro, assim como noutras Jurisdições.

Nesse contexto, e considerando a abordagem multijurisdicional para a designação de varas federais especializadas no Brasil, nossa conclusão vai ao encontro daquelas do Conselho da Justiça Federal (CJF)[37], ou seja:

a)      pela redefinição da organização judiciária da Justiça Federal, de modo a estabelecer uma ou mais varas com competência para resolver questões relacionadas à defesa da concorrência, comércio exterior[38], regulação[39], arbitragem[40][41] e mediação[42] e proteção do consumidor (ações coletivas e ações civis públicas). Assim, todas as ações ajuizadas na Justiça Federal de determinada região, independentemente da competência geográfica, seriam distribuídas à(s) vara(s) especializada(s) em temas econômico-difusos, conforme listados acima; ou, alternativamente;

b)      pela especialização de uma ou mais vara(s) nas capitais, em temas de defesa da concorrência, comércio exterior, regulação, arbitragem e mediação e proteção do consumidor. Essa(s) vara(s), contudo, manteria(m) as suas competências atuais, agregando estas novas competências jurisdicionais especializadas. Os processos dessas áreas especializadas seriam distribuídos às varas com preferência, e, havendo espaço para distribuição suplementar, se seguiriam os processos relativos às prioridades definidas na estratégia nacional do Judiciário, ou seja, as ações coletivas, as ações civis públicas e as ações de improbidade administrativa, nessa ordem.

Essa(s) vara(s) especializada(s) teria(m) atribuição preferencial para o julgamento de ações conforme os temas elencados acima, isto é, vara(s) específica(s) para a(s) qual(is) seriam distribuídos todos os processos que tratem de concorrência, comércio exterior, regulação, arbitragem e mediação e proteção do consumidor.

Havendo espaço para distribuição suplementar, tal(is) vara(s) também receberia(m) ações coletivas e ações civis públicas sobre outros temas previstos na legislação, bem como, eventualmente, as ações por improbidade administrativa.

Essa abordagem não pressuporia necessariamente a criação, com ônus, de nova(s) vara(s) na Justiça Federal, mas simplesmente uma reorganização e reestruturação de varas para que passe(m), alguma(s) dela(s), a atuar preferencialmente nessas áreas específicas, embora sem exclusividade.

É muito importante que se tenha cuidado, contudo, para que, ao incluir as ações civis públicas, as ações coletivas e as ações por improbidade administrativa na competência das varas especializadas, não acabem essas últimas por engolir aquelas competências que foram inicialmente propostas[43] e que têm o condão de melhorar o ambiente de negócios, a segurança jurídica, enfim, a estabilidade e credibilidade necessárias à atração e manutenção de investimentos, ao desenvolvimento econômico e, consequentemente ao bem-estar geral da sociedade.

A correta divisão do trabalho, por si só, é capaz de contribuir muito para promover a eficiência. A limitação de casos atribuídos a juízes especializados e o consequente aprofundamento de conhecimentos certamente produzirão decisões mais expeditas e sólidas.

Por fim, uma alternativa vai ao encontro do que já se faz em países como os Estados Unidos[44] e a Nova Zelândia[45], por exemplo. Trata-se da designação de panels (turmas ou câmaras) de juízes de primeiro grau que se reúnem periodicamente, em colegiado, para discutir casos semelhantes, esclarecer questões, aproximar interpretações e, possivelmente, apreciar alguns tipos de recursos, aliviando a 2ª instância, sem, contudo, perder o foco numa adjudicação especializada.

Em certa medida, essas eventuais câmaras especializadas da 1ª instância da Justiça federal se aproximariam das turmas julgadoras dos juizados especiais federais. Todavia, com competências em razão da matéria, e não em razão do valor.

Tais câmaras especializadas seriam integradas por juízes federais de 1º grau, com experiência profissional e conhecimentos teóricos suficientes e cujas atribuições singulares se concentrariam, preferencialmente, em casos envolvendo defesa da concorrência, comércio exterior[46], regulação[47], arbitragem[48][49] e mediação[50] e proteção do consumidor (ações coletivas e ações civis públicas). Não havendo volume suficiente (consoante média ponderada a ser atribuída) nessas áreas especializadas, seriam distribuídos também processos relativos às prioridades definidas na estratégia nacional do Judiciário, ou seja, as ações coletivas, as ações civis públicas e as ações de improbidade administrativa.

Dada a natureza complexa do direito da concorrência, do comércio internacional e da regulação, por exemplo – considerada a estreita relação entre os princípios jurídicos e econômicos –, os juízes devem ter experiência e conhecimentos especializados na interpretação desses ramos do direito, “a fim de equilibrar duas das suas principais funções, nomeadamente assegurar o devido processo legal e aplicar, quando apropriado, princípios econômicos substantivos no seu raciocínio[51]. Por conseguinte, a compreensão dos fatos e conceitos econômicos na interpretação do direito constitui uma parte importante da aplicação efetiva do direito pelo Poder Judiciário.

Ao resistir à especialização, o Judiciário pode vir a impor custos significativos à sociedade. É provável, portanto, que não seja simplesmente uma questão de implementação da especialização judicial, mas de quanto tempo o público permitirá que a falta de especialização continue no Judiciário. À medida que as despesas do Estado aumentam, as pressões sobre o Judiciário para conter custos e administrar eficientemente os recursos judiciais também crescem.

Novas “demandas de serviços e desafios organizacionais”[52] na prestação da Justiça criaram a necessidade de um planejamento mais sistemático e integrador a longo prazo. Para enfrentar esse ambiente cada vez mais complexo e dinâmico, os sistemas judiciais têm-se voltado para ferramentas e métodos de planejamento estratégico preestabelecidos.

Questão importante e fulcral para o bom funcionamento da Justiça especializada, e da Justiça em geral, é a concepção, o desenvolvimento e a constante evolução de sistemas integrados de informação, bancos de dados, relatórios, análises e estudos sobre a realidade e os números da Justiça brasileira.

A carência de ferramentas de diagnóstico e análise da situação do Judiciário torna muito difícil, senão impossível, determinar a sua melhor e mais eficaz estrutura, a mais consentânea com os crescentes desafios de tornar fluida a economia e garantir os interesses difusos.

Entretanto, parecem faltar instrumentos à Justiça Federal brasileira para um diagnóstico adequado do quadro atual de ações envolvendo temas como concorrência, regulação e comércio exterior, uma vez que o cadastramento, a autuação e a identificação dos processos por tema ou área ainda seriam falhos.

Conforme afirmado pela presidência do TRF da 1ª Região: “os parâmetros de pesquisa indicados não são suficientes para gerar um diagnóstico próximo da realidade. Inúmeros processos envolvendo agências reguladoras deixaram de ser relacionados, porque, na maioria das vezes, são autuados na classe ação ordinária/outras, sem levar em consideração qualquer outra especificidade. Sem falar nos mandados de segurança”.

Assim, resta mais dificultoso o labor de colheita de informações para embasar uma análise apropriada e conclusões judiciosas sobre a melhor, mais eficiente e sustentável estrutura de atuação do Judiciário, em suas mais diversas frentes.

Tão importante quanto a criação desse aparato para se conhecer, diagnosticar e melhorar a prestação jurisdicional é estabelecer mecanismos de intercâmbio de informações, estatísticas e análises entre instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho da Justiça Federal (CJF), por exemplo.

Como medida de efetividade das propostas aqui apresentadas e estudadas, temos que, em 2022, a situação das varas federais especializadas em Direito da Concorrência, Regulação e Comércio Internacional é a seguinte:

–  O Tribunal Regional da 1ª Região tem 2 varas (a 14ª e a 20ª, ambas na Jurisdição de Brasília-DF) cíveis especializadas nos temas de concorrência e comércio internacional; e competência concorrente nos demais temas residuais de natureza cível;

– O Tribunal Regional da 2ª Região tem 3 varas especializadas (a 1ª, a 2ª e a 6ª), na Seção Judiciária do Espírito Santo; e 2 varas especializadas (a 16ª e a 29ª), na Seção Judiciária do Rio de Janeiro;

– O Tribunal Regional Federal da 3ª Região criou, em 2017, um grupo de trabalho para produzir um relatório sobre a criação de vara(s) especializada(s) em direito da concorrência e em comércio exterior. O relatório, apresentado recentemente, é favorável à designação de vara(s) especializada(s) em concorrência e comércio internacional.


[1] JORDAN, Ellen R. Specialized Courts: A Choice? Northwestern University Law Review, 1981, vol. 76, nº S. 76 Nw. U. L. Rev. 745 1981-1982. Disponível em: Pence Law Library, Washington College of Law, 2017.

[2] A maioria dos juizados especializados no sistema jurisdicional francês é abrangida pela categoria geral de tribunais administrativos – em vez de judiciais – dispostos numa estrutura hierárquica, cujo ápice é o Conselho de Estado. As cortes administrativas decidem questões envolvendo contratos governamentais, ações judiciais contra o governo, controvérsias fiscais selecionadas e apelações de decisões emitidas por órgãos administrativos. Embora tais ações tipicamente envolvam disputas entre o governo e particulares ou corporações, algumas envolvem disputas entre departamentos governamentais independentes. As distinções jurisdicionais entre os tribunais administrativos e judiciais não são tão precisas como se pode suspeitar. Existem tribunais judiciais especiais para resolver questões trabalhistas, previdenciárias e “rurais”. Além disso, os tribunais judiciais lidam com litígios envolvendo impostos indiretos, condenações de terras e responsabilidade municipal em casos envolvendo motins ou outros distúrbios públicos.

[3] Um dos mais antigos e mais renomados tribunais comerciais, o Tribunal de Comércio, um dos Tribunais Reais de Justiça em Londres, lida com casos complexos decorrentes de disputas comerciais, tanto nacionais como internacionais. Há especial ênfase no comércio internacional, nas atividades financeira e bancária, commodities e arbitragem. Os Tribunais Reais de Justiça incluem vários tribunais afiliados, incluindo o Tribunal do Almirantado, a Divisão da Chancelaria, o Tribunal Mercantil de Londres e o Tribunal de Construção e Tecnologia. No final de 2011 foram inauguradas as moderníssimas novas instalações do Tribunal de Comércio de Londres, com o objetivo de igualar a reputação de classe mundial do Reino Unido para o direito empresarial que atrai disputas de todo o mundo. A nova “super corte” proporciona 29 salas de julgamento, 12 salas de audiência, 44 salas de consulta pública e instalações de espera para as partes envolvidas em processos. Espera-se que isso consolide o trabalho desenvolvido pela Divisão de Chancelaria, pelo Tribunal de Comércio e pelo Tribunal de Tecnologia e Construção. A corte atrai para si todos os casos relacionados às empresas e aos negócios dos Tribunais Reais de Justiça, tais como marcas e patentes, processos de construção técnica, casos de almirantado (detenção de navios) e litígios contratuais internacionais. Para fins administrativos, o Tribunal de Comércio de Londres permanecerá ligado ao Grupo de Tribunais Reais de Justiça.

[4] Os tribunais comerciais especializados têm competência em litígios comerciais envolvendo valores acima de cinquenta mil euros. Um tribunal especializado em arbitragem tem jurisdição para resolver os conflitos entre (i) leis promulgadas pelo Parlamento Nacional e decretos ratificados pelos legislativos locais ou regionais/provinciais, (ii) entre decretos promulgados por vários legislativos locais ou regionais/provinciais e (iii) entre essas leis e decretos e dispositivos selecionados da Constituição.

[5] Aproximadamente 25% dos juízes do sistema judicial alemão atuam em sistemas judiciais especializados em matéria de direito administrativo, tributário e fiscal, trabalhista e previdenciário. Os tribunais do trabalho têm jurisdição em litígios entre empregadores e empregados que decorrem de relações de trabalho, questões de negociação coletiva e codeterminação empresarial na medida que as relações de trabalho estão envolvidas. Os tribunais administrativos têm jurisdição sobre questões de direito administrativo, tais como zoneamento, imigração, licenças estaduais – inclusive aquelas sob regulamentação de comércio exterior. A competência dos tribunais fiscais inclui questões fiscais gerais e estende-se aos direitos aduaneiros e outros impostos que envolvem o comércio internacional e exterior. Os tribunais sociais exercem jurisdição em litígios que se enquadram na legislação social, como a seguridade social e os cuidados públicos obrigatórios de saúde.

[6] ZIMMER, Markus B. Overview of Specialized Courts. International Journal for Court Administration, August 2009. Disponível em: <http://www.iacajournal.org/articles/abstract/10.18352/ijca.111/>. Acesso em: 23/05/2017.

[7] World Bank. Doing Business 2007 – How to reform. Disponível em: <http://www.doingbusiness.org/reports/global-reports/doing-business-2007>. Acesso em: 23/05/2017.

[8] Juízes do artigo III da Constituição Estadunidense.

[9] Juízes do artigo I da Constituição dos Estados Unidos da América, os Administrative Law Judges (ALJs).

[10] Tribunais de Apelação dos Estados Unidos (United States Courts of Appeals).

[11] Hoje no Brasil já são 27 varas federais especializadas em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem ou ocultação de bens. Elas estão em 14 estados e no Distrito Federal. Em outros 12 estados, os casos denunciados pelo Ministério Público ainda são distribuídos entre varas criminais comuns. São Paulo concentra 2.968 processos desse tipo em andamento; Mato Grosso do Sul tem 613; Paraná, 331; Ceará, 314; Rio de Janeiro; 302 processos; e o DF, 91.

[12] Sérgio Fernando Moro, juiz federal da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba/PR, especializada em crimes financeiros, de lavagem de dinheiro e praticados por grupos criminosos organizados. Trabalhou como Juiz instrutor no Supremo Tribunal Federal durante o ano de 2012. Cursou o Program of Instruction for Lawyers na Harvard Law School em julho de 1998 e possui título de mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Participou do International Visitors Program organizado em 2007 pelo Departamento de Estado norte-americano com visitas a agências e instituições dos EUA encarregadas da prevenção e do combate à lavagem de dinheiro. É Professor Adjunto de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

[13] Atualmente, há na comarca da capital do estado do Rio de Janeiro sete varas empresariais, que concentram ações atinentes à arbitragem, ações coletivas relativas ao Direito do Consumidor, falências e recuperação judicial, execuções por quantia certa contra devedor insolvente, direito societário, propriedade industrial e nome comercial; causas em que a Bolsa de Valores for parte ou interessada e Direito Marítimo. O desafio da Justiça fluminense nessas varas especializadas, de acordo com o advogado carioca Felisberto Caldeira Brant, entrevistado pelo autor em 7 de abril de 2017, é que há litígios complexos, em que fica difícil definir, com rapidez e precisão, se a competência é das varas empresariais ou das varas cíveis. Tanto mais, quando a competência é especializada, e, portanto, deve ser interpretada restritivamente. Tudo o que não estiver contido nos incisos, alíneas e números da norma que definiu a competência especializada deve, obrigatoriamente, ser remetido às varas cíveis. De acordo com o causídico carioca, “nada muito grave, pois o juiz pode enviar de ofício para outra vara (especializada ou não), mas quando se trata de ‘guerra de liminares’, um erro pode ser fatal”.

[14] 9ª, 13ª, 25ª e 31ª Varas Federais no Rio de Janeiro-RJ.

[15] Artigo 25 da Resolução 42/2011 do TRF2.

[16] Há hoje duas varas empresariais na comarca de Belo Horizonte, com competência para processar e julgar os feitos relativos às seguintes matérias: falência, recuperação judicial, resolução, dissolução e liquidação de sociedades empresariais e seus respectivos incidentes; homologação de plano de recuperação extrajudicial; litígios societários concernentes à constituição, deliberação, transformação, incorporação, fusão e cisão de sociedade empresária; liquidação extrajudicial ou ordinária de sociedade empresária; registro do comércio e propriedade industrial; incorporação de créditos ao patrimônio da massa falida; direito de retirada de que trata o art. 137 da Lei federal nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; as ações, e seus respectivos incidentes, de execução específica de cláusula compromissória, proposta com fundamento no art. 7º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996; os pedidos de cumprimento ou execução de sentença arbitral, promovidos na forma do art. 475-I e seguintes da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que institui o Código de Processo Civil, bem como as impugnações oferecidas pelo executado; as ações para decretação da nulidade ou anulação de sentença arbitral, propostas com base no art. 33 da Lei nº 9.307, de 1996.

[17] SADEK, Maria Tereza. Judiciário e Sociedade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 34.

[18] CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Agenda Internacional da Indústria 2016. Disponível em: <https://www.portaldaindustria.com.br/agenciacni/noticias/2016/06/cni-lanca-agenda-internacional-com-propostas-para-ampliar-comercio-exterior/>. Acesso em: 16 maio 2017.

[19] Idem, p. 35. Apud CABRAL, Marcelo Malizia. Administração Judiciária: caminho para a construção de um Judiciário mais eficiente e legítimo, 2010. Disponível em: <https://m.migalhas.com.br/depeso/109777/administracao-judiciaria-caminho-para-a-construcao-de-um-judiciario>. Acesso em: 27/05/2017.

[20] Ibidem, p. 13. Apud CABRAL, Marcelo Malizia, Op. cit.

[21] LIMA-CAMPOS, Aluísio de; KRAMER, Cynthia. Criação de Varas Especializadas em defesa comercial: uma necessidade para o comércio exterior brasileiro. Revista do IBRAC, São Paulo, ano 19-22, jul-dez. 2012.

[22] ÁRABE NETO, Abrão M.; BONOMO, Diego Z. Tribunal especializado em comércio exterior. Valor Econômico, 03/07/2012. Disponível em: <https://www.valor.com.br/imprimir/noticia/2735934/brasil/2735934/tri>. Acesso em: 27/05/2017.

[23] LEGOMSKY, Stephen H. Specialized justice: courts, administrative tribunals, and a cross-national theory of specialization. New York: Oxford University Press, 1990, p. 4.

[24] POSNER, Richard A. Federal Courts: crisis and reform. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

[25] FRANKFURTER, Felix; LANDIS, James M. The business of the Supreme Court: a study in the federal judicial system. New York: The Macmillan Company, 1972, p. 146.

[26] ROOT, Elihu. Public Service by the Bar. 41 AM. Bar Assn. Rep. 355, 368.

[27] VAN HORN, C. E.; BAUMER, D. C.; GORMLEY, W. T. Politics and Public Policy. 3rd. CQ Press: Washington, DC, 2001. Vol. xiii, 366. p. 183.

[28] EPSTEIN, L.; KNIGHT, J. The Choices Justices Make. CQ Press: Washington, DC, 1998. Vol. xviii. p. 200.

[29] CHRISTENSEN, Robert K.; KREIS, Anthony M. Courts and Policy in the U.S. Encyclopedia of Public Administration and Public Policy, Third Edition, 2015. DOI: 10.1081/E-EPAP3-120053550, p. 707.

[30] MEADOR, Daniel J. An Appellate Court Dilemma and a Solution Through Subject Matter Organization, 16 U. Mich. J.L. Reform 471, 475-82 (1983).

[31] BRUFF, Harold H. Specialized Courts in Administrative Law. HeinOnline: 43 Admin. L. Rev. 329, 199. Available Through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[32] OECD Economic Surveys: Mexico. 2013. OECD Publishing, Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/eco_surveys-mex-2013-en>. Acesso em: 28/05/2017.

[33] WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanics of Governance. New York: Oxford University Press, 1996.

[34] O oportunismo é definido como a busca de interesses próprios com astúcia. Inclui formas flagrantes como mentir, furtar e trapacear, assim como formas sutis de engano, principalmente a divulgação incompleta ou distorcida de informação.

[35] Custos de transação são custos incorridos na realização de um intercâmbio econômico, isto é, o custo de participação em um mercado.

[36] OCDE. Judicial enforcement of competition law. Policy Roundtables, 1996.

[37] Sugestão nº 3 e, alternativamente, da nº 1, ambas do Conselho da Justiça Federal (CJF). Processo nº CJF-PPP-2016/00010, cujo objeto é: “Proposta de criação e instalação de varas federais especializadas em Direito da Concorrência e Comércio Internacional”.

[38] Defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas), licenças de importação, regimes de origem, financiamento e garantia às exportações e tarifas.

[39] Sistema Financeiro Nacional (BACEN); valores mobiliários e mercado de capitais (CVM); energia elétrica (ANEEL); telecomunicações (ANATEL); petróleo, gás natural e biocombustíveis (ANP); recursos hídricos (ANA); mineração (ANM – antigo DNPM); mercado audiovisual (ANCINE); saúde suplementar (ANS); fármacos e vigilância sanitária (ANVISA); aviação civil (ANAC); transportes terrestres (ANTT) e aquaviários (ANTAQ).

[40] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem.

[41] Lei nº 13.129, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a possibilidade de a administração pública direta e indireta utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[42] Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

[43] Concorrência, regulação, comércio exterior, arbitragem e mediação e proteção do consumidor.

[44] UNAH, Isaac. Op. cit., p. 11.

[45] LEGOMSKY, Stephen H. Op. cit., p. 43.

[46] Defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas), licenças de importação, regimes de origem, financiamento e garantia às exportações e tarifas.

[47] Sistema Financeiro Nacional (BACEN); valores mobiliários e mercado de capitais (CVM); energia elétrica (ANEEL); telecomunicações (ANATEL); petróleo, gás natural e biocombustíveis (ANP); recursos hídricos (ANA); mineração (ANM – antigo DNPM); mercado audiovisual (ANCINE); saúde suplementar (ANS); fármacos e vigilância sanitária (ANVISA); aviação civil (ANAC); transportes terrestres (ANTT) e aquaviários (ANTAQ).

[48] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de1996. Dispõe sobre a arbitragem.

[49] Lei nº 13.129, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a possibilidade de a administração pública direta e indireta utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[50] Lei nº 13.140, de 26 de junho 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

[51] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialised and Generalist Courts), 2016.

[52] BOTCH. Deborah A. Court System Strategic Planning. Encyclopedia of Public Administration and Public Policy, Third Edition DOI: 10.1081/E-EPAP3-120011040, 2015, p. 691.


[1] Excerto do livro “Especialização Judicial: uma Solução Econômica Para a Administrativo da Justiça”. FURLAN, Fernando de M. 1ª ed. Ed. Singular, São Paulo, 2017. ISBN-13: 9788586626951.

Novas regras de comércio exterior promovem o alinhamento da legislação brasileira a acordos multilaterais de comércio e resultam em benefícios econômicos

Fernanda Manzano Sayeg & Karla Borges Furlaneto

No mês de junho de 2022, foram publicadas importantes alterações legislativas relacionadas a comércio exterior. Em 8 de junho de 2022, foi publicado o Decreto nº 11.090, que alterou o artigo 77, do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009 ao determinar que devem ser excluídos do valor aduaneiro os gastos incorridos no território nacional e destacados no custo do transporte, comumente denominados de capatazia. Já em 24 de junho, foi publicada a Instrução Normativa RFB nº 2090, de 22 de junho de 2022, que atualizou as regras de controle e valoração aduaneira de mercadorias e previu expressamente a exclusão da capatazia do valor aduaneiro.

As duas publicações foram comemoradas por entidades de classe, importadores e estudiosos do comércio internacional e do direito aduaneiro. Afinal, a legalidade da inclusão das despesas relativas à carga, à descarga e ao manuseio das mercadorias importadas, também conhecidas como “despesas de capatazia”, na base de cálculo do imposto de importação estava sendo questionada judicialmente há anos.

Com a publicação do Decreto nº 11.090/2022, de iniciativa do Ministério da Economia e motivada pela necessidade de redução do preço de bens essenciais importados em um cenário de alta de preços e inflação, prevaleceu a tese defendida pelos importadores e estudiosos do direito do comércio internacional, que havia sido rejeitada em 2020 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entendimento equivocado que passamos a esclarecer.

As normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), foro de caráter multilateral do qual o Brasil é parte, estabelecem parâmetros e critérios para o estabelecimento dos tributos que podem ser cobrados na importação de mercadorias.

Nesta linha, tanto o Poder Executivo, como o Legislativo brasileiro devem se ater ao que diz as normas da OMC para determinar quais itens integram a base de cálculo do imposto de importação. Em específico, ao Acordo sobre Valoração Aduaneira (AVA) do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) determina quais valores compõem o valor aduaneiro de um produto, ou seja, o que pode ser acrescentado ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas.

O AVA visa a criar um sistema equitativo, uniforme e neutro para a valoração de mercadorias para fins aduaneiros, que exclua a utilização de valores aduaneiros arbitrários ou fictícios. Recordando que, o imposto de importação tem como base de cálculo o valor aduaneiro da mercadoria importada. Desta forma, o AVA estabelece que, sempre que possível, a base de valoração de mercadorias para fins aduaneiros deve ser o valor de transação das mercadorias a serem valoradas.

O artigo 8o do AVA autoriza a inclusão dos gastos relativos ao carregamento descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação. Contudo, não há previsão de inclusão das despesas incorridas após a chegada do navio no porto, a exemplo do descarregamento e manuseio da mercadoria, por se tratarem de despesas incorridas após a chegada da mercadoria até o porto ou aeroporto alfandegado de descarga ou ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro.

No Brasil, o AVA foi internalizado à legislação pátria pelo Decreto Executivo nº 1.355/94 e, até 1º de julho de 2022, era regulamentado pela Instrução Normativa (IN) SRF nº 327/03. Contrariamente ao AVA, o artigo 4º, § 3º, da IN SRF nº 327/03 determinava que os gastos relativos à descarga da mercadoria do veículo de transporte internacional no território nacional serão incluídos no valor aduaneiro, independentemente da responsabilidade pelo ônus financeiro e da denominação adotada.

Em outras palavras, a IN nº 327/03 desconsiderava que somente integram o valor aduaneiro os gastos de carga e descarga associados ao transporte da mercadoria até o porto ou o aeroporto e determinava que fossem incluídos os gastos de descarga de mercadoria após a entrada no porto/aeroporto, contrariando o texto do artigo 8o do AVA.

A esse respeito, é importante ressaltar que o AVA e demais acordos da OMC são aplicáveis no Brasil e devem prevalecer sobre a legislação tributária interna, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, assim como dos artigos 96 e 98 do Código Tributário Nacional (CTN).

Logo, teve início uma relevante discussão sobre a legalidade da inclusão dos custos de descarga da mercadoria na composição do valor aduaneiro no Poder Judiciário, que chegou ao STJ em 2014. Muitos anos depois, em abril de 2020, a Primeira Seção desse tribunal superior definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, que os serviços de capatazia deveriam ser incluídos na base de cálculo do Imposto de Importação.

Segundo o ministro Francisco Falcão, cujo voto prevaleceu no julgamento, o GATT estabelece normas para a determinação de valor para fins alfandegários, prevendo a inclusão no valor aduaneiro dos gastos relativos à carga, descarga e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação.

Assim, segundo a interpretação do STJ, tais serviços integrariam a atividade de capatazia, de acordo com a Lei nº 12.815/2013, editando a instrução normativa RFB explicitando que eles deveriam fazer parte do valor aduaneiro.

Desse modo, desde 2020, os pedidos de exclusão dos serviços da base de cálculo do imposto de importação estavam sendo julgados improcedentes, não obstante a flagrante violação às normas internacionais e os prejuízos econômicos que essa medida trouxe ao país.

Em estudo de 2020, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) projetou que o fim da inclusão da capatazia no valor aduaneiro contribuiria para um acréscimo de R$ 3,6 bilhões ao PIB no acumulado dos próximos 20 anos. No setor de alimentação, esse valor seria de R$ 2,4 bilhões e, no de siderurgia e construção, de R$ 1,8 bilhão. Outros setores que elevariam sua contribuição para o crescimento do PIB seriam os de têxtil e calçados, em R$ 1,4 bilhão; eletroeletrônicos, em R$ 861 milhões; químicos com R$ 832 milhões; perfumaria, cosméticos e farmacêuticos, R$ 824 milhões; petróleo, etanol e outros R$ 523 milhões; e madeira, papel e celulose, com R$ 173 milhões.

O referido estudo elencou, ainda, os 20 produtos que teriam maiores ganhos na produção até 2040 caso fosse retirado o custo da capatazia portuária. Em valores, os produtos com maiores altas na produção seriam automóveis e utilitários, com R$ 4 bilhões, e semiacabados e outros aços, com R$ 2,3 bilhões. Máquinas e equipamentos e vestuário ficariam em terceiro e quarto lugar, com R$ 2,2 bilhões e R$ 1,9 bilhão, respectivamente.

Segundo as projeções feitas, a indústria de transformação exportaria R$ 11 bilhões a mais, no acumulado dos próximos 20 anos, com a retirada da capatazia do custo aduaneiro. Os números mostram que o setor de construção e siderurgia teria o maior ganho em exportações nesse período, de R$ 3,5 bilhões ou 4,8%. Para o setor químico, o ganho seria de R$ 2,3 bilhões ou 9,8%. O setor de bens de capital seria o terceiro com o maior ganho em exportações, de R$ 1,7 bilhão ou 1,9%, seguido do de alimentação, de R$ 1,6 bilhão ou 1,3%.

Fato é, que as alterações legislativas em questão possibilitarão uma importante redução no valor pago por importadores a título de imposto de importação, com impactos positivos na competitividade e na integração do Brasil aos fluxos globais de comércio. Afinal, a inclusão dessa taxa contribuía para inflar o custo de importação, na contramão da agenda de competitividade e da melhoria do ambiente de negócios no Brasil, onerando a produção nacional, inclusive para a exportação.

Da mesma forma, também representa o alinhamento da legislação aduaneira brasileira aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil junto aos parceiros do Mercosul e à Organização Mundial do Comércio. Exatamente em linha com o que a sociedade precisa, de uma mais competitivo e mais integrado ao comércio internacional.

O califa está de olho no decote dela: as implicações do caso Alibaba para a concorrência em mercados digitais

Angelo Prata de Carvalho

As permanentes discussões sobre o futuro do Direito da Concorrência e as disputas dogmáticas e narrativas quanto às suas finalidades têm há muito dominado a literatura antitruste, que constantemente se debruça sobre a dicotomia entre as premissas metodológicas tradicionalmente fixadas pelo direito norte-americano – baseadas, em larga medida, nos fundamentos estruturados pela Escola de Chicago e na teoria econômica neoclássica – e os entendimentos dissonantes advindos da Europa – com postura considerada mais intervencionista, na medida em que tende a limitar a concentração e a tomar decisões mais rigorosas no âmbito do controle de condutas.

No entanto, com a crescente integração da economia global, e especialmente com a avassaladora influência transnacional das chamadas big techs ou gigantes da internet – o que tem levantado preocupações relevantes inclusive nos Estados Unidos, notadamente com as autoridades nomeadas pelo governo Biden, marcadamente partidárias de visão crítica quanto às perspectivas dominantes que permitiram o grande movimento de concentração econômica das últimas décadas –, diversas vozes relevantes têm inclusive apontado ou para a necessidade de convergência de abordagens (perspectiva que também é potencialmente problemática, mas que será abordada em outra oportunidade), ou ao menos para problemas compartilhados que mereceriam a construção soluções holísticas. Pode-se mencionar, nesse sentido, recente discurso no qual a Comissária Europeia para a Concorrência Margrethe Vestager expressamente afirmou que mercados abertos e justos são um objetivo compartilhado por ambos os lados do Atlântico, de tal maneira que haveria forte convergência quanto às preocupações das duas jurisdições[1].

Por mais emocionantes que possam ser as disputas pelo protagonismo da defesa da concorrência, notadamente no que se refere aos mercados digitais, e por mais heroicas que sejam as iniciativas europeias e norte-americanas pelo controle do poderio econômico das big techs, tal narrativa insere o restante do mundo na plateia da exibição de um filme com legendas mal traduzidas. Causa inclusive alguma perplexidade que, apesar de os gigantes dos mercados digitais projetarem seu poder sobre todas as demais jurisdições, estas parecem estar, parafraseando-se a famosa carta de Aristides Lobo, assistindo bestializadas a tal processo, atônitas e surpresas, sem saber o que significa, acreditando seriamente estarem acompanhando mais um desfile de ideias.

No entanto, não somente há outros Direitos da Concorrência distintos daqueles ao norte, como há posturas firmes que desafiam diversas das premissas lá estabelecidas. Exemplo disso é o que vem ocorrendo na China, que desencadeou processo resumido pela manifestação do presidente Xi Jinping após sessão plenária da Comissão de Inspeção Disciplinar do Partido Comunista Chinês, segundo o qual “esforços deverão ser tomados para investigar e punir o comportamento corrupto por trás da expansão desordenada do capital e do monopólio das plataformas, e para cortar a ligação entre poder e capital”[2].

O pronunciamento vem na esteira da avassaladora condenação da gigante chinesa de tecnologia Alibaba, condenada em multa equivalente a 2.8 bilhões de dólares, em 2021, pela Administração Estatal de Regulação do Mercado da China (conhecida pela sigla em inglês SAMR), pela prática de conduta anticompetitiva consistente na criação de estrutura de incentivos que forçava vendedores a comercializarem seus produtos exclusivamente na plataforma da empresa. Conforme explica Sandra Colino, a rigorosa postura da autoridade concorrencial chinesa não consiste propriamente no ingresso do país asiático no movimento global de combate às big techs, mas no resultado de uma estratégia sui generis de controle do poder econômico, fundada na ideia de “observar e então agir” (observe-then-act)[3]. O caso da Alibaba, nesse sentido, é lapidar: após longo período de desenfreado e descontrolado crescimento, no qual o conglomerado liderado por Jack Ma conquistou habilmente mercados dominados por agentes ligados ao governo central (como ocorreu com a Alipay, braço financeiro do grupo Alibaba que rapidamente ocupou relevantes espaços dos pouco eficientes bancos chineses), vem sendo mais rigorosamente controlado pelas autoridades de regulação do mercado.

A distinção, aqui, não é meramente política e tampouco se trata tão somente de um novo golpe em uma complexa disputa por espaços de poder, mas diz respeito a uma forma particular de visualizar-se o desenvolvimento e a proteção de mercados. Isso porque, como explica Lillian Li, existe uma relação simbiótica entre as instituições públicas chinesas tradicionais e as instituições digitais privadas em ascensão, de tal maneira que a tecnologia se desenvolve da China a partir da premissa de que se trata de um país em desenvolvimento com instituições em desenvolvimento, de tal maneira que a tecnologia não está aprimorando instituições já existentes, mas verdadeiramente criando-as[4]. Trata-se, em síntese, segundo a autora, do processo enunciado por Deng Xiaoping ao propagar que “é preciso cruzar o rio sentindo as pedras sob os pés”: diante da ausência de consenso sobre a melhor forma de lidar com a inovação, pode ser interessante verificar como os agentes econômicos se comportam para então reequilibrar os mercados quando necessário.

Considerando que a inovação franca passou a dar lugar a uma série de abusos – como é o caso da conduta anticompetitiva perpetrada pela Alibaba, dentre outros exemplos[5] – o arcabouço regulatório e concorrencial chinês vem sendo robustecido com soluções originais, como a recente recomendação da Administração do Ciberespaço da China que vedou a utilização de algoritmos para a imposição de restrições indevidas sobre provedores da internet que obstem o regular funcionamento dos serviços informacionais ou produzam condutas monopolistas ou anticompetitivas[6].

            A postura adotada pela China serve, assim, para questionar diretamente o recorrente truísmo segundo o qual as autoridades concorrenciais dos Estados Unidos teriam historicamente adotado postura mais contida em razão da circunstância de que os gigantes da internet encontram-se sediados em território americano, ao passo que a União Europeia teria a possibilidade de tomar decisões mais arrojadas por não seguir as mesmas tendências protecionistas – e, ao contrário, contaria com incentivos para proteger-se da dominância das big techs norte-americanas. Evidentemente que não se ignora que tanto Estados Unidos quanto União Europeia podem ser movidos por anseios protecionistas ou outras finalidades políticas (tendo em vista que o Direito da Concorrência é, invariavelmente, político).

No entanto, igualmente não se pode deixar de levar em consideração o fato de que se trata de posturas teórico-ideológicas em disputa sobre o Direito da Concorrência que dificilmente serão verdadeiramente efetivas (especialmente se carregarem o ônus de promover a convergência) se não dialogarem com as idiossincrasias daqueles que terão de segurar o Tchan.


[1] https://ec.europa.eu/commission/commissioners/2019-2024/vestager/announcements/speech-evp-margrethe-vestager-american-chamber-commerces-transatlantic-business-works-summit-europes_en.

[2] http://www.news.cn/politics/2022-01/20/c_1128283479.htm.

[3] COLINO, Sandra Marco. The case against Alibaba in China and its wider policy repercussions. Journal of Antitrust Enforcement. v. 10, pp. 217-229, 2022.

[4] https://lillianli.substack.com/p/let-the-bullets-fly-for-a-while

[5] Ver: https://www.cigionline.org/articles/how-antitrust-facilitates-chinas-goal-to-achieve-technological-self-sufficiency/

[6] Disponível em: https://digichina.stanford.edu/work/translation-internet-information-service-algorithmic-recommendation-management-provisions-effective-march-1-2022/.

Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos

Sandro Leal Alves[*]

Uncertainty must be taken in a sense radically distinct from the familiar notion of Risk,  from which it has never been properly separated…. The essential fact is that ‘risk’ means in some cases a quantity susceptible of measurement, while at other times it is something distinctly not of this character; and there are far-reaching and crucial differences in the bearings of the phenomena depending on which of the two is really present and operating…. It will appear that a measurable uncertainty, or ‘risk’ proper, as we shall use the term, is so far different from an unmeasurable one that it is not in effect an uncertainty at all.” Frank Knight (Risk Uncertainty and Profit 1921 edition)

No momento em que escrevo este artigo, o Ministro Luis Roberto Barroso acaba de expedir decisão convocando audiência pública em setembro de 2022 para debater a taxatividade do rol de procedimentos da ANS, fruto de ADI recorrendo da decisão do STJ. Na própria decisão do Ministro Barroso, esclarece que “A matéria extrapola os limites do estritamente jurídico e exige conhecimento interdisciplinar apto a desvelar questões técnicas, médico-científicas, atuariais e econômicas relativas à definição da abrangência da cobertura dos planos de saúde, à previsibilidade de novos tratamentos, ao impacto financeiro de condenações judiciais ao fornecimento de terapias não incorporadas e ao processo de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.”

No dia 8/6, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Contudo, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

Neste artigo, trago uma perspectiva econômica e atuarial com foco na precificação dos planos de saúde, atividade precípua dos atuários, registrados no Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) que devem elaborar Nota Técnica Atuarial (NTA) e submeter à aprovação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Sem a aprovação da NTA, a operadora não pode comercializar seus produtos. Antes de abordar a precificação propriamente dita, é importante retornar às bases técnicas do produto.

  1. Fundamentos

O funcionamento da saúde suplementar é, sob vários aspectos, similar ao setor de seguros. Logo, é importante conhecer algumas definições aplicadas em ambos os mercados para aceitação e precificação de planos ou seguros.  O seguro é um mecanismo de transferência de risco de uma pessoa ou empresa para uma seguradora, ou operadora, que assumirá esse risco. Pode-se dizer que a matéria-prima da indústria de seguros é o risco.  Nas operações de seguro, risco é a possibilidade de ocorrência de um evento aleatório que cause danos de ordem material, pessoal ou ainda de responsabilidades. Ele é assumido pela seguradora, que se obriga a indenizar a importância segurada na ocorrência do risco coberto, mediante o pagamento do prêmio (custo do seguro) do seguro realizado. O risco é um evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e contra o qual é feito o seguro. Risco é expectativa de sinistro. Sob o ponto de vista legal, o risco constitui o objeto do seguro, pois o segurado transfere à seguradora, por meio do seguro, o risco e não o bem.

Mas saúde é diferente!

Os serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde são diferentes, lidam com um bem incomensurável, que é a vida, e tem características bem específicas e uma regulação complexa. As especificidades do nosso setor foram identificadas desde a década de 60 com o trabalho seminal do economista Keneth Arrow, laureado pelo prêmio Nobel em economia.

A natureza da demanda por saúde é irregular e há prevalência de ampla incerteza em relação à quando e ao que utilizar nos momentos de adoecimento. Nunca saberemos quando necessitaremos de uma internação ou de outro serviço de saúde. As relações no mercado são caracterizadas por problemas derivados da assimetria de informação entre médico e paciente, médico e operadora, cliente e operadora e assim por diante. Não à toa, esse é um setor extremamente regulado tanto no Brasil como no mundo. Como o acesso aos serviços públicos universais nem sempre é efetivo, os planos de saúde emergem como uma importante fonte de acesso tanto das pessoas quanto das empresas que os contratam para seus colaboradores. Em resumo:

A saúde não é um bem transferível de um indivíduo para o outro. É um bem meritório e, em geral, é necessária a certificação de um profissional especializado para indicar o produto ou serviço a ser consumido em cada caso específico assim como atestar sua qualidade. Dessa forma, na ausência de uma certificação pública reconhecida pelos consumidores como confiável, a reputação do provedor do bem ou serviço passa a ser relevante tanto para as decisões de consumo, por parte dos pacientes, quanto para a prescrição médica dos profissionais de saúde.

O consumo de produtos e serviços de saúde se caracteriza pela dissociação entre o consumidor final e o agente responsável pela indicação terapêutica. Quem escolhe o tratamento não é quem paga, diferentemente, dos outros setores onde você escolhe o que deseja consumir.   

Alguns produtos e equipamentos do setor saúde se caracterizam por elevados gastos com pesquisa e desenvolvimento de novos processos e, sobretudo, de novos produtos. O acesso a determinados serviços médicos, em geral, e medicamentos, em particular, é considerado em diversos países como um direito de cidadania, resultando na classificação desses bens e serviços como meritórios, isto é, bens e serviços a que todos o cidadão deve ter acesso, sendo responsabilidade da política pública a garantia de acesso universal.

O valor do seguro decorre da imprevisibilidade dos gastos com saúde. As pessoas em geral optam pela segurança de ter acesso aos tratamentos contratados ao invés de carregarem consigo esses riscos. Em termos microeconômicos, sabemos que a demanda por seguro ocorre em um ambiente de escolha sob incerteza e agentes avessos a risco preferem arcar com o custo certo de pagar uma mensalidade a ter que incorrer na incerteza de precisar desembolsar elevadas somas financeiras quando ocorre a eventualidade de uma doença.

  • Mutualismo

Mutualismo é uma das principais características do seguro. Entende-se por mutualismo a reunião de um grupo de pessoas com interesses seguráveis comuns, que concorrem para a formação de uma massa estatística, com a finalidade de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas do grupo ou de parte do grupo. Desse modo, o impacto financeiro de um evento, que poderia ser fatal ou catastrófico para um indivíduo ou uma empresa, é distribuído entre os integrantes de um grupo maior por custo relativamente baixo.

No caso da saúde suplementar, as operadoras reúnem todas as mensalidades (ou prêmios no caso do seguro) que recebem em um fundo mutual usado para pagar as despesas com os eventos aleatórios tais como uma internação hospitalar. Dificilmente, esses eventos de alto custo, como internações, são suportados individualmente. Mas coletivamente, pela aquisição de um plano, é possível ter acesso a essas coberturas por meio do mecanismo de solidariedade entre os contratantes que o plano possibilita. Cerca de ¼ da população brasileira é coberta por algum tipo de plano de saúde. Segundo dados da ANS, em dezembro de 2019 havia 47 milhões de beneficiários em planos privados de assistência médica com ou sem odontologia e 26 milhões de beneficiários em planos privados exclusivamente odontológicos. Esse contingente expressivo da população atendida pelo setor privado acessa o setor, principalmente, mediante os contratos coletivos. Em períodos em que a empregabilidade vai bem, a saúde suplementar tende a acompanhar. O inverso também é verdadeiro. Quando a economia e o emprego formal desaceleram, a capacidade de aquisição de planos de saúde também é afetada.

Segundo Maia (2018), o risco, no âmbito da saúde, é definido como a consequência financeira de uma alteração no estado de saúde do indivíduo. Tais alterações podem resultar em despesas com bens e serviços de saúde para recuperação ou tratamento da saúde, despesas com cuidados de reabilitação e até mesmo perda de renda em função da incapacidade laboral.  Na saúde, o que se segura é o acesso aos tratamentos assistenciais decorrentes de alterações no estado de saúde, seja este acesso realizado pela rede própria da operadora, pela rede credenciada ou pela livre escolha do segurado mediante o reembolso, conforme o contrato.

  • Precificação

A precificação deve incluir o custo ou prêmio do risco que se está segurando além de incluir despesas administrativas e de comercialização. Falaremos de algumas regras para essa precificação. Para organizar toda essa operação, o plano de saúde deve contratar e remunerar funcionários das mais variadas especialidades como gestores, médicos, dentistas, atuários, estatísticos, advogados, administradores, economistas, dentre outros. Também deve remunerar corretores e vendedores que comercializam seus produtos.  O preço deve incorporar uma margem de segurança estatística calculada a partir de metodologia adequada para garantir, com a maior probabilidade possível, que as ocorrências estarão cobertas no preço, de tal forma que a operadora siga solvente. Adicionalmente, como toda empresa privada, a operadora deve incorporar uma margem de lucros esperada. A arte é precificar o produto para ser ao mesmo tempo competitivo e economicamente sustentável.  Veja a fórmula abaixo:

  • Preço do Seguro = Custo do Risco + Margem de Carregamentos de Despesas + Margem de Segurança Estatística + Margem de Lucro

As operadoras têm a função de organizar o mútuo, que envolve a avaliação do risco, a definição do preço do plano, a cobrança e gestão financeira dos recursos, a organização da rede de assistência à saúde, pagamento aos prestadores e a gestão de saúde de seus beneficiários.

Ressalta-se importante diferença da saúde suplementar para outros setores econômicos é que ao precificar um produto, a operadora não conhece os seus custos a priori, pois estes são aleatórios e estimados pelas técnicas da probabilidade. Uma indústria, por exemplo, precifica seus produtos após conhecer os seus custos de produção. Isso significa, na prática, que a operadora recebe as mensalidades, antecipadamente, para a cobertura de riscos no futuro.

Já em uma indústria tradicional, a firma recebe as receitas e paga os custos que já incorreram. Na saúde, esse fluxo financeiro é invertido. Daí a importância de um bom processo de precificação e contratação para que as receitas sejam suficientes para cobrirem os custos que ainda irão ocorrer.  Errar na precificação pode levar uma operadora à falência!

O processo de judicialização que se agrava no Brasil faz com que, muitas vezes, as operadoras arquem com custos de procedimentos que não foram previstos nem precificados, ou por não estarem no contrato ou por não constarem no rol de procedimentos da ANS. Quando isso ocorre, toda a coletividade é chamada a contribuir com recursos adicionais em forma de maiores mensalidades. Logo, é necessário ter previsibilidade nos custos para que os planos possam ser oferecidos.

Devemos ressaltar que existem regras para a precificação segundo as faixas etárias definidas pela legislação. Basicamente, são três momentos: antes da lei 9.656/98, entre a lei 9.656/98 e o Estatuto do Idoso, e após o Estatuto do Idoso.  É importante destacar que qualquer utilização feita que não tenha sido contratada, fora do contrato ou fora do rol, torna a previsibilidade e precificação uma tarefa absolutamente complexa, senão impossível.

A operadora consegue precificar os procedimentos que estão cobertos no contrato e no rol de procedimentos da ANS. Casos que extrapolam tais limites não são considerados no momento da precificação. Logo, se isso ocorre por algum motivo, como decisões judiciais ou um rol de procedimentos aberto, ou exemplificativo, esse custo é transferido para os demais participantes da mutualidade que devem incorrer em maiores despesas para assegurar o equilíbrio econômico do contrato. Em termos econômicos, trata-se de um caso de externalidade negativa, pois a ação de um indivíduo impõe custos sobre terceiros.  A precificação pode ser feita segundo os seguintes métodos:

  • Community rating

Neste caso, o mutualismo se dá entre todos os indivíduos. O preço é único para toda a população e é baseado no custo médio desta mesma população. O problema com esse método é que ele funciona quando o seguro é obrigatório. Para seguros voluntários, como no caso do plano de saúde individual, esse método estimula a anti-seleção de riscos, ou seja, como é uma média, os indivíduos que se auto-avaliam como sendo de riscos superiores ao preço tendem a aderir ao contrato. Analogamente, os indivíduos de baixo risco, não tem interesse em aderir e preferem carregar o próprio risco.

  • Experience rating

Nessa metodologia, o preço baseado no custo per capita por idade. Por exemplo, o preço seria estimado para cada idade. Essa metodologia implica no mutualismo entre os indivíduos que possuem a mesma idade, mas será prejudicial para os indivíduos mais idosos. Para estes, o seguro ficaria inviável. O legislador brasileiro, seguindo ampla referência internacional, entendeu que deve haver solidariedade entre grupos de risco formado por faixas etárias. E assim, chega-se ao terceiro método, explicado a seguir.

  • Community rating modificado

Neste caso, o preço é baseado no custo médio por faixa etária que atualmente é segmentada de 5 em 5 anos conforme mostrado a seguir. O risco é, portanto, solidarizado entre os indivíduos que estão em uma mesma faixa etária.

O legislador brasileiro estabeleceu a divisão solidária do risco entre 7 (sete) faixas etárias na Lei 9.656/1998. Posteriormente, com o advento do estatuto do idoso, foi proibido o aumento de mensalidades após os 60 anos e a ANS revisitou as suas faixas etárias. São 10 atualmente. Adicionalmente, o legislador previu o pacto intergeracional, ou seja, os mais jovens devem pagar um pouco mais para que os mais idosos possam pagar um pouco menos do que o custo do seu risco. O pacto intergeracional é garantido pela regra que limita o preço da última faixa etária como sendo no máximo 6 vezes o preço da primeira. E a variação da 7ª a 10ª faixa etária deve ser menor ou igual ao valor da 1ª a 7ª faixa etária. São as condições de contorno para manutenção da solidariedade intergeracional.

  • Precificação sujeita a incertezas

A principal consequência de um rol exemplificativo para a precificação é a impossibilidade de cálculo do preço com base em dados.  Vejamos a figura abaixo para tentar compreender esse ponto. Lembrando que o cálculo do preço deve ser feito por agrupamentos (clusters), segundo os grandes grupos de eventos: Consultas médicas – diversas especialidades, exames complementares, terapias, outros atendimentos ambulatoriais, internações hospitalares e demais custos assistenciais. Cada grupo desses é desdobrado em diversos subgrupos de coberturas e os procedimentos que são estabelecidos no rol da ANS servem para que as operadoras saibam previamente quais os riscos que está assumindo. A partir deste momento, irão avaliar a disponibilidade de rede assistencial, avaliar os preços praticados e incluir no cálculo do custo assistencial. Portanto, o quadrado superior da figura descreve os procedimentos cobertos pelo rol da ANS.

Para cada um dos 3379 procedimentos do rol, a operadora deve obter dados de frequência de utilização e o preço para se chegar ao custo médio (ou severidade média). Ressalta-se que pela legislação atualmente em vigor, os procedimentos devem ser submetidos à Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) a fim de verificar as evidências científicas que suportam a inclusão, sua eficácia e seu custo-efetividade. Não nos esqueçamos da fosfoetanolamina, tida como cura do câncer em um período no Brasil, mas que posteriormente demonstrou-se absolutamente ineficaz. Quantos recursos públicos e privados foram desperdiçados? Difícil prever. Em todo mundo desenvolvido, o processo de ATS é um requerimento necessário para que alguma nova tecnologia seja incorporada. No Brasil, o setor público faz a ATS na CONITEC. Na saúde suplementar, essa avaliação está a cargo da ANS.

As operadoras de planos de saúde são especializadas em precificar o risco atuarial se valendo de ciência para chegar nas melhores estimativas possíveis, dados os dados disponíveis. No entanto, ao se falar em rol exemplificativo, ou procedimentos extra-rol, saímos do campo do risco e adentramos no terreno da incerteza. Não é possível fazer previsões sobre quais procedimentos vão ser incorporados pois estes são frutos do desenvolvimento tecnológico da indústria de medicamentos, materiais, equipamentos etc. A incorporação automática no rol, além de inviabilizar o processo de precificação, também coloca sob risco a saúde da população tendo em vista que não passou pelo rigor científico do crivo da ATS.

É possível carregar na margem de segurança para tentar alcançar. Não obstante, quanto maior for a margem, maior será o preço. No limite, a operadora pode optar por não oferecer o produto pois não conseguirá fazer uma gestão adequada do risco. Cabe lembrar que é objetivo da precificação que o valor presente das receitas seja suficiente para pagar todos os compromissos assumidos. Se estes compromissos mudam ao longo do tempo, e o preço se mantém constante, haverá déficit na carteira. A ocorrência de déficit deve ser provisionada pois pelas regras prudenciais, baseadas em risco, a subscrição se tornará excessivamente elevada. Evidentemente, déficits irão demandar maior volume de capital das operadoras, reduzindo a rentabilidade do negócio e a atratividade para a entrada de investidores potenciais.

Sair do terreno do risco e adentrar o campo da incerteza não parece ser uma política pública sustentável. Alguns dirão que faz parte do risco do negócio. Mas se queremos mais eficiência da regulação a ponto de entrar para a OECD, esse pode ser um elemento de muita vulnerabilidade regulatória. Afinal, risco regulatório é até possível se precificar, mas incerteza não.

REFERÊNCIAS

ALVES, Sandro Leal. Fundamentos, regulação e desafios da saúde suplementar no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2015

ARROW, Keneth. Uncertainty and the Welfare Economics of Medical Care. In: The American Economic Review, v. LIII, n. 5, dec., 1963

CARLINI, Angélica. Judicialização da Saúde Pública e Privada. Ed. Livraria do Advogado, 2014.

CECHIN, José; ALVES, Sandro Leal; ALMEIDA, Álvaro. Dinâmica dos Custos, Formação de Preços e Controle de Reajustes dos Planos de Saúde no Brasil: a Urgência de se Revisar a Regulação. R. Bras. Risco e Seg., Rio de Janeiro, v. 12, n. 21, p. 133-156, abr.-set., 2016.

FERREIRA, Paulo Pereira. Modelos de Precificação e Ruína para Seguros de Curto Prazo.1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2002.

FERREIRA, Paulo Pereira. Desafio do Preço Justo no Seguro Saúde. Revista Cadernos de Seguro. 195. 2018

FLÁVIO, AMANDA e LEAL, SANDRO, Sandro: Saúde suplementar e o Brasil: sobre escassez, escolhas, rol de procedimentos e almoço grátis. Coluna Webadvocacy. Fev.2022

LIMA; William. Manual de solvência: aspectos principais. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

MAIA; A.C. Gestão de Risco em Planos de Saúde. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

NAZARENO, JOSÉ M. Jr. Precificação dos planos de saúde: apresentando alguns aspectos técnicos envolvidos. https://www.linkedin.com/pulse/precifica%C3%A7%C3%A3o-dos-planos-de-sa%C3%BAde-apresentando-alguns-maciel-junior/?originalSubdomain=pt

On Risk Classification. A Public Policy Monograph.American Academy of Actuaries Risk Classification Work Group. November 2011

RESOLUÇÃO IBA Nº 02/2019. Dispõe sobre os princípios gerais que devem nortear os trabalhos de formação e revisão de preços no âmbito da saúde suplementar no Brasil, em consonância com os Princípios Básicos Atuariais definidos pelo CPA nº 001 – IBA.


[*] Economista. Superintendente de Estudos e Projetos Especiais da FenaSaúde. Este artigo expressa a opinião do autor.

A atual composição do Tribunal do Cade e a oxigenação dos debates da relação entre tributação e concorrência

Polyanna Vilanova[i]

Henrique Muniz[ii]

Os diversos efeitos da tributação na economia e os eventuais impactos de distorções tributárias no ambiente competitivo vêm ganhando espaço nos debates da comunidade antitruste.

Muito embora tais debates ainda necessitem de bastante aprofundamento, é possível identificar a formação de análises doutrinárias que buscam entender em que medida práticas tributárias (p. ex. sonegação fiscal e benefícios e incentivos fiscais) podem afetar a concorrência ao ponto de atrair a competência dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e, em especial, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Por outro lado, verifica-se que, historicamente, o Cade opta por afastar sua competência quando se depara com casos de ilícitos tributários como meio de infração à ordem econômica, seja sob o fundamento de que quaisquer distúrbios na concorrência seriam sanados após o enfrentamento da questão no foro competente (Poder Judiciário, Receita Federal e demais órgãos), seja sustentando a impossibilidade de penalizar agentes econômicos que fazem uso de benefícios ou isenções fiscais concedidos pelo poder público, que, embora gerem diferenciação de agentes, não seriam práticas evasivas e tratar-se-iam de medidas positivadas no ordenamento jurídico.[1]

Inclusive, logo após tomar posse na presidência da autarquia antitruste, Alexandre Cordeiro, em entrevista ao Jota, quando questionado qual deveria ser o posicionamento do Cade na hipótese de outras infrações, como a sonegação de impostos, terem impacto no direito concorrencial, afirmou seguramente que seria um equívoco atuar, uma vez que o órgão teria que “ficar na seara da concorrência”. Complementou, em seguida, que a solução seria o correto funcionamento do sistema tributário, não sendo possível se transferir para o Conselho a responsabilidade que não é dele.[2]

Assim, diante de um cenário em que, de um lado, o Cade apresenta um histórico, reafirmado por seu atual Presidente, de afastar sua competência para analisar os efeitos de práticas tributárias na concorrência e em que, de outro, a comunidade antitruste está cada vez mais atenta para tal discussão e vem cobrando posicionamentos da autarquia sobre o tema, haveria alguma expectativa de mudança de paradigma pelo Cade em sua atual formação?

Pois bem. A gênese da discussão do tema tributação e concorrência no Brasil está intimamente ligada à questão dos impactos concorrenciais da guerra fiscal, com inspiração no latente debate europeu sobre a harmful tax competition[3]na ordem jurídica europeia.

Ainda em 1998, na União Europeia, onde o estudo das questões relacionadas à tributação e seus efeitos sobre o mercado já parecia ter um elevado amadurecimento, ficou estabelecido o Código de Conduta de Fiscalidade das Empresas, reconhecendo a existência de uma concorrência fiscal prejudicial entre os países-membros capaz de distorcer os padrões de comércio e de investimento e outros defeitos na esfera concorrencial. Nesse sentido, diversos são os casos julgados pela Corte Europeia de Justiça envolvendo a concessão de incentivos fiscais e seus impactos na dinâmica do mercado comum europeu[4]. Além disso, a OCDE, tendo em conta o cenário europeu, desenvolveu o relatório “Guidelines on Harmful Preferential Tax Regimes” com o objetivo de desencorajar a guerra fiscal entre os países europeus e trazer diretrizes para mitigação dos paraísos fiscais.

Paralelamente a essa relevante discussão europeia acerca da concorrência fiscal, o Cade, nos autos da Consulta nº 0038/99, foi instado a se manifestar quanto à “nocividade ou não à livre concorrência da prática conhecida como guerra fiscal, realizada principalmente entre estados e através de mecanismos fiscais e financeiro-fiscais relacionados ao ICMS[5]”. Isto é, questionou-se se uma determinada empresa detentora de benefício fiscal estaria em situação de vantagem em relação às suas concorrentes, na medida em que teria condições de praticar um preço inferior ou obter maior lucratividade. A conclusão do Conselho foi de que a guerra fiscal prejudica a concorrência e ocasiona efeitos danosos ao bem-estar da coletividade.

Inspirada no parecer exarado pelo Cade, a comunidade antitruste brasileira voltou os olhos para o tema da guerra fiscal e dos benefícios e incentivos fiscais como vantagem competitiva, produzindo literatura e acionando a autarquia para analisar tal imbróglio. Ocorre que em diversas oportunidades[6], o Conselho optou por afastar sua competência por entender que tais questões deveriam ser levadas à análise do Judiciário, uma vez que não estariam no rol de condutas abarcadas pela legislação antitruste, não havendo como imputar, ademais, aos entes federados infração à ordem econômica.

Nesse ínterim, contudo, outras práticas tributárias ganharam espaço no debate  da relação entre tributação e concorrência. Passou-se a defender que determinadas práticas de evasão fiscal, que consistem em condutas praticadas por particulares em descumprimento a obrigações tributárias, podem estar na origem de distúrbios concorrenciais e, portanto, deveriam ser caracterizadas como infrações à ordem econômica.

Nesse ponto, não há entendimento unitário na jurisprudência do Cade a respeito da competência da autoridade antitruste para tratar de tais casos. Vê-se que, em algumas oportunidades, o órgão optou por negar sua competência ao entender que as distorções no mercado provocadas pela sonegação fiscal eram delimitadas no tempo. Em outros casos, quando avançou a etapa de análise de sua competência e se engajou numa análise concorrencial da questão, comumente o fez sob a ótica de preço predatório, concluindo invariavelmente por sua inexistência devido às diversas dificuldades de configurar tal conduta em concreto.[7]

Ocorre que recentes manifestações de atuais conselheiros conferem razões para se crer em uma possibilidade de análises mais acuradas do Cade sobre os impactos de práticas tributárias na concorrência.

Após o despacho de arquivamento da Superintendência-Geral nos autos do inquérito administrativo nº 08700.002532/2018-33, o Conselheiro Luis Braido apresentou proposta de avocação pelo tribunal administrativo, sustentando a necessidade de instrução complementar para apurar suposta conduta anticompetitiva decorrente do não pagamento de tributos, o que conferiria a possibilidade de praticar, de forma indevida e sem relação com sua maior eficiência, preços inferiores aos dos concorrentes adimplentes com suas obrigações tributárias, de modo a incrementar participação no mercado relevante e a causar prejuízos à livre concorrência. Muito embora tenha concluído pela não avocação, o Conselheiro Sérgio Ravagnani confirmou a competência legal do Cade para analisar práticas tributárias que possam produzir danos à concorrência, uma vez que a prática de sonegação fiscal reiterada, referida como “macrodelinquência tributária reiterada[8]”, poderia ser caracterizada como infração à ordem econômica. No entanto, durante a 1ª Sessão Extraordinária de Julgamento, realizada no dia 20 de janeiro de 2021, o plenário, por maioria, não homologou o despacho de avocação.

Desfecho diferente se deu no caso do Procedimento Preparatório nº 08700.001571/2022-08, em que o tribunal administrativo homologou o despacho de avocação (Despacho Decisório nº 5/2022) proferido pelo Conselheiro Gustavo Augusto Lima para instaurar o inquérito administrativo e proceder com o prosseguimento das investigações com o objetivo de apurar possível prática de discriminação de preços no mercado de comercialização de combustíveis derivados do petróleo produzidos na Refinaria de Mataripe, localizada no Estado da Bahia.

Segundo o Presidente Alexandre Cordeiro, durante a 197ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade, realizada no dia 25 de maio de 2022, considerando que o setor econômico está em evidência e que sua abertura consiste em uma medida estrutural objetivada pela autarquia, a investigação pode originar trabalhos de advocacy no sentido de elaborar normas interessantes para o setor junto à regulação setorial e a importante discussão tributária relacionada ao preço de referência do petróleo e seus critérios de fixação previstos na Resolução ANP nº 874/2022.

Nesse sentido, a Conselheira Lenisa Prado também registrou “me anima muito saber que grande parte deste tribunal está inclinada a investigar questões tributárias que surtem reflexo no âmbito concorrencial”. A conselheira afirmou que a questão de diferenciação de preço a maior de combustível adquirido dentro da Zona Franca de Manaus sugere a possibilidade de utilização de algum tipo de benefício fiscal ou a adoção de regime especial de tributação para favorecer um determinado grupo econômico ou concorrente. Complementou, ainda, que o Cade, por vezes, apreciou questões em que, infelizmente, por motivos alheios, não foi possível aprofundar o tema tributário com o concorrencial, mas que nesse caso seria possível identificar uma “curva ótima entre tributação e concorrência”.

Assim, é possível concluir que a oxigenação do debate da relação entre tributação e concorrência no direito brasileiro indica uma tendência para a mudança de paradigma no histórico de análises do Cade acerca do tema. Todavia, a confirmação da tendência se encontra nas mãos do atual quadro de conselheiros da autarquia e são cenas para os próximos capítulos.


[1] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Tributação e concorrência: uma análise da evasão fiscal como ilícito concorrencial. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 9, nº 2, dez. 2021, p. 54.

[2] Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/concorrencia/intervencao-estatal-inseguranca-juridica-cade-01092021

[3] PEROTTO, Gabriella. How to cope with harmful tax competition in the eu legal order: going beyond the elusive quest for a definition and the misplaced reliance on state aid law. European journal of legal studies, 2021, Vol. 13, No. 1, pp. 309-340. Retrieved from Cadmus, European University Institute Research Repository. Disponível em: https://cadmus.eui.eu/handle/1814/71283

[4] C-173/73 (Italy v. Comission); C-259/87 (France v. Comission); C-465/20 (Commission vs. Ireland and others). In: CAMPANILE, Vinicius Tadeu. Livre concorrência, tributação e desenvolvimento econômico: utilização de legítimas vantagens tributárias em prejuízo da livre concorrência. Dissertação (mestrado). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2017, p. 127.

[5] BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Consulta nº 0038/99, p. 1.

[6] Processos Administrativos: 08012.000668/1998-06, 08012.006746/1997-41, 08000.018405/1997-11 e 08700.003984/2010-85, Consulta 08700.002380/2006-35; Averiguação Preliminar 08012.006665/2001-99.

[7] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Op. cit., p. 56/57.

[8] Expressão cunhada pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski, no julgamento do RE 550.769, para práticas ilícitas perpetradas por devedores contumazes, que por meio da inadimplência reiterada e sistemática alcançam expressiva vantagem concorrencial.


[i] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[ii] Henrique Muniz é trainee no escritório Vilanova Advocacia.

Tribunal de Contas da União e investimentos no Brasil: a fiscalização do TCU sobre desestatizações

Elísio Freitas

Primeiramente gostaria de comentar que é uma honra ter a oportunidade de escrever nesta coluna para o Web Advocacy. Tratar sobre temas importantes relacionados à Administração Pública, mormente sobre o Tribunal de Contas da União, traduz-se em compromisso com o leitor de bem informá-lo e deixá-lo a par dos meandros do Estado e sua relação com a economia e as finanças públicas do Brasil. Inauguro o espaço com o texto abaixo, que versa sobre investimentos no Brasil e aquele tribunal. Espero que apreciem!

As contratações com a Administração Pública federal no Brasil estão submetidas à fiscalização do controle externo, realizado pelo Tribunal de Contas da União – TCU. Portanto, tanto o procedimento comum de contratação de produtos e obras ou de execução de serviços quanto o processo complexo de desestatização – incluindo todas as suas modalidades, a exemplo da concessão de serviços públicos ou da parceria público-privada (PPP) – estão submetidos ao acompanhamento da Corte de Contas.

O TCU, nos termos da Constituição Federal, é um tribunal administrativo vinculado ao Poder Legislativo e auxilia a Parlamento no controle externo da Administração Pública em âmbito federal.

Assim, o Tribunal, composto por 9 ministros (6 escolhidos pelo Congresso Nacional e 3 pelo Presidente da República) e 4 ministros-substitutos (selecionados por meio de concurso público), tem como função precípua o trato da coisa pública, além de possuir importantes competências constitucionais relacionadas às contas públicas.

Várias unidades técnicas temáticas (denominadas secretarias), compostas por servidores de carreira altamente especializados, realizam trabalhos sólidos e de alta tecnicidade em temas como finanças, tecnologia da informação, obras públicas e fiscalização de procedimentos de desestatização.

As decisões do TCU sobre matéria de sua competência costumam ser a palavra final sobre o tema, apenas podendo ser revistas pelo Poder Judiciário em casos excepcionais, como nas nulidades na tramitação de processo por inobservância a regras procedimentais.

Assim, considerando que o Governo Federal é o principal contratante de negócios no Brasil, seja no que diz respeito a sua capacidade orçamentária, seja por deter a titularidade dos principais e mais representativos ativos passíveis de serem concedidos à exploração pela iniciativa privada, o correto entendimento sobre seu funcionamento e procedimentos é fundamental para conferir segurança e previsibilidade aos investidores.

Em relação, especificamente, ao acompanhamento de processos de desestatização pelo TCU, ele ocorre na forma prevista na IN 81/2018, que veio a aprimorar a fiscalização desses processos, notadamente ao buscar dar seletividade aos acompanhamentos de concessão de serviços públicos.

Essa norma se aplica a todos os procedimentos de desestatização cujo edital tenha sido publicado a partir de 1º/1/2019, bem como a todos os contratos ou termos aditivos para prorrogação ou renovação de concessões ou permissões celebrados após aquela data; as instruções normativas anteriores sobre o tema foram revogadas.

Importante destacar que a citada IN 81/2018 disciplina a fiscalização dos processos de desestatização realizados pela Administração Pública federal, compreendendo as privatizações de empresas, as concessões e permissões de serviço público, as contratações das PPPs e as outorgas de atividades econômicas reservadas ou monopolizadas pelo Estado.

Esse normativo cuida também dos processos de outorga de concessão ou de permissão de serviços públicos que se enquadrem nos casos de inexigibilidade ou dispensa de licitação previstos em lei específica e prevê o fim dos múltiplos estágios de acompanhamento dos processos de desestatizações mencionados.

 Esse novo formato de fiscalização permite que o TCU priorize relevância, materialidade e oportunidade, direcionando os escassos recursos humanos para desestatizações de maior risco ou relevância.

Quanto ao planejamento dos processos de acompanhamento de desestatizações no TCU, tem-se que, em até 150 dias de antecedência da data prevista para a publicação do edital, os órgãos gestores dos processos de desestatização deverão enviar ao Tribunal extrato contendo: i) descrição do objeto da licitação; ii) previsão de investimentos; iii) relevância; iv) localização dos empreendimentos; e v) cronograma do processo licitatório.

O mesmo ocorre com os casos de celebração de contratos ou termos aditivos para prorrogação ou renovação de concessões ou permissões, inclusive as de caráter antecipado. Assim, em até 150 dias que antecedem a data de assinatura dos contratos ou dos termos aditivos para prorrogação ou renovação de concessões ou permissões, inclusive as de caráter antecipado, os gestores deverão enviar ao TCU os extratos dos contratos ou termos aditivos com: i) descrição sucinta do objeto; ii) condicionantes econômicas; iii) localização; e iv) cronograma da prorrogação e normas autorizativas.

O envio da documentação à Corte de Contas deve ocorrer em até 90 dias antes da data de publicação do edital licitatório. Os gestores deverão encaminhar ao órgão: i) EVTEA – Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental; ii) minutas do edital, com anexos; iii) minuta do contrato e caderno de encargos; e iv) resultados das audiências públicas e demais documentos para formalização da desestatização.

A análise por parte da unidade técnica competente do TCU ocorrerá em até 75 dias do recebimento dos documentos do processo de acompanhamento da desestatização. Após, o autos serão encaminhados ao ministro relator, que se incumbirá de incluir o processo em pauta para julgamento com proposta de deliberação.

Quando atua no acompanhamento de desestatizações, caso entenda pela presença de irregularidades e ilegalidades, o Tribunal pode, por exemplo, determinar a realização de correção de falhas antes da continuidade do procedimento.

No que se refere à necessidade de investimentos privados em infraestrutura no Brasil, é certo que o País investe pouco e mal em infraestrutura.

Estudos apontam que o Brasil atualmente investe menos de 2% do PIB no setor, apesar de que, apenas para manutenção dos seus ativos, seria necessário investir cerca de 5%. Tal fato ocorre, entre outros fatores, por não haver recursos públicos suficientes para o setor de infraestrutura, necessitando-se de aportes de recursos do setor privado, principalmente de investidores internacionais com grande capacidade.

O País, por meio do aprimoramento do ambiente de negócios, aperfeiçoamento de medidas regulatórias e fortalecimento da segurança jurídica, precisa propiciar aos investidores ambiente propício e seguro para investirem em nosso atrativo portifólio de projetos de concessão de serviços públicos. Para tanto, é imprescindível que os investidores, sobretudo os internacionais, conheçam os marcos regulatórios e os órgãos de controle, como o TCU.

Elísio Freitas – Advogado especialista em TCU e em Regulação; Procurador do DF; Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP; Mestre em Economia e em Administração Pública pelo IDP; MBA em Regulação pela FGV; Conselheiro da OAB/DF. Professor em cursos de Pós-Graduação.

Percepções sobre a ampliação de dispositivos do R-Ciber aos agentes PPP

Andrey Vilas Boas de Freitas

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti

Alessandro Guimarães Pereira

Coerente à Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (E-Ciber), regida pelo Decreto nº 10.222/2020, a Anatel editou a Resolução Normativa nº 740/2020, que contém o R-Ciber, regulamento que estabelece condutas e procedimentos para promoção da segurança nas redes e serviços de telecomunicações, incluindo a segurança cibernética e a proteção das infraestruturas críticas de telecomunicações.

Alguns dispositivos do R-Ciber aplicam-se a todas as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo, independentemente de seu porte, havendo, todavia, artigos que não alcançam os Prestadores de Pequeno Porte (PPP). São os artigos 6º ao 11º, os quais, resumidamente, definem as seguintes obrigações às prestadoras:

Art. 6º: elaborar, implementar e manter uma Política de Segurança Cibernética;

Art. 7º: utilizar produtos e equipamentos de telecomunicações provenientes de fornecedores que possuam política de segurança cibernética compatíveis com o R-Ciber;

Art. 8º: alterar a configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários;

Art. 9: notificar a Agência e comunicar as demais prestadoras e aos usuários incidentes relevantes que afetem de maneira substancial a segurança das redes de telecomunicações e dos dados dos usuários;

Art. 10: realizar ciclos de avaliação de vulnerabilidades relacionadas à Segurança Cibernética;

Art. 11: enviar à Anatel informações sobre suas Infraestruturas Críticas de Telecomunicações.

Por meio da recente Consulta Pública nº 63/2021, a Anatel propôs Instrução Normativa visando a ampliar a incidência destes artigos aos PPP e, assim, alcançar empresas que, independentemente de seu porte, detenham infraestruturas críticas de telecomunicações e incrementar o enforcement do Ato Anatel nº 77/2020, o qual define requisitos de segurança cibernética para equipamentos para telecomunicações e que possui recomendações não mandatórias de segurança cibernética.

A ampliação proposta baseia-se na premissa de que as infraestruturas, sistemas e equipamentos utilizados tanto por grandes empresas como pelos PPP são similares e amplamente conectados, já que incidentes cibernéticos ocasionados por quaisquer agentes podem resultar em danos sistêmicos.

A ampliação do alcance do R-Ciber aos PPP ocorrerá, todavia, de forma distinta, a depender dos tipos de infraestrutura que detém e dos mercados em que atuam. Os PPP que possuem infraestruturas críticas, como redes próprias para SMP, de suporte para transporte de tráfego interestadual e cabos submarinos com destino internacional[1] deverão cumprir as exigências dos artigos 6º a 11, igualando-se, portanto, às grandes empresas do setor, detentoras de Poder de Mercado Significativo (PMS).

Já as empresas que, dentre os PPP, são de menor porte, como os típicos ISP[2] que operam localmente e que não possuem infraestruturas críticas, deverão submeter-se apenas ao artigo 8º do R-Ciber, o qual exige a alteração na configuração padrão de autenticação dos equipamentos fornecidos em regime de comodato aos seus usuários, como os modens de acesso à banda larga e as antenas wifi. Por tal exigência, estes pequenos agentes deverão alterar as configurações de fábrica[3] dos equipamentos antes de entregá-los aos usuários, ampliando os códigos e protocolos de segurança neles inseridos. Igualmente, os aparelhos já instalados aos seus clientes também deverão ser atualizados.

Resta claro que esta exigência tem o condão de reduzir inúmeros incidentes cibernéticos com potencial de danos sistêmicos e ao usuário final, sendo este último um alvo constante de invasões por crackers[4] às suas informações e aplicações pessoais e financeiras, resultando em golpes e ampliando a desconfiança quanto à segurança das redes em geral. A própria Anatel bem explica:

nestes equipamentos é comum que a configuração realizada pelos fabricantes, ou até mesmo pelo instalador, utilize credenciais (usuário e senha) padrão conhecidas ou facilmente identificáveis por atacantes. Pelo domínio ou acesso pelo atacante a estes equipamentos é possível realizar ataques à toda a rede de suporte de serviços, tais como Distributed Denial of Service (DDoS) ou alteração do cache de Domain Name System (DNS), possibilitando o redirecionamento de usuários para sites falsos onde são realizados o phishing de senhas de acesso ou a coleta de informações relevantes dos usuários.”[5]

Contudo, não se pode esquecer de que os PPP de menor porte atendem a franjas do mercado, principalmente em banda larga fixa por fibra ótica, em áreas periféricas de grandes cidades e municípios menores. Sua competitividade é ditada por sua capilaridade e pelos seus menores custos operacionais. Assim, em tese, o aumento das exigências de segurança cibernética aos equipamentos que venha a instalar e àqueles já em operação pode significar um aumento de seus custos, à medida em que será necessário o emprego de adicional de mão de obra e o investimento em sistemas para reduzir vulnerabilidades dos equipamentos que ofertam em comodato.

Tal preocupação, todavia, deve ser ponderada à luz dos benefícios sistêmicos – inclusive econômicos – que estas melhorias de segurança tendem a gerar tanto no médio quanto no longo prazo. A redução de incidentes cibernéticos favorece modelos de competição mais equânimes e com menor margem a free riders, reduz os imprevistos operacionais das próprias empresas e estimula à inovação de produtos e serviços. Favorece também a ampliação da percepção, pelo consumidor, de que produtos e serviços ofertados por estes agentes menores e menos conhecidos podem ter qualidade e segurança compatíveis, ou mesmo superiores, aos grandes agentes do mercado.

Desta forma, a ampliação do R-Ciber aos PPP pode, ao fim, representar uma redução de custos de transação a todos os agentes, à medida que diminuem os incidentes de segurança cibernética, minorando a necessidade de atendimentos e resolução de incidentes causados graças a vulnerabilidades do tipo ‘senhas fracas’, ‘acessos não autorizados’ ou ‘ausência de credenciais’, os quais têm grande potencial de danos econômicos.

Assim, a ampliação regulamentar proposta na Consulta Pública, se corretamente dosada – permitindo-se inclusive um vacatio legis adequado à adaptação destes agentes – é oportuna. Fundamental, neste sentido, que a Anatel aprecie as contribuições trazidas por empresas e associações especializadas, as quais vêm sistematicamente enriquecendo os debates sobre o ambiente concorrencial em mercados de telecomunicações.

Como já vem sustentando a Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competividade do Ministério da Economia, são mercados que demandam ações regulatórias efetivas, mas discretas, permitindo o alcance de objetivos importantes sem ampliar desnecessariamente o seu ônus regulatório: a busca deste equilíbrio exige diálogo constante com múltiplos agentes e um olhar multidimensional sobre seus impactos, notadamente à segurança, sem relaxar no necessário estímulo à competitividade.


[1] Como ilustra o seguinte estudo: VICHI, L.P., PINTO, D.J.A., de SÁ, A.L.N. A defesa da infraestrutura de cabos submarinos: por uma interface entre a defesa cibernética e a segurança marítima no Brasil. 2020. In: Revista Escola de Guerra Naval. Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 326-346. maio/agosto. 2020. pp. 333-334.

[2] Internet Services Provider (“ISP”) ou Provedor de Serviços de Internet, é uma empresa que fornece acesso à internet a usuários que a contratam, podendo agregar outras soluções, como hospedagem de sites, armazenamento na nuvem, serviços de telefonia e pacotes de streaming

[3] Como bem o explica o Cyber Security Policy Guidebook, “these out-of-the box digital identities are called “generic IDs” because they do not belong to any one person. Often, generic IDs remain configured with the default password supplied by the technology vendor for the entire lifetime of the product. These Ids are well known to criminal elements and are often used to impersonate technology administrators.” In: BAYUK, J. L, Healey J., Rohmeyer P., Sachs M., Schmidt J. , Weiss J.. 2012. Cyber Security Policy Guidebook (1st. ed.). Wiley Publishing.

[4] Os crackers são indivíduos que praticam a quebra de segurança de softwares de forma ilegal, agindo de forma criminosa.

[5] ANATEL. Informe nº 200/2021/COGE/SCO (Doc. SEI Anatel nº 7040861)


Andrey Vilas Boas de Freitas. É Subsecretário de Advocacia da Concorrência na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Mariana Piccoli Lins Cavalcanti. É Coordenadora-Geral de Inovação, Indústria de Rede e Saúde na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

Alessandro Guimarães Pereira. É Coordenador de Inovação e Telecomunicações na Secretaria de Acompanhamento Econômico, Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE) do Ministério da Economia

A democracia equilibrista e o Estado de (não) Direito: a fábula de Esopo com o javali, o cavalo e o caçador

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

As democracias são sempre frágeis[1], podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder[2] e a sua erosão é, para muitos, quase imperceptível.[3]

A democracia é dinâmica, é diária, é dialética. Exige um esforço hercúleo de autocontrole dos Poderes, demanda harmonia, independência, serenidade, responsabilidade, respeito irrestrito ao desenho institucional de atribuições de competências feito pelo legislador constituinte, reclama bom senso, razão, sabedoria.

A democracia se assemelha a um equilibrista e o seu exercício implora pelo desempenho nos estritos limites da legalidade dos três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário –. Não permite excessos, abusos de poder, rompantes autocráticos. E, assim como um equilibrista, a democracia precisa caminhar diariamente pela corda bamba, com atenção, com vagar, com habilidade própria. Se assemelha ao tormento de Sísifo e de sua luta incansável para colocar “todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada”.[4] A autocontenção é diária porque o poder inebria, consome, embaralha as ideias, corrompe.

Esopo, escritor da Grécia Antiga (620 a.C a 564 a.C) em sua sabedoria nata narrou a fábula sobre “O javali, o cavalo e o caçador” que bem demonstram a sedução e o arrebatamento do “poder” sobre a natureza humana.

Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou, mas disse: ‘Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo”. O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: ‘Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas’. ‘Não tão rápido, amigo’, disse o caçador. ‘Eu o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim’.[5]

O enevoamento provocado pelo poder e pela possibilidade e probabilidade de seu abuso é da natureza humana. Mas, como controlá-lo? Encontrar esses limites não é tarefa fácil. A primeira Constituição brasileira de 1824 previu o Poder Moderador em seu artigo 98[6], entendido como a chave de toda a organização política, delegado ao Imperador, com o objetivo de se alcançar a independência, o equilíbrio e a harmonia dos demais poderes políticos, tendo sido extinto logo após a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889.

A partir desse momento histórico, as Constituições brasileiras passaram a adotar a Teoria da Separação dos Poderes, também conhecida como sistema de freios e contrapesos (checks and balances systems) consagrada por Montesquieu, em sua obra, “O Espírito das Leis”, a partir dos ensinamentos deixados por Aristóteles (Política) e John Locke (Segundo Tratado do Governo Civil). O art. 2º da Constituição Federal de 1988 prevê que “[s]ão poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

O cerne do sistema de freios e contrapesos está em que cada poder seja autônomo e exerça a sua função típica nos limites de suas atribuições constitucionais. Para contrabalancear cada poder, sobretudo, apoiado na ideia de que só o poder controla o poder, a própria Constituição prevê o exercício das funções atípicas por cada um dos Poderes, controlando-se uns aos outros. Essa é a grande chave para o sucesso das democracias. Com a adoção dessa teoria, Montesquieu defendia que seriam evitados governos absolutistas, de modo que a teoria da separação dos poderes é princípio básico de organização da maioria dos Estados democráticos. De igual modo, J.J Gomes Canotilho diz que “[e]stado de direito é a da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes”.[7]

A grande preocupação é, pois, a estabilidade do poder. Se, de um lado, a independência e a harmonia dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário)[8] são a chave para o sucesso da democracia, encontrar esse equilíbrio, na prática, apresenta-se como uma tarefa mais árdua do que se possa imaginar.

Levitsky & Ziblatt, ao escreverem o best-seller “Como as democracias morrem” chamam à atenção de como as democracias estão sendo enfraquecidas em dezenas de países – e de modo perfeitamente legal, com a utilização do próprio Direito, do mesmo modo em que ocorreu no nazifascismo alemão praticado sob a égide da República de Weimer de 1919, a primeira Constituição democrática alemã.

Georges Abboud registra que

“[d]urante o regime Nacional-Socialista, o direito produzido democraticamente foi manejado para fins diversos, subordinado aos interesses do partido de Hitler e à sua agenda genocida e autoritária. Ao contrário do que se imagina, o sangue derramado não se deu sob o império cego das leis positivistas. As ferramentas de degeneração agiram de forma escamoteada, tendo, nas decisões judiciais sem limites, o instrumento de consolidação daquele projeto político totalitário.”[9]

Entre a ditadura e a democracia, há uma distância. Entre o Estado de Direito e o Estado de não Direito também há. Em ambos os casos, trata-se de dois pontos de uma mesma reta e o Estado será mais democrático ou mais ditatorial, conforme uma confluência de fatores externos, sobretudo, como os Três Poderes exercem as suas competências e reconhecem seus limites.

Nesse ponto, registre-se que “[o] não direito não é a funcionalização da barbárie. O não direito produz a barbárie sob o signo do direito, mediante corrupção e apodrecimento de suas instituições.”[10] Além disso, “[p]reservar o direito, encará-lo como um produto democrático pelo qual todos temos de zelar, é preservar, sempre, a democracia em si mesma.[11]

O direito precisa ser preservado da degeneração. E a degeneração do direito não significa somente que novas leis – autocráticas – serão publicadas ou que uma nova ditadura virá por decreto como ocorreu na história brasileira em 1964 com o Ato Institucional nº 5. A sutileza está na interpretação e na aplicação das leis tidas como “legais”. É preciso separar o Estado de Direito do Estado de não-Direito e não permitir que não-direitos sejam produzidos sob a maquiagem de um Estado de Direito. Estejamos ainda mais atentos.


[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 13.

[2] Idem, p. 15.

[3] Idem, p. 17.

[4] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. 9. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 122.

[5] Esopo (620 a.C. – 564 a.C.), escritor da Grécia Antiga, foi o responsável pela criação e divulgação do gênero literário.

[6] Art98, Constituição de 1824. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.

[7] CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de Direito, p. 3.

[8] Art. 2º, CRFB/1988. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[9] ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thompson Reuteurs Brasil, 2021, p. 37.

[10] Idem, p. 109.

[11] Idem, p.36.

As Verdades e os Mitos da Marca e Qualidade no Mercado de Combustíveis Brasileiros

Rodrigo Zingales*

Quando vamos a um restaurante, não perguntamos ao garçom a marca do sal ou do açúcar consumido? No entanto, quando vamos ao supermercado costumamos pagar mais caro pelo sal e açúcar de marcas mais renomadas, como, por exemplo, o sal Cisne ou o açúcar União.

No mesmo sentido, usualmente há uma tendência maior dos consumidores de optarem por abastecer os veículos em um posto de bandeiras renomadas como Shell, Ipiranga ou BR, mesmo que para isso acabam pagando dez, vinte ou trinta centavos mais caro pelo litro de combustível, se comparado com os preços praticados por postos de marca própria (bandeira branca) ou de “marcas” menos conhecidas.

Qual a razão para termos esse comportamento?

Akerlof foi um dos primeiros a estudar e explicar esse comportamento dos consumidores em seu artigo “The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism[1], denominando-o de “seleção adversa”.

Resumidamente, segundo o autor, a seleção adversa ocorre em mercados onde existe grande “assimetria informacional” entre ofertantes e demandantes quanto à qualidade do bem comercializado e adquirido. Essa assimetria informacional é usualmente verificada em bens homogêneos e de experimentação, como são o açúcar, o sal, a gasolina, o etanol e o diesel, exatamente porque a qualidade desses bens somente é verificada após a sua aquisição e o seu consumo.

Note-se que em bens homogêneos, suas características físico-químicas tendem a ser as mesmas ou muito similares, a não ser que haja uma “desonestidade” por parte do ofertante, conforme destaca Akerlof, e que pode ser refletida, por exemplo, a partir da “adulteração” de suas características físico-químicas regulares.

Uma das soluções trazidas pelo autor para esse problema de ofertantes “desonestos” seria o investimento na reputação da marca do bem (“brand-name good[2]), pelos seus ofertantes “honestos”.

Por esta razão, o açúcar União, o sal Cisne e as distribuidoras BR, Ipiranga e Raízen / Shell investem montanhas de dinheiro na divulgação de suas marcas e sempre visando chamar a atenção dos consumidores para a “qualidade” de seus produtos.

No entanto, deve-se aqui indagar se realmente essas marcas ofertam produtos de melhor qualidade ou se sua reputação é apenas fruto de seu maior poder econômico para investir em propaganda “reputacional”?

No caso específico dos combustíveis, é um fato que praticamente desde a abertura do mercado brasileiro a distribuidoras e postos bandeira própria (ou bandeira branca), verificou-se uma forte tendência de os consumidores enxergarem esses postos com certa suspeita e optarem por adquirir combustíveis em postos de marcas mais bem estabelecidas reputacionalmente, como BR, Ipiranga ou Shell.

Segundo dados divulgados pela ANP no “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis, 2ª Edição, 2020”[3], percebemos, contudo, uma certa tendência de alteração desse hábito dos consumidores brasileiros.

Nesse contexto, vale citar, por exemplo, que segundo a ANP a participação conjunta das três principais distribuidoras do país (BR, Ipiranga e Raízen/Shell) na comercialização de gasolina C no mercado brasileiro, em 2014, correspondia a aproximadamente 68,67 da oferta total; já, em 2019, essa participação conjunta estaria em torno de 63,25%[4]. Ou seja, durante esse período, houve uma migração no consumo de combustíveis para redes de distribuidoras menores ou para postos bandeira própria superior a 5 pontos percentuais.

Este mesmo fenômeno também foi constatado no caso do etanol hidratado, onde a participação conjunta das três principais distribuidoras do país passou de 58,4%, em 2014, para 53,52%[5]; e, ainda, do óleo diesel, onde esta participação conjunta passou de 78,81%, em 2014, para 71,03%, em 2019[6].

Esta migração de demanda de combustíveis ofertados pelos postos bandeirados para aqueles de bandeira própria (ou de marcas menos conhecidas) pode ser explicada por duas razões principais cumulativas e que não possuem qualquer relação com a melhoria na qualidade dos combustíveis ofertados por esses últimos.

A primeira delas decorre da recessão econômica iniciada a partir de 2014 e que apenas se agravou com a Pandemia da COVID-19. Com efeito, esta recessão acarretou uma considerável perda de renda para a maioria da população brasileira, obrigando uma revisão considerável de seus gastos e consequentemente de suas preferências de consumo. Nesse contexto, parte dos consumidores passou a “experimentar” produtos mais baratos e que antes dessa recessão não se encontravam dentre aqueles de sua primeira opção. Os combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou de marcas menos conhecidas se enquadram nesse conceito de “produto mais barato”.

A segunda explicação, que se encontra diretamente relacionada à primeira, resume-se exatamente à elevação no nível de “experimentação” dos combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou bandeira de menor reputação. A partir dessa maior experimentação, os consumidores passaram a perceber que referidos postos, em sua maioria, comercializam combustíveis de qualidade igual àquela dos postos das principais bandeiras, porém com preços mais baixos. Ou seja, o mito de que haveria diferenciação na qualidade caiu ou passou a ser mitigado entre esses consumidores.  

De fato, a grande maioria dos consumidores desconhece que a Resolução ANP nº 807/20[7] classifica os diferentes tipos de combustíveis líquidos ofertados no país como: “comuns”, “aditivados” e “premium” e que os diferencia segundo o nível mínimo de octanagem ou a inclusão de aditivo em sua mistura[8].

Segundo esta resolução, a gasolina “comum” se diferencia daquela “premium“, em razão, principalmente, do nível mínimo de octanagem (“IAD” – Índice Antidetonante): comum 87; e premium 91[9]. Já, o que diferencia a gasolina “aditivada” da “comum” seria apenas a inclusão na primeira de um “aditivo”, cujo função seria auxiliar a limpeza do motor e de seus componentes, com o objetivo de garantir uma melhor eficiência funcional[10].

Assim, seguindo a lógica da regulação atualmente em vigor, não haveria distinção entre a gasolina comum comercializada por distribuidoras bandeiradas ou sem bandeira, de grande ou pequeno porte.

Nesse mercado, há ainda comentários no sentido de os combustíveis (gasolina A e diesel A), produzidos pelas refinarias da Petrobras e conhecidos como “combustíveis de bombeio”, serem de melhor qualidade do que aqueles produzidos por outras refinarias, petroquímicas ou importados.

Esta diferenciação de qualidade não se encontra especificada nas normas editadas pela ANP, razão pela qual não haveria razão para acreditar que esses comentários teriam algum fundo de verdade.

No entanto, se for tecnicamente confirmado que os combustíveis produzidos e ofertados pelas refinarias da Petrobras são de melhor qualidade, é indispensável que a ANP reveja imediatamente a sua regulação que trata da qualidade dos combustíveis para que esta diferenciação esteja corretamente contemplada, além de divulgar amplamente essa diferenciação a todos os atores desse mercado (distribuidoras, revendedores e consumidores).

Também é fundamental que seja alterada a regulamentação da ANP sobre as informações da origem dos combustíveis comercializados pelos postos, com o objetivo de constar nas bombas e placas, não mais o nome da distribuidora que forneceu o combustível, mas, sim, o nome do produtor ou do importador que vendeu a gasolina A ou o diesel A, utilizado pela distribuidora na mistura que gerou a gasolina C ou o diesel B comercializado aos consumidores finais pelo posto revendedor. Ressalte-se, nesse sentido, que no caso da gasolina C e do diesel B comuns, a função principal da distribuidora é a realização da mistura de gasolina A com o etanol anidro; e do diesel A com o biodiesel. No caso do etanol hidratado, a distribuidora sequer exerce essa atividade, sendo mera intermediária entre produtor e posto revendedor. 

Outra informação relevante que merece ser destacada nesse artigo e amplamente divulgada aos consumidores, refere-se ao fato de as três principais distribuidoras do país também serem as principais ofertantes de gasolina, diesel e etanol comum para postos bandeira própria (bandeira branca), os quais muitas vezes adquirem esses combustíveis junto a essas distribuidoras por preços mais baixos do que aqueles pagos pelos postos que ostentam suas marcas, conforme dados disponibilizados pela ANP até junho de 2020.

A principal razão para as três principais distribuidoras bandeiradas do país serem as principais fornecedoras dos postos bandeira própria (ou bandeira branca) está na ausência de uma concorrência efetiva no elo da distribuição, na maioria dos estados da Federação.

Esta ausência de concorrência tem relação direta com o fato de as três principais distribuidoras bandeiradas do país controlarem e compartilharem entre si a maioria das bases primárias e secundárias de distribuição instaladas; e, ainda, em decorrência da política de cotas de fornecimento de gasolina A e diesel A, definida pela Petrobras e baseada nas vendas pretéritas de cada distribuidora. A partir dessa política, a Petrobras aloca cotas máximas a cada distribuidora, definindo multas elevadas caso a distribuidora não cumpra com o volume de combustível solicitado, seja demandando volumes inferiores ou superiores àqueles previamente solicitados e definidos na cota determinada. Este modelo de cotas acaba gerando desincentivos para distribuidoras menores elevarem sua oferta de combustíveis no mercado doméstico e, consequentemente, reduzirem drasticamente seus preços para ganhar mercado. Afinal, quase 50% dos postos instalados no país estão sob contratos de embandeiramento e nos 50% há forte concorrência das principais distribuidoras bandeiradas, conforme explicamos a seguir.

Em relação à cobrança de preços mais baixos a postos bandeira própria (bandeira branca), do que aos postos contratualmente vinculados às principais distribuidoras bandeiradas do país, a justificativa econômica está exatamente nesses contratos e em seu efeito prático de monopólio sobre a oferta e demanda de combustível junto a esses postos.

Ou seja, ao celebrar um contrato de “embandeiramento” com uma distribuidora, o revendedor se compromete também a comercializar apenas combustíveis fornecidos por essa distribuidora. Assim, como a maioria desses contratos não traz um preço definido ou definível e essas distribuidoras bandeiradas não têm qualquer obrigação legal ou infralegal de divulgar sua política de preços e descontos – diferentemente do que ocorre com a Petrobras e os postos revendedores –, acabam detendo o monopólio sobre esses postos e o direito de cobrarem destes os preços que bem entenderem.

Já, no caso dos postos bandeira própria (bandeira branca), esse vínculo contratual inexiste. Isso significa que, em relação a esses postos, as distribuidoras bandeiradas concorrem entre si – e com outras distribuidoras bandeiradas ou não de menor porte, quando presentes no mercado local / regional – pelo fornecimento de combustíveis, sendo, portanto, obrigadas a cobrar preços mais baixos para tê-los como clientes.

Reitera-se que o combustível comum ofertado pelas distribuidoras, bandeiradas ou não, de grande ou pequeno porte, aos postos revendedores, bandeirados ou não, é o mesmo segundo a Resolução ANP nº 807/20. Assim, não haveria razão, do ponto de vista das características físico-químicas e de qualidade para as distribuidoras bandeiradas cobrarem cinco, dez, quinze ou vinte centavos mais caro pelo litro de combustível adquirido por um posto bandeirado, só porque este ostenta a sua marca. O mesmo vale em relação aos consumidores quando optam por abastecer em postos bandeirados.

Esta conclusão não é, contudo, válida para o caso dos combustíveis “aditivados” e “premium”, os quais possuem uma certa tecnologia desenvolvida ou adquirida pelas distribuidoras que os “produzem” ou comercializam. Tanto isso é verdade que, nos Estados Unidos da América, a exclusividade de fornecimento de combustíveis somente é aplicada para os combustíveis “premium” e “aditivados”, sendo aqueles “comuns” considerados como verdadeira commodity, podendo o proprietário do posto, bandeirado ou não, adquiri-lo de qualquer refinaria – ou distribuidora –, independentemente da marca que ostenta[11]. Este poderia ser um bom exemplo a ser seguido pela ANP, em sua regulamentação, com o objetivo de baratear os preços dos combustíveis no país e incentivar o desenvolvimento, por refinarias, petroquímicas e distribuidoras, de combustíveis “premium” ou “aditivados” cuja qualidade tenderá a ser superior àquelas da gasolina e do diesel comuns, dependendo das características do veículo e recomendações de seu fabricante.


[1] Disponível em <http://wwwdata.unibg.it/dati/corsi/8906/37702-Akerlof%20-%20Market%20for%20lemmons.pdf>. Acessado em 25.05.21. Observe que o termo “lemons” utilizado por Akerlof em seu artigo refere-se a carros usados com problemas, que no vernáculo seria traduzido como um “abacaxi”.

[2] O autor ainda cita como possíveis soluções para este problema da “desonestidade”: (i) a concessão de “garantias” pelo fornecedor do produto; (ii) estruturas de “redes” / “licenciamentos” (genericamente conhecidas como franquias); e, ainda, (iii) organizações certificadoras. Op. cit. p. 13 e 14.

[3] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/livros-e-revistas/arquivos/diagnostico-sdc-2020.pdf>. Acessado em 25.05.21.

[4] Observa-se que a participação da Distribuidora Alesat, quarta colocada, também sofreu uma queda no período, passando de 5,76%, em 2014, para 4,20%, em 2019, o que reforça o argumento apresentado acima. Op. cit. p. 46,

[5] Op. cit. p. 55.

[6] Op. cit. p. 64.

[7] Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-807-de-23-de-janeiro-de-2020-239635261>. Acessado em 25.05.21.

[8] Sobre a diferença de qualidade entre gasolina comum, aditivada e premium, recomendo a leitura desse artigo: https://www.economist.com/babbage/2012/09/17/difference-engine-who-needs-premium?utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gclid=CjwKCAjwtcCVBhA0EiwAT1fY70y9TWGs9xMJLmQni8ocRHaSq8k6oWVPDLXvHAslDbzN2MLTOv98tBoCAncQAvD_BwE&gclsrc=aw.ds

[9] Vide ainda informações prestadas pela Petrobras em: <https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/entenda-10-questoes-sobre-a-nossa-gasolina.htm>. Disponível em 25.05.21.

[10] Sobre aditivo, vide, por exemplo, explicação resumida constante no “Blog Bardhal”, disponível em <https://blog.bardahl.com.br/entenda-a-diferenca-entre-o-aditivo-vendido-em-frasco-e-a-gasolina-aditivada/>. Acessado em 25.05.21.

[11] Vide, por exemplo: <https://kendrickoil.com/the-differences-between-branded-vs-unbranded-fuel/>. Acessado em 25.05.21.


[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. O presente artigo reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.