Onde reside o conhecimento do Cade? 

Maxwell de Alencar Meneses

No tempo da sociedade do conhecimento, com busca incessante por informação, essa pergunta se faz imperiosa. Ao invés de responde-la diretamente a intenção é perscrutar o tema e estimular o pensamento crítico a respeito de questões conexas. De antemão ressalvando que considerações aqui expressadas não constituem opinião de nenhuma instituição em particular, nem tampouco daquele que as escreve.  

Trata-se apenas de cogitações e testes de cenários a fim de compreender e explorar realidades complexas, como as associadas ao tema “conhecimento”. Mais do que nunca, o “tudo que sei é que nada sei” de Sócrates se faz mister. 

Para que seja possível minimamente tentar endereçar a pergunta que intitula o artigo, que faz menção a uma busca por algo, no caso o conhecimento do Cade, é necessário tecer um retrato falado de quem se busca, para que seja então possível seu reconhecimento, sendo assim, cabe aqui uma pequena digressão com disposições preliminares, no sentido de conceituar alguns elementos essenciais associados ao termo “conhecimento” no âmbito desse escrito.  

Começando pelo elemento básico do conhecimento, que aqui se chamará “dado”.  Define-se como partícula elementar capaz de carregar atributo único acerca de algo ou de si mesmo. Informação, por sua vez, seria um objeto composto construído cumulativamente pela agregação organizada de um conjunto de dados, até o limite de sua transmutação à condição de um ente portador de valor utilizável.  

De maneira semelhante, o conhecimento advém do agregado de informações sistematizadas a respeito de um determinado tema, que envolve necessariamente o processo de interação íntima com essas informações por uma pessoa humana ou, de modo emulado por um robô, até o ponto de constituírem parte indissociável dessa pessoa natural ou artificial. 

Em uma escala bem mais elevada, seria definida a “sabedoria” como a absorção, por meio de um contato experimental, de conhecimentos múltiplos em um período abrangente o suficiente para habilitar a capacidade de produzir outros conhecimentos inéditos e de desfazer conhecimentos errôneos. 

O que justificaria o quão arriscado são as nomeações de pessoas sem a sabedoria necessária. Talvez isso tenha ocorrido com Lina Khan, que, depois de assumir o FTC, sofreu internamente uma queda da satisfação geral de um terço do seu próprio pessoal. Em pesquisa realizada na agência americana, que antes apontava que 83% dos seus colaboradores detinham elevado nível de respeito pelos líderes seniores, após a chegada de Lina, esse índice caiu para 49%i.  

Em outras palavras, “it’s all about people” (é tudo a respeito de gente), o que traz à lembrança de que não é nada segura a comida de restaurantes em que os funcionários estão insatisfeitos. Além disso, explica a menção a muitas pessoas feita aqui, a começar por Sócrates, oferecendo sugestões antecipadas para os possíveis rumos da resposta à discussão central do artigo. 

Em relação ao Cade, que foi eleito em 2022 como um dos melhores lugares para trabalhar, sendo o único na Administração Pública, é possível notar um verdadeiro progresso nos conceitos estilizados de conhecimento aqui experimentados, especialmente considerando a contínua maturação institucional à qual o Conselho está submetido, oferecendo uma infinidade de oportunidades para a construção de novos conhecimentos.  

Nesse contexto, o que efetivamente estimulou a abordagem desse tema foi uma dessas experiências inefáveis de geração de conhecimento enfrentadas pelo Cade. Tudo se iniciou pelo fim, quando recentemente foi concluído o caso Nestlé Garoto, fruto de belíssimo trabalho da atual Procuradora Geral do Cade, Dra. Juliana Domingues, colunista do WebAdvocacy. Tema rico merecedor de muitos estudos, mas que foi apenas o gatilho para algumas reflexões visitadas nesse texto.  

Na sessão de julgamento em que foi apresentada a proposta de acordo para encerramento do caso iniciado em 2002, pretérito à atual lei de defesa da concorrência, algo da história do caso foi lembrado tanto pelo Cade quanto por representantes das partes. De modo emotivo e, para além da sessão, foi inevitável pensar em quantos advogados, economistas, autoridades, técnicos, procuradores, profissionais de variadas áreas e composições do conselho vieram e partiram, deixando alguma parcela de contribuição durante esse tempo. 

Despertando aos nascidos no século passado, que mais conscientemente vivenciaram esse período, divagações a respeito de quanto conhecimento foi empregado, gerado e para onde teria ido esse conhecimento. As fotos de ex-autoridades do Cade hoje existentes na sede do órgão apontam também nesse sentido.  

Mesmo quem não tem sua foto na parede, mas passou pelo Cade, lembra com saudosismo e alguma dose de nostalgia pelas experiências, contribuições e aprendizado. Ainda assim, se essas fotos falassem e pudessem compartilhar seus conhecimentos acumulados, se pudessem ser entrevistadas e responder a dúvidas de quem chegou por agora, talvez muitas rodas não precisariam ser reinventadas. 

De fato, já seria possível fazê-lo. A exemplo de museus que se utilizam de realidade aumentada para propiciar interatividade, ou pela aplicação da ubiquidade da internet das coisas, que habilita que objetos sejam emissores de sinais digitais. Tecnologias perfeitamente capazes de tornar possível essa entrevista com os “pais” do antitruste.  

A quantidade de informação hoje disponível é notadamente muito grande e de certo modo suficiente para suprir de assunto esse diálogo. Até pelo contrário, essa magnitude de informação pode ser na realidade um obstáculo para seu real aproveitamento. 

Esse volume estupendo torna-se uma benção e uma maldição. O malogro está na condição de que muito conteúdo é um modo de não se ter nenhum. O overload de informações é bem conhecido como forma de atrapalhar investigações, por intermédio do fornecimento de uma quantidade massiva de documentos.  

As máquinas também sofrem, visto que o flooding, o Distributed Denial of Service (DDoS) são técnicas clássicas de causar indisponibilidade de serviços ou servidores, por intermédio da sobrecarga das interfaces com acessos distribuídos, ou com uma grande quantidade de dados. 

O Rei Salomão, renomado como o mais sábio e abastado, possivelmente um dos raros estudiosos a combinar esses dois elementos – conhecimento e riqueza – antecipou algo semelhante há milhares de anos, quando aconselhou: “Meu filho, cuidado, pois não há limite para a quantidade de livros que se produz; o estudo excessivo sobrecarrega o corpo”.  

Os livros são exemplos de documentos contenedores de informações, das quais especula-se aqui, e também são um meio de comunicação com as pessoas de outrora e da atualidade. No entanto, quando em uma quantidade e finalidade não adequadamente sistematizada, são um método de sobrecarga de informação, à semelhança dos ataques cibernéticos citados, mas que também significam outras sobrecargas preocupantes, como peso e espaço, que até explicaria em parte o sucesso do Kindle da Amazon.  

Dentro desse contexto, é compreensível que o Cade tenha implementado um sistema de gestão de biblioteca moderno, utilizando a tecnologia de RFID (identificação por radiofrequência), que pode ser associada à mencionada internet das coisas. Fruto do belíssimo trabalho da Bibliotecária Deborah Lins, que também contribuiu para a criação da própria Biblioteca Agamenon Magalhães, que possui o nome do pai do Antitruste no Brasil, alguém outrora tão combatido pelo consórcio de mídia de seu próprio tempo.  

Delineando a esse ponto de modo mais direto onde está o conhecimento do Cade, destaca-se do acervo da Biblioteca, livro de Ednei Silva, Coordenador-Geral de Análise Antitruste, que versa sobre controle de concentrações envolvendo fundo de investimento no Brasil, que como diz Vinicius de Carvalho, ex-presidente do Cade, trata-se de um dos temas mais polêmicos e difíceis da política de defesa da concorrência. 

A questão a respeito de onde está o conhecimento aponta também para a relevância da organização da informação e da habilidade de localizar o conhecimento necessário tempestivamente. Com a recente pane no sistema elétrico, torna-se interessante reforçar esse conceito em contextos como o do ONS, o Operador Nacional do Sistema Elétrico.  

Apesar de toda a tecnologia à disposição em seu centro de controle sito no SIA, em Brasília, semelhante aos centros de controle retratados em filmes sobre a NASA, o ONS ainda recorre a manuais de procedimentos de rede, volumes de considerável tamanho, que precisam ser mantidos constantemente atualizados e são de vital importância em situações de instabilidade. De tal forma que, esses manuais seriam inúteis se não estivessem impressos e acessíveis em momentos de crise. 

Ainda acerca do acesso ao conhecimento, é interessante notar ser possível hoje alimentar algumas ferramentas na nuvem com arquivos pdf e fazer perguntas a respeito do conteúdo, como na entrevista imaginada. No entanto, essa facilidade de nada adianta se não for possível localizar o livro ou o arquivo. Tal é a importância dessa questão, que levou a criação do Google Search Appliance, que foi um investimento da gigante de buscas no sentido de fornecer para as organizações uma forma de indexar automaticamente seus documentos.  

Tratava-se de um servidor com tecnologia Google embarcada, que era montado no Data Center do interessado e passava a indexar milhões de documentos corporativos. O problema passou a ser achar até o que não devia. Provavelmente, o motivo do produto vir a ser descontinuado brevemente, um indicativo da necessidade da intervenção humana na produção de conhecimento. 

Nesse sentido, O Departamento de Estudos Econômicos do Cade, proativo como de costume, produziu em 2020 o documento de trabalho nº 006/2020 com o subtítulo “Passado, Presente e Futuro”. Em síntese, trata-se de uma apresentação da história do Departamento, compilando em forma de conhecimento os anos de produção de estudos, pesquisas e pareceres de alto nível.  

Conhecimento responsável por definir rumos do antitruste no Brasil, dos quais destacam-se a Resolução nº 24/2019 do Cade, que trata do Gun Jumping, e o desenvolvimento de filtros econômicos para a detecção de cartéis já aplicados no mercado de venda de combustíveis. Com destaque a atuação do Economista-Chefe Luiz Esteves, colunista da Webadvocay, bastante profícuo na produção de notas técnicas durante sua gestão (2014-2016). 

Outra fonte de conhecimento para o Cade é a atuação dos advogados das partes, como bem ilustrado no recente artigo do ex-conselheiro do Cade, Mauro Grinberg, publicado no WebAdvocacy. Nesse artigo, ele destaca a significativa relevância da participação dos advogados perante o Cade, visto que desempenham um papel fundamental no processo de elaboração das decisões administrativas, cumprindo um compromisso público de contribuir para a construção dessas resoluções. 

As decisões que ao longo do tempo vêm moldando a jurisprudência do Cade, contribuindo para a formação de um conhecimento coletivo sobre diversos mercados, estavam, até recentemente, disponíveis em volumes intermináveis em papel. Como discutido anteriormente, devido às características inerentes desse formato, tais volumes apresentavam barreiras naturais de acesso, como as dificuldades e custos associados ao compartilhamento.  

No entanto, essa questão foi solucionada por meio da bem-sucedida iniciativa do Cade sem papel, que foi liderada por Mariana Rosa. Esse avanço se mostrou crucial durante a recente pandemia e, quando comparado com instituições governamentais de países como os EUA, coloca-nos em uma posição vantajosa, já que tais instituições não possuem a digitalização presente no caso do Cade. 

Além disso, à semelhança da natureza cumulativa do conhecimento mencionada no início, durante a gestão do ex-presidente Alexandre Barreto, o Cade implementou um sistema moderno de consulta de jurisprudência. Esse sistema é de importância fundamental para abordar as questões de acesso e garantir a previsibilidade das decisões da autarquia, um compromisso atentamente perseguido pelo corpo técnico do Conselho. 

A transparência e a participatividade que caracterizam a formação do conhecimento do Cade foram bem representadas durante a época da abertura de um inquérito administrativo para investigar possíveis práticas anticompetitivas no mercado financeiro e nos meios de pagamento eletrônico. Especificamente, o enfoque estava nos efeitos resultantes da verticalização dentro desse setor. Uma audiência pública, organizada pelo Cade e intitulada “Estrutura do Setor Financeiro Nacional: Impacto da Verticalização sobre a Concorrência”, proporcionou uma plataforma para uma ampla gama de perspectivas sobre as razões subjacentes ao custo elevado da intermediação financeira e dos serviços bancários e de pagamento no país. 

Nessa audiência pública, variadas visões foram apresentadas, abordando as possíveis causas da onerosidade associada aos serviços financeiros. Isso destacou a importância de analisar profundamente os efeitos da verticalização sobre a concorrência no setor financeiro, considerando a diversidade de opiniões e contribuições. Através desse processo participativo, o Cade demonstrou seu comprometimento com a transparência e a inclusão, permitindo que múltiplos pontos de vista fossem considerados na análise das práticas anticompetitivas e de suas implicações para os consumidores e para a economia em geral. 

A diversidade de pensamento e conhecimento, está presente em projeto de Elvino Mendonça, ex-conselheiro do Cade, pai da Webadvocacy, esta plataforma online que se destaca por produzir e disseminar conteúdo de excelente qualidade relacionado às áreas de direito e economia. Essa iniciativa representa de maneira notável outro âmbito de conhecimento do Cade: as comunidades online dedicadas à difusão de cursos, estudos e discussões. Muitos colunistas que fazem ou fizeram parte do Cade participam ativamente dessas comunidades, contribuindo para a manutenção de um ambiente de troca de conhecimentos. 

A presença de ex-membros do Cade nesses fóruns oferece uma oportunidade única para a comunidade antitruste. Ao compartilharem suas perspectivas e experiências, essas autoridades continuam a enriquecer o conjunto de conhecimentos disponíveis. Isso não apenas sustenta o nível atual de entendimento, mas também expande as perspectivas para abranger outras realidades e contextos. 

Dr. Elvino, como um ex-conselheiro do Cade, exemplifica a importância de indivíduos que, após ocuparem posições relevantes no campo antitruste, continuam a contribuir ativamente para a educação e o diálogo construtivo. A Webadvocacy e outras iniciativas semelhantes desempenham um papel vital na disseminação do conhecimento, na promoção do debate e na capacitação contínua de profissionais e estudantes interessados em direito e economia, proporcionando um ambiente de aprendizado rico e dinâmico, demonstrando o caráter de um ecossistema de defesa da concorrência que o Cade construiu ao logo dos anos. 

Em fechamento, nesse ponto, percebe-se claramente que o Cade, mesmo sofrendo com o turnover de pessoal como qualquer organização moderna, conseguiu elaborar uma série de instâncias e repositórios distribuídos e autogerenciáveis. Esses repositórios se retroalimentam de conhecimento antitruste, ventilando e engrandecendo o próprio conhecimento do Órgão. Esse conhecimento não se dissipa facilmente. Ao contrário das estruturas feudais de conhecimento acadêmico em que os nobres, detentores de títulos, se encastelam, como ocorria nos mosteiros do século XIV, o Cade empoderou cada servidor, colaborador, autoridade e a sociedade a ser um produtor de conteúdo. Esse conteúdo, ao ser continuamente produzido, não se permite ser esquecido. O conhecimento do Cade está hoje em toda parte. 


Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy.

Código Aduaneiro do Mercosul – Noções

Fabio Luiz Gomes

Objetiva-se com a instituição de um Código Aduaneiro do Mercosul conferir maior segurança jurídica e uniformizar procedimentos de modo em que facilite as transações intracomunitárias de bens e serviços aos contribuintes e empresas.

A utilização da tecnologia deve ser cada vez mais implementada pelas administrações aduaneiras, não só para tornar mais célere os procedimentos e com isso facilitar os deslocamentos dentro do território dos Estados partes do Mercosul, com isso ao uniformizar os procedimentos será conferida a maior transparência na prestação de serviços.

A aplicação do princípio da eficiência mostra-se entrelaçado com o trinômio: simplificação-tecnologia-qualificação, portanto, a qualificação dos funcionários aduaneiros completa a prestação de serviços de forma eficiente.

Objetiva-se, portanto, estabelecer procedimentos comuns, bem como a utilização dos mesmos códigos aduaneiros, a cooperação administrativa entre as autoridades aduaneiras dos Estados partes do Mercosul.

No aspecto territorial o CAM é aplicado nos territórios dos Estados partes do Mercosul, e utilizados nas relações dos Estados partes com Estados terceiros, ou nas relações do Bloco Mercosul com terceiros.[1]

Portanto, o território aduaneiro dos Estados partes do Mercosul compreendem todo território de cada Estado parte, inclusive o mar territorial, as águas territoriais e o espaço aéreo dos quatro Estados partes, isto é, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.

Compreendendo a atribuição da atuação das autoridades aduaneiras de acordo com a legislação de cada Estado parte.

Deve-se destacar que a cooperação e comunicação entre as autoridades aduaneiras[2] é imprescindível para o bom funcionamento do setor aduaneiros entre os Estados partes.

Constata-se os portos ou aeroportos onde serão processados o controle e a conversão monetária, especificar as disposições processuais para fixar o valor aduaneiro das mercadorias.

Dessa forma, o legislador do CAM estabeleceu três zonas aduaneiras: zona primária aduaneira[3], zona secundária aduaneira[4] e zona de vigilância aduaneira especial[5].

Destaca-se, a zona primária, a atribuição da autoridade aduaneira a área terrestre ou aquática, contínua ou descontínua, nos portos alfandegados; a área terrestre, nos aeroportos alfandegados; e a área terrestre, que compreende os pontos de fronteira alfandegados.

Em conclusão, o Estado parte demarca através da autoridade aduaneira local os pontos com soberania para passagem de fronteira.

Destaca-se, na zona secundária, uma natureza residual, isto é, o primeiro critério para delimitar o que é zona secundária é o restante do território que não for zona primária, portanto, não tiver sido demarcado como zona primária, aqui incluindo residualmente a área do território nacional, as águas e espaço aéreo.

Observa-se que no Brasil o seu desenvolvimento partiu das faixas costeiras, portanto, os portos marítimos são os mais comuns, portanto, as importações e exportações passam em grande parte por esses portos.

Tem-se como os principais portos do Mercosul: a) Porto de Santos – Brasil; b) Porto de Buenos Aires – Argentina; c) Porto de Assunção – Paraguai e d) Porto de Montevidéu – Uruguai.

Em 2021, segundo a Comisión Económica para América Latina y el CaribeCEPAL, o Mercosul aumentaram suas exportações em 35,6%, impulsionada pelos saltos dos preços das matérias-primas. Assim como as importações, impulsionado pela recuperação da atividade econômica dos Estados partes do Mercosul.[6]

Por último, também em 2021, o Mercosul manteve uma posição superavitária de 56,8 bilhões de dólares.[7]

Portanto, o desenvolvimento aduaneiro mostrou-se oportuno e que exige um desenvolvimento constante.

Consubstanciando também com grande relevância os portos fluviais que se desenvolveram ao longo dos rios do Brasil e os Estados partes do Mercosul.

Posto isto, os Rios Tietê, Paraná, Paraguai, Uruguai e seus afluentes podem representar brevemente o sistema hidroviário do Mercosul.

Com esse desenvolvimento, o setor hidroviário do Mercosul abrange 309 Municípios somente no Brasil.

Conclusão

Observa-se que a codificação aduaneira é essencial para o prosseguimento da instituição de um Mercado Interno no Mercosul, portanto, não só os procedimentos, mas as necessidades de circulação de bens e serviços impõe uma reformulação administrativa, adaptada aos desafios da fraude e evasão fiscal.

O desenvolvimento do comércio eletrônico exige das administração fiscal dos Estados dos do mundo contemporâneo.

Constata-se a necessidade da adoção de um código aduaneiro para permitir a evolução do processo de integração do Mercosul.


[1] Art. 1º, 4 do CAM.

[2] Art. 12 do CAM.

[3] Art. 4º do CAM.

[4] Art. 5º do CAM.

[5] Art. 6º do CAM.

[6]https://www.cepal.org/pt-br/noticias/exportacoes-mercosul-cresceram-2021-mas-os-volumes-permaneceram-fracos-pouca-diversificacao

[7]https://www.cepal.org/pt-br/noticias/exportacoes-mercosul-cresceram-2021-mas-os-volumes-permaneceram-fracos-pouca-diversificacao


  • Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy.

Remuneração de Capital no Setor de Distribuição de Energia Elétrica

Prorrogação das Concessões e Investigação de Excedentes Econômicos

Katia Rocha

Recentemente, o Ministério de Minas e Energia lançou a Consulta Pública 152 (CP) sobre diretrizes para prorrogação (e/ou licitação) das concessões de distribuição de energia elétrica com vencimentos entre 2025 a 2031. Correspondem a vinte concessões que juntas atendem 62% do mercado de distribuição do país.

A CP acontece em um momento crítico para o setor, com desafios estruturais diversos no contexto de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado (possibilidade do consumidor regulado poder escolher seu fornecedor), sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Atualmente, encontram-se em análise no Legislativo o PL 414 de 2021 e PL 1917 de 2015, com possibilidades do Governo apresentar um novo projeto para modernização do setor elétrico ainda esse ano. Será necessário endereçar os diversos temas elencados no último GT Modernização do Setor Elétrico , como a racionalização de encargos e subsídios, descontos de fontes incentivadas, expansão da confiabilidade do sistema, garantia do suprimento que onera sobremaneira o consumidor regulado, sinais econômicos inadequados que distorcem decisões de migração para o mercado livre, inserção de novas tecnologias, separação de lastro/energia e fio/energia, sustentabilidade dos serviços de distribuição, mecanismos de formação de preço, entre outros.

A abertura gradativa de mercado, com cronograma previsto para 2024, 2026 e 2028 a depender no nível de consumo e tensão, aliada às possibilidades de serviços ofertados a partir do surgimento de novas tecnologias de geração e armazenamento, como os REDs[1], impactam diretamente os serviços e equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras. Com efeito, temos toda uma transição do sistema elétrico, predominantemente centralizado-unidirecional, para um sistema híbrido-bidirecional, com aumentos significativos na complexidade do setor, e adaptações necessárias no planejamento e arcabouço regulatório, como destacado no próprio Plano Nacional de Energia – 2050.

A Nota Técnica nº 14/2023/SAER/SE que apresenta as diretrizes da CP, caminha na direção da prorrogação das concessões que atendam a requisitos mínimos de qualidade na prestação do serviço (indicadores de frequência e duração média das interrupções), e na boa gestão econômico-financeira da concessão (índice de endividamento amparado na geração de caixa operacional). Mantém o modelo de regulação por incentivos, que impulsiona às distribuidoras na busca constante por maior eficiência na operação e investimentos, com ganhos de qualidade recompensados, como recomendado pelo Utility for the Future[2].

A opção pela prorrogação apresenta alguns condicionantes. O mais debatido no âmbito da CP trata sobre investigação acerca de eventual excedente econômico, objeto deste artigo. O racional recai na possibilidade de a prorrogação ensejar ganhos potenciais excedentes aos concessionários, ao contrário das licitações, onde tal ganho seria devidamente extraído via leilões competitivos. Sugere incorporação dos ganhos excedentes na modicidade tarifária ou em contrapartidas sociais.

Observou-se, nas contribuições à CP, argumentos contrários a essa lógica, uma vez que, o modelo regulatório vigente, nos moldes de regulação por incentivo (Price Cap), já capturaria os eventuais excedentes econômicos no próprio processo de revisão periódica, com o reposicionamento tarifário e estabelecimento do Fator X (eficiência/produtividade).

No entanto, a proposta da CP nos motiva a analisar a evolução temporal da rentabilidade desse segmento no Brasil, bem como sua comparação com os mercados globais. Tal procedimento é essencial para qualquer atividade econômica, em especial, para o segmento regulado de distribuição de energia, setor estratégico que passará por profundas mudanças estruturais nos próximos anos.

Essa análise justifica-se, não apenas no sentido de mensurar potencias ganhos excedentes, mas como instrumento de avaliação do alinhamento da taxa regulatória de remuneração do capital com a remuneração real obtida pelo setor. Tal inferência se ampara no próprio contexto de modernização do setor elétrico, onde o processo de abertura de mercado e as novas tecnologias digitais e descentralizadas terminam por conduzir o segmento da distribuição a um novo desenho regulatório[3], com a necessária separação entre fio-energia (unbundling) e diversos aperfeiçoamentos na atividade do comercializador varejista, com necessidade crescente de investimentos, que dependem de adequada remuneração de capital.

A Remuneração do Capital Investido e o spread de Valor Agregado (ROIC – WACC)

O custo de capital de uma empresa regulada equivale à taxa de retorno adequada ao risco do setor em que se insere a empresa e respectivos serviços, de forma a promover a atratividade requerida aos investidores, assegurando a necessária qualidade e expansão do serviço. Essa taxa é responsável por remunerar todo o capital da empresa, incluindo o capital próprio (acionistas) e o capital de terceiros (credores)[4].

A ANEEL, em suas competências sobre regulação de tarifas, é o ente responsável pela definição e estimação da taxa regulatória de remuneração de capital no decorrer dos processos de revisão tarifária periódica. Para tal, utiliza modelos fundamentados de custo médio ponderado capital – WACC e de precificação de risco e retorno – CAPM.

Uma forma de se avaliar a rentabilidade econômica de uma empresa, ou seu lucro econômico excedente, consiste na comparação do seu custo de capital com a métrica de Retorno sobre Capital Investido – ROIC.

O ROIC é um indicador, calculado a partir de dados contábeis, muito utilizado em avaliação de empresas. Investiga a eficiência na alocação do capital em investimentos rentáveis. Representa métrica padrão, do tipo quanto maior, melhor, e relaciona o resultado operacional após impostos (numerador) à média anual do capital investido (denominador). Caracteriza, portanto, o lucro operacional sobre todo o capital da empresa, independentemente de sua estrutura de financiamento, facilitando eventuais comparações[5].

A comparação do ROIC de uma empresa com seu custo de capital (WACC nominal após impostos) revela se o capital investido está sendo empregado de maneira eficaz. Caso o ROIC seja, sistematicamente, superior ao custo de capital, a empresa está adicionando valor econômico. Caso contrário, não há remuneração adequada do capital e sim destruição de valor. A regra de bolso, adotada pelo mercado, considera desvios (spreads) superiores a 2% para concluir na direção de valor econômico adicionado.

Supondo que a taxa de remuneração regulatória estipulada pelo regulador (ajustada para taxa nominal) é boa proxy do custo de capital das distribuidoras, podemos investigar a rentabilidade do segmento e a respectiva aderência regulatória.

A Tabela 1 apresenta esse exercício para um universo não exaustivo de empresas concessionárias, disponível na base de dados Bloomberg. Para efeitos de comparação, os spreads de valor agregado para diferentes mercados globais são apresentados na Tabela 2.

Os resultados para Brasil sinalizam evidente desalinhamento do indicador médio de ROIC no período – média de 11.29%, com o custo de capital regulatório – média de 13.37% em termos nominais[6]. Um spread negativo de cerca de 2%, que se traduz nummodelo de negócio sem remuneração adequada, e tampouco estímulos para maiores e melhores investimentos[7].

Na comparação com mercados emergentes e globais, o setor apresenta certo grau de consolidação, com spreads de valor agregado próximo a zero (usual em setores maduros e regulados cuja remuneração se alinha ao custo de capital). É visível os impactos na Europa em 2022 decorrente dos altos preços de energia e gás, e em menor grau nos Estados Unidos. A tendência de spreads positivos acima de 2% para empresas americanas pode decorrer da grande liquidez global após a crise de 2008, de regimes regulatórios distintos (cost-plus), entre outras questões especificas ao país. 

Finalizo sublinhando a importância de estudos sobre rentabilidade econômica de setores regulados, em especial, do segmento distribuição, elo final de remuneração de toda cadeia. Tais avaliações são fundamentais no contexto de análise de impactos regulatórios, formulação de políticas públicas, que inclui revisão de subsídios ineficientes ou encargos crescentes, e liberalização de mercado. Ressalto que a liberação de mercado é a realidade em todos os países membros da OCDE, inclusive com separação vertical – legal, operacional e contábil, entre o setor de distribuição e de varejo. A agenda de modernização do setor elétrico tem de avançar.

Tabela 1: A Remuneração do Capital Investido no Setor de Distribuição Elétrica (ROIC)

Fonte: Bloomberg, * Despacho ANEEL Nº 829/2023 Memória de Cálculo, ** Estimado implicitamente via taxas referencias de swaps DI x PRE e DI x IPCA para quatro anos na B3.

Tabela 2 – Spread de valor Agregado (ROIC – WACC): Brasil x Mercado Global

Fonte: Bloomberg e Damodaran Online Data – EVA: https://pages.stern.nyu.edu/~adamodar/New_Home_Page/dataarchived.html

Referências

Brealey, R.A., Myers, S.C. and Allen, F. (2011) Principles of Corporate Finance. 10th Edition, McGraw-Hill/Irwin, New York

Damodaran (2012). Investment Valuation: Tools and Techniques for Determining the Value of Any Asset. Willey Finance Book.

Dutra, J. (2023a). #Unbundling, a separação de fio e energia. IBRE.

Dutra, J. (2023b). Open Energy e a abertura do mercado de eletricidade. IBRE

Dutra, J. (2023c). Como desenvolver resiliência financeira nos mercados de eletricidade. IBRE.

GESEL (2021). Reflexões sobre impactos da Geração Distribuída no Mercado de Energia Elétrica do Brasil. TDSE 105 GESEL.

GESEL (2023a). Excedentes Econômicos e Sustentabilidade Econômico-Financeiro das Distribuidoras. Contribuição a CP 152/2023. GESEL.

GESEL (2023b). Experiências na União Europeia em relação às concessões de distribuição no setor elétrico”. TDSE 115 GESEL.

GESEL (2023c). Prorrogação das Concessões: Análise de indicadores de qualidade de atendimento das Distribuidoras de energia elétrica. TDSE 117 GESEL.

Utility for the Future. An MIT Energy Initiative response to an industry in transition. Massachusetts Institute of Technology. 2016.


[1] Os Recursos Energéticos Distribuídos – RED contemplam tecnologias como geração distribuída – GD, armazenamento de energia, veículos elétricos e estruturas de recarga, eficiência energética e gerenciamento pelo lado da demanda, permitindo papel mais ativo do consumidor tanto na geração, quanto na gestão do consumo da sua própria energia (fluxos bidirecionais), entre outros.

[2] O estudo do MIT avalia os impactos das novas tecnologias e modelos de negócio que estão moldando a evolução e transformação da indústria de eletricidade, com recomendações de regulação e planejamento.

[3] Ver Gesel (2021, 2023a, 2023b, 2023c) e Dutra (2023a, 2023b, 2023c).

[4] Brealey, R.A., Myers, S.C. and Allen, F. (2011) Principles of Corporate Finance. 10th Edition, McGraw-Hill/Irwin, New York.

[5] Ver Damodaran (2012).

[6] Ajustou-se o WACC regulatório real estipulado pela ANEEL para termos nominais via IPCA futuro implícito através das taxas referenciais de swaps DIXPRE e DIXIPCA na B3 para 4 anos à frente.

[7] Ressalto as devidas cautelas em eventuais comparações, seja entre empresas ou países, uma vez que a amostra apresenta elevado grau de dispersão e heterogeneidade, com agregações de países de diversos regimes regulatórios, composição da matriz elétrica e crises globais no período. Recomenda-se a análise da tendência, que possibilita suavizar fatores conjunturais – crises globais, fatores de liquidez e risco global – focando nos fatores estruturais de mercado – regulação, renda, desenho de mercado, matriz elétrica, etc.

* KATIA ROCHA. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

Principais aspectos jurídicos do mútuo conversível em participação societária

Conheça um dos principais contratos utilizados no financiamento de startups, que se revela uma excelente opção para negócios em estágio inicial ou intermediário de crescimento.

André Santa Cruz, Ronan Santos & Matheus Ferraz

1.    Introdução

O tema do financiamento é um dos mais sensíveis para qualquer sociedade empresária. No começo, quando as despesas superam em muito as receitas, a palavra de ordem é sobrevivência. Nesse cenário, até que se atinja o ponto de equilíbrio (também chamado de breakeven[1]), o capital de terceiros garante a entrada e a manutenção de muitos novos empreendimentos no mercado.

Para a busca desse capital existem, basicamente, duas modalidades de captação de investimento: debt (dívida) ou equity (participação societária). Pensemos no processo de montagem de uma cafeteria, por exemplo. Para fazê-la funcionar, é preciso investir dinheiro. Pode-se tomar um empréstimo no banco (debt) ou convidar uma pessoa para ser sócia (equity).

Cada uma dessas formas tem um risco: se a escolha recair sobre a tomada de empréstimos, os obstáculos serão os juros altos e o risco das dívidas bancárias, sem contar os problemas com possíveis garantias, que em estágios iniciais de qualquer empresa costumam ser raras. Por outro lado, a entrada de um sócio logo no começo pode ocasionar dificuldades na tomada de decisões.

Com base na experiência estrangeira, entretanto, outras formas de obter capital para a estruturação de um negócio surgiram. A dívida conversível em participação é a principal delas.

As debêntures conversíveis em ações representam o exemplo mais emblemático. Ocorre que as sociedades limitadas (maioria esmagadora das sociedades empresárias constituídas no Brasil) não podem emiti-las. Diante disso, outra modalidade de contrato se popularizou: o mútuo conversível, um tipo de empréstimo que, cumpridas certas condições, faz do credor sócio.

2.            O que é o mútuo conversível?

A autonomia privada, princípio basilar do direito empresarial, permite que os agentes econômicos possam agir dentro da esfera que a lei não lhes proíbe. Nesse universo estão contidos os contratos atípicos, autorizados pelo art.425 do Código Civil[2]. Em geral, esses negócios jurídicos são misturas de outros negócios típicos, a exemplo do leasing, que combina locação com promessa de venda[3].

O mútuo conversível, na prática, é a junção de dois contratos em um só: o empréstimo de capital com a aquisição de participação societária. O credor empresta o dinheiro, com juros, do mesmo modo que uma instituição bancária faria, porém sob condições mais favoráveis, seja pelo fato de não exigir garantias, seja pelo objetivo principal de que a empresa dê certo. 

3.            Como funciona o mútuo conversível?

O mútuo conversível funciona da seguinte maneira: transfere-se o dinheiro a juros com determinado prazo, ao fim do qual o credor pode optar ou por receber o dinheiro de volta (corrigido e com juros) ou por se tornar sócio, transformando o valor do empréstimo em parte do capital social da sociedade empresária.

Trata-se de uma solução boa não só para as startups, que se beneficiam de um aporte associado a expertise (smart money), mas também para os investidores, cujo patrimônio fica a salvo em caso de insucesso. Embora atenda aos interesses das duas partes, a solução não é isenta de problemas.

4.            Pontos de atenção durante a execução do contrato de mútuo conversível

4.1 Fiscalização no mútuo conversível

O primeiro e mais óbvio problema do mútuo conversível é o seguinte: como garantir a correta aplicação dos recursos sem o risco de ser caracterizado como sócio? Enquanto credor, aquele que investe não tem direito de voto, reservado aos sócios. Enquanto investidor, deseja que o seu dinheiro não sirva só como capital de giro ou fique no bolso de algum mal-intencionado.

Para evitar esse problema, o contrato deve prever o chamado voto afirmativo. Ele será restrito àquelas matérias que estejam previstas no contrato de mútuo conversível.  Dessa forma, somente com o consentimento do mutuante aquela matéria será aprovada. Porém, deve-se levar em conta o risco da caracterização de sociedade em comum[4].

Um exemplo disso envolve a transação com partes relacionadas, fato que a jurisprudência já reconheceu como apto a provocar a resolução do mútuo conversível, se houver tal previsão no contrato[5]. O não fornecimento dos balanços solicitados para o acompanhamento da evolução da sociedade empresária também pode ensejar a resolução do negócio jurídico, conforme a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[6].

4.2 Cálculo das participações antes e depois da conversão do mútuo em participação (cap table)

Outro ponto de extrema atenção no mútuo conversível é o cálculo do cap table (tabela com os percentuais de cada sócio, antes e depois da conversão). A elaboração dessa tabela permite calcular a diluição de cada fundador ou mesmo do mutuante, caso haja novas rodadas de investimento. É possível, inclusive, pactuar que o investidor pague um valor para que não seja diluído, sob pena de perder determinados privilégios. De qualquer modo, é importante realizar esses cálculos para evitar surpresas desagradáveis.

4.3 Auditoria da empresa que vai receber o mútuo conversível

A due diligence exerce um papel de destaque dentro da relação de mútuo conversível. Quem coloca o seu dinheiro num negócio quer estar por dentro de todos os riscos, até para decidir se vai ou não prosseguir com o investimento. Para os sócios, é importante estar com todas as informações reunidas, de modo que as respostas sejam precisas e rápidas.

O não fornecimento de balanços solicitados, por exemplo, pode frustrar a realização do contrato, porque o elemento de confiança não estará presente. Ou, se houver alguma contradição entre as informações apresentadas e os dados reais da empresa, é possível a resolução do contrato, inclusive com o pagamento de indenização por parte da empresa mutuária[7].

4.4 “Declarações e garantias” e covenants

À auditoria se seguem as declarações e garantias[8], com as quais os fundadores dão sua palavra de que prestaram informações verdadeiras ao credor e sócio em potencial. Para além do caráter moral (afinal, sem honestidade, a relação societária é impossível), as implicações jurídicas podem pesar no bolso (pagamento de indenização).

É importante haver cláusula expressa de covenant[9], por meio da qual o investidor terá acesso às informações e documentos que julgar necessários e poderá dar diretrizes para contratação de serviços pela sociedade. A clareza precisa presidir a relação desde o princípio.

4.5 Fixação do destino dos valores do mútuo conversível

O emprego dos valores emprestados ocupa posição importante dentro do mútuo conversível. Como dito antes, eles não podem se converter em capital de giro ou cash out. Devem servir para aperfeiçoar o produto ou serviço, isto é, melhorar o empreendimento. Por essa razão, utiliza-se a cláusula use of proceeds[10], que pune a destinação incorreta com o vencimento antecipado do mútuo.

4.6 Aspectos societários da relação pós-mútuo conversível

O objetivo de quem investe quase nunca é permanecer sócio. A meta é comprar as ações ou quotas a um valor baixo e depois revendê-las quando estiverem na alta. Desse modo, a previsão de eventos de liquidez permite que o investidor realize mais rápido o objetivo dele. Alguns exemplos dessas ocasiões são a venda da empresa, a incorporação, a oferta de ações na bolsa etc.

Contudo, uma vez que esse credor passe a compor a sociedade, é necessário redigir um bom acordo de sócios, para que as relações corram com segurança. O voto afirmativo, a eleição em separado de membros do conselho de administração ou a previsão de mecanismos anti-diluição são itens bastante comuns nesses acordos. A cláusula de lock up, vedando por certo período a saída de um sócio, também é usual. Do mesmo modo, merece menção a cláusula de non compete, vedando a concorrência por determinado tempo.

4.5 Aspectos tributários

Normalmente, a emissão de novas ações ou quotas é feita por um valor maior que o nominal (valor total do capital social/n° de quotas). Esse sobrevalor recebe o nome de ágio. Nas sociedades limitadas, essa quantia sofre tributação de 34%, somados IRPJ e CSLL. Considerando o possível custo, tornou-se comum a cláusula de transformação em sociedade anônima no mútuo conversível, já que nas companhias optantes pelo lucro real o ágio está isento de tributação[11].

5.    Conclusão

A busca por fontes de financiamento é fundamental para qualquer negócio, mas sobretudo para aqueles que oferecem produtos ou serviços inovadores, nos quais o mercado tradicional põe pouca confiança. O mútuo conversível foi uma solução para esse problema.

Apesar de trazer enormes vantagens, é necessário atentar-se para os riscos que esse contrato traz consigo, sobretudo no tocante à possibilidade da caracterização da sociedade de fato. Por isso, o instrumento contratual deve amoldar-se às circunstâncias do caso concreto. Dessa forma, a startup alcança a expansão, e os investidores lucram com a venda das participações que adquiriram. Uma mão lava a outra.


[1] https://www.insper.edu.br/noticias/o-que-e-break-even-point-e-como-ele-e-calculado/

[2] Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência – 22. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019 p.256

[4] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.93-94).

[5] (TJSP;  Apelação Cível 1113983-92.2016.8.26.0100; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 36ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/05/2022; Data de Registro: 01/06/2022)

[6] (TJSP;  Apelação Cível 1012467-48.2018.8.26.0071; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Bauru – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/08/2021; Data de Registro: 25/08/2021)

[7] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.90

[8] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.89-90.

[9] Por meio dos covenants, a parte investida assume o dever de realizar determinadas obrigações de prestação de informações, de exibição de papéis e documentos da sociedade e de seus negócios, de contratar conforme o use of proceeds, bem como de não contratar senão de acordo com as autorizações dadas pela sociedade investidora/mutuante (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.87).

[10] É por meio da cláusula de vinculação do “uso das receitas”, que o mutuante, em acordo de vontades com a mutuária/investida, contrata a destinação do aporte para determinado(s) fim(ns) do planejamento estratégico da sociedade (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.82).

[11]ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.67-68.


André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.

Ronan Santos é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, graduado em Direito pelo Centro Universitário IESB, em Brasília, e pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

Matheus Ferraz é advogado inscrito na OAB/PE, graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, e pós-graduando em Direito Empresarial.


Ativos virtuais e finanças tokenizadas

Banco Central vai regular o mercado de criptomoedas e outros criptoativos

Leandro Oliveira Leite

Em junho de 2023[1], o Banco Central do Brasil assumiu a competência para regular o mercado de prestação de serviço de ativos virtuais, uma decisão que reflete seu papel essencial em zelar pela estabilidade e integridade do sistema financeiro. Essa regulação tem o objetivo de garantir a prestação adequada dos serviços de ativos virtuais, promover a livre concorrência e proteger os consumidores e usuários desse mercado.

O Banco Central está em processo de formulação e apresentação de um modelo de regulação para o mercado de criptoativos, planejando realizar consultas públicas no segundo semestre deste ano para receber opiniões de empresas, especialistas, consultores e do público em geral. Essa regulamentação será baseada em diretrizes importantes para garantir a prestação adequada de serviços de criptoativos. O objetivo é alinhar o Brasil às recomendações internacionais relacionadas ao tema, reconhecendo as oportunidades de inovação que esses ativos virtuais oferecem, incluindo descentralização, redução de custos de negociação, transparência e integração entre diferentes tipos de produtos e serviços.

A evolução constante dos ativos virtuais e tecnologias subjacentes exige uma atuação transversal e coordenada entre diversos reguladores, como a Secretaria da Receita Federal e a Comissão de Valores Mobiliários. As empresas já presentes no mercado terão pelo menos seis meses para se adequarem à legislação e regulamentação vigente.

Nos últimos anos, o mercado de criptomoedas e outros criptoativos tem ganhado uma atenção notável. Esses ativos financeiros virtuais, suportados por algoritmos criptográficos e uma rede descentralizada utilizando tecnologia de ledger distribuída (DLT)[2], atraíram a curiosidade de investidores, entusiastas e até mesmo governos ao redor do mundo.

A ideia de uma moeda ou ativo financeiro digital, sem representação física, pode parecer complexa à primeira vista. Porém, com a popularização da tecnologia blockchain[3], uma base de dados descentralizada que garante a segurança e a integridade das informações, a ideia de ativos virtuais ganhou espaço e interesse entre o público.

A rede descentralizada, construída em blockchain, é composta por milhares de computadores que armazenam as informações e garantem a veracidade das transações. Esse modelo torna o sistema resistente a fraudes e elimina a necessidade de uma entidade centralizadora, como um banco ou uma autoridade reguladora, para intermediar as operações. A criptografia é a base da segurança dessa rede, garantindo que as informações estejam protegidas e invioláveis.

Dentro do conceito de criptoativos, encontramos as criptomoedas, como o Bitcoin, Ethereum, entre outras. No entanto, é importante ressaltar que os criptoativos vão além das criptomoedas. Inclua também como NFTs (Non-fungible tokens), que representam ativos únicos e indivisíveis, como obras de arte digital, colecionáveis ​​e outros itens exclusivos.

Apesar de toda a inovação e potencial revolucionário, os criptoativos carregam desafios e riscos. A volatilidade é um dos principais pontos de preocupação para os investidores. O valor de uma criptomoeda pode variar enormemente em curtos períodos de tempo, causando perdas para alguns investidores.

A regulação do Banco Central deve partir de diretrizes que levem em consideração as peculiaridades dos criptoativos, a natureza descentralizada das operações e os envolvidos. A consulta pública sobre o tema permitirá que empresas e especialistas contribuam com suas opiniões e experiências para a criação de um ambiente regulatório mais seguro e adequado.

A regulamentação de criptoativos pelo Banco Central vai ao encontro de recomendações internacionais e visa fomentar a inovação, eficiência e inclusão financeira no Brasil. Com a competência de regulador definido em lei, o Banco Central acompanhará o desenvolvimento desse mercado, buscando sempre conciliar a inovação tecnológica com a segurança e estabilidade do sistema financeiro.

Por fim, é importante destacar que criptoativos não devem ser confundidos com a criação do CBDC (Central Bank Digital Currency), conhecido como Real Digital, outra tecnologia que também tem o potencial de promover a inclusão financeira, reduzir custos e aumentar a eficiência das transações financeiras no país. O real digital será uma moeda digital pertencente ao próprio Banco Central, com características distintas dos criptoativos. O “Boxe 9 – Real Digital: uma plataforma para as finanças” do Relatório de Economia Bancária 2022[4] destaca que essas iniciativas fazem parte de uma tendência global de digitalização do dinheiro e que o Banco Central deve atuar como regulador para garantir a plataforma de segurança e a estabilidade financeira.

Acrescenta ainda o relatório que, como mecanismo facilitador da inovação nos mercados financeiros, as plataformas das moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC) permitem a incorporação de novas tecnologias e novos modelos de negócios com potencial para atender à demanda da população por meios nativamente digitais de liquidação, similares aos disponíveis no ecossistema de criptoativos. Uma tendência, favorecida pelas tecnologias que dão suporte ao ecossistema de criptoativos, é a tokenização[5] de ativos. “A disseminação da tokenização tem o potencial de gerar ganhos concretos em acessibilidade a ativos e promover maior eficiência em suas transações. Em geral, os ativos tokenizados podem ser transferidos facilmente, de forma fracionária e em segundos. Eles podem ser usados em aplicações descentralizadas e armazenados em contratos inteligentes (smart contracts), que são executados automaticamente quando condições e termos predeterminados são atendidos”.

Em resumo, a regulação dos criptoativos pelo Banco Central é um passo importante para a consolidação desse mercado no Brasil. A regulação adequada visa equilibrar a inovação tecnológica com a proteção dos consumidores e a estabilidade financeira, tornando o ambiente de negócios mais seguro e propício para o desenvolvimento dessa classe promissora de ativos financeiros virtuais. A regulamentação busca garantir que os criptoativos possam contribuir de forma positiva para a economia brasileira e o bem-estar dos cidadãos, impulsionando o país em direção a uma economia mais digital e inclusiva.

Referências:

Banco Central prepara Consultas Públicas sobre regulamentação de criptoativos:

https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/705/noticia

Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11563.htm?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Banco-Central-prepara-Consultas-Publicas-sobre-regulamentacao-de-criptoativos

Relatório de Economia Bancária 2022:

https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/reb2022p.pdf


[1]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11563.htm?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Banco-Central-prepara-Consultas-Publicas-sobre-regulamentacao-de-criptoativos

[2] A tecnologia de contabilidade distribuída é usada em criptomoedas como bitcoin. DLT é usado para manter um banco de dados de todas as transações que estão acontecendo em um mercado e permitir que elas sejam vistas simultaneamente por todos os participantes.

[3] Blockchain pode ser traduzida como corrente de blocos. De uma forma simples, trata-se de uma tecnologia que agrupa um conjunto de informações que se conectam por meio de criptografia. Assim, transações financeiras e outras operações podem ser feitas de forma segura.

[4] https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/reb2022p.pdf

[5] Tokenizar um bem ou serviço nada mais é do reproduzir de forma digital esse produto – seja a ação de uma empresa, um título de dívida, obra de arte etc -, conferindo benefícios, valor e características originais associados a ele, inscrito em uma determinada rede blockchain.

O standard probatório para condenação de cartéis: a aplicabilidade do stare decisis ao direito administrativo brasileiro e a esperança de um aumento da previsibilidade dos julgamentos do Cade

Polyanna Vilanova & Henrique Muniz

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) é o único órgão do Poder Executivo com competência para condenar agentes econômicos pela prática de cartel, isto é, consiste na única e última instância de todo o Poder Executivo competente para determinar o pagamento de multas e outras penas em virtude da prática desse tipo de ilícito. Não obstante, ainda que as decisões do Conselho possam ser objeto de ação anulatória judicial, identifica-se uma crescente deferência do Poder Judiciário às decisões do Cade, haja vista a expertise técnica deste último e a necessidade de equilíbrio entre os poderes constituídos.

Tendo em conta a importância da atuação do Cade e a capacidade de produção de efeitos das suas decisões na sociedade, é possível se afirmar que a autarquia antitruste se preocupa com a unificação da sua jurisprudência quanto ao padrão de prova necessário para a condenação de cartéis? Identifica-se certa previsibilidade nas decisões sobre o tema?

Essa discussão possui extrema relevância, visto que, em casos de cartel, a comprovação do acordo colusivo entre concorrentes é etapa essencial para a configuração do ilícito investigado, uma vez que não há extenso debate sobre a ilicitude da prática em razão do entendimento majoritário no direito antitruste de que cartéis são ilícitos per se[1].

Logo, a valoração do conjunto probatório disponível nos autos (o valor conferido pelo julgador a cada tipo de prova no caso concreto) e o standard probatório (padrão de prova apto a ensejar a condenação em razão da referida infração à ordem econômica) não são aspectos triviais da análise do Cade em processos administrativos envolvendo cartéis.

Isso porque o sistema brasileiro adota o livre convencimento motivado, também denominado de “persuasão racional”, “segundo o qual o julgador deve apreciar as provas para formar seu convencimento sobre a veracidade dos fatos, atendo-se àquelas que julgar mais convincentes[2]”, ainda que limitado pelo dever de motivação clara e racional de seu convencimento[3].

Dessa forma, o padrão probatório se relaciona intimamente ao sistema de valoração das provas e à subjetividade (ainda que motivada) dos julgadores, o que se soma às oscilações decorrentes da natural alteração na composição dos órgãos colegiados encarregados de proferir decisões, como é o caso do Tribunal Administrativo do Cade.

Muito embora a jurisprudência do Cade seja uníssona, independentemente das diversas composições do seu Tribunal, quanto à necessidade de um conjunto probatório “suficientemente forte e robusto” para condenação de cartéis, conforme extensa análise de casos do Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência[4], as controvérsias surgem quando se está diante de um acervo probatório formado apenas por provas indiretas ou unilaterais, resultando em diferentes posicionamentos quanto às hipóteses em que as provas indiciárias e circunstanciais são capazes, ainda que de forma indireta, de constituir um conjunto suficientemente robusto para gerar o convencimento por parte da autoridade julgadora no sentido da configuração do ilícito.

A discussão acerca da possibilidade de utilização de provas indiretas para condenações no âmbito do Cade é relativamente recente e remonta à década passada[5].

O precedente considerado pela doutrina como leading case no uso de conjunto probatório exclusivo de provas indiretas para formação de convicção de condenação é a decisão do Processo Administrativo nº 08012.001273/2010-24, em que o colegiado à época condenou, por unanimidade, o cartel dos aquecedores no ano de 2015.

De lá para cá, são recorrentes as discussões acerca do padrão probatório e provas indiretas nos julgamentos do Cade em virtude da ausência de previsão legal de atribuição de um valor determinado a uma prova, haja vista a adoção do sistema do livre convencimento motivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, os julgamentos desses casos recorrentemente dividem opiniões, impossibilitando a identificação de um posicionamento uniformizado capaz de gerar previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse cenário, a possibilidade de se identificar valorações semelhantes a provas parecidas em casos diferentes ganha extrema relevância para garantir a segurança jurídica aos investigados por supostas práticas anticompetitivas. Isto é, a adoção justificada de critérios já utilizados em outros julgados, tal como ocorre no sistema Common Law de vinculação pelos precedentes, se faz necessária para conferir consistência jurisprudencial à autarquia antitruste e para gerar certa previsibilidade para o julgamento de um conjunto probatório.

A incorporação de institutos de origem anglo-saxã permeados pelo sistema de Common Law ao direito administrativo brasileiro foi estabelecida no ordenamento jurídico nacional. Inclusive, tais institutos já teriam aplicabilidade, em razão do disposto no artigo 927, I a V, do CPC. Contudo, tal aplicabilidade fica evidente com a previsão do artigo 30 da Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, tendo como objetivo realizar o trespasse da stare decisis às decisões administrativas.

A atual composição do Tribunal Administrativo do Cade parece estar atenta a esse debate e à necessidade de gerar previsibilidade e segurança jurídica, bem como de preservar a isonomia no tratamento dos administrados (treat like cases alike), conferindo observância às decisões proferidas (backward-looking) e constituindo os futuros precedentes (fooward-looking), principalmente no que se refere ao padrão probatório de condenações de cartéis.

Na sessão ordinária de julgamento (“SOJ”) do Cade realizada no dia 08.03.2023, ocorreu um extenso debate acerca da valoração das provas indiretas e unilaterais, bem como da importância de o Conselho reafirmar e unificar sua jurisprudência sobre o standard probatório necessário para condenação por prática de cartel durante o julgamento do Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78, instaurado para apurar suposta prática de cartel no mercado nacional de sistemas térmicos automotivos (módulos de arrefecimento do motor – Engine Cooling Modules – “ECM”, radiadores, condensadores; sistemas de aquecimento, ventilação e ar-condicionado – Heating, Ventilation and Air conditioning – “HVAC”).

No caso do cartel de sistemas térmicos automotivos em comento, a constatação da ocorrência do ilícito derivou da assunção de culpa e das informações e dos documentos extraídos de acordos administrativos (Acordos de Leniência – “ALs” – e Termos de Compromisso de Cessação de Conduta – “TCCs”) celebrados entre o Cade e parte das empresas e pessoas físicas representadas, contra as quais a investigação foi suspensa. O julgamento prosseguiu em face de duas empresas e pessoas físicas não administradoras ligadas a tais empresas.

Em sua Nota Técnica[6], a Superintendência Geral do Cade (“SG/Cade”) recomendou que as empresas representadas fossem condenadas tendo em vista que constariam “nos autos 22 evidências de sua participação na conduta”, que constituiriam provas diretas do conluio. O Parecer[7] do Ministério Público Federal junto ao Cade (“MPF/Cade”) também defendeu a condenação por entender que o conjunto probatório seria suficiente à demonstração da adesão das empresas ao acordo anticompetitivo. Já a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (“PFE/Cade”) apresentou divergência em relação à sugestão de condenação pela SG/Cade e pelo MPF/Cade, recomendando o arquivamento em relação às representadas por entender que o conjunto probatório reunido nos autos seria insuficiente para demonstrar a participação das empresas no conluio.

Diante das divergências apresentadas, o Presidente Alexandre Cordeiro suscitou a necessidade de aprofundamento da análise do conjunto probatório sob a ótica de uma revisão comparativa da jurisprudência do Tribunal do Cade acerca do padrão probatório para condenação de cartéis.

Durante seu voto em sessão, o Presidente ponderou que “é imperativa a observância dos limites à utilização de tais provas (indiretas), uma vez que podem ser ambíguas e, portanto, não levar à inequívoca certeza da participação do representado no ilícito”. Complementou, ainda, que “é imprescindível que sejam apresentadas provas suficientemente fortes e robustas e isso consta, inclusive, no nosso Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência. Justamente, provas robustas da existência do cartel e, não menos importante, que tais provas impliquem, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados[8]”.

Além disso, fez considerações sobre a importância do respeito ao princípio do in dubio pro reo e sustentou que os “Acordos de Leniência e Compromissos de Cessação firmados por participantes das infrações investigadas constituem importante fonte de informação sobre a existência, participação e duração de cartéis. Ocorre que os relatos de tais acordos necessitam de documentos que os amparem, não sendo, por si só, uma sentença condenatória, sob pena de ensejar condenações sem lastro e um suporte condenatório adequado[9]”.

Por fim, após análise detalhada de precedentes das cortes superiores, do Tribunal do Cade e dos guias produzidos pela autarquia, bem como dos autos, o Presidente conclui pelo arquivamento devido à ausência de suporte probatório suficiente para condenação por qualquer tipo de prática anticoncorrencial.

É válido destacar, também, o posicionamento do Conselheiro Luiz Hoffmann, que asseverou em seu voto que “é indispensável que as provas indiretas sejam analisadas de forma sistemática, considerando o conjunto probatório como um todo, assim como sustenta o Guia de Combate à Cartéis já mencionado e também as publicações que a própria OCDE tem nesse sentido”. O Conselheiro acompanhou o voto-vista do Presidente ao concluir que “além de as provas indiretas derivarem de apenas uma única fonte, elas não possuem conteúdo anticompetitivo visível para todos[10]”.

Já o Conselheiro Gustavo Lima teceu breves comentários acerca da necessidade de existência de um padrão de qualidade na análise de provas para condenação de um cartel. Além disso, destacou que, a partir do longo aprendizado adquirido a partir da experiência do Poder Judiciário com relação ao instituto da colaboração premiada, faz-se imprescindível a existência de corroboração dos relatos dos Lenientes, independentemente de se tratar de provas indiretas ou diretas.

Do seu voto em sessão, extrai-se importante declaração sobre a importância da segurança jurídica e da previsibilidade dos julgamentos do Cade. Vejamos:

“Onde o Cade deve colocar o seu ‘sarrafo’ em termos de standard probatório? Porque nós somos única e última instância de todo o Poder Executivo e as nossas decisões somente podem ser reformadas pelo Poder Judiciário e ainda assim o Judiciário o faz com muito comedimento. Mas somos a única instância do Poder Executivo que declara se houve ou não um cartel em determinado caso. Por isso, temos que ter a máxima responsabilidade em fazer tal afirmação. Nós temos que ter um padrão de qualidade de prova que quando o Cade afirma que houve um cartel se saiba que um determinado padrão de qualidade foi atingido (…) Então, ao afirmarmos que uma empresa participou ou não de um cartel, tem que haver uma segurança para o mercado, para o Poder Judiciário e para a sociedade, de que determinados requisitos mínimos geraram o convencimento[11].”

Sob outra perspectiva, o Conselheiro Victor Fernandes mencionou o importante debate acerca da força probatória de provas indiretas de comunicação, consoante entendimento da OCDE[12], a fim de explicar que a natureza direta ou indireta da prova possui repercussões para a oponibilidade da defesa das empresas investigadas, visto que, de um lado, a prova direta geraria o ônus de comprovação de inocorrência do fato, e, de outro, a prova indireta geraria o ônus de explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para o fato.

No que tange ao caso em comento, o Conselheiro defendeu que a defesa das empresas representadas trouxe explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para os fatos relatados nas provas indiretas (i. e. a relação comercial com a empresa concorrente e a ausência de comercialização do produto à época do cartel), que, por sua vez, não teriam o condão de comprovar a participação da empresa no conluio.

Dessa forma, o Plenário do Cade, por maioria, determinou o arquivamento do processo administrativo em face das empresas representadas, nos termos do voto do Presidente do Cade, ficando vencidos o Conselheiro Relator Sérgio Ravagnani e o Conselheiro Luis Braido.

Muito embora o caso do cartel de sistemas térmicos automotivos tenha sido, ao que nos parece, o julgamento mais emblemático do ano de 2023 em relação à temática do padrão de prova necessário para condenações de cartéis e à garantia de previsibilidade e segurança jurídica ao administrado, outro caso interessante também pode ser destacado.

No caso do cartel internacional de cabos subterrâneos e submarinos[13], o Tribunal do Cade reconheceu a necessidade de adotar o mesmo padrão probatório no processo administrativo originário e no processo “filhote”, de forma a garantir a isonomia entre todos os representados relacionados ao cartel. Dessa forma, determinou o arquivamento do processo filhote em relação a algumas pessoas físicas, visto que, no processo originário, considerou-se que evidências análogas, isto é, simples menções das iniciais do investigado em atas de reuniões, não seriam suficientes para indicar a participação das pessoas jurídicas que eles representavam em um cartel, esses indícios poderiam sugerir, no máximo, a ocorrência de condutas menos gravosas, como troca de informações sensíveis, que já estariam prescritas.

Nesse sentido, a partir dos posicionamentos dos Conselheiros da atual formação do Tribunal e dos precedentes firmados pelo colegiado em 2023, observa-se uma verdadeira preocupação com a uniformização da jurisprudência do Cade acerca do standard probatório para condenação de cartéis, principalmente na análise de conjuntos probatórios formados por provas indiretas, a fim de garantir segurança jurídica e previsibilidade às decisões da autarquia antitruste.

Por outro lado, com o término do mandato de 4 dos 6 Conselheiros do Cade ainda no ano de 2023, a comunidade antitruste fica na expectativa se a futura formação estará atenta à discussão e aplicará “valorações semelhantes a provas parecidas em diferentes casos” futuros de acordo com a jurisprudência do Conselho, bem como se os elementos classificados no “Guia de Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade” para suficiência do conjunto probatório serão respeitados, o que representaria um importante passo para a solidificação do stare decisis nas decisões administrativas da autarquia antitruste brasileira.


[1] DA SILVEIRA, Paulo Burnier; LACERDA, João Felipe Aranha. Valoração e padrão de prova em processos administrativos de cartel. Revista do Ibrac: São Paulo, 2018, vol. 24, n. 1- 2018, p. 70.

[2] Op. cit., p. 74.

[3] Cf. art. 79, inciso I, da Lei de Defesa da Concorrência e dos incisos I e II c/c § 1º, do art. 50, da Lei nº 9.784/99 (“Lei do Processo Administrativo Federal”).

[4] CADE. Guia de recomendações probatórias para propostas de acordos de leniência com o Cade. 2021. Disponível em:  https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-recomendacoes-probatorias-para-proposta-de-acordo-de-leniencia-com-o-Cade.pdf.

[5] Vide Processo Administrativo nº 08012.004039/2001-68 (cartel do pão), julgado em 22.05.2013.

[6] Nota Técnica SG/Cade nº 114/2021 (SEI 0989284).

[7] Parecer MPF/Cade nº 3/2022 (SEI 1071736).

[8] Vide 1h06min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfNEoL4Y4AM . Acesso em 1 ago. 2023.

[9] Vide 1h09min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[10] Vide 1h38min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento. 

[11] Vide 1h45min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[12] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Prosecuting Cartels without Direct Evidence, 2006, p. 10 (“communication evidence is evidence that cartel operators met or otherwise communicated, but does not describe the substance of their communications”).

[13] Processo Administrativo nº 08700.008576/2012-81. Julgado em 08.02.2023.


Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

Autorregulação regulada: o trade-off entre o custo regulatório e a liberdade econômica

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A regulação econômica normativa desenvolvida pelas nações, inclusive o Brasil, se basearam na utilização, por parte das agências reguladoras, de métodos para fazer com que o setor que fosse caracterizado por falhas de mercado intransponíveis se comportasse em “concorrência perfeita”.

Em um mundo onde não houvesse assimetria de informação e a falha de mercado fosse o monopólio natural, a literatura aponta que o regulador deveria ou exigir preços iguais ao custo marginal ou exigir preços iguais ao custo médio. No primeiro modelo, o regulador subsidiaria o regulado, pois na condição de p=cmg em monopólio natural os lucros do monopolista seriam negativos, e, no segundo modelo, não haveria subsídio, mas os preços praticados não seriam os de concorrência perfeita.

Conquanto estes modelos sejam boas estruturas para demonstrar como a intervenção estatal via regulação tende a funcionar em mercados em monopólios naturais, a existência da falha de mercado denominada assimetria de informação na economia em geral impossibilita que o regulador não seja capaz de identificar a estrutura de custos dos regulados e decidir por fixar o preço igual ao custo marginal ou ao custo médio.

Este fato acontece porque o regulado conhece muito melhor o seu negócio detém informações estratégicas que o regulador não possui (estrutura de custos), o que impede que a política regulatória a ser alcançada seja a solução definida na teoria econômica como equilíbrio de primeiro melhor (first-best).

Portanto, imaginava-se que bastava ter poder de enforcement para que as empresas reguladas revelassem as informações necessárias para que o equilíbrio de primeiro melhor fosse obtido. No entanto, muito rapidamente os aplicadores da regulação econômica perceberam que a exigência de informações dos regulados não seria uma estratégia possível para se obter os melhores resultados regulatórios, vez que os regulados não revelariam as suas informações privadas se não houvesse incentivos para isso.

Foi através desta percepção que a regulação econômica desenvolveu outros modelos de regulação, dentre os quais pode-se citar o modelo de regulação por incentivos. A ideia básica era fazer com que o regulado revelasse as suas informações sem que estas necessitassem ser exigidas pela autoridade, assim como faz o empregador quando remunera o seu empregado em duas partes, uma fixa e outra variável. A remuneração variável possibilita que o empregador identifique o esforço do empregado, não necessitando exigir esforço de antemão.

No mundo da regulação econômica normativa, o exemplo de mecanismo de incentivos mais utilizado é o do preço teto (price-cap), instrumento muito utilizado na regulação do setor elétrico, por exemplo. Com esse método, o regulador contrata com os regulados tarifas de serviços públicos cada vez mais baixas à medida que o contrato avança no tempo. Neste caso, mesmo que o regulador não saiba a estrutura de custos, a redução paulatina da tarifa ao longo do tempo vai exigir aumentos de produtividade por parte do regulado, além de gerar tarifas cada vez menores para os usuários.

Em que pese não sejam perfeitos os regimes regulatórios por incentivos e outros que surgiram ao longo do tempo, o que ficou claro da experiência com a regulação econômica normativa é que nenhum regulado revelará as suas informações privadas se não for estimulado a fazer isso e este estímulo está diretamente ligado com as condições mercadológicas com as quais estes se defrontam.

Na esteira das inovações regulatórias e com o intuito de minimizar a intervenção estatal é que surgiram os modelos de co-regulação e de autorregulação regulada. Em ambos os casos, as empresas privadas elaboram regras regulatórias e as controlam privadamente, sendo que na autorregulação regulada as regras, embora feitas pelo mercado, mas têm que ser chanceladas pelo Estado.

Na prática, estas duas formas de regulação trabalham com a cooperação das empresas privadas para informarem todas as características dos seus mercados, a fim de que o Estado tenha condições de apresentar os melhores resultados para a sociedade (ex. preço igual a custo marginal).

O fundamento básico destas novas teorias de regulação é a de que o Estado deve se limitar a fazer cumprir a legislação existente, de maneira a punir as empresas que avançarem sobre todas as infrações que já estão amplamente tipificadas nas leis administrativas e penais, e não dizer como as empresas devem se comportar nos mercados. O Estado não deve guiar o mercado, mas sim garantir o equilíbrio desse mercado por meio dos instrumentos legais existentes.

Esta reflexão faz lembrar a forma como a defesa da concorrência é aplicada no Brasil. Atualmente, na égide da Lei nº 12.529/2011, o mandato da autoridade brasileira de defesa da concorrência (CADE) cobre uma função preventiva (controle de estruturas) e uma função coercitiva (análise de condutas). A função preventiva permite o controle do aumento da concentração de mercado a fim de evitar condutas anticompetitivas e a função coercitiva permite a ação coibidora das infrações à ordem econômica já “praticadas”.

Obviamente que a existência do controle de estruturas não é um consenso entre todas as linhas teóricas jurídicas e econômicas dedicadas a defesa da concorrência. Em apertada síntese, os teóricos do paradigma estrutura conduta desempenho (ECD) entendem que o controle de estruturas evita condutas de forma eficiente, ao passo que a escola de Chicago entende que a concentração de mercado gera eficiências e, em grande parte dos casos, não deve ser desestimulada.

Assim também parece ser a discussão entre os adeptos da regulação econômica normativa e os adeptos da corregulação e da autorregulação regulada. De um lado, acredita-se na intervenção estatal para evitar efeitos indesejáveis do ponto de vista regulatório e concorrencial, de outro acredita-se que estes efeitos indesejáveis, se existirem, devem ser combatidos pelo Estado fora da natureza empresarial.

Na verdade, a escolha entre a regulação econômica normativa e a autorregulação envolve um trade off nada trivial para o Estado e a ausência de trivialidade está associada com a falha de mercado exposta no início deste artigo, qual seja: a assimetria de informações.

Por um lado, o Estado abre mão do custo regulatório e dá a liberdade desejada para o setor privado, mas por outro abre mão dos mecanismos de incentivos para obter informações a respeito do mercado. É importante repisar que as empresas privadas não revelam as suas informações estratégicas, a menos que vejam oportunidades de negócios ou que sejam induzidas as revelar.

Neste sentido, ao abrir mão da utilização de mecanismos regulatórios para obter informações relevantes das empresas, atuando de forma preventiva, o Estado abre mão de instrumentos para o combate coercitivo, sobretudo em caso de existência de práticas anticompetitivas.

Advogar no CADE

A importância da atuação do advogado e da advogada no processo administrativo sancionador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)

Mauro Grinberg

Muito já foi escrito sobre a função do advogado e da advogada, sobretudo em matéria judicial, mas menos com relação às suas atuações nos processos administrativos. Como já foi por este autor escrito anteriormente, a presença do advogado e da advogada no processo administrativo é tão importante quanto no processo judicial. Deve desde logo ser apresentado um esclarecimento terminológico. Quando o autor fala de processo administrativo, inclui aqui todas as suas fases, inclusive os procedimentos e inquéritos.

Este autor já escreveu[1] sobre o § 1º do art. 123 do Regimento Interno do Cade (RiCade): “aos advogados e ao representante legal da empresa é facultado requerer que conste de ata suas presenças na sessão de julgamento, podendo prestar esclarecimentos em matéria de fato, quando assim o Plenário do Tribunal entender necessário”. Segundo aquele artigo, não há motivo para o Plenário do Tribunal ter que aprovar a participação do advogado e/ou da advogada face à redação do art. 7º, X, da Lei 8.906/1994 (denominada Estatuto da Advocacia – EA)[2]: “São direitos dos advogados (…) usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão”. Assim, o direito de participação do advogado e/ou da advogada está definido em lei, obviamente superior hierarquicamente ao RiCade.

Faz-se, todavia, necessário completar o rol dos direitos dos advogados, sobretudo no processo administrativo sancionador do CADE, seguindo por lembrar que, de acordo com o art. 133 da Constituição Federal (CF), “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Já o § 2º-A do art. 2º[3] do EA alarga o conceito para incluir os processos administrativos: “No processo administrativo contribui com a postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e os seus atos constituem múnus público”.

O que os advogados e advogadas sempre entenderam – que a postulação em nome de clientes contribuía para as decisões, inclusive nos processos administrativos –, agora é lei. O binômio acusação/defesa, levando a decisão equidistante, é agora texto legal. Faz-se extremamente importante que os advogados e advogadas sejam vistos e vistas como participantes diretos das decisões por meio de suas postulações em nome de clientes. Além disso, sendo múnus – ou seja, dever – público a atuação do advogado e da advogada, fica claro que o advogado e a advogada estão, ao exercer as postulações em nome de clientes, participando efetivamente da administração da justiça administrativa. Desta forma, o cumprimento desse ônus beneficia a própria justiça administrativa e não apenas o cliente. Esta constatação é muito importante face ao § único do art. 1º da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

Aliás, sua obrigação é tão importante que, se e quando o advogado ou a advogada renunciam ao seu mandato, continuam a representar o cliente durante os dez dias seguintes à notificação da renúncia, salvo se for substituído antes do decurso do prazo, de acordo com o § 3º do art. 5º do EA, idêntico ao § 2º do art. 112 do Código de Processo Civil (CPC).

Prosseguindo, deve ser esclarecido que, de acordo com o art. 6º do EA, “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público (…)”. O princípio se coaduna perfeitamente com o que foi anteriormente posto, pois o advogado e/ou a advogada não estão sujeitos a determinações das autoridades, a não ser no que seja ligado diretamente ao funcionamento da máquina administrativa. Ou seja, a autoridade não deve ditar ao advogado e/ou à advogada o que devem fazer, embora isto não possa servir de justificativa para a soberba do advogado ou da advogada.

Não se deve aqui alongar a lista de direitos com os que tratam do acesso de advogados e advogadas aos autos, dado o fato dos processos administrativos no âmbito do CADE serem eletrônicos e não mais serem tratados em meio físico. Ressalva deve ser feita a autos findos, conforme consta do inciso XIII do art. 7º do EA[4], idêntico ao art. 107, I, do CPC: “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos as sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos”.

Uma atenção especial deve ser devotada aos documentos e outras provas sujeitos a sigilo legal ou conferido pela autoridade. Como ninguém pode ser acusado (e eventualmente condenado) por provas secretas, ao advogado ou advogada da parte acusada é conferido o direito – e mais do que isso o dever – de conhecer tais provas e, se for o caso, ter a possibilidade de impugná-las. Joseph K, o personagem de Franz Kafka em “O Processo”, deve permanecer na ficção. Mesmo aquelas provas não expressamente utilizadas pelas autoridades nas suas decisões obviamente sofrem influência do material não utilizado, eis que a sua mera leitura de alguma forma pode subjetivamente exercer algum tipo de influência sobre a pessoa e desta forma fazer parte do processo decisório, ainda que indireta e/ou involuntariamente.

Esta peroração legislativa tem o objetivo de situar o advogado e a advogada no processo administrativo sancionatório do CADE. Quando ele ou ela se dirigem a uma autoridade, trata-se não só do exercício de uma função que a lei a ele e ela confere mas, mais do que isso, um dever. Este dever tem o objetivo – estabelecido em lei – de colaborar com a prestação jurisdicional.

Deve ser dada ênfase – até por sucessivos debates em torno deste tema – ao texto da alínea “c” do inciso VII do art. 7º do EA, relativa ao direito de “ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado”. É claro que o objetivo da lei não pode ser a anarquia generalizada, razão pela qual deve ser reconhecido também o direito da autoridade de estabelecer determinadas regras (incluída aqui a possibilidade de marcação de dia e hora), embora tais regras não possam servir de barreira à atuação de advogados e advogadas. Aliás, aqui deve ser aplicado o princípio da razoabilidade, contido no art. 2º da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo – LPA). Com referência a algumas reclamações de dificuldades – reais ou não – para marcações de reuniões, deve ser lembrado que o servidor público serve o público, no caso dos processos administrativos, atendendo seus advogados e advogadas.

Aliás, os princípios do contraditório e da ampla defesa previstos no art. 5º, LV, da CF e no art. 2º da LPA só podem ser aplicados se houver amplo acesso dos advogados, lembrando-se que, particularmente no processo administrativo sancionador do Cade, a parte acusadora é também encarregada da decisão. Se o advogado ou a advogada não tem acesso a tudo, o equilíbrio entre acusação e defesa – que, de resto, já é precário ante a confusão de acusação e decisão – resta rompido.

Mas a autoridade pode também fazer suas exigências, a começar pela demanda de escrita clara, correta e direta das petições, nas quais os pedidos e seus fundamentos devem resultar logo da primeira leitura; ou seja, é importante que advogados e advogadas digam exatamente o que pedem e por que pedem, já que não compete à autoridade intuir estes pontos. Algumas obrigações contidas nos incisos I a III do art. 77 do CPC: “expor os fatos em juízo conforme a verdade”, “não formular pretensão ou apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento” e “não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito”.

Através da observação das posturas acima referidas é possível atingir alguma forma de equilíbrio nos processos administrativos sancionatórios do Cade, sempre tendo em vista a importância da atuação do advogado e da advogada, que cumprem o dever público de ajudar a construir as decisões administrativas.

Mauro Grinberg foi (i) Conselheiro do Cade, (ii) Procurador da Fazenda Nacional (hoje aposentado), (iii) Presidente do Ibrac (do qual é hoje Conselheiro) e (iv) Professor de Direito Comercial da Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é Membro do IASP e da ABA, sendo advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil.


[1] “Os Advogados nas sessões do CADE”, Web Advocacy, 20/06/2022

[2] Com a redação dada pelo art. 2º da Lei 14.365/2022

[3] Inserido pelo art. 2º da Lei 14.365/2022

[4] Com a redação dada pelo art. 2º da Lei 13.793/2019

Notícias do Norte: as recentes batalhas do antitruste nos Estados Unidos

Lucia Helena Salgado

Nos Estados Unidos dos anos Joe Biden, a FTC (Federal Trade Commission), sob a condução de Lina Khan, vem procurando resgatar o espírito original do antitruste – a defesa do processo concorrencial, combatendo a concentração do poder econômico. A agenda de trabalho da autoridade incorpora hoje a reflexão de professores de Economia e Direito – como Fiona Scott-Morton, Carl Shapiro, Robert Pitofsky e Tim Wu – que há anos vêm apontando as falácias da doutrina borkiana que há quatro décadas domina as decisões antitruste no Judiciário estadunidense.

Em estudos acadêmicos, debates públicos e investigações protagonizadas pelo Congresso, esses professores vêm alertando há tempos: é preciso retornar às origens do antitruste na América, quando há um século se percebeu que a onda de concentração e conglomeração industrial corroía as bases da democracia e os valores do próprio capitalismo: a liberdade de empreender, de escolher, de deter propriedade.

O lendário Juiz Hand, integrante da Suprema Corte norte-americana na primeira metade do século XX, definiu – em uma das clássicas decisões da Corte, o caso Alcoa – o espírito da legislação antitruste: “Nós temos falado apenas das razões econômicas que proíbem o monopólio; mas como já indicamos, há outras baseadas na crença de que grandes consolidações industriais são inerentemente indesejáveis, à parte os resultados econômicos. Nos debates no Congresso, o próprio Senador Sherman (…) mostrou que entre os propósitos do Congresso em 1890 estavam o desejo de pôr um fim às grandes agregações de capital por força da vulnerabilidade do indivíduo diante delas.” Essa lição perdeu-se com o tempo, mas vem sendo resgatada.

O programa posto em marcha pelo FTC a partir de 2021 é tão ambicioso quanto arriscado, visto que esbarra em dois obstáculos poderosos: um Judiciário predominantemente composto por juízes treinados na doutrina de Chicago e o prazo muito curto – a princípio um mandato de quatro anos – para retomar a rota da defesa do processo concorrencial, após décadas de desvio.

Ao contestar aquisições do grupo Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), da Microsoft e práticas adotadas pela Amazon, Lina Khan e equipe demonstram que não se intimidam com o tamanho do desafio que enfrentam; assim como diante de uma super maioria ultraconservadora na Suprema Corte disposta a rever avanços civilizatórios, a minoria progressista tem proferido votos dissidentes que ficarão registrados na História, os esforços do FTC para conter a super dominância das Big Tech, mesmo que não alcancem sucesso, são já estímulos à consciência crítica.

Até o momento, já transcorrida a metade do mandato de Joe Biden e, por conseguinte, de Lina Khan à frente da FTC, três contestações a práticas e aquisições das Big Tech foram apresentadas ao Judiciário, vejamos cada uma delas.

 Ainda em 2021, a FTC apresentou denúncia contra a Facebook Inc. (agora Meta Platforms Inc.), de que a empresa vem mantendo o monopólio nas redes sociais por anos de conduta anticompetitiva. A denúncia alegou que a Facebook vem se engajando em sistemática estratégia de eliminação da concorrência por meio da aquisição de rivais em ascensão, como o Instagram em 2012 e a aquisição em 2016 do aplicativo de mensagens WhatsApp e por meio da imposição de condições anticompetitivas a desenvolvedores de softwares para afastar ameaças a seu monopólio.

A denúncia foi rejeitada ainda em primeira instância, pois de acordo com o despacho do juiz responsável, a FTC não havia demonstrado a condição de monopolista da Facebook.

Em paralelo à denúncia da FTC contra a Facebook Inc., em dezembro de 2020, 48 estados e territórios norte-americanos liderados pelo estado de Nova York haviam feito idêntica denúncia contra a companhia, centrando nas aquisições de Instagram e WhatsApp. A alegação havia sido que Facebook/Meta monopolizaria o mercado de mídias sociais por meio de um esquema de “buy or bury” (comprar ou enterrar) suas rivais. A ação coletiva foi negada em 1ª instância em junho de 2021 – entendendo o juiz que as promotorias estaduais levaram tempo demais, indevidamente, para apresentar a queixa –, e em abril deste ano, um painel de três juízes do Tribunal de Recursos do Circuito do Distrito de Columbia confirmou a rejeição da ação.

O motivo legal arguido no caso da denúncia pelas promotorias não se aplica ao governo federal (FTC), que ainda aguarda a decisão de 2ª instância na rejeição da ação.

A despeito do baque inicial, a FTC persiste no cumprimento de sua agenda, tendo interposto duas ações em junho último, respectivamente contra a Microsoft Inc. e a Amazon.

A ação contra a Microsoft é uma clássica petição de bloqueio de aquisição, com pedido de liminar para suspender os efeitos da aquisição da Activision Blizzard em dezembro de 2022. A aquisição é um passo estratégico para a Microsoft manter sua posição no mercado relevante de jogos eletrônicos. O acesso a jogos apresenta crescimento mais expressivo através de aparelhos celulares, não mais por meio de computadores e consoles, onde se consolidou a posição de Microsoft por meio de sua plataforma Xbox. A empresa, contudo, não vinha se mostrando capaz de desenvolver programas para serem rodados em celulares, de onde o interesse na Activision Blizzard, produtora de campeões globais como Call of Duty e OverWatch.

O pedido de bloqueio da operação pauta-se na teoria do dano do fechamento de mercado a concorrente, diante das condições e incentivos para que a Microsoft restrinja – ou mesmo bloqueie – o acesso de Sony e Nintendo, suas rivais no mercado de jogos eletrônicos, aos jogos mais populares entre os usuários. A Microsoft chegou a manifestar intenção de manter o acesso da Sony aos jogos, mas a preocupação persistiu, dado que o compromisso se restringiria às atuais, não abrangendo futuras, versões dos jogos. Ademais, a conduta de exclusão já foi adotada pela Microsoft por ocasião da recente compra da ZeniMax/Bethesda SoftWorks, quando a adquirente tornou os também populares jogos Redfall e Starfield exclusivos da plataforma XBox, além do jogo Indiana Jones, ainda a ser lançado em 2023.

No Reino Unido a operação de aquisição da SoftWorks foi bloqueada, decisão que a Microsoft segue contestando, enquanto na União Europeia a empresa obteve autorização para seguir com a operação.

No entanto, a FTC enfrentou nova derrota na sexta-feira dia 15 de julho, tendo seu pedido de suspensão da operação de compra (temporary restrainct order and injunction) negada pelo 9º Circuito do Tribunal de Apelações.

Pavimentando seu caminho para a conclusão da aquisição, cujo prazo acordado é 18 de julho próximo, a Microsoft anunciou no dia seguinte à rejeição da suspensão da operação nos Estados Unidos, ter firmado com a Sony acordo com validade de dez anos. Em mensagem pelo Twitter, o responsável pela divisão de jogos da Microsoft deu notícia de que “a Microsoft e a PlayStation [Sony] assinaram acordo vinculativo para manter Call of Duty no PlayStation após a aquisição da Activision Blizzard.”

A decisão da CMA (Competition and Market Authority), autoridade em Competição e Mercados britânica será revista pelo Tribunal de Apelações em 17 de julho, véspera do fechamento da operação; o recente anúncio da Microsoft sobre seu acordo com a Sony poderá impactar na decisão do Tribunal.

Finalmente, a FTC aciona a Amazon por sua prática conhecida na literatura econômica antitruste como obsfuscation e cancelation trickery, ao obrigar os usuários a assinarem serviços Prime não demandados e dificultar o processo de cancelamento. A teoria do dano baseia-se no entendimento de que a companhia abusa de seu poder de mercado usando achados da ciência comportamental para extrair extra-rendas de usuários, desenhando interfaces manipulativas, coercitivas e enganadoras, levando consumidores a aderirem e renovarem automática e involuntariamente a subscrição dos serviços Prime.

Este é um caso que – independente do resultado – em breve deverá se tornar referencial, por trazer à tona problemas antitruste típicos da economia digital e por assinalar a importância da incorporação da análise em economia comportamental à defesa da concorrência.

Sigamos acompanhando as batalhas travadas pela FTC, como sempre muito ensinamento poderemos retirar, tanto de suas derrotas como de eventuais vitórias, para nossa própria reflexão sobre a condução do antitruste no Brasil.