Compliance: fazer a coisa certa ou se submeter à caça às bruxas?
José Américo Azevedo
Encabeça-se este breve artigo subvertendo os cânones acadêmicos ao citar uma frase extraída de um artigo publicado sem indicar sua fonte, mesmo porque seu conteúdo demonstra um conceito muito comum entre aqueles que se dispõem a singrar os recônditos mares do Compliance. O contexto e o motivo desse estreitado deslize será compreendido – e perdoado, espera-se – com a leitura do texto.
Eis a aludida máxima: “O conceito e o próprio surgimento do Compliance encontram-se entrelaçados aos atos de corrupção identificados e desvendados em todo o mundo”.
A ideia pré-concebida de que a implantação de um programa de Compliance tem como objetivo combater a corrupção intrínseca, assemelha-se à metáfora de uma pessoa que somente vai ao médico porque, necessariamente, está doente.
É preferível a ideia de ir ao médico para fazer um checkup, ou seja, de maneira preventiva, de forma que se possa adotar os melhores comportamentos a fim de não atrair uma verdadeira doença.
Sem embargo à modesta digressão, comecemos nossa exposição.
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Não há dúvida que a utilização exacerbada da expressão Compliance nos dias atuais deveu-se, em grande medida, à demonstração do desmonte das estruturas de governança corporativa nas grandes empresas do país, especialmente do setor de construção pesada, nas duas primeiras décadas deste século.
A importação do anglicismo Compliance, no entanto, aportou em terras nacionais de forma exagerada, e porque não dizer, deturpada. Do inglês to comply, cuja tradução mais precisa se aproxima da ideia de “conformação”, traz o conceito de ajustar, moldar, os procedimentos empresariais para atendimento àquilo que está pactuado, contratado, dentro das melhores práticas. Por outro lado, paradoxalmente, Compliance, no Brasil, passou a ter uma concepção de rigidez, de inflexibilidade perante as regras estabelecidas em abstrato, ou seja, de forma genérica e ampliada, sem levar em consideração as particularidades de cada caso. Neste sentido, Robert Alexy, sabiamente, baliza que “a realidade não é parte da norma jurídica, apesar de condicionar sua compreensão”[1].
Por sua vez, a legislação pátria optou por utilizar a expressão “integridade” para se referir às obrigações que a Administração Pública e as empresas têm que cumprir para o alcance de um ambiente corporativo saudável, deixando de lado, o termo “conformidade”, talvez mais apropriado aos objetivos ambicionados.
Não se trata de uma questão etimológica ou semântica, mas antes, porém, da exegese de cada palavra, uma vez que a lei, per se, depende da extração de seu significado. Para Inocêncio Mártires Coelho, “a interpretação das normas é um conjunto de métodos e princípios, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios e premissas – filosóficas, metodológicas, epistemológicas – diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, a confirmar o assinalado caráter unitário da atividade interpretativa”[2].
Condensa-se, da análise proposta, que para uma interpretação mais assertiva do texto normativo, importante se faz a correta opção vernacular, de forma a se sugar o verdadeiro sentido pretendido.
Partindo-se dessa premissa, é possível buscar sutis diferenças entre as expressões, na maior parte das vezes utilizadas como sinônimas, obnubilando a real compreensão dos propósitos almejados.
Assim, para Bruna Pfaffenzeller, por Compliance “compreende-se o conjunto de práticas e disciplinas adotadas pelas pessoas jurídicas no intuito de alinhar o seu comportamento coorporativo à observância das normas legais e das políticas governamentais aplicáveis ao setor de atuação, prevenindo e detectando ilícitos, a partir da criação de estruturas internas e procedimentos de integridade, auditoria e incentivos à comunicação de irregularidades, que forneçam um diagnóstico e elaborem um prognóstico das condutas e de seus colaboradores, com a aplicação efetiva de códigos de ética no respectivo âmbito interno”[3]. Ou seja, possui uma abordagem mais abrangente – um gênero – do universo de governança corporativa.
A expressão escolhida pelos legisladores (basta observar as Leis 12.846/2013, 13.303/2016 e 14.133/2021, dentre outras) foi “integridade”, quer na elaboração de programas, na criação de códigos, ou mesmo na verificação de procedimentos que atinjam essa finalidade. No dicionário Oxford da Língua Portuguesa, pode ser obtida a definição de integridade como a “característica ou estado daquilo que se apresenta ileso, intato, que não foi atingido ou agredido”. É possível observar que a busca pela integridade pressupõe um ambiente não íntegro, ou seja, atingido, agredido, corrompido. Parte-se para uma ideia de intervenção corretiva, uma vez que, de acordo com o termo, empenha-se em corrigir aquilo que está, de alguma forma, inadequado.
E, ainda, pode-se optar pelo vocábulo “conformidade”, que na acepção do mesmo dicionário significa “ato ou efeito de se conformar, de aceitar, de se pôr de acordo; conformação, concordância”, é dizer, não há, ainda, qualquer mácula aos procedimentos em curso.
Nesse viés analítico, traz o Ministro do STJ Benedito Gonçalves em parceria com Renato Grilo, importantes reflexões, como se observa:
“Conformar-se” é um estado de sujeição ou de movimentação entre balizas ou limites: um organismo passa a agir heteronormativamente, ou seja, abandona sua autonormatividade.
(…)
a liberdade do Administrador Público encontra-se submetida ao princípio da juridicidade.
(…)
Ao agente econômico privado não se permite mais um campo de liberdade tão amplo quanto o vazio da legalidade estrita, ou seja, não mais se concebe a liberdade de agir do organismo privado limitada apenas pelas disposições legais expressas.
(…)
a instituição de um sistema interno de gestão de controle ou de conformidade, portanto, não deve se apegar apenas ao cumprimento das regras e disposições legais, mas também à aplicabilidade da força normativa constitucional, seja dentro de uma empresa privada ou pública, seja no ambiente interno da Administração Pública. [4]
Importante constatar que, embora aludam à implantação da gestão interna de conformidade, em qualquer momento os autores deixam de visar à necessária atenção aos preceitos normativos, constitucionais e legais. O que impende destacar, é que este ambiente será criado de maneira preventiva, fazendo com que as sanções previstas para condutas antiéticas sejam aplicadas em caso de necessidade, porém sem que haja uma circunstância que autorize um olhar previamente repressor para as organizações públicas e privadas.
Cabe repisar que não se trata de perfeccionismo etimológico ou semântico, mas da adequação das ações impingidas aos agentes privados em relação à execução das práticas corporativas desejáveis, especialmente nas relações com a Administração Pública, onde a máxima do pacta sunt servanda é mitigada pelas questões obrigacionais impostas ao setor público.
Importante alerta é feito por Rafael Oliveira e Jéssica Acocella, em relação às contratações pela Administração Pública:
Todavia, o sentido da Lei 8.666/1993 [cujo texto foi repetido na Lei 14.133/2021] adquiriu novos e ampliados contornos com a inclusão expressa, pela referida lei, da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos da licitação. Consequentemente, a proposta mais vantajosa para a Administração Pública deixaria de ser aquela que demonstrasse ter a melhor relação direta “custo-benefício” pelo aspecto estritamente financeiro, passando a ser a que também possa propiciar, mesmo que a longo prazo, benefícios sociais, ambientais e econômicos duradouros para o pais.
Assim, na instauração dos processos de contratação pública, cabe ao gestor público sempre avaliar a possibilidade de adoção de critérios social, ambiental e economicamente sustentáveis, reflexão fundamental quando se considera a escala das aquisições governamentais, o poder de compra do poder público e o efeito cascata que uma licitação produz sobre o mercado envolvido, multiplicando investimentos e criando um ambiente socialmente favorável na direção desejada.
Os procedimentos licitatórios no âmbito da Administração Pública têm, portanto, representado crescentemente um terreno fértil, e ainda não integralmente explorado, para novas vertentes regulatórias, as quais, ao integrarem considerações extraeconômicas em todos os estágios da contratação administrativa, visam à cooperação voluntária dos agentes econômicos envolvidos, relegando-se à coerção papel secundário.
(…)
Salomão Filho esclarece que o aparecimento ou não da cooperação é função direta da existência de condições (e instituições) que permitam seu desenvolvimento. Acrescenta que as instituições requeridas pela cooperação devem ser as estritamente necessárias para criar as condições de seu aparecimento. E, uma vez criadas tais condições, o cumprimento das decisões públicas vai se fazer de forma natural e não coercitiva.
(…)
A maior vantagem revelar-se-á quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. [5]
(grifos nossos)
O ponto nevrálgico da questão reside no paradigma da relação público-privada nas contratações de serviços. Parte-se, atualmente, da premissa da ilicitude, do descumprimento contratual, da obtenção de vantagens não devidas. Por este motivo, o Compliance adquiriu feições inquisitórias, de verdadeira “caça às bruxas”, colocando o ente privado na berlinda das relações interpartes.
Há que se compreender que o Compliance é gênero, ou seja, abarca todas as ações de prevenção, detecção e resposta a violações de conformidade, bem como a promoção de uma cultura ética e de conformidade dentro da organização, além de incluir outros aspectos, como, por exemplo, a prevenção de corrupção e de fraudes.
A gestão de conformidade, por sua vez, é espécie, se limitando a harmonizar a relação corporativa aos princípios estabelecidos. Dessa forma, sendo bem realizada esta etapa, não existirá risco à integridade, tampouco necessidades sancionatórias, uma vez que a relação estará regida pelas boas práticas contratuais e comerciais.
Os papeis do Estado e dos particulares nas relações sinalagmáticas, são objeto de consideração não só entre as partes, mas, ainda, ao fim e ao cabo dos legisladores, como pode ser observado em diversos projetos de lei sobre o assunto. Sublinhando o PL 46/2022[6], que institui uma lei de defesa do empreendedor, com normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, podem ser extraídos excertos apropriados ao tema, como se nota:
Artigo 3º- São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:
(…)
II – a presunção de boa-fé do empreendedor perante o poder público;
(…)
Artigo 4º- São deveres da Administração Pública nas três esferas de Poder, Federal, Estadual e Municipal para garantia da livre iniciativa:
(…)
XI – exercer a fiscalização punitiva somente após o descumprimento da fiscalização orientadora, qualquer que seja o órgão fiscalizador, salvo no caso de situações de iminente dano público, dolo, má-fé e em situações devidamente fundamentadas pela Administração Pública;
(…)
Artigo 5º- São direitos dos empreendedores:
I – ter o Poder Público como um facilitador da atividade econômica;
Há que se observar a busca por um ambiente colaborativo entre contratante e contratado, pautado no princípio da boa-fé, e fundamentada nos objetivos comuns de obtenção da melhor prestação de serviços para a Administração Pública.
É preciso ficar atento para que novas exigências visando ao alcance da integridade não se tornem mero formalismo, a ser cumprido pelos entes privados somente para se desincumbir da obrigação. Uma das causas para isso, segundo Fernanda Schramm, se deve ao fato de que “a ampla discricionariedade dos agentes públicos no curso da execução dos contratos, aliada à falta de penalização efetiva nos casos de inadimplemento do Poder Público, contribui para consolidar uma sistemática em que os contratados acabam muitas vezes cedendo, inclusive por falta de opção, às exigências que lhe são impostas” [7].
Para Thiago Marrara, “falar de integridade estatal é essencial, na medida em que, pelo exemplo ético, a conduta do Estado pode influenciar os agentes econômicos a se moverem em direção a boas práticas” [8]. Na mesma linha, porém em sentido inverso, Flávio Cabral define o conceito de ativismo de contas para os Tribunais de Contas, porém o conceito deve ser ampliado para todo agente público, como pode se perceber:
Ativismo de contas pode ser conceituado como o comportamento dos Tribunais de Contas que, a pretexto de se mostrarem proativos ou de serem encarados como concretizadores de direitos fundamentais ou controladores de políticas públicas, acabam por exercer suas atribuições em desconformidade com o que permite o texto constitucional e infraconstitucional, demonstrando a subjetividade na tomada de decisões por seus membros. [9]
Como consequência, é possível observar, especialmente no âmbito federal, o crescente número de processos de apuração de responsabilidade instaurados pela Administração, tornando desequilibrada a relação público-privada, em prejuízo, evidentemente, do elo mais fraco, ou seja, os entes privados.
Mesmo em relações firmadas entre particulares reguladas pelo Estado como, por exemplo, na área concorrencial, é possível observar uma contundente interferência estatal na dinâmica de mercado. Nessa perspectiva, importam as práticas adotadas nas relações comerciais estabelecidas com outras entidades privadas, mas que devem, por força de lei, serem submetidas à regulação estatal. Entende-se que é necessário existir uma visada aos interesses públicos por parte do agente regulador, mas a força regulatória deve ser extremamente bem dimensionada, de forma a não impactar negativamente nas relações comerciais de particulares.
Por fim, entende-se necessária uma mudança paradigmática, privilegiando, nas relações comerciais, a primazia da boa-fé entre as partes e garantindo segurança jurídica, de maneira que, primeiramente, possa se executar a gestão de conformidade contratual. Caso observado riscos ou ações comprometedoras à integridade da relação, deve se migrar para o Compliance na concepção de averiguação de atividades ilícitas, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, ensejando, inclusive, se necessário, atitudes sancionatórias para o inadimplente, seja público ou privado.
[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ps. 80-84.
[2] COELHO, Inocêncio Mártires. A hermenêutica constitucional como teoria do conhecimento do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2019. p. 41.
[3] PFAFFENZELLER, Bruna. No rastro da corrupção praticada por pessoas jurídicas: da lei 12.846/2013 ao projeto de novo código penal. In: VITORELLI, Edilson (Org.). Temas atuais do Ministério Público Federal. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 897.
[4] GONÇALVES, Benedito; GRILO, Renato Cesar Guedes. A utilização dos instrumentos de compliance para a realização do princípio da moralidade administrativa. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. ps. 41-53.
[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica. A exigência de compliance e programa de integridade nas contratações públicas: os estados-membros na vanguarda. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 133.
[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2313835. Consultado em 24.04.2023.
[7] SCHRAMM, Fernanda Santos. Compliance nas contratações públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 76.
[8] MARRARA, Thiago. Quem precisa de programas de integridade (Compliance)? In: CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Coord.). Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 293.
[9] CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas no Tribunal de Contas da União – TCU. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito, Curitiba/PR, 2019. p. 95.