Estratégias para Desenvolvimento do Mercado de Hidrogênio Verde

A Experiência do Leilão H2Global

Katia Rocha & Nelson Siffert

O desenvolvimento do mercado de hidrogênio de baixo carbono tornou-se um objetivo estratégico de governos e empresas em todo o mundo. Essa agenda ganhou momento a partir de políticas para a retomada econômica no pós-pandemia, visando acelerar a Transição Energética, buscando alcançar as metas estabelecidas no Acordo de Paris, ou, no Green Deal Europeu, com a respectiva neutralidade climática em 2050.

No contexto de Transição Energética e descarbonização da economia, o hidrogênio de baixo carbono posiciona-se como um dos protagonistas em termos de vetor energético. Possui vantagens devido à alta densidade energética, versatilidade de uso, ser um combustível carbon-free e a possibilidade de atuar no de armazenamento de energia renovável.

Diversos países estão estimulando o desenvolvimento da economia de hidrogênio conforme o crescente anúncio de políticas públicas, roadmaps, e projetos demonstrativos em toda cadeia de valor do hidrogênio, com número de projetos escalando com velocidade[1].

No Brasil, o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE instituiu em 2022 o Programa Nacional de Hidrogênio – PNH2 com finalidade de desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil através dos pilares de políticas públicas, tecnologia e mercado. Apresentou no mesmo ano o Programa Trienal (2023-2035) do PNH2, que estabelece atividades e metas para fortalecimento e desenvolvimento da cadeia de valor de hidrogênio de baixo carbono, sendo objeto de consulta pública em 2023.

As iniciativas trazem como princípios a valorização do potencial nacional de recursos energéticos, o reconhecimento da diversidade de fontes energéticas e rotas tecnológicas, a descarbonização da economia, a valorização e incentivo ao desenvolvimento tecnológico nacional; a cooperação internacional, e o interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas.

Nesse artigo, destacamos o eixo relativo aos mecanismos de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do mercado do hidrogênio verde com base na promoção de processos competitivos. Para tal, apresentamos a experiência do Leilão H2Global, enquanto política pública que faz uso de leilões de compra e venda de derivados do hidrogênio verde, para sugerir estratégias voltadas para o desenvolvimento do mercado de hidrogênio verde no Brasil.

Certamente, a construção de paralelos desta ordem, entre a experiência internacional e o contexto local, implica em reconhecer que são distintos tanto os arranjos institucionais como os atores envolvidos. Todavia, entende-se que é possível indicar possíveis desenhos de políticas públicas que fazem uso de mecanismos competitivos para promoção da equalização de preços visando o desenvolvimento do mercado de hidrogênio.

O leilão H2Global de compra de derivados de hidrogênio verde (H2V), é uma iniciativa do governo Alemão, que estabelece contratos de longo prazo de fornecimento de derivados de H2V – amônia verde, metanol verde e combustível de aviação sustentável (SAF), com data prevista do certame para meados 2023, e entregas iniciais entre 2024 e 2026, mantendo regularidade até o final do contrato em 2033.

O Leilão apresenta um conjunto de critérios que, muito provavelmente, irão balizar a nascente indústria do hidrogênio verde, com possibilidades de sinalizar para todos os players, de diferentes geografias, com interesse na indústria do hidrogênio verde, os preços de mercado, obtidos por meio de processos competitivos com critérios transparentes disponíveis para todos agentes que atuam ou pretendem atuar neste mercado. Espera-se, assim, que sejam revelados os preços dos derivados de hidrogênio verde, estabelecendo indicadores de preços de mercado, possibilitando os primeiros passos para estabelecer uma curva de preços, a semelhança do que já ocorre nos mercados futuros de commodities.

Podem participar como ofertantes somente países fora da União Europeia, buscando-se dar suporte ao nascente mercado internacional de energias renováveis. Dispõe de volume financeiro de € 900 milhões, podendo alcançar cifras ao redor de € 4 bilhões. Iniciativas recentes, como a do Governo Holandês, vão na mesma direção.

Representa um significativo passo inicial para o setor de hidrogênio verde em todo mundo. Em especial, para países competitivos em energias renováveis, como o Brasil, onde 83% da matriz de energia elétrica é proveniente de fontes renováveis[2]. É uma oportunidade para empreendedores inserirem-se na cadeia global de fornecimento do hidrogênio verde. Viabiliza novas e amplas possibilidades de investimentos e geração de empregos a partir do adensamento da indústria de energias renováveis.

No desenho do leilão proposto, a subsidiária HintCo – Hydrogen Intermediary Network Company (trader/facility) atua como um offtaker, se dispondo a estabelecer contratos de longo prazo (10 anos) de compra de derivados verdes (Hydrogen Power Agreement – HPA) e contratos de venda no curto prazo (Hydrogen Supply Agreement – HSA), equalizando a eventual diferença de preços entre ambos, via mecanismo de leilão duplo.

O mecanismo do leilão duplo, peça central da modelagem desenvolvida, sugere a adoção de processos competitivos para equalização de preços, tanto nos contratos de compra de longo prazo de derivados do H2V, como nos contratos de venda no mercado de curto prazo. O orçamento total para equalização disponibiliza EUR 300 milhões para cada lote de derivado (amônia, metanol e querosene SAF, verdes), disponibilizados em tranches anuais, à medida que o contrato de compra e venda realiza as entregas dos produtos em portos da Alemanha, Bélgica ou Holanda.

As regras colocadas no leilão, referentes ao suprimento de energia consumida no processo de produção de hidrogênio e respectivos derivados colocam os empreendedores do mercado brasileiro de energia renováveis com vantagens competitivas[3]. As três possibilidades de suprimento apresentadas – grid, contrato bilateral do tipo Power Purchase Agreement – PPA no mercado livre, e conexão própria do eletrolisador com o parque gerador – são passíveis de certificação pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE.  

A CCEE desenvolveu, recentemente, procedimentos de Certificação de Hidrogênio com objetivo de comprovar a origem e rastreabilidade dos atributos ambientais da energia consumida. Apresenta-se apta para certificar que a energia consumida na produção dos derivados verdes, atendendo a critérios quanto: i) a origem da sua geração; ii) princípio da adicionalidade; iii) correlação temporal; e iv) correlação geográfica.

O consórcio vencedor, com base no recebível gerado pelo contrato de longo prazo (HPA de 10 anos), tem condições de viabilizar a estruturação do funding necessário à implantação do projeto por meio de Sociedades de Propósito Específico[4].

A eventual diferença de preços entre os HPA´s e os HSA´s representa o subsídio (equalização) destinado a tornar os produtos que fazem uso do hidrogênio verde mais competitivos, face aqueles que fazem uso de combustíveis fósseis.

É reconhecido que a indústria nascente do hidrogênio verde apresenta um custo nivelado de produção (LCOH) maior que os da molécula cinza (gás natural). No entanto, é esperado o aumento da sua competitividade nos próximos anos em função de diversos fatores como eficiência tecnológica, escala de produção, redução do preço da energia renovável, menores custos de equipamentos de eletrólise e do efeito da taxação do carbono[5]. Quanto maior o valor dos créditos de carbono ou mesmo a taxação sobre emissões, menor tende a ser o diferencial de preços entre os derivados verde e cinza[6].

Dessa forma, a equalização de preços proposta deve ser entendida como um apoio temporário de política pública, visando promover o desenvolvimento da indústria de hidrogênio verde favorecendo a transição energética.

Recomendações das políticas públicas apontam para a necessidade de se garantir a demanda através de contratos de longo prazo, estabelecidos via uma facility, que no caso do Leilão H2Global é representado pela HintCo, cuja função é atuar como trader, administrando contratos de compra e venda, sem dispor da operação ou propriedade de ativos operacionais.

Os contratos de longo prazo estabelecidos pela HintCo possibilitam a estruturação do funding necessário à implantação dos projetos, em especial, na modalidade project finance, aumentando a atratividade dos investimentos privados na cadeia produtiva do hidrogênio verde. Novos modelos de negócios passam a ser viabilizados.

Igualmente importante é o mecanismo de Leilão Duplo para equalização de preços (subsídio), entre a molécula verde e cinza, construído em bases competitivas (leilão), buscando-se a eficiência no uso dos recursos públicos. Tal estratégia é entendida como um apoio temporário de política pública, dado a expectativa de aumento de competitividade da molécula verde nos próximos anos em comparação à cinza. Política semelhante já foi adotada para incentivos em geração solar PV e eólica[7]. Desta forma, o sistema de leilões teria potencial de alavancar toda a cadeia de valor da indústria de hidrogênio verde. Atingir a paridade de custos com formas intensivas de carbono é fundamental para as perspectivas futuras dessa indústria.

Finalmente, a coordenação institucional, demostrada pela célere manifestação da CCEE no quesito certificação, ilustra que, não basta, apenas, possuir vantagens competitivas e comparativas em geração renovável. Faz-se igualmente necessário o desenvolvimento de arranjos institucionais específicos, setoriais, de natureza pública e privada, de modo a mostrar-se competitivo, visando o desenvolvimento potencial de toda indústria de hidrogênio verde no Brasil.

Referências

  1. Gesel (2022). Observatório de Hidrogênio. 4O Trimestre de 2022. UFRJ.
  2. Global Hydrogen Review (2021). International Renewable Energy Agency.
  3. Global Hydrogen Review (2022). International Renewable Energy Agency.
  4. IRENA (2019). Renewable energy auctions: Status and trends beyond price, International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.
  5. MME (2021). Programa Nacional de Hidrogênio. Propostas de Diretrizes.
  6. MME (2022). Programa Nacional de Hidrogênio. Plano de Trabalho Trienal. 2023-2025.
  7. Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia) Los1_16_ENG Terms and Conditions for the Bidding Phase 28 Nov. 2022. https://exficon.de/tad/current-tenders/

[1] No Brasil os principais projetos em plantas de hidrogênio verde concentram-se no Ceará – Porto de Pecém (Energix Energy, Fortescue Future Industries, Qair Brasil, EDP Brasil), Bahia (Unigel), Pernambuco (White Martins, Qair Brasil), Rio Grande do Sul (Neoenergia), Rio de Janeiro – Porto do Açu (Shell Brasil). Ver Gesel (2022).

[2] O potencial Brasileiro para desenvolver uma economia de hidrogênio pode ser analisado pelo “Painel de Dados de Potencial Técnico de Produção de Hidrogênio” desenvolvido pela EPE, com visualização geográfica de diversas rotas tecnológicas e empresas envolvidas.

[3] Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia).

[4] Na hipótese, exemplificadora, de quatro vencedores para o lote de amônia verde, simulações preliminares apontam cada consórcio com USD 130 Milhões de Equity (alavancagem 40/60), USD 330 Milhões de Capex (geração própria integrada), produção de 35 mil.t/ano de amônia verde (95 t/dia), 42 MW de capacidade de eletrólise, geração solar fotovoltaica PV com 180 MW, com geração anual de energia de 400 GWh/ano.

[5] Enquanto o custo nivelado da produção de hidrogênio (LCOH) a partir de gás natural sem captura (CCUS) varia entre US$ 0,5 a US$ 1,7 /Kg, ou cerca de US$ 1 a US$ 2 /Kg com captura (CCUS), o hidrogênio verde gerado a partir de energia renovável custa cerca de US$ 3 a US$ 8/kg. Estimativas apontam para LCOH similares a partir de 2030. Ver Global Hydrogen Review (2022).

[6] Estimativas da Global Hydrogen Review (2021) apontam para EUR 100 – 120/ t.CO2 em 2030.

[7] Ver IRENA (2019).


KATIA ROCHA. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

NELSON SIFFERT. Diretor ICT – Resel. Email: nfsfooo@gmail.com

Propostas de regulação concorrencial dos mercados digitais no exterior

Visões e objetivos do Digital Markets Act e do American Innovation and Choice Online Act

Kevin Lucena de Oliveira Torres

Com o avanço dos mercados digitais na vida de bilhões de pessoas, principalmente com a popularização da internet e dos smartphones a partir do início do Séc. XXI[1], a defesa da concorrência deparou-se com um novo dilema:  o de se estariam os instrumentos do antitruste tradicional aptos a identificar práticas anticompetitivas nos mercados digitais e se os atuais remédios empregados seriam suficientes para garantir a eficiência da concorrência nesse meio.

Tais preocupações surgem ao se observar as características peculiares inerentes aos mercados digitais que, somado aos avanços da tecnologia na área inteligência artificial e no tratamento de dados por parte de grandes empresas, que são evidenciadas pelo entrincheiramento dos principais agentes que atuam nos mercados digitais, como a da empresa Google[2] no setor de serviços de buscadores online, da Meta[3] no tocante a redes sociais, da Amazon[4] em relação a Marketplaces de compra online, entre outros, como bem já reconheceu a OCDE[5] em estudo recente[6].

De mesmo modo, observa-se que a consolidação de posições dominantes neste meio em uma relação quase “Winner Takes All” ou “Winner Takes The Most”, como um resultado dos efeitos de rede dos mercados digitais, tanto diretos[7] como indiretos[8] nos principais meios de mercancia no mundo digital como marketplaces e redes sociais.

Logo, diante de um cenário peculiar se comparado as práticas comerciais exercidas no início do capitalismo industrial do séc. XIX em que o antitruste convencional foi concebido, diversas autoridades legislativas, amparadas por suas respectivas autoridades concorrenciais, iniciaram processos de redação de propostas de regulação antitruste ex ante dos mercados digitais para garantir a existência da concorrência neste meio.

Com destaque nesta temática, há a recente aprovação do Digital Markets Act[9] (“DMA”) pela União Europeia e a propositura do American Innovation and Choice Online Act[10] (“AICO”) no Senado norte-americano, ambas regulações ex ante para os mercados digitais feitas pelas mais influentes jurisdições na defesa da concorrência, inclusive para o Brasil..

A priori a exposição e compreensão de tais instrumentos legislativos, é importante destacar as principais características econômicas que tornam a mercancia no meio digital um sistema único devido a sua dinâmica de intermediação.

Primeiramente, destaca-se a disponibilidade quase instantânea que todo o meio digital possui perante o usuário que, sem custos de transação expressivo, tem a capacidade de pesquisar e acessar a uma infinidade de produtos e serviços ofertadas na rede, com tais buscas sendo viabilizadas por ferramentas de pesquisa – com destaque ao Google – que conecta o potencial consumidor aos seus fornecedoras de interesse ou à plataforma de intermediação que irá viabilizar a relação entre o comprador e o fornecedor, neste caso toma-se como exemplo a atividade desenvolvida pela Amazon em seu marketplace.

Logo, se visualiza como relevante dentro do meio digital a figura do intermediador na viabilização da relação de usuários de grupos distintos ou iguais dentro do mundo digital, seja para conectar esses a uma determina página, seja para oferecer a um potencial comprador o produto que mais lhe interessa de acordo com os seus termos de busca perante um fornecedor.

Esta característica somada ao alto grau de entrincheiramento de posições dominantes em setores econômicos que conta com a intermediação, como o market-share de mais de 90% do Google no mercado dos motores de busca[11] e a dominância da Amazon a qual movimenta quase metade do e-commerce norte-americano[12], configura para determinados agentes a característica tipificada como gatekeepers[13], por terem a capacidade de controlar o acesso ou a dinâmica de determinado mercado.

Logo, as plataformas com a referida característica podem utilizar desta capacidade para consolidar ainda mais a sua posição ao realizar alguma forma de discriminação durante a prestação do seu serviço, como realizar auto preferência na oferta de produtos a um potencial consumidor em relação a um concorrente que depende da plataforma de intermediação para ter acesso ao mercado, por exemplo.

Tais preocupações no tocante a possibilidade de fechamento de mercado foi notada por autoridades concorrenciais, sendo um dos argumentos de debates acerca da necessidade de uma regulação concorrencial ex ante dos mercados digitais. Tais debates, acarretaram na propositura e futura aprovação do DMAna União Europeia como um instrumento legislativos para regular a atuação dos gatekeepers nos mercados digitais e garantir a concorrência.

O DMA, portanto, possui um papel importante na definição objetiva das circunstâncias que caracterizariam um gatekeeper para a atuação da Comissão Europeia, as quais estão presentes no art. 3º do instrumento legislativo e, em síntese, o define como aquele agente que possuo receita no montante de €7.5 bilhões nos últimos três anos e ao menos 45 milhões de usuários ativos com pelo menos 10 mil destes devendo estarem situados na União Europeia.

Após as definições dos parâmetros para definir “quem” será regulado pela nova Lei, a mesma define, em seu  artigo 5º, um rol de obrigações positivas e negativas na atuação comercial das empresas enquadradas, ou seja, o “o que” deve e não deve ser feito pelos agentes regulados as quais se destacam: a obrigatoriedade em dar ao usuário – principalmente fornecedores de produtos –  acesso a certas informações referentes performance de publicidades desenvolvidas na plataforma, permitir acesso a desenvolvedores de tecnologia a funcionalidades de dispositivos móveis caso seja desenvolvida pela plataforma, a proibição de estabelecer condições “desfavoráveis” entre usuários que atuem como fornecedores de um mesmo mercado, a proibição de realizar auto preferência de seus próprios produtos em relação aqueles disponibilizados pelos usuários da plataforma que também atuem como seu concorrente, entre outras.

Nota-se, portanto, que pelo seu escopo de atuação o DMA tem como objetivo determinar condutas, ora de forma objetiva, ora um tanto subjetiva, de modo a regular a atuação de grandes empresas – as que se caracterizaram como gatekepeers nos moldes da regulação –, e garantir a não ocorrência de fechamento de mercado por descriminação, auto preferência ou pelo bloqueio à inovação. Ou seja, o referido instrumento tem como objetivo evitar o abuso de posição dominante por parte de agentes de destaque nos mercados digitais europeu.

Tamanha inovação legislativa em um meio tão importante como os mercados digitais não passou despercebido pelo Congresso norte-americano que, de forma análoga e menos abrangente, discute no momento de publicação deste trabalho a aprovação do American Innovation and Choice Online Act.

Tal dispositivo legal imporia a grandes agentes não só dos mercados digitais mais, também, desenvolvedores de tecnologia e de software – como aplicativos e programas – que permitem a pesquisa ou disponibilizam o acesso a uma grande quantidade de dados, certas obrigações com o intuito a garantir a eficácia da concorrência e do fomento a inovação.

As empresas enquadradas seriam, nos termos da proposta, referenciadas como “covered platforms” no artigo 5º da segunda seção,os quais se caracterizariam como os agentes que possui mais de 50 milhões de usuários, com vendas ou capitalização de mercado superior a US$ 600 bilhões e que são “parceiros comerciais críticos”.

No tocante a imposição regulatória, a aparente similaridade com o DMA não simboliza na prática a coincidências das imposições por parte de ambas as legislações. A evidente influência da Escola Pós-Chicago[14] na defesa da concorrência americana impõe atuações mais restritas de suas regulações concorrências. Em destaque, a auto preferência não é completamente proibida nos termos da proposta norte-americana, ao contrário do que acontece no texto europeu, ademais nota-se um escopo muito mais restrito na delimitação das empresas que estarão sujeitas a regulação concorrencial.

Porém, há sim similaridades com a regulação europeia, principalmente ao se observar a proibição de restringir o acesso de fornecedores a dados referentes as suas vendas na plataforma regulada, a descriminação entre fornecedores atuante de um mesmo mercado dentre da plataforma, entre em outros.

Conclui-se, portanto, que o AICO se trata de uma proposta com objetivos bastante similares ao do DMA, todavia esse não toma o mesmo grau de abrangência daquele, assim como possui uma atuação regulatória mais restrita, isto devido principalmente a uma filosofia de abordagem mais liberal propagada pela Escola de Chicago e Pós-Chicago nos Estados Unidos, como já foi mencionado, em contrapartida a uma dinâmica de atuação mais intervencionista como propaga a defesa da concorrência europeia.

Logo, há na hodiernidade a propositura de duas regulações que visam impedir o abuso de posição dominante por parte de gigantes do meio digital, principalmente no e-commerce, que atuam como intermediadoras para a ocorrência de comércio no meio digital ou na prestação de outros serviços, como ferramentas de busca, plataformas de marketplaces e até sistemas operacionais como abrange a regulação norte-americana. Problemas que, com o amadurecimento destas legislações e da defesa da concorrência nos mercados digitais, muito provavelmente serão tratados no Brasil por meio de regulação similar devido a crescente importância do meio digital na vida de quase a totalidade dos brasileiros.


[1] WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, do AT&T ao Google. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 307.

[2] Tal citação faz referência ao buscador de páginas virtuais detido pela “Google Inc.”, empresa de tecnologia hodiernamente controlada pela holding multinacional “Alphabet.inc”, que possui como endereço eletrônico: https://www.google.com.br/.

[3] Tal citação faz referência ao grupo de conglomerado de tecnologia “Meta Platforms, Inc.”, detentora das redes sociais Facebook, Instagram, Whatsapp, entre outras.

[4] Tal citação faz referência a companhia “Amazon.com Inc.”, empresa atuante nos mercados digitais em diversos seguimentos, como plataformas de streaming¸marketplace, e venda online de livros digitais e físicos.

[5] Sigla para “Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico”.

[6] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (“OCDE”). Ex ante regulation of digital markets. 1ª. ed. Paris: [s. n.], 2021. 72 p. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/ex-ante-regulation-and-competition-in-digital-markets.htm. Acesso em: 23 jan. 2023.

[7] Se trata da influência, tanto benéfica como maléfica para uma determinada plataforma que a quantidade de usuários exerce no tocante a sua utilidade, ou seja, é o aumento de eficiência de uma plataforma quando esta aumenta a quantidade de usuários que a compõe. BRASIL. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Mercado de Plataformas Digitais. Cadernos do CADE, Brasília, ano 2021, ed. 1ª, 2021.

[8] Se trata de uma característica inerente a mercados de múltiplos lados no tocante a capacidade de um dos grupos da plataforma tem de beneficiar ou aumentar quando a quantidade de membros do outro grupo aumenta ou os seus serviços se aprimoram, como exemplo, o aumento na quantidade de possíveis consumidores de um marketplace devido a um aumento, também, na quantidade de fornecedores de produtos que utilizam a plataforma. BRASIL. CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Mercado de Plataformas Digitais. Cadernos do CADE, Brasília, ano 2021, ed. 1ª, 2021.

[9] Referente a Regulação (UE) nº 2022/1925, proposta pela União Europeia.

[10] Referente a proposta de nº S.2992, feito no Senado Federal dos Estados Unidos da América.

[11] De acordo com dados disponíveis em: https://www.similarweb.com/pt/engines/.

[12] De acordo com dados disponíveis em: https://www.statista.com/statistics/274255/market-share-of-the-leading-retailers-in-us-e-commerce/.

[13] Que, nos estudos desenvolvidos por Lina Khan, refere-se a “empresas que possuem a capacidade de controlar o acesso a determinado mercado e de definir as regras para o funcionamento do mesmo tanto para o usuário como para fornecedores de determinada plataforma ou rede”. KHAN, Lina. The Separation of Platforms and Commerce. Columbia Law Review, Nova York, ano 2019, ed. 973, p. 973-1093, 2019.

[14] No tocante a visão da referida escola de pensamento no tocante a defesa da concorrência nos mercados digitais e na defesa da inovação a seguinte obra se destaca: BAKER, Jonathan B. A Preface to Post-Chicago Antitrust. Post-Chicago Developments in Antitrust Analysis, Washington, D.C., ano 2002, p. 1 – 24, 7 jun. 2002..


Estagiário na CGAA 06 do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Estudante do 9º período do curso de direito da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: kevin.torres@cade.gov.br.


Normas sobre mudanças climáticas podem impedir o ingresso de produtos brasileiros na União Europeia

Fernanda Manzano Sayeg

Recentemente, foram publicados dois importantes Regulamentos na União Europeia no âmbito da nova política comercial de sustentabilidade do bloco, a saber: (i) o Regulamento UE n.º 2023/956, publicado em 16 de maio de 2023, que institui o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira – “CBAM”; e (ii) o Regulamento UE n.º 2023/1115, publicado em 9 de junho de 2023, que proíbe a comercialização, importação e exportação de determinados produtos derivados de áreas de desmatamento e/ou degradação ambiental nos países do bloco, também conhecido como “lei anti desmatamento”.

Tanto o CBAM quanto a lei anti desmatamento integram o “Green Deal”, conjunto de políticas da União Europeia apresentado em dezembro de 2019 que objetiva zerar as emissões de gases de efeito estufa nos países do bloco até 2050.

Embora o objetivo dessas medidas seja nobre, não há dúvidas que terão consequências econômicas avassaladoras para países como o Brasil, já que essas medidas poderão afetar as exportações brasileiras e de outros países para o mercado europeu.

O CBAM tem como objetivo diminuir as emissões de carbono pelos países da União Europeia. Para tanto, estabelece regras para as importações de mercadorias, com o objetivo de equiparar o tratamento dos produtos fabricados na União Europeia aos países com políticas ambientais menos rígidas, como o Brasil.

A União Europeia determinou que apenas as seguintes indústrias intensivas em energia estão sujeitas ao CBAM, a saber: cimento, ferro, aço, alumínio, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. Acredita-se que, progressivamente, novas indústrias serão incluídas nessa lista.

Para que os produtos importados ingressem na União Europeia, será necessário adquirir Certificados em uma plataforma estabelecida pelos países da União Europeia. Os preços desses certificados serão baseados no fechamento médio semanal das negociações das licenças de emissões (preço médio semanal do leilão de permissões do ETS, expresso em €/tonelada de CO2 emitido).

O CBAM não entrará em vigor imediatamente. Foi estabelecido um período de transição visando garantir uma transição mais efetiva e suave para o novo sistema. As obrigações de reportar informações sobre as emissões de carbono terá início em 1º de outubro de 2023, mas o pagamento das taxas de carbono (emissão dos Certificados) começará apenas em 1º de janeiro de 2026.

A partir de outubro deste ano, será necessário reportar apenas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) incorporados em suas importações (emissões diretas e indiretas), sem a necessidade de realizar pagamentos ou ajustes financeiros. Ou seja, os exportadores deverão rastrear as emissões de carbono na cadeia produtiva de determinada mercadoria e calcular essa emissão, nos termos do regulamento europeu. No entanto, a partir de 2026, os importadores terão que declarar anualmente a quantidade de bens importados para a União Europeia no ano anterior e as emissões de GEE incorporadas a eles, além de entregar o número correspondente de certificados CBAM.

Uma grande questão que ainda está longe de ser resolvida é o funcionamento do sistema e as regras para o cálculo do carbono em produtos com emissão indireta (relacionadas às emissões produzidas pela eletricidade consumida na produção de determinado bem) serão oportunamente definidas pela Comissão Europeia.

Já a lei anti desmatamento foi apresentada como uma importante contribuição da União Europeia – que é essencialmente consumidora de commodities – para a interrupção do desmatamento global e da degradação florestal, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa e a perda de biodiversidade.

A legislação europeia determina que apenas poderão ingressar livremente nos países do bloco produtos originários de terras que não tenham sido desmatadas após 31 de dezembro de 2020, os quais serão denominados “produtos livres de desmatamento”.

Desse modo, produtos originários de áreas desmatadas terão sua comercialização proibida no bloco, incluindo aqueles que são fabricados a partir desses produtos.

As medidas de combate ao desmatamento devem incluir a criação de incentivos para uma transição para um uso mais sustentável dos recursos naturais, contribuindo para preservar mais florestas intactas, aumentando as oportunidades de mercado para produtos sustentáveis e eliminando a concorrência desleal de produtores não sustentáveis que exportam para o mercado comum europeu. Também será dada atenção à situação das comunidades locais e dos povos indígenas.

O próprio Regulamento UE n.º 2023/1115 traz algumas definições importantes, como os conceitos de desmatamento[1], floresta[2], plantações agrícolas[3] e degradação florestal[4]. A definição de “livre de desmatamento” é uma das maiores inovações da regulamentação, na medida em que é conceituada com base no parâmetro de que as commodities e produtos relevantes – incluindo aqueles usados ou contidos em produtos relevantes – foram produzidos em terras que não foram sujeitas a desmatamento ou degradação florestal após 31 de dezembro de 2020.  

Com relação às exportações, será estabelecido um sistema de benchmarking baseado em países com uma classificação escalonada que imporia tratamentos diferentes aos países, de acordo com critérios estabelecidos unilateralmente. A Comissão Europeia determinará o nível de risco dos países, que serão classificados como “risco alto”, “risco médio” ou “risco baixo” em razão do grau de desmatamento e degradação florestal, da expansão do uso de terras nas principais comodities e das tendências observadas, com base nos dados disponíveis, alertas de ONGs e outras de fontes internacionalmente reconhecidas.

Inicialmente, os seguintes produtos foram apontados como sendo presumidamente originários de áreas de desmatamento terão seu ingresso proibido na União Europeia: óleo de palma, madeira, café, cacau, carne bovina, borracha e soja. Produtos fabricados com tais commodities (pro exemplo, móveis, cosméticos e chocolates) também não poderão ser exportados para a União Europeia. A lista de commodities cuja entrada será proibida será revisada e atualizada regularmente, levando em consideração novos dados, como mudanças nos padrões de desmatamento.

A lei anti desmatamento entrará em vigor no dia 29 de junho de 2023. A proibição de importação e algumas obrigações de prestar informações terão início em 30 de dezembro de 2024 para as empresas em geral e em 30 de junho de 2025 para os operadores estabelecidos até 31 de dezembro de 2020 como micro e pequenas empresas, nos termos da Diretiva 2013/34/EU.

Esses dois regulamentos terão um grande impacto nas exportações brasileiras para a União Europeia, já que a pauta das exportações brasileiras para o bloco inclui várias das commodities mencionadas como proibidas. Estima-se que apenas a lei anti desmatamento tenha potencial de impactar em 80% das exportações do agronegócio brasileiro ou 40% do total das exportações para a UE, somando US$ 14,5 bilhões de vendas em 2021 para o bloco[5].

As empresas que utilizam em sua cadeia produtiva os commodities cuja entrada será proibida deverão demonstrar que os mesmos não são fabricados em áreas desmatadas ou com degradação ambiental. Empresas que já estão alinhadas com a agenda de compliance ambiental certamente terão maior facilidade de continuar exportando para a União Europeia.

As empresas que ainda não são sustentáveis devem adotar medidas para contribuir com as políticas públicas para evitar o desmatamento e a degradação florestal o mais rapidamente possível, além de mapear e registrar todos os insumos e todas as etapas de sua cadeia de produção.

Algumas restrições já foram, inclusive, anunciadas. Em 30 de maio, grandes bancos brasileiros anunciaram um protocolo de autorregulação para a concessão de crédito a frigoríficos e matadouros, com o objetivo de combater o desmatamento na Amazônia. A partir de 2025, os bancos passarão a exigir de seus clientes o rastreamento total da cadeia, para que seja comprovada a não aquisição de gado proveniente de áreas de desmatamento, tanto de fornecedores diretos quanto de fornecedores indiretos[6].

Não há dúvidas que esse processo será financeiramente oneroso e de difícil implementação. Não obstante, representará uma grande vantagem competitiva em relação aos concorrentes em outros países não conseguirem cumprir com as exigências estabelecidas na região europeia.


[1] Definido como “Conversão de florestas para uso agrícola, que tenha origem humana ou não”. Engloba as ideias de desmatamento ilegal, mas também de desmatamento legal.

[2] “Um terreno de uma extensão superior a 0,5 hectares, com árvores de mais de cinco metros de altura e um grau de cobertura arbórea de mais de 10 %, ou árvores que possam alcançar esses limiares in situ, excluindo as terras predominantemente consagradas a uso agrícola ou urbano”.

[3] “Terreno com povoamentos arbóreos integrados em sistemas de produção agrícola, nomeadamente plantações de árvores de frutos, plantações de palmeira-dendém ou olivais, e em sistemas agroflorestais, quando as culturas são plantadas sob coberto arbóreo. Incluem todas as plantações dos produtos de base em causa, com exceção da madeira; as plantações agrícolas estão excluídas da definição de floresta”.

[4] “Alterações estruturais da cobertura vegetal, sob a forma de conversão de Florestas primárias, ou de florestas em regeneração natural, em plantações florestais ou noutros terrenos arborizados; ou Florestas primárias em florestas plantadas”.

[5] Vide https://valor.globo.com/google/amp/opiniao/assis-moreira/coluna/brasil-critica-na-omc-medidas-unilaterais-da-uniao-europeia.ghtml.

[6] https://exame.com/esg/bancos-apertam-cerco-a-desmatamento-com-o-que-e-mais-importante-no-esg-criterio/?utm_source=crm&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter-esg_conteudo-news_bancos-apertam-cerco-a-desmatamento-com-o-que-e-mais-importante-no-esg-criterio/&utm_term=n/a&utm_content=n/a.

Fake news: um problema antitruste ou regulatório?

Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho

Em seu artigo de 2017 para a Competition Policy International, Sally Hubbard defendeu que as fake news são um problema antitruste. A autora argumentou que empresas como Facebook e Google não são apenas agregadores de notícias, mas também competem com os veículos de comunicação por anúncios, atenção do usuário e dados.[1]

Segundo Hubbard, essas plataformas se utilizam de seus modelos de negócios e poder de alavancagem em benefício próprio e, por terem papéis centrais na economia e poder de mercado, afastaram as empresas de notícias tradicionais e de qualidade para fora do mercado. Logo, haveria pouco interesse financeiro em preservar a qualidade das notícias, e as notícias de pior qualidade costumam gerar mais engajamento, principalmente no Facebook e no YouTube.[2]

Tendo como base o argumento levantado pela autora, questiona-se se a preservação da qualidade das notícias deve ser um objetivo do direito antitruste e se há, de fato, algum efeito anticompetitivo que justifique a intervenção da autoridade da concorrência nestes casos.

O contraponto ao artigo de Hubbard é trazido por Sacher e Yun, que aduzem que o argumento de que as plataformas digitais estão acabando com a qualidade das notícias não deve prosperar. De acordo com os autores, o consumo de notícias online aumentou drasticamente, mesmo antes da compreensão moderna de mídias sociais como Facebook ou Twitter. As pessoas têm se afastado das fontes tradicionais de notícias, como jornais, telejornais e rádio, e passado mais tempo online em busca de notícias. Isso levou a uma diminuição das receitas para as empresas de mídia tradicional, à medida que os anunciantes mudaram para plataformas online.[3]

Longe da existência de plataformas e poder de mercado comparáveis ao das Big Techs, a explicação mais óbvia é que menos pessoas estão lendo, visualizando ou assinando fontes tradicionais de mídia. Isso leva, em última análise, a uma diminuição das receitas, como assinantes que pagam para acessar esses conteúdos e receitas publicitárias. Como resultado, e também com o advento da publicidade direcionada, os anunciantes mudaram para plataformas online.[4]

Pode-se dizer que, à medida que a economia atual faz sua transição para uma economia orientada por dados, houve uma mudança significativa no poder de concentração econômica para plataformas digitais. Essas plataformas foram chamadas por Stucke de “data-opólios”, ou seja, empresas que controlam estruturas poderosas que atraem usuários, vendedores, anunciantes e desenvolvedores de software para seus espaços digitais.[5]

Foi o caso, por exemplo, das alegações de que o Google estaria realizando “raspagem” (scrapping) de conteúdo de outros sites, especialmente sites de notícias, isto é, mostrando imediatamente a essência da notícia no resultado da pesquisa (pequena parte de texto em letras pretas que contextualiza a pesquisa resultados e que você encontra abaixo do endereço verde mostrado abaixo de cada resultado).

O CADE abriu processo administrativo no qual o Google estaria supostamente realizando raspagem de notícias jornalísticas. A Associação Nacional de Jornais do Brasil – ANJ acusou o Google de abuso de posição dominante ao dificultar que os usuários acessassem sites de mídia para manter alto acesso em seu site.[6]

De acordo com a ANJ,

A própria estrutura de plataforma do Google potencializa e reforça sua dominância no ambiente virtual, visto que: (i) enquanto detentora de infraestrutura crítica para o mercado digital (gatekeeper), obtém melhores condições de contratação por via da dependência dos usuários da plataforma; (ii) enquanto estrutura integrada em diversos mercados, pelo poder de alavancagem pode estabelecer vantagem competitiva em mercados auxiliares ou independentes; e (iii) enquanto detentora e coletora de dados de seus usuários, além de monetizar estas informações, pode adotar uma série de práticas anticompetitivas, como discriminar consumidores, manipular o processo de escolha dos consumidores e criar vantagens anticompetitivas em relação a seus concorrentes dada a expressiva assimetria de informação criada.

Para evitar tais acusações, o Google argumentou que essa amostra prévia não mostrava o cerne das notícias, mas tão somente uma visão geral do que se trata ao usuário, e como isso ajuda na divulgação de alguns sites, até então desconhecidos.

Embora ainda seja um caso em andamento no Brasil e tenhamos que esperar como os conselheiros da autoridade antitruste brasileira decidirão este caso, as alegações de scrapping foram parte de um acordo FTC-Google no qual o Google se comprometeu a permitir que sites optem por não aparecer na vertical do Google sites enquanto ainda aparece nos resultados orgânicos.

Uma outra perspectiva é apresentada por Domingues e Silva, que discutem se as fake news deveriam ser controladas pela via regulatória ou pela política antitruste. Segundo os autores,

os efeitos e os problemas potenciais que emergem das fake news para o ambiente concorrencial não são automaticamente subsumíveis aos critérios do nosso direito antitruste. Ainda que se considerem plataformas e redes sociais como agentes dotados de poder econômico, considerando os dados públicos, não estão claramente identificadas evidências de prejuízos concorrenciais e econômicos para as empresas de mídia tradicional quando são avaliados os efeitos do fenômeno das fake news.[7]

No Brasil, o Projeto de Lei 2630/2020 (PL das Fake News), com viés claramente regulatório, instituirá a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet com o objetivo de assegurar “mecanismos de transparência” para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea baseados na internet.

Portanto, embora os abusos identificados possam ser investigados pela autoridade antitruste, é importante que ela seja cautelosa ao decidir se deve ou não abordar essas condutas por meio do direito antitruste. As fake news não devem ser tratadas exclusivamente como um problema de antitruste, uma vez que sua disseminação está além do abuso de poder de mercado ou poder de alavancagem das plataformas digitais.

Quanto a isso, Easterbrook descreveu dois tipos de erro por intervenções equivocadas da autoridade da concorrência que acabariam por substituir falhas de mercado por falhas do governo. [8]

Segundo o autor, por um lado, existem os Erros do Tipo I (também conhecidos como “falsos positivos”), descritos como o erro de condenar uma empresa por práticas que são, na realidade, pró-competitivas. Por outro lado, existem Erros do Tipo II (também conhecidos como “falsos negativos”), que se referem à absolvição de um empresa envolvida em práticas anticompetitivas.[9]

Nesse sentido, para o autor, os custos para correção dos Erros do Tipo I são maiores do que os Erros Tipo II. Ou seja, enquanto um “falso negativo” pode ser corrigido pelo próprio mercado, uma intervenção equivocada que resulte na condenação de comportamentos pró-competitivos pode não apenas ser irreversível como se espalhar para outros mercados.

Nas palavras do autor,

Uma dificuldade fundamental que o tribunal enfrenta é a incomensurabilidade das apostas. Se o tribunal erra ao condenar uma prática benéfica, os benefícios podem ser perdidos para sempre. Qualquer outra empresa que realize a prática condenada será punida devido ao stare decisis, independentemente dos benefícios. Se o tribunal erra ao permitir uma prática anticompetitiva, porém, a perda de bem-estar diminui com o decurso do tempo. O monopólio é autodestrutivo. Os preços de monopólio eventualmente atraem a entrada de novos player. É verdade que esse longo prazo pode demorar muito, com perdas para a sociedade nesse ínterim. O objetivo central do antitruste é acelerar a chegada do longo prazo. Mas isso não deve obscurecer o ponto: erros judiciais que toleram práticas nefastas são autocorretivos, enquanto condenações errôneas não são.[10]

Verifica-se, assim, que, ao contrário do que defende Hubbard, a disseminação de notícias falsas é um problema que requer soluções além do escopo do antitruste e precisamos procurar soluções fora dessa área, já que seu sucesso se baseia em fraquezas em nossa democracia capitalista. Em última análise, acreditar que a disseminação de notícias falsas é um verdadeiro problema de antitruste, é acreditar que o antitruste é o começo e o fim de todos os problemas.


[1] HUBBARD, Sally. Fake News is a Real Antitrust Problem. Competition Policy International, dez. 2017, p. 6. Disponível em https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Hubbard.pdf . Acesso em 13 de junho de 2023.

[2] Idem.

[3] SACHER, Seth. B.; YUN, John. M., Fake News is Not an Antitrust Problem. CPI Antitrust Chronicle, dez. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Sacher-Yun.pdf. Acesso em 13 de junho de 2023.

[4] Idem.

[5] STUCKE, Maurice E. Should we be concerned about data-opolies? Georgetown Law Technology Review. 2018.

[6] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03 (Representantes: E-Commerce Media Group Informação e Tecnologia Ltda. / Representadas: Google In. E Google Brasil Internet Ltda.)

[7] DOMINGUES, Juliana. O.; SILVA, Breno. F. M. e. Fake news: Um desafio ao antitruste?. Revista de Defesa da Concorrência, v. 6, n. 2, p. 37-57, 2018. Acesso em 13 de junho de 2023.

[8] EASTERBROOK, Frank H. Limits of Antitrust. 63 Texas Law Review 1 (1984).

[9] Idem.

[10] No original: “A fundamental difficulty facing the court is the incommensurability of the stakes. If the court errs by condemning a beneficial practice, the benefits may be lost for good. Any other firm that uses the condemned practice faces sanctions in the name of stare decisis, no matter the benefits. If the court errs by permitting a deleterious practice, though, the welfare loss decreases over time. Monopoly is self-destructive. Monopoly prices eventually attract entry. True, this long run may be a long time coming, with loss to society in the interim. The central purpose of antitrust is to speed up the arrival of the long run. But this should not obscure the point: judicial errors that tolerate baleful practices are self-correcting, while erroneous condemnations are not”, in EASTERBROOK, 1984, p. 13.


Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Processus. Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV. Mestre em Administração Pública com concentração em Organizações Públicas e Políticas Públicas pela FACE/UnB e licenciado em Letras pela Universidade Católica de Brasília. É Servidor Público Federal desde 2009. Atualmente, exerce o cargo de Chefe do Serviço de Cooperação Internacional na Assessoria Internacional da Presidência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).


O Ministério Público Federal no processo administrativo sancionador do CADE

Mauro Grinberg

Pouco (relativamente à relevância) tem sido escrito sobre a importantíssima tarefa do Ministério Público Federal (MPF) junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Comecemos pelo básico (lembrando que aqui tratamos apenas dos processos administrativos sancionadores e não dos atos de concentração), conferindo o art. 20 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator”.

Desde logo notamos que a opção “de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator” bem demonstra que a participação do MPF, embora de enorme importância, não se demonstra obrigatória, ou seja, o representante do MPF pode não emitir parecer se não lhe for solicitado pelo Conselheiro-Relator. Todavia, se o parecer for solicitado, ele se torna obrigatório, face aos termos do dispositivo acima transcrito), ainda que não vinculativo.

Com efeito, estabelece o art. 127 da Constituição Federal: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ou seja, zelar pela defesa da ordem jurídica, inclusive no Cade, sobretudo quando solicitado a tanto, é dever do MPF, o que se coaduna com o § 2º do art. 6º da Lei Complementar 75/1993: “A lei assegurará a participação do Ministério Público da União nos órgãos colegiados estatais, federais ou do Distrito Federal, constituídos para defesa de direitos e interesses relacionados com as funções da instituição”.

Mas há mais. Em se tratando de interesses individuais disponíveis, sempre que algum/a Representado/a tiver sido declarado/a incapacitado/a para o exercício dos próprios direitos (o que deve ser raro mas possível), o MPF terá a defesa desta pessoa, sendo esta a única situação em que ele terá função de parte no processo administrativo do Cade para imposição de sanções administrativas.

Assim, mesmo quando o MPF oficia ao Cade comunicando a existência de uma infração contra a ordem econômica, sua ação equivale à notícia de um crime levada à autoridade policial. Como instituição, o/a representante do MPF pode (e deve, quando lhe é solicitado) emitir parecer, embora seja recomendável que não seja a mesma pessoa da instituição a fazê-lo. Ou seja, quem avisa ao Cade sobre uma possível infração não deve ser a mesma pessoa a emitir parecer, ainda que a instituição seja a mesma.

Vale aqui lembrar que Stephanie Vendemiatto Penereiro e Wagner José Panereiro Armani demonstram que “a defesa da concorrência é estruturada pelo ordenamento jurídico brasileiro a partir de um tripé, possuindo três frentes de atuação: penal, cível e administrativa”, sendo que “a centralidade e a relevância da atuação do Ministério Público na defesa da concorrência mostra-se evidente quando se verifica estar presente em cada uma dessas fontes”[1].

Todavia, na esfera do processo administrativo sancionador do Cade, o MPF é parecerista – de importância fundamental, como se vê adiante, mas com esta limitação – pois não emite decisão no processo administrativo sancionador do Cade, que pode, se for o caso, decidir de maneira diversa da orientação constante de pareceres anteriores do/a representante do MPF. Com efeito, estabelece o art. 9º, II e III, da LDC que “Compete ao Plenário do Tribunal (…) “decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei” e “decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral”. Ou seja, a decisão é do Plenário do Cade, sem voto do MPF (bem como dos demais participantes do processo).

Mas é claro que não podemos ver o MPF como mero parecerista. Márcio Barra Lima, lembrando que, de acordo com o § único do art. 1º da LDC, “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”, afirma que “tendo em vista a existência de um interesse geral que transcende os limites das estruturas do mercado, a intervenção do Ministério Público Federal é crucial para garantir o fiel cumprimento dos preceitos normativos, tanto dos princípios da ordem econômica como das garantias constitucionais do devido processo legal”[2].

Mais ainda, a Resolução Conjunta PGR/CADE 1/2016, tendo como objetivo estabelecer as condições de atuação do MPF junto ao Cade, atribuiu, já no seu art. 2º, I. a competência (ampla) de “atuar no controle das condutas anticoncorrenciais e na prevenção da concentração de mercado” e, mais adiante, no art. 3º, estabeleceu prerrogativas do MPF, entre as quais, por exemplo, a de “requerer ao Plenário do Tribunal a adoção de medidas de sua competência” (inciso IX). É o mesmo Márcio Barra Lima que conclui que “tais atribuições do MPF perante o CADE demonstram que sua atuação não se restringe à elaboração de pareceres, podendo igualmente atuar ativamente nos variados procedimentos administrativos que tramitam na autarquia”[3].

Como a Resolução Conjunta acima referida regulou em detalhes o relacionamento do/a representante do MPF com o Cade, diz Márcio Barra Lima que “foi conferida uma carga de eficácia antes inexistente àqueles diplomas superiores (Constituição e Lei Complementar nº 75/1993), ao menos no que se refere ao relacionamento interinstitucional”[4]. Mais do que aumentar a carga de eficácia (lembremos dos atributos da norma: existência, validade e eficácia), tal resolução deu ferramental para as autoridades, que antes se valiam de instrumentos outros que não tinham a mesma especificidade, não obstante a sua legalidade.

À parte o fato do/a representante do MPF ter direito, no Cade, a gabinete, assento e voz no Plenário (art. 3º, I e II, da Resolução Conjunta acima referida), a grande atuação do MPF nos processos administrativos sancionadores do Cade é a de fiscal da lei, com sua imparcialidade nata, por vezes contrariando versões que tendem a um determinado comportamento. Já se escreveu alhures que o Cade tem dois organismos distintos dentro dele: o acusador e o julgador, que não devem ser confundidos mas que, de qualquer sorte, sofrem a fiscalização do MPF para que não existam confusões desses dois organismos. Embora a convivência das duas atividades no mesmo órgão não seja uma situação ideal, é a que a lei nos proporciona e que faz avultar a importância do MPF.

Vale aqui lembrar a independência do/a representante do MPF, mencionando Hugo Nigro Mazzilli que “a hierarquia no Ministério Público é administrativa, não funcional. Em outras palavras, o Ministério Público, enquanto instituição, tem autonomia em face de outras instituições e órgãos do Estado; tem autonomia funcional até mesmo em face dos Poderes de Estado. E os membros e órgãos do Ministério Público têm reciprocamente independência funcional” (itálicos no original)[5]

Assim, a presença do/a representante do MPF, como fiscal da lei, nos julgamentos dos processos administrativos sancionadores do Cade, constitui garantia de equilíbrio e sobriedade. Portanto, ainda que a sua função nominal seja a de fornecer pareceres, a presença do MPF constitui garantia da sociedade.

Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade e Procurador da Fazenda Nacional, Presidente do Ibrac e hoje Conselheiro do Ibrac, membro da American Bar Assotiation, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil


[1] “A atuação do Ministério Público na defesa da concorrência brasileira”, Revista de Direito Concorrencial”, 14.12.2022, pág. 27

[2] “A atuação do Ministério Público Federal junto ao CADE”, RDC, vol. 6, nº 1, maio de 2018, pág. 10

[3] Obra citada, pág. 14

[4] Obra citada, pág. 10

[5] “Regime jurídico do Ministério Público”, Saraiva, São Paulo, 2018, pág. 175

Desenvolver aeroportos regionais requer gestão profissional

Raul Sandoval Cerqueira

Os gestores de aeroportos regionais, de forma geral, focam seus esforços no desenvolvimento da infraestrutura para viabilizar o incremento das operações.

Esse incremento operacional tem de ser buscado sem abrir mão da segurança e do atendimento às regras técnicas que permeiam o setor aéreo.

Dado esse contexto, este artigo se inicia com um breve apanhado de questões fundamentais sobre a regulação de aeroportos.

O pouso, decolagem e movimentação de aviões de uso civil, salvo poucas exceções (1), só é permitido em áreas destinadas para esse fim e previamente cadastradas na Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), tais áreas são conhecidas como Aeródromos (2).

A fim de ordenar a regulação aplicável, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) (2) os classifica quanto ao seu uso, podendo ser:

  • aeródromo militar
  • aeródromo civil de uso privado
  • aeródromo civil de uso público

Obviamente, aeródromos militares não estão sujeitos à regulação da aviação civil.

Aeródromos civis de uso privado, por serem de uso restrito pelo seu proprietário ou por quem ele permitir (2), dado o interesse pessoal na segurança da operação, a capacidade para promover as adequações necessárias e, principalmente, por haver pouca exposição de terceiros aos riscos de sua operação, estão sujeitos a uma regulação mais branda.

Já os Aeródromos civis de uso público, também denominados Aeroportos, destinam-se ao uso da população em geral (2), abrangendo usuários que desconhecem os detalhes da operação e não tem qualquer domínio sobre as condições em que essa se dá, por esses motivos, para os Aeroportos é requerida regulação mais intensa, a qual ainda é modulada segundo o porte da infraestrutura e as suas características (3).

Quando da implantação de um aeródromo, a primeira ação obrigatória junto a ANAC, para proporcionar a abertura ao tráfego, é a inclusão no cadastro apropriado (4), sendo que, operar sem atender a esse pré-requisito corresponde a uma condição de clandestinidade.

A inscrição no cadastro de Aeródromos de uso privado é um ato voluntário e simples, basta prover as informações, solicitar o cadastro e aguardar a publicação da portaria (5).

Outrossim, a inscrição no cadastro de Aeródromos de uso público tem como pré-requisito a verificação pela ANAC do atendimento aos itens do regulamento RBAC 154 EMD07, o que é comumente chamado de homologação (5).

Ainda, após a homologação, como requisito para permanência no cadastro de aeródromos de uso público, há outra diferença importante em relação aos de uso privado, a ANAC fiscalizará a realização das rotinas necessárias à segurança das operações, segundo o RBAC 153 EMD07 e, a cada alteração da infraestrutura também verificará novamente o atendimento ao regulamento RBAC 154 EMD07.

Aeródromos de uso privado podem ser utilizados para operações de transporte público de passageiros, em certas condições, por aeronaves de até 19 assentos e até o limite de 15 frequências semanais (6), entretanto são impossibilitados de realizar a cobrança de tarifas ou exploração comercial.

Essa condição pode ser apropriada nos primeiros momentos de uso do aeródromo, mas se mostrará insustentável, em especial, nos casos em que a operação começar a se tornar mais frequente, por não haver fonte própria de recursos para a realização de sua operação, manutenção e conservação.

A conformidade aos regulamentos, embora trivial para aqueles já inscritos e com operações regulares, constitui-se em uma barreira para aqueles que ainda intencionam iniciar o atendimento ao público em geral.

Falhas na infraestrutura como distanciamentos insuficientes, inexistência de proteção do perímetro, presença de obstáculos na faixa de pista, sinalização inadequada, entre outros, e ainda, inexistência de manutenção rotineira apropriada da infraestrutura e a dificuldade em manter as equipes, procedimentos e rotinas necessárias à segurança das operações, tem sido motivo de frustração das autoridades locais ao buscar o cadastramento da infraestrutura para o uso público.

Nesse contexto emerge a necessidade de se profissionalizar a gestão do aeródromo, afinal, não é suficiente apenas a realização das obras e melhorias, é necessária a correta manutenção, operação e prestação de contas aos órgãos reguladores.

Para alcançar esse resultado, há no mercado diferentes arranjos, quais sejam:

  • Estruturar equipe própria para a gestão, operação e manutenção do aeroporto;
  • Contratar empresas especializadas para operação comercial, manutenção e para a operação aérea;
  • Contratar a INFRAERO;
  • Implementar uma concessão patrocinada (PPP) da gestão, operação, manutenção e melhoria do aeroporto.

Todas essas alternativas encontram-se implementadas em um ou mais aeroportos no território nacional, por exemplo:

  • Equipe própria: Aeroporto de Campo novo do Parecis/MT; Aeroporto de Porto Murtinho/MS; Aeroporto de Araxá/MG;
  • Empresas contratadas: Aeroporto de Lages/SC; Aeroporto Fernando de Noronha/PE;
  • INFRAERO: Aeroporto de Guarujá/SP; Aeroporto de Divinópolis/MG;
  • Concessão patrocinada (PPP): Aeroporto da zona da mata/MG; Aeroporto de Parnaíba/PI.

Por apresentarem vantagens e desvantagens específicas, propõe-se uma comparação dos possíveis arranjos com base no seguinte rol de parâmetros:

  • Independe de demanda mínima: a viabilidade econômica para se implementar a solução não requer a existência de um mínimo de demanda;
  • Baixo custo administrativo: a solução independe de acompanhamento administrativo intenso do órgão público ou entidade privada responsável;
  • Equipe especializada: a solução favorece a mobilização e manutenção de profissionais especializados na gestão operacional do aeroporto;
  • Escopo abrangente: a solução é determinada por contratos robustos que abrangem a totalidade das necessidades operacionais, de manutenção e de desenvolvimento do aeródromo;
  • Estímulo para resultados, inovação e crescimento: a solução estimula a equipe a promover estratégias para buscar novas ligações aéreas, novos modelos de negócio e viabilizar receitas e crescimento do aeroporto;
  • Independência política: a política local, regional ou federal pouco interfere na organização e operação do aeroporto.

O quadro apresentado a seguir explicita o resultado dessa análise comparativa, sendo que a marca “(+)” significa vantagem da modalidade.

Tabela 1 – Quadro comparativo de soluções para desenvolvimento de aeródromos

CaracterísticasEquipe própriaContrato com empresas especializadasOperação INFRAEROConcessão patrocinada
Independe de demanda mínima(+)(+)  
Baixo custo administrativo  (+)(+)
Equipe especializada (+)(+)(+)
Escopo abrangente(+) (+)(+)
Estímulo para resultados, inovação e crescimento   (+)
Independência política (+) (+)

Fonte: Elaboração própria

A escolha da solução requer uma análise prévia cuidadosa e dependerá do momento de desenvolvimento no qual a infraestrutura se encontra, das condições institucionais que a cercam e da composição que trará mais resultados para os seus usuários e interessados.

Referências:

(1)   Resolução nº 624, de 07/06/2021. RBAC 91 Emenda nº 03. Requisitos gerais de operação para aeronaves civis.

(2)   Lei 7.565 de 19/12/1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA)

(3)   Resolução nº 712, de 14/04/2023. RBAC153 Emenda nº07. Aeródromos – Operação, Manutenção e Resposta à Emergência.

(4)   https://www.gov.br/pt-br/servicos/realizar-alteracao-cadastral-de-aerodromo-privado

(5)   Portaria SIA nº 3352/18

(6)   Resolução nº 576 de 04/08/2019

Integração Vertical e seus Efeitos em Atos de Concentração

Um exemplo de Cadeia de Suprimento de Saúde Suplementar

Cristina Ribas Vargas

Cadeia de Suprimento, Custos de Transação e Teoria Baseada em Recursos

Nas economias modernas observa-se que a grande maioria das empresas é responsável por uma ou algumas etapas de um processo produtivo de bens ou serviços. É raro identificar empresas que contemplem etapas desde a produção de seus insumos até a comercialização de seu produto ou serviço final ao consumidor. O mais habitual é verificarmos empresas que adquirem insumos de outras empresas, transformando-os ou beneficiando-os e posteriormente vendendo sua produção à empresas especializadas em distribuição e vendas à varejo. Assim como na produção de bens, no setor de serviços também identificamos especialização de empresas por segmentos, do montante à jusante, isto é dos fornecedores aos consumidores finais. Denominamos cadeia de suprimento aquela que abrange desde os fornecimentos de insumos, até a etapa de pós-venda aos consumidores. Por exemplo, uma operadora de planos de saúde, cujo produto final é a comercialização de planos com determinada cobertura de serviços, credencia outras empresas para a realização de exames de diagnósticos a seus beneficiários, bem como consultas realizadas por clinicas independentes, hospitais, centros médicos etc., e ainda, terceiriza a contratação de atividades indiretas (overheads), tais como segurança e tecnologia da informação. Neste processo, a tendência esperada é de que a cada etapa da cadeia aumente o valor agregado final. A análise das etapas que agregam maior ou menor valor durante o processo permitem a realização da reengenharia da cadeia, em busca do máximo de vantagem competitiva possível, reposicionando, reestruturando, ou até mesmo eliminando alguma etapa da cadeia.

A partir da necessidade de análise da gestão da cadeia de valor, Ronald Coase (1937) identificou que em determinadas circunstâncias poderia ser mais eficiente empreender certas atividades da cadeia internamente pela empresa. Atividades realizadas por terceiros, que incidem em elevados custos de contrato para garantir seu controle ou entrega, podem incentivar a empresa a internalizar a atividade. Na década de 1960 Williamson relacionou a análise de custos de transação e operações de compra no mercado, definindo os custos de transação como os custos de negociar, monitorar e fazer cumprir contratos no mercado. Quanto maiores as incertezas e mais complexas as condições contratuais, maiores tendem a ser os custos de transação, tais como em contratos envolvendo investimentos de longo prazo, ou investimentos prévios cujas alterações contratuais posteriores não compensam o investimento inicial (hol-up). Outro aspecto importante identificado na avaliação do custo de transação ocorre  quando uma negociação apresenta informações assimétricas, isto é, uma das partes possui maiores informações sobre os custos e benefícios do contrato do que a outra, neste caso o custo de equilibrar a negociação pode vir a torná-la inviável.

Uma abordagem alternativa à dos custos de transação é a Teoria Baseada em Recursos, que afirma que certas empresas acumulam ativos, habilidades e conhecimentos que lhes confere competências distintivas, difíceis de serem imitadas e que lhes garante vantagem competitiva no mercado. Neste caso, as atividades realizadas pela empresa que apresentassem competências distintivas estariam associadas a menores custos comparativos, e portanto estas deveriam ser mantidas internamente, ao passo que terceirizar as atividades sem competências distintivas poderia auxiliar na redução de custos. No entanto, uma vez identificada a existência de uma competência essencial, é bem provável que os custos de transação para protegê-la da imitação pela concorrência venham a aumentar. Nesses casos, uma solução seriam contratos mais precisos e que objetivassem mitigar o risco de imitação, devendo ser aplicados tanto à montante quanto à jusante em cadeias produtiva ou de suprimento.

Integrações Verticais – definições e cadeia de mercado de saúde suplementar

Os custos de transação e as teorias baseadas em recursos nos auxiliam a identificar o sentido no qual determinadas cadeias de suprimento caminham para maior integração de atividades dentro de uma mesma empresa ou grupo empresarial. A integração pode ser horizontal, vertical ou em conglomerados. Aqui destaca-se apenas a definição acerca da integração vertical. A integração vertical ocorre quando empresas de diferentes etapas da cadeia de suprimento se fundem, ou uma adquire a outra. A dimensão vertical da análise da empresa reflete suas escolhas acerca de quais bens e serviços devem ser produzidos internamente ou terceirizados desde o insumo até a venda final ao consumidor. Segundo Perry (1989) uma firma é definida como verticalmente integrada se envolve dois processos interligados:

1º) Upstream – a produção realizada na etapa upstream de uma cadeia é empregada totalmente ou em parte, como um insumo intermediário no processo donwstream desta mesma cadeia;

2º) Downstream – a quantidade de um insumo intermediário que é utilizado em uma etapa donwstream é obtida em parte ou totalmente de um  processo upstream.

Neste sentido, a integração vertical pode ocorrer de forma parcial, isto é, quando somente parte dos insumos produzidos na etapa downstream da cadeia é fornecido pela própria empresa, ou somente parte da produção da etapa upstream é vendida para outros compradores.

Uma característica da integração vertical é a redução da necessidade de contratos para efetuar as trocas no mercado, já que as transações serão dentro da própria empresa. Quanto mais integrada a empresa, mais autonomia de decisão sobre níveis de investimento, emprego, produção e distribuição ela terá.

Conforme dados do CADE (2022), a integração vertical é um dos aspectos mais discutidos em Atos de Concentração nos mercados que envolvem a cadeia de saúde suplementar. Nos mercados que constituem essa cadeia, tais como operadoras de planos de saúde, hospitais, centros médicos, serviços de medicina diagnóstica etc. verifica-se a existência de uma tendência de verticalização, que pode ser explicada por diversos motivos, mas cujas consequências positivas e negativas sobre o conjunto do mercado exigem o olhar atento do Conselho. Em que pese os ganhos de eficiência possam ser benéficos tanto para a empresa quanto para seus consumidores, a possibilidade de algum abuso de poder decorrente dessa integração deve ser considerada. A possibilidade de constituição de barreiras à entrada, intensificação de assimetrias de informação e concentração de mercado podem facilitar o exercício do poder de mercado por uma empresa dominante. No caso do Brasil é possível que as normas editadas pela ANS tenham contribuído para incentivar os processos de integração vertical entre as operadoras de planos de saúde e os elos da cadeia à jusante (ver figura 1- modelo de cadeia). Tais normas objetivam assegurar que os consumidores serão atendidos por operadoras com saúde financeira e patrimonial suficiente para atender a todos os serviços cobertos pelos seus  planos de saúde, o que é benéfico quando se trata da proteção do consumidor. Contudo, pode-se dizer que há uma barreira em termos de exigência de capital mínimo para a atuação nesses mercados, que podem desincentivar o ingresso de empresas de menor capacidade financeira neste mercado.

Uma das eficiências que a integração vertical traz para a cadeia de saúde suplementar é a eliminação do problema do agente-principal, isto é, a eliminação dos interesses antagônicos em diferentes elos da cadeia de suprimento. Uma vez que tanto a operadora de plano de saúde (OPS) quanto os prestadores de serviços, tais como ambulatórios, laboratórios de apoio a saúde diagnóstica (SAD), hospitais etc. desejam auferir a maior renda possível no mercado de saúde, tem-se que para as OPS esta renda aumenta quando o usuário não utiliza os serviços disponibilizados pelo plano, ao passo que a renda do prestador do serviço cresce quando há a utilização de sua estrutura de serviços (consultas em hospitais, internação em leitos, realização de exames de diagnósticos etc.). A integração elimina esse conflito de interesses, pois a oferta de plano de saúde e a prestação de serviços cobertos pelo plano passam a ser feitos pelo mesmo agente.

As etapas da análise de integração vertical podem ser resumidas pelos seguintes pontos de análise:

  1. Definição dos mercados relevantes observando-se as características dos produtos/serviços ofertados, bem como, o mercado geográfico de atuação das empresas requerentes;
  2. Determinação dos market-shares nos mercados relevantes a fim de identificar o grau de concentração pré e pós-operação de integração;
  3. Análise da possibilidade de prejuízos à concorrência nos mercados à montante e à jusante;
  4. Análise do resultado líquido da operação, após consideração dos ganhos de eficiência versus prejuízos decorrentes da concentração.

Embora a integração da cadeia à montante e à jusante seja vista no sentido vertical, é importante destacar que os possíveis efeitos negativos provocados pela integração ocorrem no sentido empresa integrada – concorrentes de mercado. Assim, os efeitos da integração direcionam-se no sentido horizontal entre a empresa integrada e as demais participantes do mercado. Especificamente durante a análise de integração vertical busca-se verificar a possibilidade de fechamento de mercado por parte da empresa integrada, nos segmentos à montante e à jusante de sua cadeia de suprimento para os concorrentes de mercado, de tal forma que se configure a prática de condutas anticompetitivas contra as empresas independentes. Observamos na figura 1 que embora a integração ocorra no sentido é vertical da cadeia de suprimento, suas conseqüências são horizontais, pois os possíveis fechamentos de mercado incidem sobre seus concorrentes.

Conforme explicitado em CADE (2022), os efeitos de fechamento para a concorrência na cadeia de saúde suplementar, cuja integração ocorre entre OPS e Hospitais por exemplo, deve ser analisada à jusante e à montante:

  1. Qual a possibilidade de fechamento de mercado de serviços prestados pelos hospitais às operadoras de planos de saúde independentes?
  2. Qual a possibilidade de fechamento do mercado de plano de saúde (já integrado aos hospitais da rede própria) para o credenciamento de hospitais independentes?

Por fim, a conclusão acerca da possibilidade de fechamento de mercado à montante e a à jusante dependerá da posição de dominância da empresa integrada no mercado, da existência de barreiras à entrada, e da incapacidade dos concorrentes já instalados de oferecer serviços plenamente substitutivos aos oferecidos pela empresa integrada.

Figura 1. Exemplo de Integração Vertical na Cadeia de Suprimento de Saúde Complementar e Efeitos Concorrenciais.

REFERÊNCIAS

CADE (2022), Cadernos do CADE – Atos de Concentração nos mercados de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica, CADE, janeiro de 2022.

COASE, R.H., The Nature of the Firm, Econômica, volume 4, Nº.16, p.386-405, London: LSE, 1937

Disponível em 10/04/2023:

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/j.1468-0335.1937.tb00002.x

NELLIS, Joseph, PARKER,David(2003), Princípios de Economia para os Negócios. São Paulo: Futura, 2003.

PERRY, M. K. (1989), Vertical Integration determinants and effects. In: Schamalensee,R., Willig,R. (Eds.). Handbook of Industrial Organization. Amsterdam: North-Holland, 1989.


Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.

endereço linkedin:

http://linkedin.com/in/cristina-vargas-5921195a


Venda casada de PC novo com sistema Operacional Microsoft

Maxwell de Alencar Meneses

A Microsoft pratica a conduta de venda casada de licenças do seu sistema operacional Windows, que são pré-instaladas em novos computadores fabricados por OEMs (original equipment manufactures), máquinas montadas de fábrica. Isso ocorre de modo análogo desde os primórdios da criação da empresa, sendo que na época tratava-se do seu precursor o MS-DOS, que também já vinha embarcado com os primeiros PCs (computadores pessoais).

A questão levanta polêmica quando o usuário se vê obrigado a pagar pela licença do Windows, mesmo que não tenha interesse em utilizá-lo, visto que se tratam de produtos que são diferentes e que podem ser vendidos separadamente, todavia a conduta em si cria barreiras para que o usuário possa optar quanto à aquisição da licença.

No processo de compra de um desktop de determinados fabricantes, por exemplo pelo site da Dell no Brasil, o usuário é forçado a adquirir desktops com o Windows, podendo optar por versões diferentes, mas apenas do Windows. Não é possível deixar de adquiri-lo, ao passo que esses fabricantes se recusam a vender um equipamento dessa categoria sem esse sistema operacional (S.O.), já que não disponibilizam essa opção.

Segundo o site statista, em 2021 o Microsoft Windows foi o sistema operacional mais utilizado em computadores (desktop, tablet e console) no mundo, possuindo mais de 70% de Market share. No mercado de PCs o Gartner group estimou para o quarto trimestre de 2021, a liderança em primeiro lugar da Lenovo com 24,6%, seguida de perto pela HP com 21,1% e com o bronze a Dell com 19,5%. Esse pódio totalizaria 65,2% do mercado de computadores. Nota-se que em 2008, a Lenovo chegou a não suportar mais o Linux nos seus desktops, o que reviu somente em 2016.

A Apple vem em quarto lugar nessa lista com 7,7% de share. Em sua arquitetura historicamente fechada e proprietária, a fabricante determina qual sistema é utilizado em seus computadores, que é o seu próprio sistema, o OS X, que tem raízes em comum com o Linux.

A Microsoft por sua vez estende sua posição dominante sobre os fabricantes, sendo alavancada formando um efeito artificial de conjunto hardware-software monolítico e quase monopolista, que mimetiza o efeito natural obtido pela Apple com seu conjunto próprio de hardware e software, Mac e OS X, indissociáveis pela engenharia de concepção do projeto, e não por uma conduta concorrencial, como no caso do Windows.

O curioso é que o fato de a Microsoft não ter vendido seus direitos do MS-DOS à IBM no início da era dos PCs, mas pelo contrário ter negociado com as outras empresas o fornecimento desse software para máquinas rivais da IBM, foi provavelmente o causador de hoje nós não termos apenas dois fabricantes de PCs cada um com seu conjunto de hardware e software entranhados, que seriam a IBM e a Apple.

A abertura dada pela separação entre o S.O. e o hardware naquela ocasião, possibilitou o florescimento de vários fabricantes de computadores, maior concorrência e um barateamento de preços, em comparação a solução Mac que é mais cara desde o início e talvez sempre se mantenha assim.

Em 2007, a Dell declarou que seus computadores com Linux pré-instalado seriam US$ 50 mais baratos de que a versão similar com Windows, em outras palavras seria pago à Microsoft uma “taxa” de licenciamento de US$ 50, valor esse acrescido ao custo de um computador de US$ 1000. A “taxa” Windows criada pelo incentivo dado pela Microsoft para que OEMs forneçam computadores com Windows pré-instalado é justificada pela empresa por uma eficiência gerada aos compradores, que têm o benefício de não necessitar instalar um sistema operacional. Muitas pessoas comprariam PCs com sistemas operacionais pré-instalados para não ter que lidar com a curva de aprendizado e a inconveniência de realizar sozinhas a instalação de um sistema operacional.

Ao mesmo tempo, revendas de software anunciam abertamente venda de licenças OEM Windows, direcionadas para venda casada com equipamentos novos, que não vem necessariamente com S.O. pré-instalado, ou seja, a eficiência alegada da pré-instalação é relativa. Essas licenças são atreladas a aquele hardware novo e perdem validade em caso de determinadas alterações que o descaracterize, como a troca da placa principal do computador.

Entre os que se dispõem a utilizar outro S.O. há relatos de compradores que obtiveram restituição do valor pago pela licença Microsoft e de outros a quem esse benefício foi negado, a depender do país, do entendimento do vendedor a esse respeito, e de condições específicas de venda do fabricante do hardware. Em sites especializados como o “Reclame Aqui” relatos de problemas de consumidores quanto a essa imposição do sistema ao adquirirem um PC.

Em 2007, foi apresentado o projeto de lei 167/07 na Câmara dos Deputados proibindo venda casada de hardware com sistema operacional, que veio a ser arquivado. O CADE julgou no caso Paiva Piovesan v Microsoft a venda casada do Microsoft Money com o Windows. A Microsoft enfrentou notórias ações antitruste, como no caso Netscape. Há, portanto, um histórico que corrobora uma inquietação de partes da sociedade com o que ao longo dos anos vem delineando um certo padrão de condutas comerciais da Microsoft visando afastar concorrência de modo não natural.

Em que pese haver aspectos técnicos qualitativos entre os sistemas operacionais existentes, há um aspecto comportamental que torna muito difícil a troca e é parte insidiosa da Conduta concorrencial da Microsoft. Quando se é introduzido ao uso de smartphones por meio de um celular iPhone, que utiliza sistema iOS, o usuário sente natural dificuldade ao operar um celular Android, o mesmo acontece com usuário inicial do Android com relação ao iOS.

Esse sintoma ocorre de modo semelhante com o usuário de sistemas para desktops. O usuário contumaz de Windows fica perdido no ambiente Mac, bem como no ambiente Linux e vice-versa. Isso ocorre pela máxima de que o melhor ambiente é aquele no qual se foi habituado a utilizar desde o início. Isso explica o investimento de fabricantes de software de CAD (Computer Aided Design) para fornecer licenças em condições especiais aos arquitetos ainda na universidade, pois quando esses profissionais ingressarem no mercado dificilmente optarão por utilizar outro sistema, mesmo que tecnicamente superior.

Nesse sentido, é possível adicionalmente dizer que a fixação vezes obrigatória do Windows nas máquinas concorre para que os usuários se mantenham ad aeternum atrelados a esse fornecedor, dificultando não só a entrada de concorrentes já existentes, como a inovação tecnológica proveniente de um eventual novo entrante, que sente desestimulado face ao contexto de posição dominante inarredável.

Uma das possíveis alegações com efeito de balancing da conduta é que tanto é possível, quanto existe o fornecimento de computadores com Linux, bem como também haveria possibilidade de aquisição de máquinas montadas, que podem receber qualquer sistema operacional, todavia o efeito notado nas principais fabricantes de hardware que hoje perfazem um share de quase 80% do mercado de PCs, é que essas empresas utilizam sistema alternativo em uma fração diminuta de suas vendas, ou, por vezes, simplesmente não utilizam em absoluto.

Essa fração pode ser observada pelo share dos S.O. disponível no site statcounter, que informa que em maio de 2022 os computadores Desktop no mundo todo se distribuem assim: Windows 75,54%; OS X 14,98%; desconhecidos 4,81%; Linux 2,45%; Chrome OS 2,22% e FreeBSD 0,01%.

A falta de opção ao comprador e além disso, a falta de informação de quanto lhe custa o software que está adquirindo de forma casada, e por quanto poderia adquirir um equipamento com uma alternativa de S.O. gratuito pode interferir na universalização do acesso à tecnologia. No contexto de pandemia em que famílias passaram a utilizar mais intensamente computadores em uma conjuntura de crise econômica, a possibilidade de redução do ônus do sistema operacional de em torno de R$ 150,00 sobre um desktop de R$ 800,00 pode fazer toda diferença e constituir um sobrepreço ao produto essencial almejado.

Em conclusão e síntese, procurou-se até aqui percorrer de modo fluído o teste jurídico utilizado em precedente do CADE já mencionado, de forma a constatar autoria, materialidade e dano advindo da conduta, visto que: (i) os produtos são diferentes e autônomos, (ii) existe elemento de coerção, (iii) existe uma posição dominante inequívoca para alavanca, (iv) existem efeitos duradouros no mercado alavancado, (v) a análise das eficiências pretendidas demonstra sinais de acobertamento de uma presumível naked restriction.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


Ainda sobre algumas dúvidas frequentes de pequenos negócios sobre concorrência.

Potenciais condutas anticompetitivas no relacionamento com concorrentes

Fernando de Magalhães Furlan

a. Fixação de preços

            A fixação de preços é um acordo (escrito, verbal ou inferido de conduta) entre concorrentes que aumenta, diminui ou estabiliza preços ou condições competitivas. Geralmente, as leis antitruste exigem que cada empresa estabeleça preços e outros termos por conta própria, sem concordar com um concorrente. Quando os consumidores fazem escolhas sobre quais produtos e serviços comprar, eles esperam que o preço tenha sido determinado livremente com base na oferta e na demanda, e não por um acordo entre concorrentes. Quando os concorrentes concordam em restringir a concorrência, o resultado geralmente são preços mais altos. Assim, a fixação de preços é uma das principais preocupações da fiscalização antitruste do governo e geralmente se enquadra como conduta anticompetitiva conhecida como cartel ou, ainda, pode ser tipificada como influência a conduta comercial uniforme, também passível de punição segundo a lei antitruste.

            Um acordo claro entre concorrentes para fixar preços é quase sempre ilegal, quer os preços sejam fixados no mínimo, no máximo ou dentro de algum intervalo. A fixação ilegal de preços ocorre sempre que dois ou mais concorrentes concordam em realizar ações que tenham por efeito aumentar, baixar ou estabilizar o preço de qualquer produto ou serviço sem qualquer justificação legítima. Esquemas de fixação de preços são muitas vezes elaborados em segredo e podem ser difíceis de descobrir, mas um acordo pode ser descoberto a partir de evidências “circunstanciais”. Por exemplo, se os concorrentes diretos tiverem um padrão de termos contratuais idênticos inexplicáveis ​​ou comportamento de preços juntamente com outros fatores (como a falta de explicação comercial legítima), a fixação ilegal de preços pode ser o motivo. Convites para coordenar preços também podem gerar preocupações, como quando um concorrente anuncia publicamente que está disposto a encerrar uma guerra de preços se seu rival estiver disposto a fazer o mesmo, e os termos são tão específicos que os concorrentes podem ver isso como uma oferta para definir preços em conjunto.

            Nem todas as semelhanças de preços, ou mudanças de preços que ocorrem ao mesmo tempo, são resultado da fixação de preços. Pelo contrário, muitas vezes resultam de condições normais de mercado. Por exemplo, os preços de commodities como o trigo são muitas vezes idênticos porque os produtos são praticamente idênticos, e os preços que os agricultores cobram todos sobem e descem juntos, sem qualquer acordo entre eles. Se uma seca fizer com que a oferta de trigo diminua, o preço para todos os agricultores afetados aumentará. Um aumento na demanda do consumidor também pode causar preços uniformemente altos para um produto com oferta limitada.

            A fixação de preços refere-se não apenas aos preços, mas também a outros termos que afetam os preços aos consumidores, como taxas de envio, garantias, programas de desconto ou taxas de financiamento. O escrutínio antitruste pode ocorrer quando os concorrentes discutem os seguintes tópicos: preços presentes ou futuros; políticas de preços; promoções; lances; custos; capacidade; termos ou condições de venda, incluindo termos de crédito; descontos; identidade dos clientes; alocação de clientes ou áreas de vendas; cotas de produção e planos de P&D.

            Exemplo: Um grupo de optometristas concorrentes concordou em não participar de uma rede de cuidados com a visão, a menos que a rede aumentasse as taxas de reembolso para pacientes cobertos por seu plano. Os optometristas se recusaram a atender pacientes cobertos pelo plano da rede e, eventualmente, a empresa aumentou as taxas de reembolso.

            Tal acordo dos optometristas era uma fixação ilegal de preços e que seus líderes organizaram um esforço para garantir que outros optometristas soubessem e cumprissem o acordo.

            Um acordo para restringir a produção, vendas ou produção é tão ilegal quanto a fixação direta de preços, porque a redução da oferta de um produto ou serviço eleva seu preço.

            Pergunta: Os postos de gasolina na minha área aumentaram seus preços na mesma quantidade e ao mesmo tempo. Isso é fixação de preços?

            Resposta: Uma mudança de preço uniforme e simultânea pode ser resultado da fixação de preços, mas também pode ser resultado de respostas independentes de negócios às mesmas condições de mercado. Por exemplo, se as condições do mercado internacional de petróleo causarem um aumento no preço do petróleo bruto, isso poderá levar a um aumento no preço de atacado da gasolina. Postos de gasolina locais podem responder aos preços mais altos da gasolina no atacado aumentando seus preços para cobrir esses custos mais altos. Outras forças de mercado, como a divulgação pública dos preços atuais (como é comum com a maioria dos postos de gasolina) incentiva os fornecedores a ajustar seus próprios preços rapidamente para não perder vendas. Se houver evidências de que os operadores dos postos de gasolina conversaram entre si sobre o aumento de preços e concordaram com um plano de preços comum, no entanto, isso pode ser uma violação antitruste.

            Pergunta: Nossa empresa monitora os anúncios dos concorrentes e às vezes oferecemos descontos especiais ou incentivos de vendas para os consumidores. Isso é um problema?

            Resposta: Não. A equivalência de preços dos concorrentes pode ser um bom negócio e ocorre frequentemente em mercados altamente competitivos. Cada empresa é livre para definir seus próprios preços, podendo cobrar o mesmo preço que seus concorrentes, desde que a decisão não tenha sido baseada em qualquer acordo ou coordenação com um concorrente.

b. Manipulação de lances em licitação

            Sempre que os contratos são adjudicados por meio de licitações, a coordenação entre os licitantes prejudica o processo de licitação e pode ser ilegal. A manipulação de licitações pode assumir muitas formas, mas uma forma frequente é quando os concorrentes acordam antecipadamente qual empresa vencerá a licitação. Por exemplo, os concorrentes podem concordar em se revezar como o licitante com oferta mais baixa, ou ficar de fora de uma rodada de licitações, ou fornecer lances inaceitáveis ​​para encobrir um esquema de manipulação de licitações. Outros acordos de manipulação de licitações envolvem a subcontratação de parte do contrato principal para os licitantes perdedores ou a formação de uma joint venture para apresentar uma única oferta.

            Exemplo: Três empresas de ônibus escolares formaram uma joint venture para fornecer serviços de transporte sob um único contrato com a Administração municipal. A joint venture não envolveu nenhuma integração benéfica de operações que pudesse economizar dinheiro. A joint venture claramente operava principalmente para impedir que as outras empresas de ônibus oferecessem licitações concorrentes.

c. Divisão de mercado e alocação de clientes

            Acordos simples entre concorrentes para dividir territórios de vendas ou atribuir clientes são quase sempre ilegais. Esses acordos são essencialmente acordos para não competir: “Eu não vou vender no seu mercado se você não vender no meu”. O compartilhamento ilegal de mercado pode envolver a alocação de uma porcentagem específica de negócios disponíveis para cada produtor, a divisão geográfica dos territórios de vendas ou a atribuição de determinados clientes a cada vendedor.

            Pergunta: Quero vender meu negócio e o comprador insiste que eu assine uma cláusula de não concorrência? Isso não é ilegal?

            Resposta: Uma cláusula de não concorrência limitada é uma característica comum dos negócios em que uma empresa é vendida, e os tribunais geralmente permitem tais acordos quando são acessórios da transação principal, razoavelmente necessários para proteger o valor dos ativos vendidos e limitada no tempo e na área coberta. Existem outras situações, no entanto, em que as cláusulas de não concorrência podem ser anticompetitivas. Por exemplo, uma determinada autoridade antitruste impediu um operador de clínicas de diálise de comprar cinco clínicas e pagar seu concorrente para fechar mais três. O contrato de compra também continha uma cláusula de não concorrência que impedia o vendedor de abrir uma nova clínica na mesma área local por cinco anos e exigia que o vendedor aplicasse cláusulas de não concorrência em seus contratos com os diretores médicos das instalações fechadas. Nessa situação, a cláusula de não concorrência impedia esses médicos de atuarem como diretores médicos de qualquer nova clínica na área e reduzia a chance de uma nova clínica ser aberta por cinco anos. Assim, o acordo para fechar as clínicas, reforçado pelo acordo de não competir por cinco anos, foi um acordo ilegal para eliminar a concorrência entre rivais.

d. Boicotes em grupo

            Qualquer empresa pode, por si só, havendo justificativa comercialmente plausível, se recusar a fazer negócios com outra empresa. Mas um acordo entre concorrentes para não fazer negócios com indivíduos ou empresas visadas pode ser um boicote ilegal, especialmente se o grupo de concorrentes trabalhando em conjunto tiver poder de mercado. Por exemplo, um boicote de grupo pode ser usado para implementar um acordo ilegal de fixação de preços. Nesse cenário, os concorrentes concordam em não fazer negócios com terceiros, exceto em termos acordados, geralmente com o resultado de aumento de preços. Uma decisão independente de não oferecer serviços aos preços vigentes não levanta preocupações antitruste, mas um acordo entre concorrentes de não oferecer serviços aos preços vigentes como meio de alcançar um preço acordado (e normalmente mais alto) levanta preocupações antitruste.

            Exemplo: vários grupos de prestadores de serviços de saúde concorrentes, como médicos, alegavam que sua recusa em negociar com seguradoras ou outros compradores em termos que não tivessem sido acordados em conjunto equivalia a um boicote de grupo ilegal. Houve também um boicote em grupo de uma associação de advogados concorrentes para parar de fornecer serviços jurídicos dativos para réus criminais indigentes até que o Estado (governo) aumentasse a remuneração paga por esses serviços.

            Boicotes para impedir que uma empresa entre no mercado ou para prejudicar um concorrente existente também são ilegais. Por exemplo, um grupo de médicos usou de um boicote para impedir que uma organização de assistência gerenciada estabelecesse uma unidade de saúde concorrente e varejistas que usaram um boicote para forçar os fabricantes a limitar as vendas por meio de um fornecedor de catálogo concorrente.

            Boicotes visando vendedores que reduzem os preços são especialmente propensos a levantar preocupações antitruste e podem ser alcançados com a ajuda de um revendedor ou fornecedor comum. Exemplo: um varejista nacional de brinquedos obteve acordos paralelos de vários fabricantes de brinquedos para não fornecer uma linha completa de brinquedos a “clubes de compra” de baixo preço. Como resultado do boicote de fornecedores organizado pelo grande varejista, os consumidores tiveram dificuldade em comparar o valor de diferentes brinquedos em diferentes pontos de venda, o tipo de comparação de compras que poderia ter levado os varejistas a baixar seus preços de brinquedos.

            Boicotes por outros motivos podem ser ilegais se o boicote restringir a concorrência e não tiver uma justificativa comercial. Por exemplo, um grupo de revendedores de automóveis usou um boicote ilegal para impedir que um jornal publicasse aos consumidores como usar informações de preços no atacado ao comprar carros. Tal boicote afetou a concorrência de preços e não tinha justificativa razoável.

            Pergunta: Sou gerente de compras e tenho problemas com um fornecedor que sempre atrasa as entregas e não retorna minhas ligações. Ouvi dizer que outras empresas pararam de fazer negócios com ele. Posso recomendar que minha empresa encontre outro fornecedor também

            Resposta: Uma empresa sempre pode escolher unilateralmente seus parceiros de negócios. Desde que não faça parte de um acordo com concorrentes para parar de fazer negócios com um fornecedor-alvo, a decisão de não negociar com um fornecedor não deve levantar preocupações antitruste.

Muito Prazer, Regulação!

Juliana Oliveira Domingues & Eduardo Molan Gaban

 “What Is Regulation?” Barak Orbach foi explícito sobre o foco do seu paper com esse título[1].

Quando trazemos esse tema, em 2023, muitos ainda podem ficar surpresos com o fato de haver uma recorrente confusão terminológica. Quando falamos, então, de “coarregulação”, “autorregulação”, “regulação responsiva”, “análise de impacto regulatório”, “autorregulação regulada”, grandes e repetidas interrogações surgem para boa parte da comunidade jurídica.

Não deixa de ser um alento e – até mesmo – um sopro de esperança, observar que no berço do capitalismo persistam essas dúvidas.

Afinal, o que todos sabem sobre regulação?

A natureza evasiva do termo “regulação” é, em grande parte, produto de confusão. Obviamente, estamos tratando de mais um conceito abstrato. Não sem motivos, vemos opiniões sobre o que seria o “escopo desejável” de poderes regulatórios ou de políticas regulatórias.

Da mesma forma, há quem veja a regulação puramente como uma intervenção indesejável do Estado. Dentro de referido grupo, encontramos os que entendem “regulação” como “intervenção na liberdade e nas escolhas”. Há quem defenda que a regulação tem o poder de definir as opções disponíveis e manipular os incentivos.

Porém, haveria uma espécie de regulação desejável?

No Brasil, de um lado, identificamos aqueles que querem sempre “mais regulação” e que desejam ver com frequência “as mãos” do Estado. De outro, também temos crenças e percepções críticas sobre a forma de intervenção (por meio da regulação) que coloca em xeque a necessidade de haver intervenções regulatórias.

E, não podemos nos esquecer do comportamento free-rider dos poucos (ou nada) preocupados com o adequado emprego da regulação: ora a sugerem, ora a repelem, ao sabor de seus interesses ou agendas[1].

Estudiosos no mundo que já se debruçaram sobre o significado do termo “regulação” produziram várias definições. Em boa parte dos estudos, o termo “intervenção” aparece.  Outro caminho, baseia-se em crenças pessoais para explicar o conceito, o que acaba por criar definições informais.

Em nosso cenário regulatório, há destaque à atuação das agências reguladoras, uma vez que os debates se centraram nelas, ao longo dos últimos anos, tal como nos EUA.[2] Outra referência popular que atrai críticas à regulação se refere ao seu uso para atendimento aos grupos de interesse.[3]

De acordo com George Stigler, a regulação, “[…] é adquirida pela indústria e é projetada e operada principalmente para seu benefício.”[4] Já Richard Posner, tal como estaca Orbach, trouxe uma versão mais “refinada” dessa percepção: “[…] regulação [é] um produto alocado de acordo com princípios básicos de oferta e demanda […] podemos esperar que um produto seja entendimento intuitivo da palavra “regulação”: intervenção governamental no domínio privado ou norma jurídica que implementa tal intervenção. A regra de implementação é uma norma jurídica obrigatória criada por um órgão do Estado que pretende moldar a conduta de indivíduos e empresas.[5]

Vale destacar que o “órgão do Estado”, isto é, o regulador, pode ser qualquer órgão legislativo, executivo, administrativo ou judicial que tenha o poder de criar uma norma jurídica vinculante. Essa definição geral é bem mais ampla do que “restrições”, “regras de agências administrativas / reguladoras”, ou “leis que atendem a grupos de interesse”.

Nesse sentido, Orbach foi muito feliz em resgatar esse debate para centrar a definição na “intervenção no domínio privado”, em vez de “intervenção nas escolhas”. O ponto essencial é observar que, teoricamente, pode-se considerar qualquer influência na conduta como interferência nas escolhas. No entanto, o significado “da interferência nas escolhas” é de difícil consenso. Seja como for, não podemos fugir do fato que regulação tem ligação com a intervenção no domínio privado.

Em resgate ao tema, cabe rememorar a definição de regulação como intervenção no domínio privado trazida, em meados do século XIX, por John Stuart Mill quando descreveu a intervenção governamental nos assuntos da sociedade[6].

Mill argumentou que a fonte da controvérsia era, em grande parte, uma divisão ideológica entre dois grupos na sociedade: 1) […] os defensores da interferência [i. e. que acreditam que o governo deve agir] onde quer que sua intervenção seja útil” e; 2) os que restringem a atuação do governo “[…] à proteção da pessoa e da propriedade contra a força e a contra a fraude.”[7]

O resgate de Mill pode iluminar como as pessoas combinam suas visões de políticas regulatórias desejáveis. Veja-se essa passagem: “[se] os venenos nunca foram comprados ou usados ​​para qualquer finalidade, exceto a prática de assassinato, seria correto proibir sua fabricação e venda”. Por exemplo, os venenos podem “ser procurados não apenas para propósitos indecentes, mas também para fins úteis, e restrições não podem ser impostas em um caso sem operar no outro”. No exemplo acima, Mill recomenda como precaução rotular com alguma palavra (ou se fazer alguma referência) o potencial perigo do produto, sem violação da liberdade, uma vez que “o comprador deve saber que a coisa que possui tem qualidades venenosas.”[8]

Ora, a intervenção do Estado no domínio privado – subproduto de nossa realidade imperfeita e limitações humanas – por meio da regulação apenas ocorre porque existem “venenos” e os atos de regulação podem ter “efeitos venenosos” quando mal utilizados.

Nosso mundo é complexo, possui recursos finitos e as interações sociais estão mergulhadas nas mais diversas assimetrias. É verdadeira a premissa da análise econômica de que o indivíduo, portador de limitada racionalidade e informações incompletas, comporta-se procurando sempre maximizar o seu bem-estar. Certo também é que, não raras vezes, o mercado falha, ou seja, o subproduto da comunicação entre demanda e oferta pode causar danos para muitos e riqueza para poucos.

É justamente em resposta a essas imperfeições, limitações, ou mesmo falhas que se estruturou a ideia de regulação econômica. Reconhece-se o problema e, então, procura-se enfrentá-lo de maneira propositiva visando mitigá-lo e converter as toxinas naturalmente resultantes das falhas em promoção de eficiência econômica e, até mesmo, do bem-estar geral (em alusão à ideia de equilíbrio geral).

Numa perspectiva metalinguística, vale dizer, as mesmas imperfeições e limitações, porém, garantem o caráter imperfeito e limitado da regulação. Nossas falhas humanas permitem, por exemplo, regulações excessivas e redundantes, e permitem – sim! – a adoção de regulações que atendam aos grupos de interesse (em sua mais ampla conceituação) em linha com James M. Buchanan.[9]

O desafio, portanto, é lidar com o fato de que há imperfeições e limitações imanentes à sociedade e, portanto, imanentes também à atividade estatal. Ambas prejudicam a tomada de decisões tanto no plano dos agentes econômicos em si, quanto no plano da atividade estatal de regulação econômica.

Nesse sentido, em linha com George Stigler, nada resta a ser feito?

Negativo. A ênfase de Stigler às limitações da regulação e sua tendência de captura, posteriormente temperada com o realismo de Buchanan ao escancarar a fragilidade humana de raramente conseguir sacrificar o interesse pessoal em favor do coletivo, conforme determina o mandato estatal, leva-nos a escolher o caminho inevitável da moderna ideia de regulação econômica baseada em dados empíricos, apresentada por Cass R. Sunstein, o mesmo que recentemente relembrou a importância de se compreender as motivações dos próprios reguladores [10].

Em suma, é seguro utilizar as instituições normativas adequadas da Regulação com a devida parcimônia. Em outras palavras, devemos aceitar o fato de que a regulação é uma ferramenta valiosa a serviço da atividade estatal que veio para ficar. Assim, tanto melhor será atribuirmos foco em compreendê-la bem e trabalharmos para maximizar seus benefícios e minimizar seus custos.


[1] Exemplo disso vimos com a alegação de que o PIX prescindiria de AIR (tema tratado em outra oportunidade neste portal). Cf. DOMINGUES, Juliana O. Pix e Air – quando a liberdade econômica desperta o ilusionismo e levanta cortina de fumaça. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/2022/09/26/pix-e-air-quando-a-liberdade-economica-desperta-o-ilusionismo-e-levanta-cortina-de-fumaca1/> Acesso em: 01 jun. 2023.

[2] Em adição, Orbach cita as leis criadas pelas cortes – common law – como uma forma tradicional de regulação. Veja-se: ANDREW P. MORRISS et. al.., Regulation by Litigation (2008); Regulation Through Litigation (W. Kip Viscusi ed., 2002); POSNER, Richard A. Regulation (Agencies) Versus Litigation (Courts): An Analytical Framework, in Regulation Vs. Litigation 11 (Daniel P. Kessler ed., 2010).

[3] Veja-se, também: ORBACH, Barak. Invisible Lawmaking, 79 Uni. Chi. L. Rev. Dialogues 1 (2012).

[4] No mesmo sentido: PELZMAN, Sam. Toward a More General Theory of Regulation, 19 J. L. & ECON. 211 (1976).

[5] Tradução Livre. POSNER, Richard A. Theories of Economic Regulation, 5 Bell J. Econ. & Mgm’t Sci. 335, 344 (1974). As visões de Richard Posner sobre regulação evoluíram, neste texto:  RICHARD A. Posner, The Crisis of Capitalist Democracy 1-2 (2010), p. 12: “From a normative economic standpoint […] the goal of regulation, whether by courts or by agencies, is to solve economic problems that cannot be left to the market to solve.”.

[6] MILL; John Stuart, 2 Principles of Political Economy 525-71 (1848).

[7] Id. Ibid.

[8] MILL, John Stuart. On Liberty, p. 66-67 (1859). Id. p. 171-73.

[9] Buchanan, James M. Politics without Romance: A Sketch of Positive Public Choice Theory and Its Normative Implications. (James Buchanan and Robert Tollison Eds). The Theory of Public Choice II 11, 11 (Michigan 1984).

[10] Nesse sentido vale conferir o artigo: SUSTEIN, Cass R. Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3829993. Acesso em: junho de 2023. Em adição, veja-se: “[…] George Stigler, professor norte-americano, responsável pela “Teoria Econômica da Regulação” […]aborda a captura de agentes públicos – reguladores e legisladores – por grupos de interesse; por isso, é também conhecida como “teoria da captura”. Para Stigler, ao invés de regular os setores visando melhorar seu funcionamento e dirimir práticas danosas, a regulação atenderia às demandas dos agentes regulados levando ao desvirtuamento da estrutura do Estado e dos recursos públicos. Essa visão crítica das agências reguladoras foi revisitada recentemente por Cass R. Sustein, professor da Universidade de Harvard, em seu “Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note”. Mencionando diretamente Stigler, Sustein rebate a noção de que a regulação não visaria atender interesses públicos, buscando demonstrar que, se os reguladores e legisladores adotam determinado posicionamento, é porque acreditam que tal norma ou política terá resultados benéficos. […] Apesar da maneira como Sunstein aborda o problema parecer lhe colocar em contraponto direto com Stigler e sua teoria da captura, uma aproximação entre os autores pode ser feita: por vezes, a informação a que os reguladores têm acesso é determinada pelos grupos de que fazem parte. Veja-se, por exemplo, legislações propostas durante a pandemia que buscaram moratórias e interferência nos preços, partindo de determinada visão, não necessariamente vinculada aos núcleos de informações cientificamente embasados, dissociadas da implementação de melhores práticas adequadas à realidade. De toda forma, a abordagem de Sunstein deixa claro, também, qual deve ser o papel das agências reguladoras (aqui estendemos aos reguladores em geral): adotar políticas que tenham consequências benéficas, se não para o setor privado, para o ambiente regulatório e para o usuário (consumidor) final. In: DOMINGUES, Juliana Oliveira; Miranda; Isabella Dorigheto. O Retorno de Jedi: Um olhar do Século XXI à Captura dos Reguladores. Jota.  Veja-se também:Sunstein, Cass R., Empirically Informed Regulation (2011). University of Chicago Law Review, Vol. 78, No. 4, 2011, Harvard Public Law Working Paper No. 13-03.


[1] ORBACH, Barak, What Is Regulation? (September 7, 2012). 30 Yale Journal on Regulation Online 1 (2012), Arizona Legal Studies Discussion Paper No. 12-27.