Artigos de opinião

Compliance: fazer a coisa certa ou se submeter à caça às bruxas?

José Américo Azevedo

Encabeça-se este breve artigo subvertendo os cânones acadêmicos ao citar uma frase extraída de um artigo publicado sem indicar sua fonte, mesmo porque seu conteúdo demonstra um conceito muito comum entre aqueles que se dispõem a singrar os recônditos mares do Compliance. O contexto e o motivo desse estreitado deslize será compreendido – e perdoado, espera-se – com a leitura do texto.

Eis a aludida máxima: “O conceito e o próprio surgimento do Compliance encontram-se entrelaçados aos atos de corrupção identificados e desvendados em todo o mundo”.

A ideia pré-concebida de que a implantação de um programa de Compliance tem como objetivo combater a corrupção intrínseca, assemelha-se à metáfora de uma pessoa que somente vai ao médico porque, necessariamente, está doente.

É preferível a ideia de ir ao médico para fazer um checkup, ou seja, de maneira preventiva, de forma que se possa adotar os melhores comportamentos a fim de não atrair uma verdadeira doença.

Sem embargo à modesta digressão, comecemos nossa exposição.

*   *   *

Não há dúvida que a utilização exacerbada da expressão Compliance nos dias atuais deveu-se, em grande medida, à demonstração do desmonte das estruturas de governança corporativa nas grandes empresas do país, especialmente do setor de construção pesada, nas duas primeiras décadas deste século.

A importação do anglicismo Compliance, no entanto, aportou em terras nacionais de forma exagerada, e porque não dizer, deturpada. Do inglês to comply, cuja tradução mais precisa se aproxima da ideia de “conformação”, traz o conceito de ajustar, moldar, os procedimentos empresariais para atendimento àquilo que está pactuado, contratado, dentro das melhores práticas. Por outro lado, paradoxalmente, Compliance, no Brasil, passou a ter uma concepção de rigidez, de inflexibilidade perante as regras estabelecidas em abstrato, ou seja, de forma genérica e ampliada, sem levar em consideração as particularidades de cada caso. Neste sentido, Robert Alexy, sabiamente, baliza que “a realidade não é parte da norma jurídica, apesar de condicionar sua compreensão[1].

Por sua vez, a legislação pátria optou por utilizar a expressão “integridade” para se referir às obrigações que a Administração Pública e as empresas têm que cumprir para o alcance de um ambiente corporativo saudável, deixando de lado, o termo “conformidade”, talvez mais apropriado aos objetivos ambicionados.

Não se trata de uma questão etimológica ou semântica, mas antes, porém, da exegese de cada palavra, uma vez que a lei, per se, depende da extração de seu significado. Para Inocêncio Mártires Coelho, “a interpretação das normas é um conjunto de métodos e princípios, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios e premissas – filosóficas, metodológicas, epistemológicas – diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, a confirmar o assinalado caráter unitário da atividade interpretativa[2].

Condensa-se, da análise proposta, que para uma interpretação mais assertiva do texto normativo, importante se faz a correta opção vernacular, de forma a se sugar o verdadeiro sentido pretendido.

Partindo-se dessa premissa, é possível buscar sutis diferenças entre as expressões, na maior parte das vezes utilizadas como sinônimas, obnubilando a real compreensão dos propósitos almejados.

Assim, para Bruna Pfaffenzeller, por Compliance compreende-se o conjunto de práticas e disciplinas adotadas pelas pessoas jurídicas no intuito de alinhar o seu comportamento coorporativo à observância das normas legais e das políticas governamentais aplicáveis ao setor de atuação, prevenindo e detectando ilícitos, a partir da criação de estruturas internas e procedimentos de integridade, auditoria e incentivos à comunicação de irregularidades, que forneçam um diagnóstico e elaborem um prognóstico das condutas e de seus colaboradores, com a aplicação efetiva de códigos de ética no respectivo âmbito interno[3]. Ou seja, possui uma abordagem mais abrangente – um gênero – do universo de governança corporativa.

A expressão escolhida pelos legisladores (basta observar as Leis 12.846/2013, 13.303/2016 e 14.133/2021, dentre outras) foi “integridade”, quer na elaboração de programas, na criação de códigos, ou mesmo na verificação de procedimentos que atinjam essa finalidade. No dicionário Oxford da Língua Portuguesa, pode ser obtida a definição de integridade como a “característica ou estado daquilo que se apresenta ileso, intato, que não foi atingido ou agredido”. É possível observar que a busca pela integridade pressupõe um ambiente não íntegro, ou seja, atingido, agredido, corrompido. Parte-se para uma ideia de intervenção corretiva, uma vez que, de acordo com o termo, empenha-se em corrigir aquilo que está, de alguma forma, inadequado.

E, ainda, pode-se optar pelo vocábulo “conformidade”, que na acepção do mesmo dicionário significa “ato ou efeito de se conformar, de aceitar, de se pôr de acordo; conformação, concordância”, é dizer, não há, ainda, qualquer mácula aos procedimentos em curso.

Nesse viés analítico, traz o Ministro do STJ Benedito Gonçalves em parceria com Renato Grilo, importantes reflexões, como se observa:

“Conformar-se” é um estado de sujeição ou de movimentação entre balizas ou limites: um organismo passa a agir heteronormativamente, ou seja, abandona sua autonormatividade.

(…)

a liberdade do Administrador Público encontra-se submetida ao princípio da juridicidade.

(…)

Ao agente econômico privado não se permite mais um campo de liberdade tão amplo quanto o vazio da legalidade estrita, ou seja, não mais se concebe a liberdade de agir do organismo privado limitada apenas pelas disposições legais expressas.

(…)

a instituição de um sistema interno de gestão de controle ou de conformidade, portanto, não deve se apegar apenas ao cumprimento das regras e disposições legais, mas também à aplicabilidade da força normativa constitucional, seja dentro de uma empresa privada ou pública, seja no ambiente interno da Administração Pública. [4]

Importante constatar que, embora aludam à implantação da gestão interna de conformidade, em qualquer momento os autores deixam de visar à necessária atenção aos preceitos normativos, constitucionais e legais. O que impende destacar, é que este ambiente será criado de maneira preventiva, fazendo com que as sanções previstas para condutas antiéticas sejam aplicadas em caso de necessidade, porém sem que haja uma circunstância que autorize um olhar previamente repressor para as organizações públicas e privadas.

Cabe repisar que não se trata de perfeccionismo etimológico ou semântico, mas da adequação das ações impingidas aos agentes privados em relação à execução das práticas corporativas desejáveis, especialmente nas relações com a Administração Pública, onde a máxima do pacta sunt servanda é mitigada pelas questões obrigacionais impostas ao setor público.

Importante alerta é feito por Rafael Oliveira e Jéssica Acocella, em relação às contratações pela Administração Pública:

Todavia, o sentido da Lei 8.666/1993 [cujo texto foi repetido na Lei 14.133/2021] adquiriu novos e ampliados contornos com a inclusão expressa, pela referida lei, da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos da licitação. Consequentemente, a proposta mais vantajosa para a Administração Pública deixaria de ser aquela que demonstrasse ter a melhor relação direta “custo-benefício” pelo aspecto estritamente financeiro, passando a ser a que também possa propiciar, mesmo que a longo prazo, benefícios sociais, ambientais e econômicos duradouros para o pais.

Assim, na instauração dos processos de contratação pública, cabe ao gestor público sempre avaliar a possibilidade de adoção de critérios social, ambiental e economicamente sustentáveis, reflexão fundamental quando se considera a escala das aquisições governamentais, o poder de compra do poder público e o efeito cascata que uma licitação produz sobre o mercado envolvido, multiplicando investimentos e criando um ambiente socialmente favorável na direção desejada.

Os procedimentos licitatórios no âmbito da Administração Pública têm, portanto, representado crescentemente um terreno fértil, e ainda não integralmente explorado, para novas vertentes regulatórias, as quais, ao integrarem considerações extraeconômicas em todos os estágios da contratação administrativa, visam à cooperação voluntária dos agentes econômicos envolvidos, relegando-se à coerção papel secundário.

(…)

Salomão Filho esclarece que o aparecimento ou não da cooperação é função direta da existência de condições (e instituições) que permitam seu desenvolvimento. Acrescenta que as instituições requeridas pela cooperação devem ser as estritamente necessárias para criar as condições de seu aparecimento. E, uma vez criadas tais condições, o cumprimento das decisões públicas vai se fazer de forma natural e não coercitiva.

(…)

A maior vantagem revelar-se-á quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. [5]

(grifos nossos)

O ponto nevrálgico da questão reside no paradigma da relação público-privada nas contratações de serviços. Parte-se, atualmente, da premissa da ilicitude, do descumprimento contratual, da obtenção de vantagens não devidas. Por este motivo, o Compliance adquiriu feições inquisitórias, de verdadeira “caça às bruxas”, colocando o ente privado na berlinda das relações interpartes.

Há que se compreender que o Compliance é gênero, ou seja, abarca todas as ações de prevenção, detecção e resposta a violações de conformidade, bem como a promoção de uma cultura ética e de conformidade dentro da organização, além de incluir outros aspectos, como, por exemplo, a prevenção de corrupção e de fraudes.

A gestão de conformidade, por sua vez, é espécie, se limitando a harmonizar a relação corporativa aos princípios estabelecidos. Dessa forma, sendo bem realizada esta etapa, não existirá risco à integridade, tampouco necessidades sancionatórias, uma vez que a relação estará regida pelas boas práticas contratuais e comerciais.

Os papeis do Estado e dos particulares nas relações sinalagmáticas, são objeto de consideração não só entre as partes, mas, ainda, ao fim e ao cabo dos legisladores, como pode ser observado em diversos projetos de lei sobre o assunto. Sublinhando o PL 46/2022[6], que institui uma lei de defesa do empreendedor, com normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, podem ser extraídos excertos apropriados ao tema, como se nota:

Artigo 3º- São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:

(…)

II – a presunção de boa-fé do empreendedor perante o poder público;

(…)

Artigo 4º- São deveres da Administração Pública nas três esferas de Poder, Federal, Estadual e Municipal para garantia da livre iniciativa:

(…)

XI – exercer a fiscalização punitiva somente após o descumprimento da fiscalização orientadora, qualquer que seja o órgão fiscalizador, salvo no caso de situações de iminente dano público, dolo, má-fé e em situações devidamente fundamentadas pela Administração Pública;

(…)

Artigo 5º- São direitos dos empreendedores:

I – ter o Poder Público como um facilitador da atividade econômica;

Há que se observar a busca por um ambiente colaborativo entre contratante e contratado, pautado no princípio da boa-fé, e fundamentada nos objetivos comuns de obtenção da melhor prestação de serviços para a Administração Pública.

É preciso ficar atento para que novas exigências visando ao alcance da integridade não se tornem mero formalismo, a ser cumprido pelos entes privados somente para se desincumbir da obrigação. Uma das causas para isso, segundo Fernanda Schramm, se deve ao fato de que “a ampla discricionariedade dos agentes públicos no curso da execução dos contratos, aliada à falta de penalização efetiva nos casos de inadimplemento do Poder Público, contribui para consolidar uma sistemática em que os contratados acabam muitas vezes cedendo, inclusive por falta de opção, às exigências que lhe são impostas[7].

Para Thiago Marrara, “falar de integridade estatal é essencial, na medida em que, pelo exemplo ético, a conduta do Estado pode influenciar os agentes econômicos a se moverem em direção a boas práticas[8]. Na mesma linha, porém em sentido inverso, Flávio Cabral define o conceito de ativismo de contas para os Tribunais de Contas, porém o conceito deve ser ampliado para todo agente público, como pode se perceber:

Ativismo de contas pode ser conceituado como o comportamento dos Tribunais de Contas que, a pretexto de se mostrarem proativos ou de serem encarados como concretizadores de direitos fundamentais ou controladores de políticas públicas, acabam por exercer suas atribuições em desconformidade com o que permite o texto constitucional e infraconstitucional, demonstrando a subjetividade na tomada de decisões por seus membros. [9]

Como consequência, é possível observar, especialmente no âmbito federal, o crescente número de processos de apuração de responsabilidade instaurados pela Administração, tornando desequilibrada a relação público-privada, em prejuízo, evidentemente, do elo mais fraco, ou seja, os entes privados.

Mesmo em relações firmadas entre particulares reguladas pelo Estado como, por exemplo, na área concorrencial, é possível observar uma contundente interferência estatal na dinâmica de mercado. Nessa perspectiva, importam as práticas adotadas nas relações comerciais estabelecidas com outras entidades privadas, mas que devem, por força de lei, serem submetidas à regulação estatal. Entende-se que é necessário existir uma visada aos interesses públicos por parte do agente regulador, mas a força regulatória deve ser extremamente bem dimensionada, de forma a não impactar negativamente nas relações comerciais de particulares.

Por fim, entende-se necessária uma mudança paradigmática, privilegiando, nas relações comerciais, a primazia da boa-fé entre as partes e garantindo segurança jurídica, de maneira que, primeiramente, possa se executar a gestão de conformidade contratual. Caso observado riscos ou ações comprometedoras à integridade da relação, deve se migrar para o Compliance na concepção de averiguação de atividades ilícitas, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, ensejando, inclusive, se necessário, atitudes sancionatórias para o inadimplente, seja público ou privado.


[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ps. 80-84.

[2] COELHO, Inocêncio Mártires. A hermenêutica constitucional como teoria do conhecimento do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2019. p. 41.

[3] PFAFFENZELLER, Bruna. No rastro da corrupção praticada por pessoas jurídicas: da lei 12.846/2013 ao projeto de novo código penal. In: VITORELLI, Edilson (Org.). Temas atuais do Ministério Público Federal. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 897.

[4] GONÇALVES, Benedito; GRILO, Renato Cesar Guedes. A utilização dos instrumentos de compliance para a realização do princípio da moralidade administrativa. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. ps. 41-53.

[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica. A exigência de compliance e programa de integridade nas contratações públicas: os estados-membros na vanguarda. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 133.

[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2313835. Consultado em 24.04.2023.

[7] SCHRAMM, Fernanda Santos. Compliance nas contratações públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 76.

[8] MARRARA, Thiago. Quem precisa de programas de integridade (Compliance)? In: CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Coord.). Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 293.

[9] CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas no Tribunal de Contas da União – TCU. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito, Curitiba/PR, 2019. p. 95.

Revenda de Veículos Automotores por Locadoras com Isenção de ICMS

César Mattos

  1. Introdução

Os Estados tendem a oferecer reduções ou mesmo isenções do ICMS para bens de capital em geral como forma de atrair investimentos, o que faz parte da chamada “guerra fiscal”.

O artigo 15 da Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979 (Lei Ferrari), define que montadoras de veículos podem vender diretamente para locadoras de veículos. E como nesse caso específico, o veículo funcionará como um bem de capital para a locadora, é usual os estados concederem reduções do ICMS para estas operações. Diferente da venda do veículo para consumidores finais, para o qual o veículo em geral, funcionará como um bem de consumo.

O Estado de São Paulo, por exemplo, oferece desconto de 90% do ICMS na venda do veículo da montadora para a locadora[1]. Isso naturalmente torna o preço do veículo vendido pela montadora à locadora menor do que seria caso não houvesse o desconto.

No entanto, sabemos que o repasse da redução do ICMS ao preço que a montadora cobra da locadora não é integral, cabendo uma análise de incidência de tributos que depende das elasticidades da oferta e da demanda e do poder de mercado de cada um desses agentes (montadora e locadora), um em relação ao outro. Quanto maior o poder de mercado da montadora em relação à locadora, menor será o repasse da redução do ICMS para a redução de preços resultante do desconto do ICMS.

Na próxima seção avaliamos o incentivo à arbitragem tributária na revenda de veículos por locadoras. A terceira seção explica a transformação fundamental da perspectiva tributária do veículo de bem de capital para bem de consumo na revenda por locadoras. A quarta seção apresenta o papel proeminente da venda de veículos por locadoras. A quinta seção discute esta isenção e a possível contradição entre o incentivo ao fluxo de investimento e o incentivo ao incremento no estoque de capital. A sexta seção conclui.

II) Redução e Isenção do ICMS, Incentivo à Arbitragem Tributária e o Convênio Confaz 64/2006

O problema de os Estados oferecerem descontos do ICMS tão significativos para as locadoras pode fazer com que estas últimas vejam a compra do veículo não só como um “bem de capital” para os serviços de locações (o negócio presumido das locadoras). É possível que as locadoras passem a ver a aquisição de veículos também como uma possibilidade de realizar arbitragem tributária entre o preço menor pago à montadora e o preço maior que os consumidores finais pagam pelo automóvel em função do ICMS.

Uma das formas de resolver este problema de possível “arbitragem tributária” foi realizada no Convênio ICMS nº 64 de 07/07/2006 do Confaz[2]. Sua cláusula primeira define que se o veículo for vendido antes de 12 (doze) meses da data da aquisição junto à montadora, deverá ser efetuado o recolhimento do ICMS em favor do estado do domicílio do adquirente. Ademais, a cláusula segunda do mesmo Convênio define que a base de cálculo do imposto será o preço de venda ao público sugerido pela montadora. Como esta base de incidência, o preço sugerido do seminovo, será menor que a base de incidência representada pelo preço do veículo novo, o valor do ICMS pago pelas locadoras na revenda é inferior na medida da diferença de preços do novo/seminovo.

Essa regra de isenção de ICMS apenas após um ano estabelecida pelo Confaz certamente inibe, mas possivelmente não elimina, os incentivos para a arbitragem tributária.

III)A Contestação da Regra de Não Isenção e a Decisão do Supremo Tribunal Federal(STF) pela Constitucionalidade: A Tese da Transformação Fundamental (TF)

A regra de não isenção por um ano do Convênio 64/2006 do Confaz foi desafiada pela Localiza no Recurso Extraordinário 1.025.986 Pernambuco[3]. A locadora entendeu que seria inconstitucional o Estado de Pernambuco cobrar ICMS pela venda do carro seminovo pelas locadoras mesmo antes de um ano da aquisição do veículo.

Conforme o voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes no STF, a tese da Localiza é de que “as vendas de veículos usados realizadas pela impetrante (locadora de automóveis) consubstanciam alienação de ativo fixo e não de mercadorias, pelo que tais vendas não se sujeitariam à tributação pelo ICMS”.

A réplica do Ministro foi bastante simples e, principalmente, correta. Reconhece que “a venda de bens oriundos do ativo fixo não configura operação de circulação de mercadorias”. Acrescenta, no entanto, que “essa regra…. deriva não da circunstância de que tais bens tenham integrado ou sejam oriundos do ativo fixo, e sim da circunstância de não terem eles a destinação mercantil que subjaz inerente ao conceito de mercadoria”. Assim, se o ativo for “reinserido na circulação depois de período fora do comércio”, deixa de ser bem de capital e, portanto, volta a ser devido o ICMS.

Assim, na venda do veículo pela locadora é como que se o produto passasse por uma “transformação fundamental” (TF) do ponto de vista da legislação do ICMS: de ativo ou bem de capital para mercadoria ou bem final. Daí em sua alienação a posteriori, a incidência do ICMS se faz considerando o veículo como o bem de consumo que se tornou e não como o bem de capital que já foi.

Um parêntesis aqui é importante. Apesar de não abordado no voto do ministro, pelo mesmo argumento levantado da TF, seria possível distinguir quando a locadora vende para outra locadora, mantendo a característica de “bem de capital” ou para outros consumidores em que a TF, de fato acontece. Assim, seria cabível manter a isenção do ICMS a qualquer tempo para vendas de veículos de locadoras para outras locadoras já que a TF não ocorre e a característica de bem de capital do veículo é mantida.

Na verdade, esta ressalva pode ir bem além. Por exemplo, por que um motorista de aplicativo que usa seu veículo para gerar o serviço de transporte de passageiros e, portanto, receitas, também não pode ser considerado “bem de capital” tal como o é para as locadoras? Outras atividades em que o veículo entra na “função de produção” de autônomos poderiam teoricamente indicar que a natureza do veículo também é de “bem de capital”, o mesmo princípio usado para os veículos de locadoras. O problema de aplicação mais genérica do princípio seria naturalmente a complexificação da regra e a maior possibilidade de fraude para pagar menos impostos.

Voltando à questão principal, o Ministro, contrariamente à pretensão da Localiza, definiu a tese de que “É constitucional o Convênio CONFAZ n.64/2006 ao prever recolhimento da diferença de ICMS quando da revenda de veículo por locadora em prazo inferior a 12 meses”. Ou seja, o Convênio CONFAZ nº 64/2006 não pode ser considerado inconstitucional.

Note-se que isso ocorreria provavelmente também com várias outras regras que considerassem a TF do veículo de bem de capital para bem de consumo para locadoras, eventualmente adotadas pelo CONFAZ ou mesmo por lei aprovada no Congresso. Ou seja, poderia valer para um prazo de não isenção de seis meses ou de dois anos, por exemplo. Assim, de uma forma mais genérica, o STF sinalizou que não deverá ser inconstitucional, portanto, o Confaz ou uma lei estabelecerem prazos para a não isenção. Ou mesmo para não haver isenção alguma na revenda.

  1. Incentivo à Arbitragem Tributária e o Prazo de Não Isenção do ICMS de um Ano

Como destaca artigo do site trademap[4] de junho de 2022 “as locadoras são consideradas prestadoras de serviço, já que o core business é o aluguel dos carros. Mas, como elas já compram os carros das montadoras com 20% a 35% de desconto em barganha volumosa, surge a oportunidade de revender esses veículos de forma vantajosa”. A mesma matéria mostra o percentual da venda de veículos seminovos em três importantes locadoras de automóvel no Brasil.

Fonte: trademap

Note que o percentual da venda de seminovos na receita total de Localiza, Movida e Unidas está entre 38,3% e 49,5%, números expressivos.

A matéria também informa que no primeiro trimestre de 2022, a Movida reportou um crescimento de 253,2% na receita bruta da operação de seminovos, para R$ 981,5 milhões. No mesmo período, o número de carros vendidos saltou 184,3%, atingindo a marca de 15.225 negócios.

Conforme ainda a matéria da trademap, o veículo da Movida é vendido com uma idade média de 14 meses.

Ou seja, a relevância da venda de veículos é grande no negócio das locadoras e está aumentando. Isso pode ser um indicador de que o período de não isenção de um ano ainda seja insuficiente para reduzir o incentivo à arbitragem tributária. E esta arbitragem compromete o principal objetivo da política: incentivar investimentos.

  • Contradição entre Funções Objetivo: Fluxo de Investimento X Estoque de Capital 

Como já destacado, o principal objetivo dos estados em relação à isenção do ICMS é fomentar investimentos.

Não há dúvida que reduzir o incentivo à arbitragem aumentando o período de não isenção do ICMS para mais de um ano também reduz o incentivo a este investimento específico que é a aquisição de veículos por locadoras para o objetivo de locação.

No entanto, dada a TF, pode-se questionar o próprio mérito do objetivo “incentivar investimentos” neste caso. O que há de importante nesse incentivo a investimentos, ao final e ao cabo, é o incremento da capacidade de produzir bens e serviços pelo incremento do estoque de bens de capital na economia.

No caso em tela, no entanto, estamos discutindo a própria redução do período em que veículos funcionam como bens de capital e, portanto que integram o estoque de bens de capital na economia. Quando os veículos são revendidos para consumidores finais, de fato, acontece um “desinvestimento” da locadora, reduzindo aquele estoque de capital.

Ou seja, ao estimular o investimento em veículos mantendo a isenção parcial do ICMS por período inferior a um ano, teríamos também uma redução da vida útil deste capital, o que tem o efeito oposto ao desejado que é reduzir o estoque de capital da economia.

Sendo assim, como o período de isenção afeta as duas variáveis, o investimento e o desinvestimento neste tipo de bem de capital específico, os veículos de locadoras, cabe ter como objetivo ampliar o “investimento líquido” para um dado período de tempo, o que seria dado pela diferença entre a aquisição e a venda dos veículos pelas locadoras. Com esta métrica, o ganho da política pública de reduzir o ICMS para veículos revendidos por locadoras se reduz bastante.

  • Conclusões

Mesmo em uma regra em que não houvesse qualquer isenção do ICMS com muito tempo de uso do veículo nas locadoras (por exemplo, cinco anos), permanece havendo ainda incentivo na aquisição de veículos bens de capital pelas locadoras por meio do desconto de 90% de ICMS (referência São Paulo) dado que a alíquota incidirá em um preço do automóvel muito menor e ainda mais longe no tempo. E com um agravante: dado haver uma quilometragem média maior dos veículos de locadoras, gerando uma depreciação real maior do veículo, o preço desses usados específicos tendem a ser bem menores, reduzindo a base de incidência do ICMS na hipótese de inexistência de isenção. Ou seja, o incentivo inicial da isenção na compra

Além do tempo mínimo para a venda com isenção, outras regras são plausíveis para o mesmo objetivo de desincentivar a arbitragem tributária. Por exemplo, é possível escalonar a isenção do ICMS das locadoras conforme o tempo. Ou seja, não é necessário ter uma solução de um período de tempo fixo (hoje de um ano) em que para mais a isenção é completa e para menos não há isenção alguma. A não isenção pode ser mais gradual.

No entanto, a virtude da regra atual é sua grande simplicidade: até um determinado período (de um ano como atualmente ou qualquer outro período fixo), não tem isenção alguma e após este período isenção total. Tratando-se do ICMS, simplicidade é algo muito relevante e, portanto, complexificar a regra com escalonamentos não deve ser uma boa ideia.

Com base na premissa de reduzir o incentivo para a arbitragem tributária e manter a simplicidade da regra, seria interessante ampliar o prazo de não isenção de um para dois anos ou mais, não sendo impensável que simplesmente se acabe com a isenção do ICMS para a revenda de veículos de locadoras, dada a TF bem identificada pelo STF. De outro lado, caberia também manter a redução do ICMS para a revenda de veículos entre locadoras, inclusive sem prazo algum dado que a TF não se observa e o automóvel se mantém como bem de capital.


[1] Ver art. 1º inciso IV do DECRETO Nº 66.391, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2021 do Estado de São Paulo que altera o Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS do Estado de São Paulo. https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Decreto-66391-de-2021.aspx

[2] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=16085

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344342941&ext=.pdf

[4] https://trademap.com.br/agencia/analises-e-relatorios/icms-locadoras-localiza-rent3-movida-movi3#:~:text=Isso%20porque%20as%20locadoras%20de,ap%C3%B3s%2012%20meses%20de%20uso.

Regulação e concorrência: o setor de telecomunicações

Polyanna Vilanova & Ana Flávia Nápoli

Nas últimas décadas, o setor de telecomunicações passou por inúmeras transformações tecnológicas, chegando no ano de 2010 como um dos pilares da economia global. Contudo, se pela perspectiva da praticidade e acesso à informação, o setor de telecomunicações gerou grandes ganhos à sociedade, sob o aspecto concorrencial e regulatório, o caminho foi árduo e repleto de desafios.

Fato: cada vez mais a sociedade tem se conectado por meio de aparelhos celulares. Uma pesquisa realizada pela Comscore em 2021 indicou que, dispositivos móveis somam 91% do tempo de acesso à internet no Brasil [1], ficando atrás somente da Indonésia. Em 2016, 5 anos antes, esse número era de apenas 60%[2]. Essa crescente demanda por conectividade impulsionada pela proliferação desses dispositivos móveis e a popularização da internet demonstram a dinamicidade desse setor: a necessidade da criação constante de novos produtos e serviços (e novas infraestruturas para esses produtos) para se adequar às necessidades dos consumidores.

No entanto, se por um lado essa dinamicidade traz tantas inovações à sociedade, por outro, é justamente ela que implica na tendência de concentração desse mercado, e o principal ponto dessa problemática é que os investimentos para a prestação de novos serviços no setor de telecomunicação (ou até mesmo os próprios custos de operação nesse mercado) são altos. Em 2021, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) estimou que o investimento para as operadoras de telefonia operarem a tecnologia 5G no Brasil giraria em torno de R$ 169 bilhões[3]. A partir desses valores, é possível concluir que são poucas as empresas no Brasil capazes de atuar nesse mercado – e é justamente isso que faz com que os agentes existentes possuam vantagens no mercado[4], tornando necessário o olhar mais atento tanto por parte da Anatel quanto e pelo Cade.

Os desafios enfrentados pelo setor se dão pelas elevadas barreiras à entrada, grandes economias de escala e escopo, limitação da disponibilidade de insumo essencial, inovações tecnológicas e constantes mudanças[5]. Além disso, tendo em vista o ritmo acelerado dessas mudanças tecnológicas que frequentemente superam a capacidade da agência, torna-se necessário que a Anatel constantemente revisite o seu arcabouço regulatório à luz dessas transformações no intuito de dar respostas rápidas e eficazes aos agentes do setor.

Em meio a esse dinamismo característico, há o desafio de haver uma regulação atual, adequada e capaz de estimular a entrada de novos agentes nesses mercados. Isso porque, apesar da regulação ser necessária ela também pode ter efeitos negativos no mercado, especialmente quando as regras são excessivamente restritivas e impedem a entrada de novas empresas ou a oferta de novos serviços. Isso pode afetar a concorrência e, consequentemente, elevar os preços e reduzir a qualidade dos serviços. 

Se faz necessário, portanto, ponderar qual seria o melhor desenho para as novas tecnologias e modelos de negócios existentes, de que forma deve se dar a atuação do Cade e da Anatel para que seja alcançado o objetivo final de ampliar o oferecimento de serviços de qualidade a custos mais baixos e ao mesmo tempo estimular a competição.

Desse modo, o equilíbrio entre a regulação e a concorrência são elementos-chave para o bom funcionamento do setor de telecomunicações e devem caminhar lado a lado. Isso porque, em que pese a regulação seja necessária para garantir que as empresas cumpram com normas, obrigações e regulamentos específicos, protegendo os interesses dos consumidores, por outro lado, a concorrência é fundamental para promover um ambiente competitivo saudável e estimular a inovação. Assim, as funções das instituições são complementares e fundamentais para o setor.  

Ao longo das últimas décadas, o Cade e a Anatel têm mantido uma política de cooperação e troca de conhecimentos, essencial para a identificação e resolução de problemas relacionados à concorrência e a regulamentação do mercado de telecomunicações, de modo a dirimir as assimetrias informacionais com a abertura do diálogo entre a agência e as empresas do setor.

Inclusive, em 10 de abril de 2023, com a colaboração da Anatel, o Cade lançou a 18ª edição da série “Cadernos do Cade” que analisa os mercados de telecomunicações no Brasil, com foco nos segmentos de telefonia fixa e móvel, banda larga fixa e infraestrutura. O Caderno apresenta o contexto em que o mercado atualmente se insere a nível nacional e global abordando diversas estatísticas do setor e casos que passaram pelo Cade, sejam estes atos de concentração ou investigações de condutas anticompetitivas.

O Caderno elenca alguns casos em que o Cade analisou o mercado de forma mais aprofundada, e um caso que merece destaque é a aprovação da compra da Oi Móvel pela Tim, Claro e Vivo[6]. Em fevereiro de 2022, o Cade aprovou a compra dos ativos de telefonia móvel do Grupo Oi pelas operadoras Tim, Claro e Telefônica Brasil. Visando preservar as condições de concorrência no mercado, a autorização do negócio foi condicionada à celebração de Acordo em Controle de Concentrações para mitigar possíveis riscos concorrenciais, pois ficou demonstrado que a saída do Grupo Oi do mercado de Serviço Móvel Pessoal (SMP) resultaria na redução de quatro para três o número de empresas que atuam nacionalmente no segmento, o que gera elevada concentração de mercado na oferta de telefonia móvel no país. Em vista disso, o Cade ponderou qual seria a melhor estratégia a seguir em relação a aprovação ou reprovação da operação, pois ao mesmo tempo, a possível insolvência da Oi geraria impactos sobre serviços de telefonia fixa, banda larga e comunicação de dados e outros serviços essenciais que dependem da infraestrutura da empresa. Assim, foi concluído pela autoridade que as condicionantes estabelecidas para a aprovação seriam suficientes para reduzir significativamente as barreiras à entrada, aumentar a expansão de concorrentes, mitigando, assim, as preocupações concorrenciais identificadas.

Da análise dos casos que passaram pelo Cade, é possível observar que no setor de telecomunicação, a existência de efetiva competição varia conforme a definição de mercado relevante, sob a ótica do produto e geográfica. Isso porque a depender do serviço ofertado e das regiões, a dinâmica competitiva é diferente. Essa variação em relação a definição de mercado relevante por parte da autoridade antitruste é também um dos reflexos das constantes mudanças que o setor sofre devido ao surgimento de novos modelos de negócios.

Ao longo dos anos, empresas que foram muito importantes para o setor, hoje perderam espaço. Tecnologias que antes eram supervalorizadas pelos usuários, foram substituídas, como a rede de fios metálicos em comparação com a fibra ótica, a telefonia fixa sendo substituída pela telefonia móvel, o acesso discado à internet, que em um momento foi a principal tecnologia de banda larga, e a evolução da tecnologia de telefonia móvel.

O próprio edital do 5G é um exemplo concreto da reorganização do setor[7], em que houve a possibilidade de regionalização da oferta desse espectro, permitindo a entrada de novos agentes nesse mercado, com a atração de novos investimentos, a possibilidade de crescimento de pequenas e médias empresas e o fortalecimento da competitividade do setor de telecomunicações brasileiro no cenário internacional. Com o advento de tal tecnologia, está ocorrendo a migração gradual dos consumidores para pacotes de dados em detrimento dos serviços de voz devido aos novos aplicativos de comunicação que surgiram.

Apesar da evolução, existem temas que são recorrentes desde os primeiros processos analisados pelo Cade e que possivelmente se manterão no radar da autoridade no futuro, como a convergência tecnológica, que seria a tentativa de colocar no mesmo mercado relevante diferentes produtos, tecnologias e também o acesso à infraestrutura e integrações verticais, pois nos mercados de telecomunicações há uma grande preocupação em relação a possibilidade de exclusão ou de criação de dificuldades aos concorrentes por parte do detentor da infraestrutura.

Sobre o primeiro tema, convergência tecnológica, recentemente discutiu-se se os serviços over-the-top (OTTs) poderiam ser colocados no mesmo mercado dos serviços de telecomunicação. A conclusão da Superintendência-Geral do Cade foi da impossibilidade de tal inclusão, pois embora desenvolvam atividades similares, os serviços prestados pelas plataformas não estão submetidos ao mesmo tratamento que os serviços de telecomunicações.

Já em relação ao segundo tema, acesso à infraestrutura, houve processos recentes envolvendo acordos de compartilhamento de infraestrutura (acordos de RAN Sharing) por duas ou mais operadoras com o intuito de reaproveitar infraestrutura e reduzir custos. Essa prática é comum principalmente nos casos de cobertura de regiões menos povoadas, em que se faz necessário viabilizar a entrada de novos concorrentes através do compartilhamento da infraestrutura pré-existente.

A tendência é que o setor de telecomunicações continue se expandindo, mas para isso é essencial que o Cade e a Anatel estejam atentos e acompanhem – como assim já fazem, as mudanças e transformações para a proposição de um novo paradigma de agenda regulatória, adaptado a tais inovações.

Contudo, a atuação da agência reguladora e da autoridade da concorrência deve ser cautelosa para não desincentivar o setor e causar um grande prejuízo aos consumidores que dependem de tais serviços. O atual contexto não necessita de regras endurecidas e obrigações que burocratizem ainda mais o setor. Em verdade, é necessário um ambiente cada vez mais flexível e principiológico que seja capaz de estimular novos modelos de investimento em infraestrutura e propor a melhoria constante na qualidade dos serviços prestados. 

É fundamental, portanto, a adoção de medidas para promover a entrada de novas empresas no mercado, a redução de barreiras regulatórias excessivas e a promoção de concorrência saudável entre as empresas. Com essas medidas, será possível garantir um mercado de telecomunicações mais equilibrado, com serviços de qualidade, preços justos e uma maior oferta de serviços para a população.

Polyanna Vilanova – Sócia do Vilanova Advocacia. Graduada em Direito e Ciência Política, possui LLM em Direito Empresarial pela FGV, especialização em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV, é Mestre em Direito Público pelo IDP e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. É árbitra do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA.

Ana Flávia Napoli – Advogada do Vilanova Advocacia. Graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).


[1] Fonte: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/comscore-mobile-representa-91-da-conectividade-brasileira/

[2] Fonte: https://www.comscore.com/por/Insights/Press-Releases/2017/3/comScore-Releases-New-Report-Mobiles-Hierarchy-of-Needs

[3] Fonte: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/outubro/leilao-do-5g-deve-movimentar-r-169-bilhoes-em-investimentos#:~:text=Conectividade%205G%20%E2%80%93%20Com%20a%20compra,ao%20longo%20de%2020%20anos.

[4] Davi Paiva Ferraz, Ranna Dourado Barbosa Costa, Mariana Gomes Magalhães y Heriberto Wagner Amanajás Pena (2017): “Análise da concentração de mercado do setor de telecomunicações brasileiro”, Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, Brasil, (septiembre 2017). En línea: http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/17/mercado-telecomunicacoes-brasil.html http://hdl.handle.net/20.500.11763/br17mercado-telecomunicacoes-brasil

[5] Vide, como exemplo, o que foi destacado pelo Conselheiro Relator no ato concentração no 08700.002013/2019-56.

[6] Ato de Concentração n. 08700.000726/2021-08

[7] Anatel fala sobre tecnologia 5G na Câmara dos Deputados. 2019a. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-fala-sobretecnologia-5g-na-camara-dos-deputados . Acesso em 18.04.2023.

Crescimento, Reformas e os Indicadores PMR de Competição, Regulação e Abertura

Katia Rocha

Há poucas semanas, o FMI divulgou o World Economic Outlook (2023), publicação de seu corpo técnico, todo mês de Abril e Outubro de cada ano, apresentando as análises sobre expectativas de crescimento global de curto e médio prazo. Os capítulos fornecem uma visão geral e uma análise mais detalhada da economia mundial, com considerações sobre economias desenvolvidas e em desenvolvimento, além de tópicos de interesse atual.

Conforme ilustra a tabela abaixo, as projeções de crescimento do Brasil para 2023 / 2024 foram estimadas em  0.9 / 1.5 % ao ano, abaixo da projeção de 3.9 / 4 % ao ano para economias emergentes de renda média (classificação do Brasil segundo sua renda per capta).  Fato é que, desde a década de 80, o Brasil cresceu uma média de 2.3% ao ano, aproximadamente, metade do crescimento de países de renda média superior (4.7% ao ano).

Na teoria econômica, diversos modelos tem sido utilizados para tentar identificar as causas do baixo crescimento Brasileiro. Entre elas, surgem questões relativas à produtividade, instituições, infraestrutura, educação, etc. Algumas hipóteses advogam em favor de reformas estruturais, que teriam potencial de alavancar crescimento via aumento de produtividade, ao promover maior eficiência alocativa de recursos.

Diversos think tanks recomendam agendas para endereçar essa questão. A OCDE, por exemplo, em sua publicação OCDE – Economic Surveys Brazil (2020), estima, através de modelo de crescimento de longo prazo[1], o potencial impacto de médio e longo prazo na atividade, decorrente de diversos conjuntos de reformas políticas e institucionais.

Um pacote ambicioso, que melhorasse a qualidade regulatória e a concorrência, reduzisse as barreiras ao comércio exterior e melhorasse as instituições e a governança, geraria um aumento real do PIB de 14.1% e um incremento no crescimento médio anual de 0.9% ao ano.

As reformas sugeridas baseiam-se em três cenários principais.

O primeiro cenário assume o alinhamento das regulamentações do mercado de produtos, conforme capturado pelo indicador Product Market Regulation – PMR [2], com a média atual da OCDE até 2060. Representaria enorme aumento na competitividade do país, e incluiria a consolidação dos impostos sobre o consumo em um imposto sobre valor agregado (IVA).

O segundo cenário pressupõe maior abertura e integração global, decorrente da redução de barreiras tarifárias e não tarifárias de bens de capital e insumos intermediários, com redução de 7% nas tarifas, atingindo, em 5 anos, o nível atual vigente nas principais economias da OCDE. Além disso, supõe-se abertura gradual da conta de capital, atingindo, em 5 anos, o nível atual do Chile.

O terceiro cenário pressupõe a qualidade institucional, capturada pelos índices do World Governance Indicator do Banco Mundial[3], convergindo ao valor médio atual da OCDE em 2060. 

Basicamente, a agenda de reformas sugeridas dialoga bem com as diretrizes e instrumentos legais da própria OCDE, aos quais, o Brasil já aderiu, praticamente, à metade, em sua jornada para adesão. Alinha-se, igualmente, aos diversos eixos estratégicos do Estado Brasileiro para o desenvolvimento econômico e social.

A Figura 1 ilustra algumas dessas relações (estruturas de correlação) referente aos cenários que motivam essa agenda de reformas para 114 países de baixa, média e alta renda a partir de dados de 2021.

Figura 1: Cenários e Estruturas de Correlação

Fonte: World Development Indicator e World Governance Indicator

Vou, aqui, me ater ao primeiro cenário proposto, sobre melhoria nos indicadores Brasileiros de PMR da OCDE.

Os indicadores de PMR medem as barreiras regulatórias à entrada e à concorrência de empresas como um todo na economia e em setores regulados. Abrangem ampla gama de políticas relevantes, e, sobretudo, atuais, na agenda Brasileira, como governança das empresas estatais, compras públicas, controle de preços, avaliação da qualidade regulatória, licenciamento e burocracia, interação com grupos de interesse, envolvimento do Estado na economia, e barreiras a investimentos e ao comércio exterior. Ressalto, o entendimento da OCDE, no qual a propriedade pública não é uma questão per se, desde que as regras de governança das empresas estatais envolvidas em atividades comerciais limitem a interferência política indevida, e, promovam a igualdade de condições entre empresas públicas e privadas.

Desse modo, os indicadores PMR são uma importante ferramenta para os países identificarem fraquezas regulatórias e formularem opções de políticas para superá-las, comparando-se aos países peers, e, adotando as melhores práticas internacionais.

A posição atual do Brasil nesse indicador é baixa, ocupando o percentil inferior de 5% das posições dos países membros da OCDE[4]. No entanto, um aumento para a média do grupo até o ano de 2060 parece factível.

Nesse sentido, é oportuno lembrar as tentativas de mudanças acerca do Marco Legal de Saneamento Lei 14.026 de 2020, fruto de intenso debate, desde 2018, envolvendo diversos agentes, tanto do setor público, quanto privado, cujo objetivo principal concentra-se na universalização do saneamento, um problema de décadas no Brasil, incentivando parcerias e ampliação da participação privada.

A promulgação do Novo Marco de Saneamento de 2020 se posiciona em conformidade aos eixos dos indicadores de PMR da OCDE, criando um ambiente regulatório mais homogêneo, com eficiência concorrencial via licitações públicas, com indicadores obrigatórios de performance e qualidade para os investimentos no setor, e incentivos de maior parceria do setor público e privado. Um avanço na modernização do marco legal de PPPs do Brasil, tendo sido bem recebido por diversos think tanks (BID, OCDE, Banco Mundial)[5].

Eventuais mudanças que desconfigurem tal propósito e objetivo podem produzir alto custo econômico e social, com atrasos ainda maiores nas metas de universalização, e possíveis contágios em outros setores de infraestrutura. Não condiz com a necessidade de priorização de investimentos no setor. Dados do Banco Mundial[6]mostram que apenas 48,7% da população Brasileira apresenta algum nível de coleta e tratamento de esgoto. Nos países membros da OCDE esse percentual alcança 85%.

O esforço para melhorar a agenda de produtividade e crescimento econômico e social é extenso. Sigo acreditando que políticas públicas baseadas em dados e evidências podem nos ajudar a manter as conquistas, apresentar parâmetros de comparação, e, seguir caminhando na agenda de crescimento e desenvolvimento.  

Referências

  1. Guillemette, Y.; D. Turner (2018). The Long View: Scenarios for the World Economy to 2060. OECD Economic Policy Papers, No. 22, OECD Publishing, Paris, Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/economics/the-long-view_b4f4e03e-en
  2. IFC (2021). Tapping into private finance for more resilient water systems. Disponível em: https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/news_ext_content/ifc_external_corporate_site/news+and+events/news/private-financing-for-resilient-water-systems-in-brazil
  3. OCDE – Economic Surveys Brazil (2020). Disponivel em: https://www.oecd.org/economy/surveys/Brazil-2020-OECD-economic-survey-overview.pdf
  4. OCDE (2022). Fostering Water Resilience in Brazil: Turning Strategy into Action. OECD Studies on Water. Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/environment/fostering-water-resilience-in-brazil_85a99a7c-en#page4
  5. World Bank (2022). Water Supply and Sanitation Policies, Institutions, and Regulation: Adapting to a Changing World—Synthesis Report. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/099015208242275252/pdf/P165586002283004a086e105a00d8430696.pdf
  6. World Economic Outlook (2023). World Economic Outlook: A Rocky Recovery. April. International Monetary Fund. 2023. Disponivel em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2023/04/11/world-economic-outlook-april-2023
  7. World Governance Indicator – WGI. Disponível em: https://info.worldbank.org/governance/wgi/

Disclaimer

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

* Pesquisadora do IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br

[1] Ver Guillemette and Turner (2018).

[2] Disponível em: https://www.oecd.org/economy/reform/indicators-of-product-market-regulation/

[3] Abrangem seis grandes dimensões de governança (estado de direito, qualidade regulatória, controle de corrupção, eficácia do governo, responsabilidade e prestação de contas e estabilidade política e ausência de terrorismo) para mais de 200 países desde 1996 calculados seguindo metodologia própria. Disponível em: https://info.worldbank.org/governance/wgi/

[4] A base de dados PMR é atualizada após 5 anos, e neste ano de 2023 será divulgada atualização com as novas posições dos países.

[5] Ver OCDE (2022), World Bank (2022), IFC(2021).

[6] World Development Indicators. Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/SH.STA.SMSS.ZS

Uma análise elementar de teoria de preços sobre a taxação às importações asiáticas de até US$ 50

Marco Aurélio Bittencourt

Já sabemos que, em nome de uma análise com teor científico, necessitamos de dois elementos: modelo e prova do seu funcionamento. O modelo pode ser visto, num sentido amplo, como uma narrativa que embute alguma matemática ou lógica. Para sua consolidação teórica, precisa ter dados e teste. Este é o pacote científico numa versão livre e resumida. O ponto é que os dois elementos se casam, mas podem ser elaborados separadamente. Vou me ater ao campo da narrativa sobre o tema proposto.

Algumas hipóteses são imprescindíveis. Vejamos o contexto. Aqui falamos das importações livres pela internet que alcançam o limite de US$ 50,00. Supomos que os compradores locais , ao comprar tais produtos, alcancem alguma folga financeira que , por hipótese, se dirige ao mercado interno. Então, há um efeito tributário indireto pela compra do produto estrangeiro: o aumento da arrecadação decorrente dessa folga financeira que se dirige aos produtos locais. Outra hipótese que assumimos que tais produtos importados atendem a uma faixa populacional de poucos recursos, podendo incluir outras faixas. Não tenho os dados sobre isso. Então nessa contabilidade hipotética quem ganha e quem perde? Ganham os consumidores. Perdem as empresas que teoricamente competem com as importações asiáticas. Quais seriam essas empresas? Lojas americanas, Rener, Magazine Luíza, Carrefour e similares. Em outras palavras, para produtos que saem , pela importação asiática, por R$ 120,00 estariam sendo vendidas , digamos, por R$ 170,00, ou seja, não conseguem competir. De novo, não tenho os dados. É uma estimativa. O fisco ainda manteria receita sobre os R$ 50,00 que se dirigiria ao mercado interno; digamos 20% sobre os R$ 50,00, ou seja, R$ 10,00.

Agora, façamos o experimento: impor alíquota sobre os produtos importados. A questão fundamental: qual a alíquota ? Suponhamos dois casos: uma impeditiva e outra parcialmente impeditiva. No primeiro caso, não se tem arrecadação fiscal pelas importações que iriam a zero.  Então os R$ 50 seriam perdidos com prejuízo de R$ 10,00 para o fisco. Mais agora o importador brasileiro tem que pagar pelo produto R$ 170,00. Certamente, irá reduzir suas compras. Então suponha que isso acarrete uma redução pela metade no valor gasto, ou seja R$ 85,00 iria se dirigir ao mercado interno. Isso daria, um ganho tributário de R$ 17,00 e liquidamente R$ 7,00 (computando a perda pelo comercio internacional – o ganho indireto pela folga orçamentária). Certamente, pelo aumento de preços que agora o consumidor se depara, terá que reescalonar seus gastos , reduzindo-os e isso tem um efeito recessivo indireto que apareceria ao longo do tempo. Quem ganharia? Certamente, os empresários citados que teriam suas vendas acrescidas pelo redirecionamento forçado da demanda. O fisco, ganharia residualmente e declinante. E os pobres pagariam a conta. Qualquer outra alíquota, abaixo do limite impeditivo, traria alguma combinação desses valores, com ganhos para o fisco e o empresário.

As contas exatas requerem estimativas mais precisas. Independentemente dessa estimativa, a lógica básica se manteria: os consumidores mais pobres perderiam, os empresários ineficientes contariam com a proteção tarifária e o fisco aumentaria residualmente sua arrecadação, mas de forma declinante. Portanto, do ponto de vista social, o ganho fiscal certamente não superaria a perda de bem-estar da população.

Trata-se, portanto, de uma velha política brasileira: o domínio de grupos de interesse sobre a política, usando-a em seu benefício. Nessa luta política, vale todo tipo de propaganda, como a de injustiça tributária por isentar importações. Como sabemos, as exportações não são, como boa regra de comércio externo, taxadas e assim cada país escolhe o que taxar de produtos importados; o que depende de negociações, pela possibilidade de simples retaliação. As empresas estrangeiras não mudariam sua posição, exceto se a faixa tributária lhe permitir alguma competição.

Resiliência com eficiência: como o powershoring pode colaborar para a descarbonização e o desenvolvimento econômico da américa latina e caribe

Jorge Arbache & Luiz A. Esteves

A ideia central por trás da noção de Powershoring é que a mudança climática e fatores geopolíticos têm aberto uma janela de oportunidade para que países com vantagens comparativas na produção de energia limpa e renovável possam atrair plantas manufatureiras intensivas no consumo de energia em seus processos produtivos. Portanto, Powershoring refere-se a uma estratégia empresarial de localização de produção, a exemplo de outras estratégias locacionais, tais como Offshoring, Reshoring ou Nearshoring. Mas a proposta de valor do Powershoring é múltipla e vai além da energia verde, segura, barata e abundante, que são os fatores de interesse empresarial mais imediatos dessa estratégia.

No que diz respeito à mudança climática, eventos extremos, tais como ondas de calor, enchentes e inundações têm contribuído para o fechamento de fábricas e o colapso de rotas estratégicas da logística global. Os efeitos econômicos adversos da proliferação de eventos climáticos, combinados com o choque da pandemia do COVID-19, têm revelado uma evidência importante acerca das estratégias de localização de muitas corporações: os riscos associados à concentração geográfica da produção foram amplamente subestimados. A estratégia do Offshoring implicou em elevadíssimos níveis de concentração geográfica da produção, ao mesmo tempo que também concentrou os riscos logísticos e de intermitências produtivas – que sob choques adversos – produziu episódios de desabastecimentos generalizados de máquinas, equipamentos, partes, peças, produtos e insumos.

Fatores geopolíticos têm contribuído para tornar a transição energética ainda mais desafiadora. Dentre esses fatores geopolíticos destacam-se a competição entre Estados Unidos da América (EUA) e China e a crise energética na Europa, em decorrência do conflito bélico envolvendo russos e ucranianos. Algumas dimensões relevantes desta competição entre EUA e China incluem dados e cyber-segurança, energia e recursos naturais e mudanças climáticas. Algumas destas dimensões são centrais para o futuro da transição energética e da indústria verde do globo e são especialmente importantes para a discussão em torno do Powershoring. Já os países europeus têm protagonizado as principais iniciativas de compliance ambiental. Suas metas de descarbonização são ambiciosas e objetivam tornarem-se o primeiro continente com neutralidade de carbono até 2050. Contudo, um conjunto de circunstâncias tem dificultado as pretensões europeias de liderar a transição energética, incluindo fatores de ordem geopolítica.

Um ponto importante a ser destacado diz respeito aos fatores que determinam as vantagens comparativas na produção de energias limpas e renováveis. As principais energias limpas e renováveis atualmente disponíveis a custos competitivos são intermitentes e não estão disponíveis de forma abundante e simultânea em qualquer lugar do planeta. Na realidade, poucas localizações do globo são capazes de produzir todas as energias limpas e renováveis atualmente disponíveis a custos competitivos de forma simultânea e complementar, quesito este fundamental para mitigação do problema da intermitência. Um grupo de países da América Latina e Caribe (ALC) dispõe de condições que atendem a este requisito da simultaneidade e complementaridade da produção de energias verdes e limpas a custos competitivos. Portanto, apresenta-se como ambiente propício para a atração de investimentos baseados na estratégia de Powershoring.

Faz-se necessário destacar que, neste momento, as energias limpas e renováveis já se apresentam como alternativas altamente competitivas às energias fósseis tradicionais, uma vez que os custos operacionais de produção de energias limpas e renováveis desabaram na última década. Por exemplo, o custo nivelado (Levelized Cost of Energy, LCOE) da energia solar fotovoltaica foi reduzido em 88% no período 2010-2021 (US$ 0.417/kWh em 2010 e US$ 0.048/kWh em 2021). Já o LCOE da energia eólica Onshore foi reduzido em 68% (US$ 0.102/kWh em 2010 e US$ 0.033/kWh em 2021). Finalmente, o LCOE da energia eólica Offshore foi reduzido em 60% (US$ 0.188/kWh em 2010 e US$ 0.075/kWh em 2021).

No que diz respeito aos direcionadores de valor econômico do Powershoring, podemos destacar três vetores: (i) a combinação de resiliência com eficiência econômica; (ii) a combinação de compliance ambiental com desenvolvimento econômico; e (iii) a criação de alternativa para a transição e segurança energética de empresas, bem como de diferentes setores e cadeias globais de valor, reduzindo a pressão de demanda nos sistemas elétricos dos países originários dos investimentos externos.

A combinação de resiliência com eficiência está se tornando o principal direcionador da localização industrial em nível global e é esperado que tal combinação siga ganhando importância nos próximos anos. A resiliência, elemento novo nessa agenda, está ganhando centralidade na geografia internacional dos investimentos, em especial na estratégia corporativa de empresas com presença global, que buscam segurança produtiva e de mercado, para além da eficiência econômica. As vantagens comparativas refletidas nos custos de produção das energias limpas (com destaque para a eólica e solar fotovoltaica) e do hidrogênio verde (H2V) deverão ganhar influência neste tipo de tomada de decisão, em especial naqueles setores intensivos no consumo de energia em processos produtivos em que a demanda pela descarbonização se faz premente. Ao que tudo indica, a desconcentração e a diversificação da geografia das plantas se tornarão temas críticos da agenda de investimento da primeira metade do século XXI.

Outra característica distintiva do Powershoring é que ela combina compliance ambiental com desenvolvimento econômico. Ao fazer das energias limpas a engrenagem da estratégia, o Powershoring fomenta investimentos na agenda do clima e acelera a transição energética e a descarbonização da produção em nível regional e global. De outro lado, a atração de plantas manufatureiras voltadas para exportação promove o crescimento do PIB da ALC, o aumento do investimento, da tecnologia e da inovação, o aumento do emprego, a inserção da região em cadeias globais de valor, promove as pequenas e médias empresas, a arrecadação de impostos, o desenvolvimento local e regional e, finalmente, ganhos generalizados de produtividade.

O terceiro vetor diz respeito ao fato de as vantagens comparativas da ALC em produzir energias limpas e renováveis – num cenário geopolítico desafiador de transição energética e mudanças climáticas – proporcionarem a criação de uma nova classe de ativos e novas oportunidades para investimentos externos. Por exemplo, para os países de origem das empresas beneficiadas, o Powershoring ajuda a reduzir a pressão de demanda nos sistemas elétricos, o que melhora as condições e o planejamento da transição energética, servindo como motor da competitividade empresarial, criando alternativas de compliance ambiental para empresas sob pressão e viabilizando a importação de bens com preços relativamente menores e com baixa pegada de carbono. Em outras palavras, o Powershoring contribui para os compromissos ambientais e protege os interesses das empresas.

O Powershoring pode ser classificado como uma política industrial, já que promove a manufatura e a transformação da estrutura produtiva. Porém, diferentemente de outras políticas industriais previamente implementadas na região, trata-se de política que tem como pontos centrais a energia limpa, o investimento direto estrangeiro, a exportação, a tecnologia e a inovação e o seu avanço não dependente de incentivos fiscais, subsídios, protecionismo ou discriminação. Ao contrário, o fulcro da estratégia está nas vantagens comparativas e nos recursos naturais. Trata-se, portanto, de proposta inovadora de política industrial, em que mudanças climáticas e o fortalecimento dos mercados são seus pontos de partida.

Por outro lado, o sucesso do Powershoring como política de promoção e transformação da estrutura produtiva da ALC enfrenta alguns riscos e ameaças, que podem ser divididos em dois grupos: externos e internos. Os riscos e ameaças de natureza externa estão majoritariamente relacionados aos efeitos e impactos decorrentes da estratégia de Reshoring ancorada em subsídios generosos para a produção doméstica de energias limpas e renováveis em países desenvolvidos. Já os riscos e ameaças de natureza interna estão relacionados à maneira como algumas lideranças políticas e empresariais da ALC vislumbram explorar as oportunidades advindas das vantagens comparativas da região na produção de energias limpas e renováveis.

No âmbito das ameaças e riscos externos, destaca-se o esforço de economias desenvolvidas para tornarem o Reshoring uma estratégia locacional hegemônica, com a concentração da produção industrial nos EUA e na Europa. Um grande passo neste sentido foi a aprovação do Inflation Reduction Act de 2022 (IRA) nos EUA. Trata-se de um pacote de estímulos no montante de US$ 433 bilhões, sendo US$ 369 bilhões destinados a programas de segurança energética e mudanças climáticas. O IRA fornece subsídios na forma de créditos fiscais e condiciona esses créditos à produção baseada nos EUA e ao fornecimento de insumos da América do Norte e tem sido interpretado por analistas especializados, políticos e acadêmicos como uma potencial violação das regras de comércio internacional. Parece haver um consenso fora dos EUA de que o IRA tem potencial de erodir o sistema multilateral de cooperação, inclusive servindo como gatilho para uma “corrida transatlântica” de subsídios entre EUA e Europa.

Contudo, os desafios da transição energética e as metas globais de descarbonização tornam a hegemonia do Reshoring no EUA e na Europa uma tarefa não trivial por ao menos duas razões. A primeira delas é o próprio risco da concentração geográfica da produção industrial, fator que motivou uma reavaliação da pertinência de estratégias locacionais do tipo “winner takes all”.  A segunda diz respeito à ausência de vantagens comparativas relevantes na produção conjunta e complementar de diferentes energias limpas e renováveis por parte daquelas economias. Não restam dúvidas de que EUA e Europa dispõem de um conjunto único e extremamente valioso e sofisticado de ativos estratégicos tangíveis (infraestrutura física, recursos naturais e localização geográfica) e intangíveis (instituições e mercados sofisticados e capital humano e intelectual). Contudo, a produção de energias limpas e renováveis não é um deles, ao menos no curto e médio prazo.

Adicionalmente, não há consenso na literatura especializada de que barreiras tarifárias e não-tarifárias, subsídios e incentivos fiscais possam compensar em bases permanentes desvantagens comparativas no longo prazo. Portanto, os riscos associados aos efeitos do IRA e similares não devem ser desprezados pela ALC, da mesma maneira que seus benefícios e incentivos não deveriam ser superdimensionados por parte dos contribuintes, empresas e investidores privados.  

No âmbito das ameaças e riscos internos destaca-se, como já pontuado, a maneira como algumas lideranças políticas e empresariais da ALC vislumbram explorar tais oportunidades advindas das vantagens comparativas da região na produção de energias limpas e renováveis. Há um forte movimento para a constituição de uma espécie de “modelo primário-exportador” de energia verde, com destaque para a exportação do H2V transportado na forma de amônia. A estratégia da constituição de hubs de exportação de H2V ou amônia verde no Hemisfério Sul, com destaque para a ALC e continente africano, está mais alinhada à agenda europeia de transição energética, tais como o EU Green Deal e o EU Hydrogen Strategy do que com as estratégias dos países exportadores para as suas transições energéticas e de criação de valor.  

Parcerias envolvendo Europa e ALC para o desenvolvimento da produção e comercialização de H2V e amônia verde podem ser mutuamente vantajosos e benéficos. Da mesma forma que a constituição de hubs para exportação de H2V ou amônia verde na região da ALC não representa um problema, desde que outras oportunidades igualmente importantes para a geração de riqueza e valor econômico não sejam negligenciadas em função de uma estratégia de desenvolvimento monotemática e primário-exportadora.

Outro ponto a ser destacado a respeito do Powershoring diz respeito à sua proposta de valor empresarial.  As vantagens comparativas da ALC em produzir energias limpas e renováveis, com segurança energética a custos competitivos, num cenário desafiador de transição energética e mudanças climáticas, têm propiciado a criação de uma nova classe de ativos e de oportunidades para investimentos privados.

O fato é que as metas de descarbonização impostas às economias ao redor do globo implicam na emergência da transição energética. A emergência acomete a todos, mas os níveis de urgência variam consideravelmente de país-para-país e de setor-para-setor, a depender de vários fatores, incluindo as próprias estruturas das matrizes energéticas e dos perfis de capacidade instalada e geração de eletricidade, além das diferentes exposições a riscos de eventos climáticos e riscos geopolíticos. A partir desta perspectiva, parece claro que a estratégia do Powershoring constitui uma oportunidade única para aqueles projetos de investimento nos quais os custos incorridos na protelação da transição energética são crescentes e desproporcionalmente altos.

Além de produzir valor econômico aos investidores privados por meio de diversificação de riscos e maior resiliência, a estratégia do Powershoring está alinhada e em e conformidade com as agendas da governança ambiental, social e corporativa (ESG) e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Isto significa que o Powershoring é uma estratégia altamente aderente aos objetivos de empresas que perseguem o conceito de triple bottom line, ou tripé da sustentabilidade, um conceito de negócios que postula que as empresas devem se comprometer a medir seu impacto social e ambiental – além de seu desempenho financeiro – em vez de se concentrar apenas na geração de lucro ou no “resultado” padrão.

Os críticos do modelo do triple bottom line muitas vezes apontam a sustentabilidade como uma questão periférica, como uma moda passageira, como greenwashing ou como uma questão de negócios sem importância. Contudo, o fato é que tais tipos de críticas já superam o período de uma década e não há qualquer evidência de que estejamos tratando com uma moda passageira. Muito pelo contrário. Governos, consumidores, reguladores, investidores, acionistas, instituições bancárias, seguradoras, resseguradoras e agências de rating têm pressionado cada vez mais as empresas a perseguirem estes objetivos do triple bottom line.

A estratégia de Powershoring se alinha às novas propostas de geração de valor econômico para as organizações, tais como os modelos de Criação de Valor Compartilhado e o Modelo de Economia Circular. O ponto central é que os modelos de negócios que constituem a estratégia do Powershoring (produção, distribuição e comercialização de energias limpas e renováveis) foram originalmente concebidos à luz deste novo paradigma de “capitalismo de stakeholders” – em oposição ao paradigma anterior de “capitalismo de shareholders”, inclusive num período da história em que se acreditava que tais modelos de negócio não seriam economicamente viáveis, sustentáveis, replicáveis e escaláveis.

A adoção do Powershoring na ALC deveria considerar a “Estratégia de Três Vias.”

A primeira via consistiria em fomentar os fatores habilitadores para o aumento da produção da energia verde, segura, barata e abundante. A segunda via consistiria em promover a expansão da produção do H2V a níveis que garantissem ganhos de escala, ganhos de escopo e queda do preço, para enfrentar os subsídios dos EUA e Europa, além de ganhos de aprendizagem, conhecimento do modelo de negócios, formação de parcerias nacionais e internacionais e produção local de equipamentos, de tal forma a converter a região num grande hub global de H2V, aproveitando-se das vantagens comparativas de energia verde, terrenos industriais, água e posição geográfica favorável. A terceira via consistiria no uso prioritário desse gás para a promoção do Powershoring, exportando os excedentes.

Tais estratégias são complementares, embora não sejam temporalmente sincronizadas. Isto porque ainda estamos distantes de alcançar tecnologias seguras e economicamente viáveis de transporte marítimo do H2V na forma de amônia, bem como de tecnologias igualmente seguras e econômicas de reconversão da amônia verde em H2V para uso industrial nos portos dos países importadores.

O Powershoring é uma oportunidade única para converter a vantagem comparativa da região em energia verde, o distanciamento da agenda geopolítica internacional e a capacidade de atender a combinação de resiliência com eficiência em instrumentos potentes de promoção do desenvolvimento econômico e social. O Powershoring terá efeitos importantes na produtividade, na competitividade, na tecnologia, na inovação e contribuirá para a formação e consolidação de cadeias regionais de valor. Certamente, o Powershoring será muito útil e benéfico para a região, mas será ainda mais útil para as empresas que entenderem as virtudes dessa estratégia.


JORGE ARBACHE. Vice-presidente de setor privado da CAFJorge Arbache

LUIZ A. ESTEVES. Economista-chefe do Banco do Nordeste do Brasil

O PLDO de 2024. A trajetória fiscal sob a incerteza da aprovação do novo arcabouço.

Editorial

Esta semana o Poder Executivo encaminhou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2024[1][2] para o Poder Legislativo e a novidade fica por conta da utilização das duas regras fiscais, a vigente (Teto de Gastos[3]) e a proposta (Novo Arcabouço Fiscal), para a limitação do crescimento das despesas primárias.

No editorial “O realismo fiscal do novo Arcabouço[4]” publicado no dia 02 de abril de 2023, demonstramos que as duas regras fiscais são muito distintas e, consequentemente, implicam em cenários muito distintos para as despesas primárias e para a execução de políticas públicas.

O Teto de Gastos limita a ampliação das despesas com base na aplicação da variação da inflação (IPCA) sobre as despesas primárias do ano anterior, enquanto o novo arcabouço fiscal permite que as despesas primárias variem em 0,5% e 2,5% com base no valor de 70% da receita realizada no ano anterior[5][6].

Tabela 1. Trajetória estimada do Resultado Primário

Bom, retornando ao PLDO encaminhado ao Poder Legislativo[7], observa-se que o Governo trabalha com um resultado primário para o Governo Central de zero em 2024 e crescente até 2026.

No entanto, observa-se que as diretrizes do orçamento para 2024 estão condicionadas a regra fiscal que vigerá durante o ano de 2023. Conforme documento enviado pelo Poder Executivo:

A meta de resultado primário do Governo Central para o PLDO-2024 foi acrescida
de intervalo de tolerância, semelhante ao mecanismo em discussão no novo arcabouço fiscal, mas passível de implementação independente de aprovação da proposta., … admitindo, como limite superior, superávit primário deR$ 28.756.172.359,00, e, como limite inferior, déficit primário no mesmo montante, equivalentes a 0,25% do PIB projetado para 2024. [Anexo IV Metas Fiscais IV.1 Anexo de Metas Fiscais Anuais, PLDO, pag. 124].

O que implica dizer que R$ 172 bilhões estariam condicionados à aprovação do Projeto de Lei Complementar referente ao novo arcabouço fiscal.

Portanto, o ano de 2024 já começa em 2023 e as expectativas de uma trajetória fiscal por parte do Poder Executivo compatível com um desempenho econômico positivo e em linha com a necessária execução de políticas públicas, sobretudo sociais, ficam agora, mais do que nunca, condicionadas a decisão do Poder Legislativo.


[1] Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e a execução da Lei Orçamentária de 2024 e dá outras providências.

[2] O PLDO 2024 é o PLN 4/2023, que está disponível no link Mensagem nº (senado.leg.br).

[3] A Lei do Teto de Gastos foi instituída pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de
dezembro de 2016 – Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br).

[4] O realismo fiscal do novo arcabouço. (webadvocacy.com.br)

[5] De acordo com o Poder Executivo, destacam-se a seguir os principais aspectos:
(i) crescimento real da despesa primária limitado a 70% da variação real da
receita;
(ii) independente da variação real da receita, o crescimento real da despesa
primária deve respeitar o limite inferior de 0,6% e o limite superior de 2,5%;
(iii) essa limitação para o crescimento da despesa é um mecanismo de ajuste
anticíclico para impedir o aumento exacerbado em momentos de crescimento
econômico (e consequente aumento da arrecadação) e queda em caso de baixo
crescimento econômico ou recessão (quando a receita tende a ter desempenho
igualmente ruim);
(iv) meta de resultado primário do Governo Central terá intervalo de tolerância
de 0,25 ponto percentual do PIB para cima e para baixo em cada ano;
(v) aplicação de mecanismos de correção: caso o resultado primário do Governo
Central fique abaixo do limite inferior do intervalo de tolerância, o crescimento máximo
das despesas no ano seguinte cai de 70% para 50% do crescimento da receita; e
(vi) caso o resultado primário do Governo Central fique acima do limite superior
do intervalo de tolerância, o excedente poderá ser usado para investimentos públicos. (Anexo IV
Metas Fiscais IV.1 Anexo de Metas Fiscais Anuais, PLDO, pag, 121 – Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9316380&ts=1681509121655&disposition=inline

(Anexo IVMetas Fiscais IV.1 Anexo de Metas Fiscais Anuais, PLDO).

[6] No documento denominado Anexo de Metas Fiscais Anuais, o Poder Executivo apresenta as razões pelas quais o Teto de Gastos precisa ser alterado por outra regra fiscal menos rígida, in verbis:

O cumprimento da regra tem sido alcançado em grande parte por meio de cortes nos investimentos federais, a fim de acomodar a expansão dos gastos obrigatórios e a garantia de espaço para as emendas parlamentares impositivas. A redução do investimento público para os menores patamares da série histórica, a não concessão de ganhos reais ao salário-mínimo, o congelamento dos salários do funcionalismo público, o sub financiamento de gastos sociais importantes como saúde pública, o insucesso na melhoria da eficiência alocativa no Orçamento e o incentivo à concessão de gastos tributários, são características importantes que marcam a inadequação do teto de gastos estabelecido pela EC nº 95. (Anexo IV
Metas Fiscais IV.1 Anexo de Metas Fiscais Anuais, PLDO, pag, 119 – Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9316380&ts=1681509121655&disposition=inline

Além disso, a excessiva rigidez, inevitavelmente acompanhada de escapes, fez com que esta regra não cumprisse seu objetivo de ancorar as expectativas dos agentes econômicos em relação à atuação fiscal do Governo Federal.

[7] Por definição o PLDO é o projeto de lei que dá origem a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que, por sua vez, orienta o orçamento da União e se materializa na publicação de Lei Orçamentária Anual (LOA).

Equívocos e polêmicas na taxação das compras internacionais

Fernanda Manzano Sayeg

Nos últimos dias, foi divulgada a informação de que a isenção de impostos sobre encomendas postais de até US$ 50 (aproximadamente R$ 247) entre pessoas físicas, o que afetará as compras efetuadas em marketplaces internacionais como AliExpress, Shein e Shopee.

O suposto “encarecimento” das compras internacionais se deve à cobrança do imposto de importação, que é um tributo federal que incide sobre a entrada de mercadoria estrangeira em território nacional.

Trata-se de uma questão bem mais complexa do que a maioria das notícias e artigos vem expondo, pois reflete a incapacidade do arcabouço jurídico internacional existente em lidar com o comércio eletrônico.

O imposto de importação é um imposto federal que incide sobre as mercadorias importadas, por via aérea, terrestre, fluvial ou marítima. Sua base legal é o artigo 153, inciso I, da Constituição Federal (CF/88). na Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), no Decreto-Lei nº 37/1966 (DL 37/66) e no Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).

O fato gerador do imposto de importação é o ingresso da mercadoria estrangeira em território nacional de maneira definitiva. A importação ocorre quando (i) uma empresa efetua seu transporte do país de origem o país de destino; (ii) um viajante adquire e traz mercadorias importadas em sua bagagem; e (iii) pessoas físicas ou jurídicas recebem produtos importados em remessas postais.

Por remessas postais internacionais, entende-se os presentes, bens, produtos ou mercadorias provenientes de outros países que são transportados ao Brasil pelos Correios oficiais dos países ou por empresas de transporte expresso internacional, também denominadas empresas de courier.

Em mercadoria importada em uma operação comercial regular, considera-se ocorrido o fato gerador do Imposto de Importação na data de registro da Declaração de Importação (DI) e o recolhimento do imposto é efetuado no ato de registro da DI pela empresa importadora.  No caso das remessas postais, antes de a encomenda ser despachada em território nacional, ela deve ser apresentada à fiscalização aduaneira. A empresa de courier irá providenciar o desembaraço da encomenda, junto à RFB, e cobrará, posteriormente, os tributos pagos juntamente com o valor do serviço prestado. Já os correios não possuem essa incumbência, cabendo ao destinatário da remessa postal o recolhimento do tributo.

O sujeito ativo do imposto de importação é a União federal, que detém o direito de cobrá-lo. O sujeito passivo do imposto de importação é o importador ou o destinatário de remessa postal internacional indicado pelo remetente.

O nosso sistema aduaneiro adota alíquotas ad valorem para o imposto de importação. Assim, a base de cálculo do imposto de importação é o valor aduaneiro, que inclui o valor do produto, o frete internacional e o seguro. As alíquotas de Imposto de Importação a serem aplicadas pelos países-membros do Mercosul são padronizadas por meio da Tarifa Externa Comum (TEC), uma tabela que indica a classificação fiscal das mercadorias negociadas internacionalmente, sua descrição e respectiva alíquota de Imposto de Importação, que varia entre 0 e 35%.

Porém, isso não se aplica às remessas postais internacionais, que supostamente possuem um mecanismo de tributação “simplificado”.

O regime de tributação simplificada (RTS) foi instituído pelo Decreto-Lei Nº 1.804, de 3 de setembro de 1980 e regulamentado pela Portaria MF nº 156, de 24 de junho de 1999. As importações nessa modalidade estão limitadas a US$ 3,000.00 ou o equivalente em outra moeda podem ser destinadas a pessoa física ou jurídica, estando sujeitas ao pagamento do Imposto de Importação calculado com a aplicação da alíquota de 60%, independentemente da classificação tarifária dos bens que compõem a remessa ou encomenda.

A legislação em vigor determina claramente que as remessas postais internacionais no valor aduaneiro de até US$ 50,00 ou o equivalente serão desembaraçados com isenção do Imposto de Importação apenas se o remetente e o destinatário forem pessoas físicas.

Qualquer remessa postal postada por jurídica será tributada. Apenas estão imunes à tributação por meio de remessa postal internacional os livros, jornais, revistas e outras publicações são imunes (CF, art. 150, VI, “d”).

O valor de até US$ 50,00 ou o equivalente deve ser acompanhado de documentação comprobatória do preço de aquisição dos bens. Contudo, se houver indícios de falsidade ou adulteração a documentação apresentada, o valor aduaneiro será determinado pela autoridade aduaneira com base no preço de bens idênticos ou similares, originários ou procedentes do país de envio da remessa ou encomenda ou no valor constante de catálogo ou lista de preços emitida por estabelecimento comercial ou industrial, no exterior, ou por seu representante no País.

São muitos os problemas observados nas importações que ocorrem por remessa postal.Segundo a Receita Federal, o imposto de importação não é pago, por duas razões: (i) o remetente declara valores mais baixos que os efetivamente pagos pelo consumidor; (ii) o remetente divide os produtos em mais de uma remessa inferiores a US$ 50,00 deliberadamente, de forma a evitar a incidência do imposto.

Pressionada por empresas nacionais que estão perdendo vendas e receitas para as compras internacionais feitas em aplicativos, a Receita Federal divulgou que pretende fiscalizar e implementar a legislação existente, cobrando do consumidor o imposto devido. Ademais, a Receita Federal pretende cobrar multa de 100% a 37,5% sobre a diferença do valor declarado e o suposto valor da mercadoria, bem como multa equivale a 75% da diferença do imposto supostamente devido se algum produto no pacote não for declarado na nota fiscal pelo remetente, as quais ainda estão pendentes de regulamentação.

Com as alterações pretendidas pela Receita Federal, a importação por remessa postal se tornará economicamente inviável. Quem será penalizado? O consumidor brasileiro e não as varejistas internacionais. Essas empresas não podem ser acusadas de sonegação de tributos, já que o imposto de importação não é devido por elas, mas sim pelos consumidores. Ou seja, a Receita Federal pretende punir o destinatário da remessa postal por atos supostamente praticados pela empresa vendedora da mercadoria. 

A legislação em vigor foi promulgada no século passado, quando o comércio eletrônico não era uma realidade nem em âmbito nacional, muito menos internacionalmente. A realidade do varejo muito e as regras devem mudar também.

A solução para esse problema não é simples e, no meu ponto de vista, passa pela discussão e criação de um novo arcabouço legislativo sobre, em âmbito internacional.  A regulamentação internacional do comercio eletrônico é imprescindível e deve ser discutida com urgência em organizações como OMC e OCDE.

Restrição orçamentária do Governo e juros: um lembrete importante

Marco Aurélio Bittencourt

A discussão sobre coordenação das políticas fiscal e monetária tem seu início, quase que ubíquo, a partir da década de 1960. Antes, aqui, tínhamos um olhar centrado no orçamento público e o lado monetário completava direta ou indiretamente o montante de recursos para fechar o orçamento. Não era sem razão uma inflação, em geral, nessa época anterior às mudanças de rumos das políticas macroeconômicas, no patamar de cerca de 10%. Chegou, então, no Brasil, com o regime militar de 1964, a perseguição de metas monetárias e o surgimento formal do Banco Central, concretizando-se a efetiva separação das políticas fiscal e monetária. O que veio junto com essas mudanças? A dívida pública nos padrões atuais: complementar o financiamento dos gastos públicos, com o efeito sobre a sua conta juros da política implícita de juros altos.

A dinâmica dessa implacável dívida pública é bem conhecida e está na raiz dos problemas inflacionários. Como se sabe, a restrição do governo federal encontra amparo em quatro itens: seus gastos, G, seus tributos, T, Dívida Pública, D, e Emissão monetária, M. Esses são os elementos que devem necessariamente fazer cumprir a restrição orçamentária. O lado monetário cuida de M e de forma independente do lado fiscal que cuida de G, T e D.  Como diz Leeper (2005) em seu artigo sobre restrição orçamentária do governo:

“A restrição orçamentária do governo é uma identidade contábil ligando as escolhas da autoridade monetária do crescimento monetário ou da taxa de juros nominal e as escolhas da autoridade fiscal de gastos, tributação e empréstimos em um determinado momento e ao longo do tempo. Os links intertemporais criam um rico conjunto de resultados possíveis a partir de experimentos de políticas macro padrão. Levar a restrição orçamentária do governo a sério pode derrubar algumas crenças amplamente mantidas sobre efeitos de política.”

Leeper analisa uma variedade de possibilidades para fazer cumprir a restrição orçamentária que dependeria das escolhas individuais, das políticas fiscal e monetária futuras e da estrutura econômica. O contexto ainda seria o de sincronização das políticas fiscal e monetária, muito embora a perseguição operacional de metas monetárias tenha sido substituída pelo uso dos juros como instrumento de ação do Banco Central. Que item especificamente importa destacar no orçamento público? O efeito da política monetária sobre o orçamento público, a saber, sobre a conta juros.

Os modelos teóricos, respeitando a restrição orçamentária do governo, garantem o equilíbrio orçamentário intertemporal, se T, G e D são rígidos, pelo efeito inflacionário. Mas esse efeito, estabelecido teoricamente, está distante do que se passa na prática. O compromisso monetário deveria ser o de traduzir tal efeito inflacionário em efetiva redução do pagamento dos juros, garantindo-se, pois, o redirecionamento automático dos gastos públicos. Dessa forma, alcançaríamos novamente o equilíbrio orçamentário sem traumas.

A discussão atual sobre juros deveria focar sobre esse ponto, porque há ainda um hiato entre ação do Banco Central em direção a um aumento da meta inflacionária e seu efetivo efeito na restrição orçamentária do governo. Em outras palavras: aumentar meta inflacionaria sem reduzir o pagamento de juros é fazer um desserviço de política monetária.

O que exatamente seria reduzido de juros, dependeria da meta inflacionaria e da própria situação do estoque da dívida pública, além dos elementos de preferências e estrutura da economia. Minha expectativa é que, dados esses elementos, a inviabilidade do concertamento orçamentário é quase certa e, assim, o “nirvana monetário” não poderia cumprir seu objetivo final: o de reequilíbrio orçamentário. Dessa forma, seria necessário reduzir gastos públicos (aumentar impostos ou aumentar dívida tem custo elevado) e conferir o que poderia efetivamente ser reduzido na conta juros pela condução adequada do Banco Central da sua política de ajuste da meta inflacionária.

Como sabemos, o estoque da dívida pública é elevado e ainda carrega o endividamento de estados e municípios (embora conte com contrapartida desses entes federativos). Portanto, ajustar a liquidez com efetivo ajuste dos juros a recompor a estrutura prévia orçamentária não seria trivial.  Talvez a ação da política monetária tenha mesmo um efeito reduzido sobre juros a pagar na conta orçamento público federal. O fato é que, mesmo havendo tal direcionamento efetivo do Banco Central, se optarem pelo aumento da meta inflacionária, seria pouco provável o sucesso de um ajuste definitivo do orçamento público. Como disse em outro artigo publicado nessa Webadvocace (2023), o concertamento orçamentário é urgente. Mas, para se obter sucesso, é necessário um amplo apoio político. Sob o presidencialismo, temos visto que tal concertamento não foi e certamente não será viável exatamente pela dificuldade de se compor uma ampla aliança política nessa direção. Se é para sonhar, que venha o parlamentarismo.

Referências

Leeper, E. Government Budget Constraint, The New Palgrave Dictionary of Economics, 2008. https://www.researchgate.net/publication/311979085_Government_Budget_Constraint

Bittencourt, M.A. Orçamento Público: Sua Estrutura Adequada para o Crescimento e Desenvolvimento. Texto para Discussão 1.203. Webadvocacy , 2023. https://webadvocacy.com.br/2023/01/25/orcamento-publico-sua-estrutura-adequada-para-o-crescimento-e-desenvolvimento/