Principais aspectos jurídicos do mútuo conversível em participação societária

Conheça um dos principais contratos utilizados no financiamento de startups, que se revela uma excelente opção para negócios em estágio inicial ou intermediário de crescimento.

André Santa Cruz, Ronan Santos & Matheus Ferraz

1.    Introdução

O tema do financiamento é um dos mais sensíveis para qualquer sociedade empresária. No começo, quando as despesas superam em muito as receitas, a palavra de ordem é sobrevivência. Nesse cenário, até que se atinja o ponto de equilíbrio (também chamado de breakeven[1]), o capital de terceiros garante a entrada e a manutenção de muitos novos empreendimentos no mercado.

Para a busca desse capital existem, basicamente, duas modalidades de captação de investimento: debt (dívida) ou equity (participação societária). Pensemos no processo de montagem de uma cafeteria, por exemplo. Para fazê-la funcionar, é preciso investir dinheiro. Pode-se tomar um empréstimo no banco (debt) ou convidar uma pessoa para ser sócia (equity).

Cada uma dessas formas tem um risco: se a escolha recair sobre a tomada de empréstimos, os obstáculos serão os juros altos e o risco das dívidas bancárias, sem contar os problemas com possíveis garantias, que em estágios iniciais de qualquer empresa costumam ser raras. Por outro lado, a entrada de um sócio logo no começo pode ocasionar dificuldades na tomada de decisões.

Com base na experiência estrangeira, entretanto, outras formas de obter capital para a estruturação de um negócio surgiram. A dívida conversível em participação é a principal delas.

As debêntures conversíveis em ações representam o exemplo mais emblemático. Ocorre que as sociedades limitadas (maioria esmagadora das sociedades empresárias constituídas no Brasil) não podem emiti-las. Diante disso, outra modalidade de contrato se popularizou: o mútuo conversível, um tipo de empréstimo que, cumpridas certas condições, faz do credor sócio.

2.            O que é o mútuo conversível?

A autonomia privada, princípio basilar do direito empresarial, permite que os agentes econômicos possam agir dentro da esfera que a lei não lhes proíbe. Nesse universo estão contidos os contratos atípicos, autorizados pelo art.425 do Código Civil[2]. Em geral, esses negócios jurídicos são misturas de outros negócios típicos, a exemplo do leasing, que combina locação com promessa de venda[3].

O mútuo conversível, na prática, é a junção de dois contratos em um só: o empréstimo de capital com a aquisição de participação societária. O credor empresta o dinheiro, com juros, do mesmo modo que uma instituição bancária faria, porém sob condições mais favoráveis, seja pelo fato de não exigir garantias, seja pelo objetivo principal de que a empresa dê certo. 

3.            Como funciona o mútuo conversível?

O mútuo conversível funciona da seguinte maneira: transfere-se o dinheiro a juros com determinado prazo, ao fim do qual o credor pode optar ou por receber o dinheiro de volta (corrigido e com juros) ou por se tornar sócio, transformando o valor do empréstimo em parte do capital social da sociedade empresária.

Trata-se de uma solução boa não só para as startups, que se beneficiam de um aporte associado a expertise (smart money), mas também para os investidores, cujo patrimônio fica a salvo em caso de insucesso. Embora atenda aos interesses das duas partes, a solução não é isenta de problemas.

4.            Pontos de atenção durante a execução do contrato de mútuo conversível

4.1 Fiscalização no mútuo conversível

O primeiro e mais óbvio problema do mútuo conversível é o seguinte: como garantir a correta aplicação dos recursos sem o risco de ser caracterizado como sócio? Enquanto credor, aquele que investe não tem direito de voto, reservado aos sócios. Enquanto investidor, deseja que o seu dinheiro não sirva só como capital de giro ou fique no bolso de algum mal-intencionado.

Para evitar esse problema, o contrato deve prever o chamado voto afirmativo. Ele será restrito àquelas matérias que estejam previstas no contrato de mútuo conversível.  Dessa forma, somente com o consentimento do mutuante aquela matéria será aprovada. Porém, deve-se levar em conta o risco da caracterização de sociedade em comum[4].

Um exemplo disso envolve a transação com partes relacionadas, fato que a jurisprudência já reconheceu como apto a provocar a resolução do mútuo conversível, se houver tal previsão no contrato[5]. O não fornecimento dos balanços solicitados para o acompanhamento da evolução da sociedade empresária também pode ensejar a resolução do negócio jurídico, conforme a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[6].

4.2 Cálculo das participações antes e depois da conversão do mútuo em participação (cap table)

Outro ponto de extrema atenção no mútuo conversível é o cálculo do cap table (tabela com os percentuais de cada sócio, antes e depois da conversão). A elaboração dessa tabela permite calcular a diluição de cada fundador ou mesmo do mutuante, caso haja novas rodadas de investimento. É possível, inclusive, pactuar que o investidor pague um valor para que não seja diluído, sob pena de perder determinados privilégios. De qualquer modo, é importante realizar esses cálculos para evitar surpresas desagradáveis.

4.3 Auditoria da empresa que vai receber o mútuo conversível

A due diligence exerce um papel de destaque dentro da relação de mútuo conversível. Quem coloca o seu dinheiro num negócio quer estar por dentro de todos os riscos, até para decidir se vai ou não prosseguir com o investimento. Para os sócios, é importante estar com todas as informações reunidas, de modo que as respostas sejam precisas e rápidas.

O não fornecimento de balanços solicitados, por exemplo, pode frustrar a realização do contrato, porque o elemento de confiança não estará presente. Ou, se houver alguma contradição entre as informações apresentadas e os dados reais da empresa, é possível a resolução do contrato, inclusive com o pagamento de indenização por parte da empresa mutuária[7].

4.4 “Declarações e garantias” e covenants

À auditoria se seguem as declarações e garantias[8], com as quais os fundadores dão sua palavra de que prestaram informações verdadeiras ao credor e sócio em potencial. Para além do caráter moral (afinal, sem honestidade, a relação societária é impossível), as implicações jurídicas podem pesar no bolso (pagamento de indenização).

É importante haver cláusula expressa de covenant[9], por meio da qual o investidor terá acesso às informações e documentos que julgar necessários e poderá dar diretrizes para contratação de serviços pela sociedade. A clareza precisa presidir a relação desde o princípio.

4.5 Fixação do destino dos valores do mútuo conversível

O emprego dos valores emprestados ocupa posição importante dentro do mútuo conversível. Como dito antes, eles não podem se converter em capital de giro ou cash out. Devem servir para aperfeiçoar o produto ou serviço, isto é, melhorar o empreendimento. Por essa razão, utiliza-se a cláusula use of proceeds[10], que pune a destinação incorreta com o vencimento antecipado do mútuo.

4.6 Aspectos societários da relação pós-mútuo conversível

O objetivo de quem investe quase nunca é permanecer sócio. A meta é comprar as ações ou quotas a um valor baixo e depois revendê-las quando estiverem na alta. Desse modo, a previsão de eventos de liquidez permite que o investidor realize mais rápido o objetivo dele. Alguns exemplos dessas ocasiões são a venda da empresa, a incorporação, a oferta de ações na bolsa etc.

Contudo, uma vez que esse credor passe a compor a sociedade, é necessário redigir um bom acordo de sócios, para que as relações corram com segurança. O voto afirmativo, a eleição em separado de membros do conselho de administração ou a previsão de mecanismos anti-diluição são itens bastante comuns nesses acordos. A cláusula de lock up, vedando por certo período a saída de um sócio, também é usual. Do mesmo modo, merece menção a cláusula de non compete, vedando a concorrência por determinado tempo.

4.5 Aspectos tributários

Normalmente, a emissão de novas ações ou quotas é feita por um valor maior que o nominal (valor total do capital social/n° de quotas). Esse sobrevalor recebe o nome de ágio. Nas sociedades limitadas, essa quantia sofre tributação de 34%, somados IRPJ e CSLL. Considerando o possível custo, tornou-se comum a cláusula de transformação em sociedade anônima no mútuo conversível, já que nas companhias optantes pelo lucro real o ágio está isento de tributação[11].

5.    Conclusão

A busca por fontes de financiamento é fundamental para qualquer negócio, mas sobretudo para aqueles que oferecem produtos ou serviços inovadores, nos quais o mercado tradicional põe pouca confiança. O mútuo conversível foi uma solução para esse problema.

Apesar de trazer enormes vantagens, é necessário atentar-se para os riscos que esse contrato traz consigo, sobretudo no tocante à possibilidade da caracterização da sociedade de fato. Por isso, o instrumento contratual deve amoldar-se às circunstâncias do caso concreto. Dessa forma, a startup alcança a expansão, e os investidores lucram com a venda das participações que adquiriram. Uma mão lava a outra.


[1] https://www.insper.edu.br/noticias/o-que-e-break-even-point-e-como-ele-e-calculado/

[2] Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência – 22. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019 p.256

[4] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.93-94).

[5] (TJSP;  Apelação Cível 1113983-92.2016.8.26.0100; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 36ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/05/2022; Data de Registro: 01/06/2022)

[6] (TJSP;  Apelação Cível 1012467-48.2018.8.26.0071; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Bauru – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/08/2021; Data de Registro: 25/08/2021)

[7] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.90

[8] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.89-90.

[9] Por meio dos covenants, a parte investida assume o dever de realizar determinadas obrigações de prestação de informações, de exibição de papéis e documentos da sociedade e de seus negócios, de contratar conforme o use of proceeds, bem como de não contratar senão de acordo com as autorizações dadas pela sociedade investidora/mutuante (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.87).

[10] É por meio da cláusula de vinculação do “uso das receitas”, que o mutuante, em acordo de vontades com a mutuária/investida, contrata a destinação do aporte para determinado(s) fim(ns) do planejamento estratégico da sociedade (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.82).

[11]ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.67-68.


André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.

Ronan Santos é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, graduado em Direito pelo Centro Universitário IESB, em Brasília, e pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

Matheus Ferraz é advogado inscrito na OAB/PE, graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, e pós-graduando em Direito Empresarial.


Ativos virtuais e finanças tokenizadas

Banco Central vai regular o mercado de criptomoedas e outros criptoativos

Leandro Oliveira Leite

Em junho de 2023[1], o Banco Central do Brasil assumiu a competência para regular o mercado de prestação de serviço de ativos virtuais, uma decisão que reflete seu papel essencial em zelar pela estabilidade e integridade do sistema financeiro. Essa regulação tem o objetivo de garantir a prestação adequada dos serviços de ativos virtuais, promover a livre concorrência e proteger os consumidores e usuários desse mercado.

O Banco Central está em processo de formulação e apresentação de um modelo de regulação para o mercado de criptoativos, planejando realizar consultas públicas no segundo semestre deste ano para receber opiniões de empresas, especialistas, consultores e do público em geral. Essa regulamentação será baseada em diretrizes importantes para garantir a prestação adequada de serviços de criptoativos. O objetivo é alinhar o Brasil às recomendações internacionais relacionadas ao tema, reconhecendo as oportunidades de inovação que esses ativos virtuais oferecem, incluindo descentralização, redução de custos de negociação, transparência e integração entre diferentes tipos de produtos e serviços.

A evolução constante dos ativos virtuais e tecnologias subjacentes exige uma atuação transversal e coordenada entre diversos reguladores, como a Secretaria da Receita Federal e a Comissão de Valores Mobiliários. As empresas já presentes no mercado terão pelo menos seis meses para se adequarem à legislação e regulamentação vigente.

Nos últimos anos, o mercado de criptomoedas e outros criptoativos tem ganhado uma atenção notável. Esses ativos financeiros virtuais, suportados por algoritmos criptográficos e uma rede descentralizada utilizando tecnologia de ledger distribuída (DLT)[2], atraíram a curiosidade de investidores, entusiastas e até mesmo governos ao redor do mundo.

A ideia de uma moeda ou ativo financeiro digital, sem representação física, pode parecer complexa à primeira vista. Porém, com a popularização da tecnologia blockchain[3], uma base de dados descentralizada que garante a segurança e a integridade das informações, a ideia de ativos virtuais ganhou espaço e interesse entre o público.

A rede descentralizada, construída em blockchain, é composta por milhares de computadores que armazenam as informações e garantem a veracidade das transações. Esse modelo torna o sistema resistente a fraudes e elimina a necessidade de uma entidade centralizadora, como um banco ou uma autoridade reguladora, para intermediar as operações. A criptografia é a base da segurança dessa rede, garantindo que as informações estejam protegidas e invioláveis.

Dentro do conceito de criptoativos, encontramos as criptomoedas, como o Bitcoin, Ethereum, entre outras. No entanto, é importante ressaltar que os criptoativos vão além das criptomoedas. Inclua também como NFTs (Non-fungible tokens), que representam ativos únicos e indivisíveis, como obras de arte digital, colecionáveis ​​e outros itens exclusivos.

Apesar de toda a inovação e potencial revolucionário, os criptoativos carregam desafios e riscos. A volatilidade é um dos principais pontos de preocupação para os investidores. O valor de uma criptomoeda pode variar enormemente em curtos períodos de tempo, causando perdas para alguns investidores.

A regulação do Banco Central deve partir de diretrizes que levem em consideração as peculiaridades dos criptoativos, a natureza descentralizada das operações e os envolvidos. A consulta pública sobre o tema permitirá que empresas e especialistas contribuam com suas opiniões e experiências para a criação de um ambiente regulatório mais seguro e adequado.

A regulamentação de criptoativos pelo Banco Central vai ao encontro de recomendações internacionais e visa fomentar a inovação, eficiência e inclusão financeira no Brasil. Com a competência de regulador definido em lei, o Banco Central acompanhará o desenvolvimento desse mercado, buscando sempre conciliar a inovação tecnológica com a segurança e estabilidade do sistema financeiro.

Por fim, é importante destacar que criptoativos não devem ser confundidos com a criação do CBDC (Central Bank Digital Currency), conhecido como Real Digital, outra tecnologia que também tem o potencial de promover a inclusão financeira, reduzir custos e aumentar a eficiência das transações financeiras no país. O real digital será uma moeda digital pertencente ao próprio Banco Central, com características distintas dos criptoativos. O “Boxe 9 – Real Digital: uma plataforma para as finanças” do Relatório de Economia Bancária 2022[4] destaca que essas iniciativas fazem parte de uma tendência global de digitalização do dinheiro e que o Banco Central deve atuar como regulador para garantir a plataforma de segurança e a estabilidade financeira.

Acrescenta ainda o relatório que, como mecanismo facilitador da inovação nos mercados financeiros, as plataformas das moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC) permitem a incorporação de novas tecnologias e novos modelos de negócios com potencial para atender à demanda da população por meios nativamente digitais de liquidação, similares aos disponíveis no ecossistema de criptoativos. Uma tendência, favorecida pelas tecnologias que dão suporte ao ecossistema de criptoativos, é a tokenização[5] de ativos. “A disseminação da tokenização tem o potencial de gerar ganhos concretos em acessibilidade a ativos e promover maior eficiência em suas transações. Em geral, os ativos tokenizados podem ser transferidos facilmente, de forma fracionária e em segundos. Eles podem ser usados em aplicações descentralizadas e armazenados em contratos inteligentes (smart contracts), que são executados automaticamente quando condições e termos predeterminados são atendidos”.

Em resumo, a regulação dos criptoativos pelo Banco Central é um passo importante para a consolidação desse mercado no Brasil. A regulação adequada visa equilibrar a inovação tecnológica com a proteção dos consumidores e a estabilidade financeira, tornando o ambiente de negócios mais seguro e propício para o desenvolvimento dessa classe promissora de ativos financeiros virtuais. A regulamentação busca garantir que os criptoativos possam contribuir de forma positiva para a economia brasileira e o bem-estar dos cidadãos, impulsionando o país em direção a uma economia mais digital e inclusiva.

Referências:

Banco Central prepara Consultas Públicas sobre regulamentação de criptoativos:

https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/705/noticia

Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11563.htm?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Banco-Central-prepara-Consultas-Publicas-sobre-regulamentacao-de-criptoativos

Relatório de Economia Bancária 2022:

https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/reb2022p.pdf


[1]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11563.htm?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Banco-Central-prepara-Consultas-Publicas-sobre-regulamentacao-de-criptoativos

[2] A tecnologia de contabilidade distribuída é usada em criptomoedas como bitcoin. DLT é usado para manter um banco de dados de todas as transações que estão acontecendo em um mercado e permitir que elas sejam vistas simultaneamente por todos os participantes.

[3] Blockchain pode ser traduzida como corrente de blocos. De uma forma simples, trata-se de uma tecnologia que agrupa um conjunto de informações que se conectam por meio de criptografia. Assim, transações financeiras e outras operações podem ser feitas de forma segura.

[4] https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/reb2022p.pdf

[5] Tokenizar um bem ou serviço nada mais é do reproduzir de forma digital esse produto – seja a ação de uma empresa, um título de dívida, obra de arte etc -, conferindo benefícios, valor e características originais associados a ele, inscrito em uma determinada rede blockchain.

O standard probatório para condenação de cartéis: a aplicabilidade do stare decisis ao direito administrativo brasileiro e a esperança de um aumento da previsibilidade dos julgamentos do Cade

Polyanna Vilanova & Henrique Muniz

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) é o único órgão do Poder Executivo com competência para condenar agentes econômicos pela prática de cartel, isto é, consiste na única e última instância de todo o Poder Executivo competente para determinar o pagamento de multas e outras penas em virtude da prática desse tipo de ilícito. Não obstante, ainda que as decisões do Conselho possam ser objeto de ação anulatória judicial, identifica-se uma crescente deferência do Poder Judiciário às decisões do Cade, haja vista a expertise técnica deste último e a necessidade de equilíbrio entre os poderes constituídos.

Tendo em conta a importância da atuação do Cade e a capacidade de produção de efeitos das suas decisões na sociedade, é possível se afirmar que a autarquia antitruste se preocupa com a unificação da sua jurisprudência quanto ao padrão de prova necessário para a condenação de cartéis? Identifica-se certa previsibilidade nas decisões sobre o tema?

Essa discussão possui extrema relevância, visto que, em casos de cartel, a comprovação do acordo colusivo entre concorrentes é etapa essencial para a configuração do ilícito investigado, uma vez que não há extenso debate sobre a ilicitude da prática em razão do entendimento majoritário no direito antitruste de que cartéis são ilícitos per se[1].

Logo, a valoração do conjunto probatório disponível nos autos (o valor conferido pelo julgador a cada tipo de prova no caso concreto) e o standard probatório (padrão de prova apto a ensejar a condenação em razão da referida infração à ordem econômica) não são aspectos triviais da análise do Cade em processos administrativos envolvendo cartéis.

Isso porque o sistema brasileiro adota o livre convencimento motivado, também denominado de “persuasão racional”, “segundo o qual o julgador deve apreciar as provas para formar seu convencimento sobre a veracidade dos fatos, atendo-se àquelas que julgar mais convincentes[2]”, ainda que limitado pelo dever de motivação clara e racional de seu convencimento[3].

Dessa forma, o padrão probatório se relaciona intimamente ao sistema de valoração das provas e à subjetividade (ainda que motivada) dos julgadores, o que se soma às oscilações decorrentes da natural alteração na composição dos órgãos colegiados encarregados de proferir decisões, como é o caso do Tribunal Administrativo do Cade.

Muito embora a jurisprudência do Cade seja uníssona, independentemente das diversas composições do seu Tribunal, quanto à necessidade de um conjunto probatório “suficientemente forte e robusto” para condenação de cartéis, conforme extensa análise de casos do Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência[4], as controvérsias surgem quando se está diante de um acervo probatório formado apenas por provas indiretas ou unilaterais, resultando em diferentes posicionamentos quanto às hipóteses em que as provas indiciárias e circunstanciais são capazes, ainda que de forma indireta, de constituir um conjunto suficientemente robusto para gerar o convencimento por parte da autoridade julgadora no sentido da configuração do ilícito.

A discussão acerca da possibilidade de utilização de provas indiretas para condenações no âmbito do Cade é relativamente recente e remonta à década passada[5].

O precedente considerado pela doutrina como leading case no uso de conjunto probatório exclusivo de provas indiretas para formação de convicção de condenação é a decisão do Processo Administrativo nº 08012.001273/2010-24, em que o colegiado à época condenou, por unanimidade, o cartel dos aquecedores no ano de 2015.

De lá para cá, são recorrentes as discussões acerca do padrão probatório e provas indiretas nos julgamentos do Cade em virtude da ausência de previsão legal de atribuição de um valor determinado a uma prova, haja vista a adoção do sistema do livre convencimento motivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, os julgamentos desses casos recorrentemente dividem opiniões, impossibilitando a identificação de um posicionamento uniformizado capaz de gerar previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse cenário, a possibilidade de se identificar valorações semelhantes a provas parecidas em casos diferentes ganha extrema relevância para garantir a segurança jurídica aos investigados por supostas práticas anticompetitivas. Isto é, a adoção justificada de critérios já utilizados em outros julgados, tal como ocorre no sistema Common Law de vinculação pelos precedentes, se faz necessária para conferir consistência jurisprudencial à autarquia antitruste e para gerar certa previsibilidade para o julgamento de um conjunto probatório.

A incorporação de institutos de origem anglo-saxã permeados pelo sistema de Common Law ao direito administrativo brasileiro foi estabelecida no ordenamento jurídico nacional. Inclusive, tais institutos já teriam aplicabilidade, em razão do disposto no artigo 927, I a V, do CPC. Contudo, tal aplicabilidade fica evidente com a previsão do artigo 30 da Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, tendo como objetivo realizar o trespasse da stare decisis às decisões administrativas.

A atual composição do Tribunal Administrativo do Cade parece estar atenta a esse debate e à necessidade de gerar previsibilidade e segurança jurídica, bem como de preservar a isonomia no tratamento dos administrados (treat like cases alike), conferindo observância às decisões proferidas (backward-looking) e constituindo os futuros precedentes (fooward-looking), principalmente no que se refere ao padrão probatório de condenações de cartéis.

Na sessão ordinária de julgamento (“SOJ”) do Cade realizada no dia 08.03.2023, ocorreu um extenso debate acerca da valoração das provas indiretas e unilaterais, bem como da importância de o Conselho reafirmar e unificar sua jurisprudência sobre o standard probatório necessário para condenação por prática de cartel durante o julgamento do Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78, instaurado para apurar suposta prática de cartel no mercado nacional de sistemas térmicos automotivos (módulos de arrefecimento do motor – Engine Cooling Modules – “ECM”, radiadores, condensadores; sistemas de aquecimento, ventilação e ar-condicionado – Heating, Ventilation and Air conditioning – “HVAC”).

No caso do cartel de sistemas térmicos automotivos em comento, a constatação da ocorrência do ilícito derivou da assunção de culpa e das informações e dos documentos extraídos de acordos administrativos (Acordos de Leniência – “ALs” – e Termos de Compromisso de Cessação de Conduta – “TCCs”) celebrados entre o Cade e parte das empresas e pessoas físicas representadas, contra as quais a investigação foi suspensa. O julgamento prosseguiu em face de duas empresas e pessoas físicas não administradoras ligadas a tais empresas.

Em sua Nota Técnica[6], a Superintendência Geral do Cade (“SG/Cade”) recomendou que as empresas representadas fossem condenadas tendo em vista que constariam “nos autos 22 evidências de sua participação na conduta”, que constituiriam provas diretas do conluio. O Parecer[7] do Ministério Público Federal junto ao Cade (“MPF/Cade”) também defendeu a condenação por entender que o conjunto probatório seria suficiente à demonstração da adesão das empresas ao acordo anticompetitivo. Já a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (“PFE/Cade”) apresentou divergência em relação à sugestão de condenação pela SG/Cade e pelo MPF/Cade, recomendando o arquivamento em relação às representadas por entender que o conjunto probatório reunido nos autos seria insuficiente para demonstrar a participação das empresas no conluio.

Diante das divergências apresentadas, o Presidente Alexandre Cordeiro suscitou a necessidade de aprofundamento da análise do conjunto probatório sob a ótica de uma revisão comparativa da jurisprudência do Tribunal do Cade acerca do padrão probatório para condenação de cartéis.

Durante seu voto em sessão, o Presidente ponderou que “é imperativa a observância dos limites à utilização de tais provas (indiretas), uma vez que podem ser ambíguas e, portanto, não levar à inequívoca certeza da participação do representado no ilícito”. Complementou, ainda, que “é imprescindível que sejam apresentadas provas suficientemente fortes e robustas e isso consta, inclusive, no nosso Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência. Justamente, provas robustas da existência do cartel e, não menos importante, que tais provas impliquem, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados[8]”.

Além disso, fez considerações sobre a importância do respeito ao princípio do in dubio pro reo e sustentou que os “Acordos de Leniência e Compromissos de Cessação firmados por participantes das infrações investigadas constituem importante fonte de informação sobre a existência, participação e duração de cartéis. Ocorre que os relatos de tais acordos necessitam de documentos que os amparem, não sendo, por si só, uma sentença condenatória, sob pena de ensejar condenações sem lastro e um suporte condenatório adequado[9]”.

Por fim, após análise detalhada de precedentes das cortes superiores, do Tribunal do Cade e dos guias produzidos pela autarquia, bem como dos autos, o Presidente conclui pelo arquivamento devido à ausência de suporte probatório suficiente para condenação por qualquer tipo de prática anticoncorrencial.

É válido destacar, também, o posicionamento do Conselheiro Luiz Hoffmann, que asseverou em seu voto que “é indispensável que as provas indiretas sejam analisadas de forma sistemática, considerando o conjunto probatório como um todo, assim como sustenta o Guia de Combate à Cartéis já mencionado e também as publicações que a própria OCDE tem nesse sentido”. O Conselheiro acompanhou o voto-vista do Presidente ao concluir que “além de as provas indiretas derivarem de apenas uma única fonte, elas não possuem conteúdo anticompetitivo visível para todos[10]”.

Já o Conselheiro Gustavo Lima teceu breves comentários acerca da necessidade de existência de um padrão de qualidade na análise de provas para condenação de um cartel. Além disso, destacou que, a partir do longo aprendizado adquirido a partir da experiência do Poder Judiciário com relação ao instituto da colaboração premiada, faz-se imprescindível a existência de corroboração dos relatos dos Lenientes, independentemente de se tratar de provas indiretas ou diretas.

Do seu voto em sessão, extrai-se importante declaração sobre a importância da segurança jurídica e da previsibilidade dos julgamentos do Cade. Vejamos:

“Onde o Cade deve colocar o seu ‘sarrafo’ em termos de standard probatório? Porque nós somos única e última instância de todo o Poder Executivo e as nossas decisões somente podem ser reformadas pelo Poder Judiciário e ainda assim o Judiciário o faz com muito comedimento. Mas somos a única instância do Poder Executivo que declara se houve ou não um cartel em determinado caso. Por isso, temos que ter a máxima responsabilidade em fazer tal afirmação. Nós temos que ter um padrão de qualidade de prova que quando o Cade afirma que houve um cartel se saiba que um determinado padrão de qualidade foi atingido (…) Então, ao afirmarmos que uma empresa participou ou não de um cartel, tem que haver uma segurança para o mercado, para o Poder Judiciário e para a sociedade, de que determinados requisitos mínimos geraram o convencimento[11].”

Sob outra perspectiva, o Conselheiro Victor Fernandes mencionou o importante debate acerca da força probatória de provas indiretas de comunicação, consoante entendimento da OCDE[12], a fim de explicar que a natureza direta ou indireta da prova possui repercussões para a oponibilidade da defesa das empresas investigadas, visto que, de um lado, a prova direta geraria o ônus de comprovação de inocorrência do fato, e, de outro, a prova indireta geraria o ônus de explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para o fato.

No que tange ao caso em comento, o Conselheiro defendeu que a defesa das empresas representadas trouxe explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para os fatos relatados nas provas indiretas (i. e. a relação comercial com a empresa concorrente e a ausência de comercialização do produto à época do cartel), que, por sua vez, não teriam o condão de comprovar a participação da empresa no conluio.

Dessa forma, o Plenário do Cade, por maioria, determinou o arquivamento do processo administrativo em face das empresas representadas, nos termos do voto do Presidente do Cade, ficando vencidos o Conselheiro Relator Sérgio Ravagnani e o Conselheiro Luis Braido.

Muito embora o caso do cartel de sistemas térmicos automotivos tenha sido, ao que nos parece, o julgamento mais emblemático do ano de 2023 em relação à temática do padrão de prova necessário para condenações de cartéis e à garantia de previsibilidade e segurança jurídica ao administrado, outro caso interessante também pode ser destacado.

No caso do cartel internacional de cabos subterrâneos e submarinos[13], o Tribunal do Cade reconheceu a necessidade de adotar o mesmo padrão probatório no processo administrativo originário e no processo “filhote”, de forma a garantir a isonomia entre todos os representados relacionados ao cartel. Dessa forma, determinou o arquivamento do processo filhote em relação a algumas pessoas físicas, visto que, no processo originário, considerou-se que evidências análogas, isto é, simples menções das iniciais do investigado em atas de reuniões, não seriam suficientes para indicar a participação das pessoas jurídicas que eles representavam em um cartel, esses indícios poderiam sugerir, no máximo, a ocorrência de condutas menos gravosas, como troca de informações sensíveis, que já estariam prescritas.

Nesse sentido, a partir dos posicionamentos dos Conselheiros da atual formação do Tribunal e dos precedentes firmados pelo colegiado em 2023, observa-se uma verdadeira preocupação com a uniformização da jurisprudência do Cade acerca do standard probatório para condenação de cartéis, principalmente na análise de conjuntos probatórios formados por provas indiretas, a fim de garantir segurança jurídica e previsibilidade às decisões da autarquia antitruste.

Por outro lado, com o término do mandato de 4 dos 6 Conselheiros do Cade ainda no ano de 2023, a comunidade antitruste fica na expectativa se a futura formação estará atenta à discussão e aplicará “valorações semelhantes a provas parecidas em diferentes casos” futuros de acordo com a jurisprudência do Conselho, bem como se os elementos classificados no “Guia de Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade” para suficiência do conjunto probatório serão respeitados, o que representaria um importante passo para a solidificação do stare decisis nas decisões administrativas da autarquia antitruste brasileira.


[1] DA SILVEIRA, Paulo Burnier; LACERDA, João Felipe Aranha. Valoração e padrão de prova em processos administrativos de cartel. Revista do Ibrac: São Paulo, 2018, vol. 24, n. 1- 2018, p. 70.

[2] Op. cit., p. 74.

[3] Cf. art. 79, inciso I, da Lei de Defesa da Concorrência e dos incisos I e II c/c § 1º, do art. 50, da Lei nº 9.784/99 (“Lei do Processo Administrativo Federal”).

[4] CADE. Guia de recomendações probatórias para propostas de acordos de leniência com o Cade. 2021. Disponível em:  https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-recomendacoes-probatorias-para-proposta-de-acordo-de-leniencia-com-o-Cade.pdf.

[5] Vide Processo Administrativo nº 08012.004039/2001-68 (cartel do pão), julgado em 22.05.2013.

[6] Nota Técnica SG/Cade nº 114/2021 (SEI 0989284).

[7] Parecer MPF/Cade nº 3/2022 (SEI 1071736).

[8] Vide 1h06min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfNEoL4Y4AM . Acesso em 1 ago. 2023.

[9] Vide 1h09min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[10] Vide 1h38min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento. 

[11] Vide 1h45min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[12] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Prosecuting Cartels without Direct Evidence, 2006, p. 10 (“communication evidence is evidence that cartel operators met or otherwise communicated, but does not describe the substance of their communications”).

[13] Processo Administrativo nº 08700.008576/2012-81. Julgado em 08.02.2023.


Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

Autorregulação regulada: o trade-off entre o custo regulatório e a liberdade econômica

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A regulação econômica normativa desenvolvida pelas nações, inclusive o Brasil, se basearam na utilização, por parte das agências reguladoras, de métodos para fazer com que o setor que fosse caracterizado por falhas de mercado intransponíveis se comportasse em “concorrência perfeita”.

Em um mundo onde não houvesse assimetria de informação e a falha de mercado fosse o monopólio natural, a literatura aponta que o regulador deveria ou exigir preços iguais ao custo marginal ou exigir preços iguais ao custo médio. No primeiro modelo, o regulador subsidiaria o regulado, pois na condição de p=cmg em monopólio natural os lucros do monopolista seriam negativos, e, no segundo modelo, não haveria subsídio, mas os preços praticados não seriam os de concorrência perfeita.

Conquanto estes modelos sejam boas estruturas para demonstrar como a intervenção estatal via regulação tende a funcionar em mercados em monopólios naturais, a existência da falha de mercado denominada assimetria de informação na economia em geral impossibilita que o regulador não seja capaz de identificar a estrutura de custos dos regulados e decidir por fixar o preço igual ao custo marginal ou ao custo médio.

Este fato acontece porque o regulado conhece muito melhor o seu negócio detém informações estratégicas que o regulador não possui (estrutura de custos), o que impede que a política regulatória a ser alcançada seja a solução definida na teoria econômica como equilíbrio de primeiro melhor (first-best).

Portanto, imaginava-se que bastava ter poder de enforcement para que as empresas reguladas revelassem as informações necessárias para que o equilíbrio de primeiro melhor fosse obtido. No entanto, muito rapidamente os aplicadores da regulação econômica perceberam que a exigência de informações dos regulados não seria uma estratégia possível para se obter os melhores resultados regulatórios, vez que os regulados não revelariam as suas informações privadas se não houvesse incentivos para isso.

Foi através desta percepção que a regulação econômica desenvolveu outros modelos de regulação, dentre os quais pode-se citar o modelo de regulação por incentivos. A ideia básica era fazer com que o regulado revelasse as suas informações sem que estas necessitassem ser exigidas pela autoridade, assim como faz o empregador quando remunera o seu empregado em duas partes, uma fixa e outra variável. A remuneração variável possibilita que o empregador identifique o esforço do empregado, não necessitando exigir esforço de antemão.

No mundo da regulação econômica normativa, o exemplo de mecanismo de incentivos mais utilizado é o do preço teto (price-cap), instrumento muito utilizado na regulação do setor elétrico, por exemplo. Com esse método, o regulador contrata com os regulados tarifas de serviços públicos cada vez mais baixas à medida que o contrato avança no tempo. Neste caso, mesmo que o regulador não saiba a estrutura de custos, a redução paulatina da tarifa ao longo do tempo vai exigir aumentos de produtividade por parte do regulado, além de gerar tarifas cada vez menores para os usuários.

Em que pese não sejam perfeitos os regimes regulatórios por incentivos e outros que surgiram ao longo do tempo, o que ficou claro da experiência com a regulação econômica normativa é que nenhum regulado revelará as suas informações privadas se não for estimulado a fazer isso e este estímulo está diretamente ligado com as condições mercadológicas com as quais estes se defrontam.

Na esteira das inovações regulatórias e com o intuito de minimizar a intervenção estatal é que surgiram os modelos de co-regulação e de autorregulação regulada. Em ambos os casos, as empresas privadas elaboram regras regulatórias e as controlam privadamente, sendo que na autorregulação regulada as regras, embora feitas pelo mercado, mas têm que ser chanceladas pelo Estado.

Na prática, estas duas formas de regulação trabalham com a cooperação das empresas privadas para informarem todas as características dos seus mercados, a fim de que o Estado tenha condições de apresentar os melhores resultados para a sociedade (ex. preço igual a custo marginal).

O fundamento básico destas novas teorias de regulação é a de que o Estado deve se limitar a fazer cumprir a legislação existente, de maneira a punir as empresas que avançarem sobre todas as infrações que já estão amplamente tipificadas nas leis administrativas e penais, e não dizer como as empresas devem se comportar nos mercados. O Estado não deve guiar o mercado, mas sim garantir o equilíbrio desse mercado por meio dos instrumentos legais existentes.

Esta reflexão faz lembrar a forma como a defesa da concorrência é aplicada no Brasil. Atualmente, na égide da Lei nº 12.529/2011, o mandato da autoridade brasileira de defesa da concorrência (CADE) cobre uma função preventiva (controle de estruturas) e uma função coercitiva (análise de condutas). A função preventiva permite o controle do aumento da concentração de mercado a fim de evitar condutas anticompetitivas e a função coercitiva permite a ação coibidora das infrações à ordem econômica já “praticadas”.

Obviamente que a existência do controle de estruturas não é um consenso entre todas as linhas teóricas jurídicas e econômicas dedicadas a defesa da concorrência. Em apertada síntese, os teóricos do paradigma estrutura conduta desempenho (ECD) entendem que o controle de estruturas evita condutas de forma eficiente, ao passo que a escola de Chicago entende que a concentração de mercado gera eficiências e, em grande parte dos casos, não deve ser desestimulada.

Assim também parece ser a discussão entre os adeptos da regulação econômica normativa e os adeptos da corregulação e da autorregulação regulada. De um lado, acredita-se na intervenção estatal para evitar efeitos indesejáveis do ponto de vista regulatório e concorrencial, de outro acredita-se que estes efeitos indesejáveis, se existirem, devem ser combatidos pelo Estado fora da natureza empresarial.

Na verdade, a escolha entre a regulação econômica normativa e a autorregulação envolve um trade off nada trivial para o Estado e a ausência de trivialidade está associada com a falha de mercado exposta no início deste artigo, qual seja: a assimetria de informações.

Por um lado, o Estado abre mão do custo regulatório e dá a liberdade desejada para o setor privado, mas por outro abre mão dos mecanismos de incentivos para obter informações a respeito do mercado. É importante repisar que as empresas privadas não revelam as suas informações estratégicas, a menos que vejam oportunidades de negócios ou que sejam induzidas as revelar.

Neste sentido, ao abrir mão da utilização de mecanismos regulatórios para obter informações relevantes das empresas, atuando de forma preventiva, o Estado abre mão de instrumentos para o combate coercitivo, sobretudo em caso de existência de práticas anticompetitivas.

Advogar no CADE

A importância da atuação do advogado e da advogada no processo administrativo sancionador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)

Mauro Grinberg

Muito já foi escrito sobre a função do advogado e da advogada, sobretudo em matéria judicial, mas menos com relação às suas atuações nos processos administrativos. Como já foi por este autor escrito anteriormente, a presença do advogado e da advogada no processo administrativo é tão importante quanto no processo judicial. Deve desde logo ser apresentado um esclarecimento terminológico. Quando o autor fala de processo administrativo, inclui aqui todas as suas fases, inclusive os procedimentos e inquéritos.

Este autor já escreveu[1] sobre o § 1º do art. 123 do Regimento Interno do Cade (RiCade): “aos advogados e ao representante legal da empresa é facultado requerer que conste de ata suas presenças na sessão de julgamento, podendo prestar esclarecimentos em matéria de fato, quando assim o Plenário do Tribunal entender necessário”. Segundo aquele artigo, não há motivo para o Plenário do Tribunal ter que aprovar a participação do advogado e/ou da advogada face à redação do art. 7º, X, da Lei 8.906/1994 (denominada Estatuto da Advocacia – EA)[2]: “São direitos dos advogados (…) usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão”. Assim, o direito de participação do advogado e/ou da advogada está definido em lei, obviamente superior hierarquicamente ao RiCade.

Faz-se, todavia, necessário completar o rol dos direitos dos advogados, sobretudo no processo administrativo sancionador do CADE, seguindo por lembrar que, de acordo com o art. 133 da Constituição Federal (CF), “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Já o § 2º-A do art. 2º[3] do EA alarga o conceito para incluir os processos administrativos: “No processo administrativo contribui com a postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e os seus atos constituem múnus público”.

O que os advogados e advogadas sempre entenderam – que a postulação em nome de clientes contribuía para as decisões, inclusive nos processos administrativos –, agora é lei. O binômio acusação/defesa, levando a decisão equidistante, é agora texto legal. Faz-se extremamente importante que os advogados e advogadas sejam vistos e vistas como participantes diretos das decisões por meio de suas postulações em nome de clientes. Além disso, sendo múnus – ou seja, dever – público a atuação do advogado e da advogada, fica claro que o advogado e a advogada estão, ao exercer as postulações em nome de clientes, participando efetivamente da administração da justiça administrativa. Desta forma, o cumprimento desse ônus beneficia a própria justiça administrativa e não apenas o cliente. Esta constatação é muito importante face ao § único do art. 1º da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

Aliás, sua obrigação é tão importante que, se e quando o advogado ou a advogada renunciam ao seu mandato, continuam a representar o cliente durante os dez dias seguintes à notificação da renúncia, salvo se for substituído antes do decurso do prazo, de acordo com o § 3º do art. 5º do EA, idêntico ao § 2º do art. 112 do Código de Processo Civil (CPC).

Prosseguindo, deve ser esclarecido que, de acordo com o art. 6º do EA, “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público (…)”. O princípio se coaduna perfeitamente com o que foi anteriormente posto, pois o advogado e/ou a advogada não estão sujeitos a determinações das autoridades, a não ser no que seja ligado diretamente ao funcionamento da máquina administrativa. Ou seja, a autoridade não deve ditar ao advogado e/ou à advogada o que devem fazer, embora isto não possa servir de justificativa para a soberba do advogado ou da advogada.

Não se deve aqui alongar a lista de direitos com os que tratam do acesso de advogados e advogadas aos autos, dado o fato dos processos administrativos no âmbito do CADE serem eletrônicos e não mais serem tratados em meio físico. Ressalva deve ser feita a autos findos, conforme consta do inciso XIII do art. 7º do EA[4], idêntico ao art. 107, I, do CPC: “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos as sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos”.

Uma atenção especial deve ser devotada aos documentos e outras provas sujeitos a sigilo legal ou conferido pela autoridade. Como ninguém pode ser acusado (e eventualmente condenado) por provas secretas, ao advogado ou advogada da parte acusada é conferido o direito – e mais do que isso o dever – de conhecer tais provas e, se for o caso, ter a possibilidade de impugná-las. Joseph K, o personagem de Franz Kafka em “O Processo”, deve permanecer na ficção. Mesmo aquelas provas não expressamente utilizadas pelas autoridades nas suas decisões obviamente sofrem influência do material não utilizado, eis que a sua mera leitura de alguma forma pode subjetivamente exercer algum tipo de influência sobre a pessoa e desta forma fazer parte do processo decisório, ainda que indireta e/ou involuntariamente.

Esta peroração legislativa tem o objetivo de situar o advogado e a advogada no processo administrativo sancionatório do CADE. Quando ele ou ela se dirigem a uma autoridade, trata-se não só do exercício de uma função que a lei a ele e ela confere mas, mais do que isso, um dever. Este dever tem o objetivo – estabelecido em lei – de colaborar com a prestação jurisdicional.

Deve ser dada ênfase – até por sucessivos debates em torno deste tema – ao texto da alínea “c” do inciso VII do art. 7º do EA, relativa ao direito de “ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado”. É claro que o objetivo da lei não pode ser a anarquia generalizada, razão pela qual deve ser reconhecido também o direito da autoridade de estabelecer determinadas regras (incluída aqui a possibilidade de marcação de dia e hora), embora tais regras não possam servir de barreira à atuação de advogados e advogadas. Aliás, aqui deve ser aplicado o princípio da razoabilidade, contido no art. 2º da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo – LPA). Com referência a algumas reclamações de dificuldades – reais ou não – para marcações de reuniões, deve ser lembrado que o servidor público serve o público, no caso dos processos administrativos, atendendo seus advogados e advogadas.

Aliás, os princípios do contraditório e da ampla defesa previstos no art. 5º, LV, da CF e no art. 2º da LPA só podem ser aplicados se houver amplo acesso dos advogados, lembrando-se que, particularmente no processo administrativo sancionador do Cade, a parte acusadora é também encarregada da decisão. Se o advogado ou a advogada não tem acesso a tudo, o equilíbrio entre acusação e defesa – que, de resto, já é precário ante a confusão de acusação e decisão – resta rompido.

Mas a autoridade pode também fazer suas exigências, a começar pela demanda de escrita clara, correta e direta das petições, nas quais os pedidos e seus fundamentos devem resultar logo da primeira leitura; ou seja, é importante que advogados e advogadas digam exatamente o que pedem e por que pedem, já que não compete à autoridade intuir estes pontos. Algumas obrigações contidas nos incisos I a III do art. 77 do CPC: “expor os fatos em juízo conforme a verdade”, “não formular pretensão ou apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento” e “não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito”.

Através da observação das posturas acima referidas é possível atingir alguma forma de equilíbrio nos processos administrativos sancionatórios do Cade, sempre tendo em vista a importância da atuação do advogado e da advogada, que cumprem o dever público de ajudar a construir as decisões administrativas.

Mauro Grinberg foi (i) Conselheiro do Cade, (ii) Procurador da Fazenda Nacional (hoje aposentado), (iii) Presidente do Ibrac (do qual é hoje Conselheiro) e (iv) Professor de Direito Comercial da Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é Membro do IASP e da ABA, sendo advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil.


[1] “Os Advogados nas sessões do CADE”, Web Advocacy, 20/06/2022

[2] Com a redação dada pelo art. 2º da Lei 14.365/2022

[3] Inserido pelo art. 2º da Lei 14.365/2022

[4] Com a redação dada pelo art. 2º da Lei 13.793/2019

Notícias do Norte: as recentes batalhas do antitruste nos Estados Unidos

Lucia Helena Salgado

Nos Estados Unidos dos anos Joe Biden, a FTC (Federal Trade Commission), sob a condução de Lina Khan, vem procurando resgatar o espírito original do antitruste – a defesa do processo concorrencial, combatendo a concentração do poder econômico. A agenda de trabalho da autoridade incorpora hoje a reflexão de professores de Economia e Direito – como Fiona Scott-Morton, Carl Shapiro, Robert Pitofsky e Tim Wu – que há anos vêm apontando as falácias da doutrina borkiana que há quatro décadas domina as decisões antitruste no Judiciário estadunidense.

Em estudos acadêmicos, debates públicos e investigações protagonizadas pelo Congresso, esses professores vêm alertando há tempos: é preciso retornar às origens do antitruste na América, quando há um século se percebeu que a onda de concentração e conglomeração industrial corroía as bases da democracia e os valores do próprio capitalismo: a liberdade de empreender, de escolher, de deter propriedade.

O lendário Juiz Hand, integrante da Suprema Corte norte-americana na primeira metade do século XX, definiu – em uma das clássicas decisões da Corte, o caso Alcoa – o espírito da legislação antitruste: “Nós temos falado apenas das razões econômicas que proíbem o monopólio; mas como já indicamos, há outras baseadas na crença de que grandes consolidações industriais são inerentemente indesejáveis, à parte os resultados econômicos. Nos debates no Congresso, o próprio Senador Sherman (…) mostrou que entre os propósitos do Congresso em 1890 estavam o desejo de pôr um fim às grandes agregações de capital por força da vulnerabilidade do indivíduo diante delas.” Essa lição perdeu-se com o tempo, mas vem sendo resgatada.

O programa posto em marcha pelo FTC a partir de 2021 é tão ambicioso quanto arriscado, visto que esbarra em dois obstáculos poderosos: um Judiciário predominantemente composto por juízes treinados na doutrina de Chicago e o prazo muito curto – a princípio um mandato de quatro anos – para retomar a rota da defesa do processo concorrencial, após décadas de desvio.

Ao contestar aquisições do grupo Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), da Microsoft e práticas adotadas pela Amazon, Lina Khan e equipe demonstram que não se intimidam com o tamanho do desafio que enfrentam; assim como diante de uma super maioria ultraconservadora na Suprema Corte disposta a rever avanços civilizatórios, a minoria progressista tem proferido votos dissidentes que ficarão registrados na História, os esforços do FTC para conter a super dominância das Big Tech, mesmo que não alcancem sucesso, são já estímulos à consciência crítica.

Até o momento, já transcorrida a metade do mandato de Joe Biden e, por conseguinte, de Lina Khan à frente da FTC, três contestações a práticas e aquisições das Big Tech foram apresentadas ao Judiciário, vejamos cada uma delas.

 Ainda em 2021, a FTC apresentou denúncia contra a Facebook Inc. (agora Meta Platforms Inc.), de que a empresa vem mantendo o monopólio nas redes sociais por anos de conduta anticompetitiva. A denúncia alegou que a Facebook vem se engajando em sistemática estratégia de eliminação da concorrência por meio da aquisição de rivais em ascensão, como o Instagram em 2012 e a aquisição em 2016 do aplicativo de mensagens WhatsApp e por meio da imposição de condições anticompetitivas a desenvolvedores de softwares para afastar ameaças a seu monopólio.

A denúncia foi rejeitada ainda em primeira instância, pois de acordo com o despacho do juiz responsável, a FTC não havia demonstrado a condição de monopolista da Facebook.

Em paralelo à denúncia da FTC contra a Facebook Inc., em dezembro de 2020, 48 estados e territórios norte-americanos liderados pelo estado de Nova York haviam feito idêntica denúncia contra a companhia, centrando nas aquisições de Instagram e WhatsApp. A alegação havia sido que Facebook/Meta monopolizaria o mercado de mídias sociais por meio de um esquema de “buy or bury” (comprar ou enterrar) suas rivais. A ação coletiva foi negada em 1ª instância em junho de 2021 – entendendo o juiz que as promotorias estaduais levaram tempo demais, indevidamente, para apresentar a queixa –, e em abril deste ano, um painel de três juízes do Tribunal de Recursos do Circuito do Distrito de Columbia confirmou a rejeição da ação.

O motivo legal arguido no caso da denúncia pelas promotorias não se aplica ao governo federal (FTC), que ainda aguarda a decisão de 2ª instância na rejeição da ação.

A despeito do baque inicial, a FTC persiste no cumprimento de sua agenda, tendo interposto duas ações em junho último, respectivamente contra a Microsoft Inc. e a Amazon.

A ação contra a Microsoft é uma clássica petição de bloqueio de aquisição, com pedido de liminar para suspender os efeitos da aquisição da Activision Blizzard em dezembro de 2022. A aquisição é um passo estratégico para a Microsoft manter sua posição no mercado relevante de jogos eletrônicos. O acesso a jogos apresenta crescimento mais expressivo através de aparelhos celulares, não mais por meio de computadores e consoles, onde se consolidou a posição de Microsoft por meio de sua plataforma Xbox. A empresa, contudo, não vinha se mostrando capaz de desenvolver programas para serem rodados em celulares, de onde o interesse na Activision Blizzard, produtora de campeões globais como Call of Duty e OverWatch.

O pedido de bloqueio da operação pauta-se na teoria do dano do fechamento de mercado a concorrente, diante das condições e incentivos para que a Microsoft restrinja – ou mesmo bloqueie – o acesso de Sony e Nintendo, suas rivais no mercado de jogos eletrônicos, aos jogos mais populares entre os usuários. A Microsoft chegou a manifestar intenção de manter o acesso da Sony aos jogos, mas a preocupação persistiu, dado que o compromisso se restringiria às atuais, não abrangendo futuras, versões dos jogos. Ademais, a conduta de exclusão já foi adotada pela Microsoft por ocasião da recente compra da ZeniMax/Bethesda SoftWorks, quando a adquirente tornou os também populares jogos Redfall e Starfield exclusivos da plataforma XBox, além do jogo Indiana Jones, ainda a ser lançado em 2023.

No Reino Unido a operação de aquisição da SoftWorks foi bloqueada, decisão que a Microsoft segue contestando, enquanto na União Europeia a empresa obteve autorização para seguir com a operação.

No entanto, a FTC enfrentou nova derrota na sexta-feira dia 15 de julho, tendo seu pedido de suspensão da operação de compra (temporary restrainct order and injunction) negada pelo 9º Circuito do Tribunal de Apelações.

Pavimentando seu caminho para a conclusão da aquisição, cujo prazo acordado é 18 de julho próximo, a Microsoft anunciou no dia seguinte à rejeição da suspensão da operação nos Estados Unidos, ter firmado com a Sony acordo com validade de dez anos. Em mensagem pelo Twitter, o responsável pela divisão de jogos da Microsoft deu notícia de que “a Microsoft e a PlayStation [Sony] assinaram acordo vinculativo para manter Call of Duty no PlayStation após a aquisição da Activision Blizzard.”

A decisão da CMA (Competition and Market Authority), autoridade em Competição e Mercados britânica será revista pelo Tribunal de Apelações em 17 de julho, véspera do fechamento da operação; o recente anúncio da Microsoft sobre seu acordo com a Sony poderá impactar na decisão do Tribunal.

Finalmente, a FTC aciona a Amazon por sua prática conhecida na literatura econômica antitruste como obsfuscation e cancelation trickery, ao obrigar os usuários a assinarem serviços Prime não demandados e dificultar o processo de cancelamento. A teoria do dano baseia-se no entendimento de que a companhia abusa de seu poder de mercado usando achados da ciência comportamental para extrair extra-rendas de usuários, desenhando interfaces manipulativas, coercitivas e enganadoras, levando consumidores a aderirem e renovarem automática e involuntariamente a subscrição dos serviços Prime.

Este é um caso que – independente do resultado – em breve deverá se tornar referencial, por trazer à tona problemas antitruste típicos da economia digital e por assinalar a importância da incorporação da análise em economia comportamental à defesa da concorrência.

Sigamos acompanhando as batalhas travadas pela FTC, como sempre muito ensinamento poderemos retirar, tanto de suas derrotas como de eventuais vitórias, para nossa própria reflexão sobre a condução do antitruste no Brasil.

A impossibilidade jurídica do condomínio de quotas para cônjuges casados em regime de comunhão universal de bens

Pablo Arruda & André Santa Cruz

Maria Isolina e Joaquim Teixeira contraíram núpcias em 1976. Adotaram o que, na época, era o regime padrão: a comunhão universal de bens. Pretendem agora, em 2023, organizar seus ativos imobiliários destinados à locação em uma sociedade empresária cujo objeto será a compra, a venda e a locação de bens imóveis próprios. Mas, no meio do caminho, há uma pedra.

O Código Civil de 2002, em verdadeiro retrocesso, passou a proibir a participação, em uma mesma sociedade, de cônjuges casados nos regimes de comunhão universal ou de separação obrigatória.

Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

Aparentemente, a intenção do legislador era, quanto à comunhão universal, evitar uma sociedade de formação patrimonial única. Aqui, falhou duplamente: primeiro, porque há a possibilidade de existirem bens exclusivos na comunhão universal; segundo, porque também é possível que, em comunhão parcial, todos os bens sejam comuns, e nesse caso não há impedimento legal (ainda bem) para constituição de sociedade entre os cônjuges.

Quanto à separação obrigatória, a questão é ainda mais grave. Já não bastasse o absurdo da obrigatoriedade do regime de separação de bens quando ao menos um dos nubentes tem mais de 70 anos, o legislador inibiu a livre iniciativa entre aqueles casados sob esse regime. Importa constar, aliás, que a obrigatoriedade de separação de bens em razão da idade (art. 1.641, inciso II do Código Civil) está na mira do Supremo Tribunal Federal (Tema de Repercussão Geral 1.236), que pode (tomara que sim) reconhecer sua inconstitucionalidade.

Mas quaisquer que sejam o nível e o fundamento da nossa irresignação com essas limitações legais, o fato é que elas estão postas e vigentes. Diante do obstáculo, quais seriam as alternativas para o casal fictício que inaugurou esse texto?

A primeira solução – que se aplica aos dois regimes proibitivos – é a constituição de uma sociedade anônima. O manual de registro desse tipo societário, instituído pela IN 81/2020 do DREI (Anexo V), seguindo a orientação do enunciado 94 das Jornadas de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, estabelece que “a vedação da sociedade entre cônjuges contida no art. 977 do Código Civil não se aplica às sociedades anônimas”.

Sendo assim, optando os cônjuges pela constituição de uma sociedade anônima, o problema está resolvido, valendo lembrar ainda que a constituição de uma sociedade anônima tornou-se bem mais palatável nos últimos anos: possibilidade de ter apenas um diretor, permissão para que o(s) diretor(es) seja(m) residente(s) no exterior, previsão dos livros societários eletrônicos e simplificação das regras sobre publicações legais (as companhias fechadas que tiverem receita bruta anual de até R$ 78 milhões podem realizar suas publicações gratuitamente na Central de Balanços do SPED).

Outra solução é a constituição de uma sociedade limitada por apenas um dos cônjuges, já que atualmente é possível a unipessoalidade nesse tipo societário (art. 1.052, §§ 1º e 2º do Código Civil). Nesse caso, o cônjuge não sócio deve anuir com a integralização dos bens imóveis e poderá participar da administração da sociedade para resguardar seus interesses sobre as quotas que sejam sub-rogadas dos bens comuns aplicados à formação do capital social.

O fato de as quotas estarem registradas exclusivamente em nome de um dos cônjuges, na comunhão universal, não faz com que deixem de pertencer ao casal, na forma do art. 1.667 do Código Civil. Ademais, a administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges (arts. 1.663 e 1.670 do Código Civil), de modo que eles podem regular, no contrato social, de que maneira os poderes inerentes às quotas serão exercidos, a despeito de apenas um deles figurar como sócio.

Independentemente do regulamento inter cônjuges quanto à gestão das quotas, dos poderes políticos a elas inerentes e da própria pessoa jurídica, no caso de planejamento sucessório, a doação das quotas não poderá ser feita exclusivamente pelo cônjuge sócio (art. 1.647, inciso IV do Código Civil). Por outro lado, a reserva de usufruto poderá beneficiar ambos, ainda que apenas um deles seja sócio, já que a propriedade é comum. Cabe, inclusive, a previsão do direito de acrescer entre eles o usufruto em caso de morte (art. 1.411 do Código Civil). Isso garante que apenas com a morte de ambos o usufruto será extinto.

Não são essas as únicas soluções práticas para contornar de maneira legítima a vedação constante do art. 977 do Código Civil. Entretanto, não é esse o principal objetivo deste texto. O que realmente queremos tratar aqui é de uma suposta solução que vem sendo defendida e até mesmo aplicada com aceitação por parte de algumas Juntas Comerciais: o condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal.

Em um caso a que tivemos acesso, foi arquivada em uma Junta Comercial uma (primeira) alteração contratual em que o sócio único cedeu e transferiu suas quotas ao condomínio formado por ele e sua esposa (casados em comunhão universal). Na consolidação dessa alteração e na (segunda) alteração que se sucedeu, o “sócio” qualificado no instrumento passou a ser, então, o condomínio formado entre marido e mulher.

Parece-nos que essa “solução” não é possível, à luz do arcabouço normativo vigente, e vamos explicar o porquê a seguir.

O condomínio de quotas é um instituto jurídico previsto em lei e apto a solucionar uma série de questões. De fato, em que pese a indivisibilidade das quotas, o § 1º do art. 1.056 do Código Civil admite o condomínio formado por dois ou mais titulares de determinada quota. Tem-se, aqui, um condomínio voluntário.

Havendo condomínio de quotas, os direitos a elas inerentes serão exercidos por um dos condôminos, na qualidade de representante. No entanto, todos os condôminos devem figurar no contrato social como sócios, inclusive porque, como tais, respondem solidariamente pelas prestações necessárias integralização dessas quotas, e essa responsabilidade se dá em relação não apenas à sociedade, mas também em relação a terceiros (art. 1.056, § 2º, CC).

Essa necessidade de os condôminos figurarem como sócios no contrato social, por si só, já afastaria a possibilidade de se estabelecer condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal. Afinal, eles não podem ser sócios em uma mesma sociedade limitada, em razão do disposto no já mencionado – e criticado, porém vigente – art. 977 do Código Civil.

Importa ressaltar que o condomínio voluntário não tem personalidade jurídica e, diferente de outros entes despersonificados, como o condomínio edilício e os fundos de investimento, não tem capacidade processual e contratual. Não pode, pois, ser titular de quotas em nome próprio. Tanto assim o é que, nos casos analisados por esses autores, constou como sócio no Documento Básico de Entrada-DBE um dos cônjuges e não o condomínio. Ou seja, no contrato social constou o condomínio como sócio, mas para todos os fins de direito, especialmente os contábeis e tributários, o sócio é um dos cônjuges (como de fato tem que ser).

Mas não se trata apenas disso. É juridicamente impossível se estabelecer relação de condomínio voluntário entre bens da mancomunhão de um casal. Primeiro, vamos tratar desse condomínio.

A seção I do Capítulo VI (Condomínio em Geral) do Título III (da Propriedade) do Livro III (Direito das Coisas) do Código Civil cuida do condomínio voluntário. É esse instituto que rege o condomínio de quotas. Não importa, pois, tratar aqui do condomínio necessário (Seção II), do condomínio edilício (Capítulo VII), do condomínio em multipropriedade (Capítulo VII-A) ou do condomínio especial em que se constituem os fundos de investimento (Capítulo X).

O condomínio voluntário caracteriza-se pela existência de frações de um determinado bem que pertencem, cada qual, a uma pessoa, o condômino. Essas frações serão na proporção em que se determinar entre as partes e, no silêncio, serão iguais, tantos quantos forem os condôminos (parágrafo único do art. 1.315 do Código Civil).

Imagine que Lucas e Carol, amigos que são, resolvem adquirir em conjunto um terreno no valor de R$ 400 mil. Lucas contribuirá com R$ 100 mil, e Carol contribuirá com R$ 300 mil. Nesse caso, ambos serão condôminos no terreno, detendo Lucas uma fração de ¼, e Carol uma fração de ¾ do imóvel. Observem que cada um deles detém seu próprio direito de propriedade sobre uma fração da coisa.

Cada condômino tem o direito de alhear (alienar ou doar) e gravar de qualquer ônus sua fração ideal, na forma do art. 1.314 do Código Civil. Tanto pode que, caso queira vender sua fração, deverá dar aos demais condôminos o direito de preferência aquisitiva (art. 504 do Código Civil).

Diferentemente do que ocorre no condomínio, na mancomunhão a propriedade é una, porém pertencente a duas mãos (ou até mais, no caso de poliamor com reflexos patrimoniais). Não se admite, enquanto persiste o casamento em comunhão (total ou parcial), que qualquer dos cônjuges disponha (por venda, doação ou gravame) daquilo que entende ser a sua parte sobre determinado bem comum do casal.

Perceba-se que não se trata de uma mera filigrana, mas de verdadeira diferença de institutos jurídicos que se mostram, pois, incompatíveis entre si quando nos referimos aos bens que compõem o patrimônio comum do casal.

Não são poucas as decisões dos tribunais brasileiros sobre o tema. Em 13/06/2023, por exemplo, o STJ decidiu que, “havendo separação ou divórcio e sendo possível a identificação inequívoca dos bens e do quinhão de cada ex-cônjuge antes da partilha, cessa o estado de mancomunhão existente enquanto perdura o casamento, passando os bens ao estado de condomínio” (REsp 2.028.008/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 16/6/2023).

O TJSP também já proferiu decisão sobre o assunto:

APELAÇÃO – PEDIDO DE ALVARÁ – IMÓVEL PERTENCENTE AO CASAL – MANCOMUNHÃO – PRETENSÃO DE O MARIDO DOAR SUA PARTE IDEAL DE 50% À FILHA, COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO – INADMISSIBILIDADE.

– Alienação de bem imóvel que integra o patrimônio comum do casal, em plena sociedade conjugal.

– Bem imóvel que se encontra em estado de mancomunhão, e não de condomínio.

– Licitude do negócio se houver outorga conjugal.

– Caso em que tal outorga inexiste e, pior, é vedada por lei, por se tratar o cônjuge de pessoa incapaz colocada sob curatela da filha donatária do imóvel.

– Artigos 1.647, I, e 1.749, I, ambos do Código Civil.

(TJSP – Apelação Cível 1001491-27.2019.8.26.0368 – Monte Alto – 8ª Câmara de Direito Privado – relator Desembargador Alexandre Coelho – DJ 15.05.2020)

No mesmo sentido, podemos colher algumas opiniões doutrinárias. Nas palavras de Rafael Calmon Rangel (Partilha de bens. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 105-106), “quando a comunhão de direitos se refere especificamente ao patrimônio amealhado pelo casal sob o abrigo dos regimes comunitários de bens, mostra-se tecnicamente adequado considerá-la como uma mancomunhão, que jamais pode ser confundida com o condomínio ou com a comunhão ordinária”.

Agora voltemos à estória que deu início a esse arrazoado: o casal Joaquim Teixeira e Maria Isolina, casados em comunhão universal de bens, detém mancomunhão sobre os bens do casal, bens estes que não podem ser fracionados entre eles até que se dê a partilha (ou, ao menos, a separação de fato, como prevalece na atual jurisprudência) ou uma expropriação forçada por dívida exclusiva de um dos cônjuges, quando caberá ao outro o resguardo à meação.

Ao integralizarem esses bens em uma sociedade da qual não podem ser sócios em conjunto, um deles assumirá a posição de sócio para fins registrais, mas a propriedade das quotas derivadas dos bens do casal estarão, agora, na mancomunhão em que aqueles antes se encontravam.

As quotas, pois, não podem pertencer em parte a um e em parte a outro, assim como nenhum deles detém uma fração disponível de cada uma delas, a qual poderia alhear ou onerar. Dessa maneira, não podem os cônjuges estabelecer condomínio sobre bens da mancomunhão, porque os institutos são incompatíveis para aplicação sobre os mesmos bens.

Portanto, entendemos que essa “solução” que vem sendo praticada em alguns casos, com respaldo de algumas Juntas Comerciais, não encontra amparo em nosso arcabouço normativo, trazendo insegurança para as partes que a adotam. O ideal, por conseguinte, seria uma regulamentação da questão pelo órgão competente – o DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração –, esclarecendo a impossibilidade dessa medida e orientando as Juntas Comerciais nesse sentido.

Pablo Arruda é advogado, sócio do SMGA Advogados, Mestre em Direito: Estado, Cidadanias e Mundialização das Relações Jurídicas pela Universidade Veiga de Almeida, professor de Direito Empresarial (FGV, IBMEC, PUC (RJ/SP/PR), Damásio-SP, CEPUERJ/UERJ; Escolas da Magistratura: EMERJ, ESMAGES e ESMAFE/PR).

André Santa Cruz é advogado, sócio de Agi & Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.

O Bom, o Mau e o Feio: Como um faroeste espaguete pode nos ensinar sobre antitruste

Maxwell de Alencar Meneses

Considerado o mais icônico e insuperável Western já filmado, em parte devido a trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone. Ele foi eleito um dos 10 melhores filmes de todos os tempos pelo público no IMDB[i]. A história contada por esse épico do cinema se passa em 1862, pouco antes da fundação da Standard Oil em 1870, que chegou a controlar as ferrovias, essencial facility para o desbravamento do oeste americano e bem presente em cena-chave do filme.

Com efeito, em 1890, o Sherman Antitrust Act foi promulgado e reverbera até hoje, tanto que o Caderno do Cade do Mercado de Mineração, lançado em 2022, aborda a integração vertical no mercado de transporte ferroviário e confirma o modal ferroviário como o principal meio de transporte para minério de ferro. Esse raciocínio dialético, desdobrado aqui, ensina a respeito de temas concorrenciais entrelaçados nas experiências vivenciadas desde o velho oeste ítalo-americano de Sergio Leone, ao faroeste caboclo de Renato Russo.

O convite para utilizar esse enredo como meio de exploração de temáticas concorrenciais almeja uma imersão em um simulacro imaginativo, causando uma boa experiência de leitura, em consonância com a abordagem moderna da “Era da Economia da Experiência”. Ao passo que, oportuniza tocar nessa estratégia de negócios, como um fator concorrencial determinante para conquista de mercados, que ela claramente representa. Por vezes, essa estratégia é concretizada na experiência de consumo ou na área tecnológica, mais especificamente na User eXperience (UX) de uma plataforma digital.

De tal modo que, é precipuamente por meio desses aspectos que a empresa atrai clientes em quantidade suficiente para gerar o efeito de rede, como visto no recente e disruptivo boom do Tik Tok. Não tão recentemente, mas não por isso menos relevante, merece destaque o caso da Amazon, que em 2003 revolucionou a internet ao oferecer aos usuários a oportunidade de ter uma experiência simulada online ao folhear livros e ler trechos antes de fazer a compra. Fato é que a plataforma dominou o mercado de livros no Brasil em 9 anos[ii].

Já pela experiência memorável, gerada pela obra de Sergio Leone, é possível inferir princípios como os da teoria dos jogos, que são relevantes para as autoridades de defesa da concorrência, principalmente quando analisados sob a perspectiva do Acordo de Leniência e do Termo de Compromisso de Cessação (TCC). No filme, o personagem interpretado por Clint Eastwood, identificado como “o Bom”, entrega o personagem chamado “o Feio”, em troca de uma recompensa. Existe um conluio entre esses agentes, onde, em busca de ganho máximo, eles se arriscam ao ponto de planejar uma falsa captura, que é revertida antes da execução da pena por enforcamento.

Nesse ponto, chama a atenção a semelhança, embora limitada, entre questões amplamente discutidas que estão presentes no contexto do jogo envolvendo incentivos a denúncias. Isso se relaciona à propensão de cometer práticas anticoncorrenciais, através de um cálculo que leva em consideração a possibilidade de punição e as vantagens a serem obtidas com tais condutas. Outros aspectos também envolvem o risco de uso indevido desses benefícios, semelhante ao que é retratado no filme. Isso evidencia a importância desses pontos diuturnamente e minuciosamente avaliados pelo Cade durante o processo de assinatura de acordos, reforçando os ensinamentos que são extraídos dessa análise.

A fragilidade ou instabilidade observada em conluios, como no caso dos cartéis, torna-se evidente quando os personagens, “o Bom”, apelidado de “lourinho”, e “o Feio”, também conhecido como Tuco, parceiros no crime, começam a avaliar os riscos envolvidos na continuidade de sua conduta. Eles discutem quem está disposto a correr mais riscos e quem deveria receber uma compensação maior por isso, o que leva a uma repentina ruptura do acordo. O Bom percebe que pode obter uma recompensa maior com menos riscos em outra parceria, deixando Tuco abandonado no meio do deserto à própria sorte.

O terceiro personagem, ainda não mencionado, é tido pela alcunha de “o Mau”. De modo propositalmente irônico, o Mau é também conhecido por Sentença, Julgamento e ainda por Angel Eyes. Ele procura ocupar um cargo público de sargento da União em meio à guerra de secessão, como modo de obter acesso a informação privilegiada. Entretanto, tem uma característica ética mais elevada que os outros dois personagens, no que se refere a levar a cabo até o fim os seus acordos, cumprindo-os, a despeito de proposta mais vantajosa em contrário. Em contraponto, tem um prazer sádico em aniquilar seus concorrentes.

A importância dos codinomes mencionados está associada ao fato de que são marcas indeléveis e renitentes no transcurso de condutas criminosas, ao serem utilizados para evitar o reconhecimento direto dos criminosos e transmitir a posição de cada indivíduo dentro do grupo. A identificação de eventuais codinomes desempenha um papel relevante na etapa de coleta de provas relacionadas à participação em crimes contra a ordem econômica. Para processar esses delitos, assim como outros, é necessário individualizar as condutas e identificar corretamente os envolvidos. Tanto é assim que o personagem principal nesse exemplo fictício, conhecido como “o Bom”, sendo o mais astuto dentre três, e mentor em certa medida, é o único a ser anonimizado como “Pistoleiro sem nome”.

No desenvolvimento desse caso hipotético, utilizado como uma ferramenta pedagógica para explorar situações potencialmente prejudiciais à livre concorrência, os três homens entram em conflito, ou em concorrência mordaz, quando descobrem uma oportunidade de negócio muito mais vantajosa do que as anteriores, como entrantes em um novo mercado. Trata-se de um montante estimado em aproximadamente 25 milhões de reais em ouro, referentes a recursos extraviados do esforço de guerra em curso. Essa quantia foi enterrada em um cemitério desconhecido, sob uma lápide também não identificada. Neste estudo de caso, essa empreitada será considerada por uma perspectiva metafórica de prospecção de riquezas subterrâneas.

Sem a pretensão de adentrar no direito minerário, sabe-se que uns dos grandes desafios além da obtenção das licenças de exploração, são exatamente a localização das jazidas, que são essenciais para o planejamento e viabilidade econômica dos projetos de mineração, bem como para atendimento a requisitos legais relacionados a direitos de exploração. Não sem motivo, um dos campos de pesquisa de Inteligência Artificial tem sido o apoio de sistemas especialistas capazes de processar informações a ponto de precisar ao máximo os locais de busca, de acordo com o Geológo David Bressan a IA foi capaz de prever a localização de minerais exóticos de urânio[iii].

Em outras palavras, o acesso a informação, ou ainda, como afirmou inicialmente o matemático londrino Clive Humbly, os dados são o novo petróleo, de tal forma que a assimetria de informação é assunto de interesse concorrencial, que afeta a capacidade das empresas de operar em determinados mercados. No exemplo do filme, essa assimetria se manifesta de diferentes formas: o Bom sabe o nome na lápide, o Feio sabe o nome do cemitério e o Mau apenas conhece a origem do ouro.

Esse cenário enseja uma acirrada competição pela informação, com uso de estratégias abusivas a fim de se obter uma posição dominante, que culminam na eliminação final dos demais concorrentes por intermédio de um truel (duelo com três oponentes) no formato do icônico impasse mexicano. Os desafiantes observam por segundos intermináveis os sinais de atividade por parte do concorrente antes de tomar sua própria decisão de movimentação, que não poderá ser revertida.

Nos anos 90, várias grandes indústrias no ramo da tecnologia enfrentaram truelos que resultaram em sua extinção. Analistas tinham uma expectativa de que apenas algumas poucas empresas seriam capazes de sobreviver à competição com as big four daquele tempo: IBM, Apple, Microsoft e Oracle, com a HP como a única possível sobrevivente, tendo até mesmo enfrentado a ameaça de ser adquirida pela Oracle[iv]. A tendência natural esperada era a gradativa absorção das demais como o fazem corpos celestes ao puxar para si planetas menores. Embora essa tendência tenha sido observada, a característica do setor de, até então, não sofrer com regulações tão restritivas quanto outros, permitiu a entrada de novas empresas, de forma que as big techs hoje são a Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft.

Esse “até então” traz em seu bojo um possível turning point regulatório perante “A Ira de Khan”[v]. Tendo em vista que, no campo do antitruste, Lina Khan, conhecida por suas críticas à Amazon, que eventualmente vieram alçá-la à presidência da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos, foi alvo, por parte da empresa, de pedido de afastamento dos casos antitruste em curso relativos à plataforma digital. Segundo a petição da Amazon, Khan argumentou em diversas ocasiões que a Amazon é culpada de violações antitruste e deveria ser desmembrada.

Neste contexto, a teoria da escolha pública se torna relevante uma vez que, de acordo com Mandle e Reidy (2015), é uma abordagem da ciência política que, utilizando pressupostos e modelos comuns na economia, analisa ocupantes de cargos eletivos e outros atores políticos como agentes movidos principalmente por interesses próprios. Esse conceito é praticamente óbvio, considerando que o simples fato de alguém ingressar no serviço público não tem o condão de transformá-lo em um ser amputado de eventuais interesses privados. Diante disso, a história de “O Bom, o Mau e o Feio” ensina ser necessário cuidado para que, ao ultrapassar suas missões institucionais, no afã de garantir outras prioridades nacionais, a autoridade antitruste não venha incorrer em tornar-se parte do conflito e venha, de modo incauto, assumir o papel de “o Bom” ou de outro personagem que não seja o seu próprio.

A partir disso tudo, fica evidente que na dinâmica das partes envolvidas em questões de defesa da concorrência pode ocorrer um magnetismo na direção de estereotipar os agentes: alguns sendo vistos como “o Bom”, outros como “o Mau” e ainda outros como “o Feio”, que em conjunto são o construto do título alternativo “Três Homens em Conflito” que, contextualizado, se tornaria “Três Partes em Conflito”. Essa reflexão se dá para reforçar o imperioso afastamento de eventual caracterização de um Grupo Comprador como sendo “o Mau”, a empresa adquirida como “o Bom”, o órgão antitruste como “o Feio”, ou outras variantes desses papéis, a depender da perspectiva do expectador.

Esses personagens foram assim intitulados pelos produtores, inclusive como uma forma de provocar essa reflexão a respeito de uma visão maniqueísta do mundo. Nenhum deles é permanentemente bom, mau ou feio, mas uma composição de nuances variáveis. A identificação de uma grande corporação que ao longo dos anos, por meio de inovação, erros e acertos, conseguiu lograr êxito de modo a expandir-se, como algo perigoso por si só, é exemplo disso. Por outro lado, a associação da autoridade antitruste a qualquer um desses papéis, mesmo que de modo subconsciente, também é no mínimo impróprio.

Essa áurea de faroeste é insidiosa e povoa o imaginário coletivo, como a maior parte do que se torna uma exposição constante. Ciente de todas essas questões, é importante que o órgão de defesa da concorrência, como vem fazendo o Cade, mantenha-se lúcido, técnico e alinhado com padrões de excelência à altura da missão que ocupa, de tal forma a se postar como um facilitador para o ambiente concorrencial, capaz de garantir a todos regras claras, respostas tempestivas, bem como uma perspectiva imparcial, não maculada com esses pressupostos que atribuem a determinados grupos papéis necessariamente negativos de antemão.

Quem participou ou participa de atividade empresarial, em especial no setor de inovação e tecnologia, na luta ferrenha para manter-se atualizado e competitivo, ora perdendo, ora ganhando, investindo muito em melhoria de processos, qualidade, em um corpo técnico capaz de diferenciar produtos e serviços, valorizando novas ideias com poder disruptivo para vencer seus concorrentes, saindo da reles disputa por preço, preocupando-se com sua rentabilidade e capacidade de se manter no jogo a todo tempo, de manter empregos e não perder seus melhores ativos profissionais para a concorrência, oferecendo benefícios competitivos e participação nos lucros. As pessoas que conseguem fazer tudo isso funcionar, de modo legítimo, a ponto de serem capazes eventualmente de adquirir um competidor menos competente, não podem ser vistos por lente que não seja do respeito e da admiração, pois competir é muito difícil mesmo.

Além do já exposto, os elementos presentes nesse longa, são notadamente encaixados, ou partidos em três personas, sendo interessante notar que muitas outras instituições, histórias, conceitos e áreas do conhecimento fazem uso dessa divisão em uma tríade. A Lei dos Três Estados de Conte, que categoriza o pensamento em teológico, metafísico e positivo. Na filosofia, a tese, antítese e síntese. Em narrativas a subdivisão em introdução, desenvolvimento e conclusão. Na lide jurídica marcada por três partes principais: as partes, o pedido e a causa de pedir. O ser humano composto por corpo, alma e espírito.

O próprio Cade exerce a função preventiva, a repressiva e a educativa, por meio do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, da Superintendência-Geral e do Departamento de Estudos Econômicos. Com as missões principais de: (i) prevenção e repressão às infrações à ordem econômica; (ii) orientação, incentivo e fomento à concorrência; e (iii) análise de atos de concentração econômica.

Tomando por base esses padrões e os personagens de moral ambígua e complexa apresentados na película, buscando tecer uma comparação, mesmo que ainda deveras imperfeita, entre o filme e a atuação do Cade, uma forma de fazê-la seria pelo entendimento de que a complexidade e a diversidade do cenário concorrencial no Brasil compreendem uma miríade de condutas e interesses de empresas, consumidores e da sociedade, que podem se sobrepor ou conflitar em situações ambíguas, assim como os personagens, e ainda mais controversas. Não é possível distinguir, de modo taxativo, quem são os bons, os maus e os feios no mercado. Possivelmente, esses seriam arquétipos aos quais condutas poderiam ser associadas em determinados momentos.

 Cabendo ao Cade, que por sua vez enfrenta seus desafios e limitações, como recursos humanos e financeiros escassos, analisar cada caso com rigor, de forma ao mesmo tempo meticulosa e célere, buscando manter em ordem a livre concorrência e o bem-estar social dela advindo.

Sendo correto afirmar que nos cenários cada vez mais complexos de condutas anticoncorrenciais se faz mister o aperfeiçoamento de sistemas de computação e inteligência artificial para dar auxílio na análise e reconhecimento de padrões, pela capacidade nata dessa tecnologia de processar grandes volumes de dados, identificar correlações e padrões complexos, prover insights para a detecção e investigação de práticas anticompetitivas, que combinadas com o corpo técnico de alta especialização, aplicando interpretação com a distinção inerentes a humanos, capaz de resultar em tomadas de decisão precisas em tempo de se preservar adequadamente o ambiente concorrencial brasileiro.

A coragem de ser imperfeito, complexo e ambíguo faz parte da jornada das pessoas e das instituições. A qualidade se atinge por processos repetidos de reflexão, como a realizada nesse momento, que ao ser considerada ou criticada – afinal, como diria Nelson Rodrigues, “Toda unanimidade é burra” – sendo possível, a partir de um filme antigo, mas de temática atual, propiciar avanços impensáveis pelo simples fato do afastamento, mesmo que momentâneo, da realidade à qual se cerca.


[i] De acordo com a sinopse do filme na Plataforma Brasil Paralelo. Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.

[ii] Carrança, T. (2 de maio de 2023). Como a Amazon dominou vendas de livros no Brasil em apenas 9 anos. Fonte: BBC News Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwprveg0wo

[iii] Bressan, D. (21 de junho de 2023). Como a IA pode ajudar a encontrar novos minerais na Terra e em outros planetas. Fonte: Forbes Tech: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/06/como-a-ia-pode-ajudar-a-encontrar-novos-minerais-na-terra-e-em-outros-planetas/

[iv] Lawson, S. (18 de Jun de 2012). HP Worried About an Oracle Takeover After Hurd Switched Sides. Fonte: PCWorld: https://www.pcworld.com/article/465401/hp_worried_about_an_oracle_takeover_after_hurd_switched_sides.html

[v] Filme de ficção científica onde uma entidade de inteligência superior usa seus recursos a fim de acabar com a Enterprise


[i] THE GOOD, the Bad and the Ugly . Sergio Leone. Alberto Grimaldi. Mundial, 1966. Longa metragem (178 min). Disponível em: https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/tres-homens-em-conflito. Acesso em: 28 jun. 2023.

A importância da portabilidade para a concorrência no setor financeiro

Promovendo a competição e beneficiando os consumidores

Leandro Oliveira Leite

A portabilidade de produtos e serviços no setor financeiro desempenha um papel crucial na promoção da concorrência saudável entre as instituições. Essa prática permite que os consumidores transfiram facilmente suas contas bancárias, empréstimos, investimentos e outros serviços de uma instituição para outra, estimulando a competição e incentivando as instituições financeiras a oferecerem melhores condições, taxas de juros mais atraentes, prazos mais acertados e uma variedade de opções que atendam às suas necessidades.

A prática da portabilidade envolve o cliente, o credor original – instituição que concedeu o crédito – e o proponente – a nova instituição, destino do contrato portado e usualmente há envolvimento também de um intermediário financeiro.

No contexto financeiro, a portabilidade tem sido amplamente reconhecida como uma maneira de promover a concorrência no setor bancário. Historicamente, os consumidores enfrentaram barreiras ao tentar mudar de instituição financeira, tendo em vista a complexidade dos processos, os custos envolvidos e a falta de informações claras sobre as opções disponíveis. Isso resultou em um cenário em que poucos consumidores se sentiram encorajados a buscar as melhores ofertas em outros bancos, levando a um mercado pouco competitivo e com menor incentivo para as instituições financeiras oferecerem condições mais ajustadas para seus clientes. Superada essas barreiras normativas[1], em 2014 notou-se a importante influência da portabilidade na promoção da concorrência, proporcionando uma série de facilidades para os consumidores.

Vários estudos realizados pelo Banco Central do Brasil (BCB) demonstraram a relação entre a portabilidade de crédito e a redução das taxas de juros. Esses estudos fortalecem as evidências empíricas de que a portabilidade estimula a concorrência entre as instituições financeiras, gerando benefícios nas diversas modalidades de crédito.

Um estudo relevante realizado pelo BCB, publicado no Relatório de Economia Bancária (REB) de 2022, analisou o impacto da portabilidade de crédito na competição do mercado bancário. O estudo investigou o efeito da portabilidade sobre a taxa de juros dos empréstimos consignados em municípios com mais de um banco em operação, em comparação com municípios com apenas um banco. Os resultados observaram um aumento do volume de crédito per capita (em torno de 3%) e uma redução de aproximadamente 0,8 ponto percentual (p. p.) nas taxas de juros nos municípios com mais de um banco em operação em relação aos municípios com apenas um banco. Essa redução foi estatisticamente significativa e econômica, indicando que a portabilidade de crédito contribui para a redução das taxas de juros.

Já outro estudo em 2020, encontraram-se novas evidências robustas de que a portabilidade de crédito diminuiu as taxas de juros e aumentou o volume de crédito. Em particular, o estudo analisou os resultados antes e após a portabilidade e demonstrou o impacto positivo da utilização desse instrumento na redução significativa das taxas de juros média de 2,9 p.p. ao ano para crédito imobiliário e 5,7 p.p. para o consignado.

Em um terceiro estudo publicado no Relatório de Economia Bancária de 2019, sobre o crédito imobiliário, indicou que os benefícios da portabilidade ainda atingiam uma pequena fração do seu potencial, vez que à época se sabia ainda pouco dessa opção, mas que, com a queda significativa da taxa Selic naquele momento, favoreceu a ampliação da demanda por portabilidade do crédito.

Ou seja, esses estudos são exemplos de como a análise do BCB tem mostrado que a portabilidade de crédito desempenha um papel importante na redução das taxas de juros. Eles demonstraram que a competição estímulou as instituições financeiras a oferecerem melhores condições aos consumidores, resultaram em benefícios tangíveis, como a redução dos custos financeiros.

No contexto da interoperabilidade, os órgãos reguladores estabelecem padrões e requisitos técnicos que as instituições financeiras devem cumprir para permitir a comunicação e a troca de informações de forma segura e padronizada. Isso inclui a definição de protocolos de comunicação, formatos de dados e requisitos de segurança, visando garantir a integridade e a confidencialidade das informações dos consumidores.

Para garantir a evolução contínua da portabilidade no setor financeiro, a interoperabilidade de sistemas entre instituições financeiras desempenha um papel crucial, sendo considerada um dos princípios basilares do Open Finance/Banking, uma iniciativa do BCB que têm sido implementadas em diversos países, permitindo o compartilhamento seguro de informações entre as instituições financeiras. Essa interoperabilidade facilita a transferência de dados[2] e a integração de serviços, promovendo uma experiência mais fluida para os consumidores e estimulando a competição entre as instituições.

Adicionalmente, ela promove a inovação no setor financeiro pois ao permitir que diferentes sistemas e tecnologias se integrem e se comuniquem, novas soluções e serviços podem ser desenvolvidos, trazendo maior eficiência para os consumidores. Isso inclui a criação de plataformas digitais que facilitam a comparação de produtos, a transferência de informações e a realização de transações entre diferentes instituições financeiras.

Em resumo, a interoperabilidade é um elemento-chave para garantir a evolução da portabilidade no setor financeiro. Com a implementação de medidas regulatórias e avanços tecnológicos, a portabilidade de produtos e serviços no setor financeiro tem se tornado cada vez mais viável e acessível.

Observa-se ainda que a portabilidade e a interoperabilidade também influenciam outros aspectos do setor financeiro, como seguros habitacionais, investimentos, meios de pagamento e cartões de crédito. Por exemplo, a portabilidade de seguro habitacional permite que os consumidores mudem de garantia sem perder a cobertura do financiamento. Já a aceitação de bandeiras de cartão em qualquer maquininha favorece os diversos estabelecimentos e proporciona maior conveniência aos consumidores.

Outra opção interessante é a possibilidade de o cliente utilizar seus investimentos (ações, por exemplo) como garantia de uma operação de crédito. A competitividade, criada através das mais diversas modalidades financeiras, gera uma pressão nas instituições financeiras, incentivando-as a criarem melhores ofertas a fim de atrair e reter seus clientes, bem como, condições mais vantajosas e maior liberdade para escolher as instituições que melhor atendam às suas necessidades e objetivos.

Assim, como vimos, a concorrência no setor financeiro exerce um papel fundamental na redução das taxas de juros e na melhoria das condições oferecidas ao mercado. Quando há uma competição saudável entre as instituições financeiras, os consumidores se beneficiam de diversas maneiras:

  1. Redução das taxas de juros: A concorrência entre as instituições financeiras leva a uma pressão para reduzir as taxas de juros. As instituições competem para atrair clientes oferecendo taxas mais baixas em empréstimos, financiamentos e linhas de crédito.
  2. Melhoria das condições de empréstimo: Além da redução das taxas de juros, a concorrência também leva à melhoria das condições gerais de empréstimo. As instituições financeiras competem para oferecer prazos mais longos, períodos de carência, flexibilidade nos pagamentos e outros benefícios adicionais para conquistar e manter clientes.
  3. Ampliação da oferta de produtos e serviços: A economia saudável estimula as instituições financeiras a ampliarem sua oferta de produtos e serviços. Elas buscam se diferenciar no mercado, oferecendo soluções financeiras mais abrangentes e adaptadas às necessidades dos consumidores. Os consumidores se beneficiam com uma gama mais ampla de opções para escolher, de acordo com suas emoções e objetivos financeiros.
  4. Melhoria da qualidade do atendimento ao cliente: As instituições financeiras buscam se destacar no mercado oferecendo um serviço mais eficiente, suporte personalizado e uma experiência do cliente aprimorada. Elas investem em treinamento de funcionários, tecnologia e processos para garantir um atendimento de qualidade. Os consumidores se beneficiam com um atendimento mais ágil, eficaz e personalizado, além de terem mais opções caso estejam insatisfeitos com o atendimento recebido em uma instituição específica.

Em suma, a inovação competitiva no setor financeiro desempenha um papel crucial na promoção da oferta saudável ao abrir espaço para novos modelos de negócio e propiciar um ambiente de maior concorrência. Por meio da portabilidade, os consumidores têm a oportunidade de buscar melhores condições, serviços mais eficientes e melhoria das condições oferecidas. Para aproveitar esses benefícios é importante continuar aprimorando ferramentas como o Open Finance/Banking e expandir iniciativas que promovam a interoperabilidade no setor financeiro. Dessa forma, podemos construir um ambiente cada vez mais competitivo e benéfico para os consumidores no setor financeiro.

Referências:

Estudos do Banco Central sobre o assunto:

“Portabilidade de crédito imobiliário” do Relatório de Economia Bancária de 2019 – Acessível em https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/EE085_Portabilidade_de_credito_imobiliario.pdf

“Evolução da portabilidade de crédito no Brasil: comportamento e perfil” do Relatório de Economia Bancária de 2020 – Acessível em https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/Documents/reb/boxesreb2020/boxe_2_evolucao_portabilidade_credito_brasil.pdf

“A portabilidade aumentou a competição bancária?” do Relatório de Economia Bancária de 2022. – Acessível em https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/boxe_relatorio_de_economia_bancaria/reb2022b10p.pdf?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Portabilidade-de-credito-reduziu-taxas-de-juros


[1]  A portabilidade de crédito, instituída por meio da Resolução 3.402, de 6 de setembro de 2006, e alterada pela Resolução 4.292, de 20 de dezembro de 2013, quando, de fato, iniciaram-se as efetivações de pedidos de portabilidade.

[2] O direito à “portabilidade dos dados” está previsto no inciso V do artigo 18 da Lei nº 13.709/18 – Lei Geral de Proteção de Dados, “LGPD”. Já a “portabilidade de serviços ou de ativos” está prevista em diversos instrumentos normativos diferentes, dependendo do tipo de mercado.