Artigos de opinião

Arbitragem em contratos internacionais de mineração: salvação ou armadilha?

Luciano Ramos de Oliveira & José Américo Azevedo

Há muito já se debate no âmbito doutrinário e jurisprudencial acerca da constitucionalidade de adoção obrigatória de procedimento arbitral em litígios empresariais e se tal adoção violaria os preceitos do acesso à justiça previstos na carta constitucional. A temática pouco discutida ainda diz respeito aos custos e despesas do procedimento arbitral enquanto óbice ao ingresso no Judiciário.

Um dos fatores relevantes para a ineficiência da prestação jurisdicional do Brasil é a grande quantidade de processos que tramitam pelo país, em especial na primeira instância, que concentra 94% do acervo processual conforme levantamento do CNJ. A situação é mais alarmante diante do fato de que, no processo civil brasileiro, a fase de execução é a mais demorada, sendo necessários, em média, 5 anos e 11 meses para se chegar ao final do processo[1].

A autocomposição entre as partes (mediação e conciliação) e heterocomposição do litígio por arbitragem entabulam o debate doutrinário acerca dos limites e do objeto desta espécie de compromisso. Surge, a partir de tais compromissos, a indagação sobre o alcance da composição atinentes aos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, sobretudo no conflito com direitos fundamentais aplicáveis ao processo em nosso ordenamento, nesse ponto é importante indagar: as partes podem transacionar sobre o exercício, previamente à existência do processo, de direitos fundamentais como o do acesso à justiça e do devido processo? Nesse cenário, não se ignora que há muito já se estabeleceu que o Estado Constitucional repudia a autotutela como sinônimo de “justiça com as próprias mãos” ou “vingança privada”.

Vale destacar que o debate sobre o cerceamento de acesso à justiça proveniente de cláusula arbitral, argumento já afastado pelo Supremo Tribunal Federal[2], demonstra que o ingresso não é alcançado apenas por meio da tutela jurisdicional, mas, também, por meio do procedimento arbitral, o qual formata sentença equiparada às sentenças judiciais.

No processo SE 5206 analisado pelo Supremo Tribunal Federal, percebe-se que o Ministro Sepúlveda Pertence enfatiza a peculiaridade do fato de que o “laudo arbitral estrangeiro decidiu conflito entre duas sociedades comerciais” e que se trata de “direitos inquestionavelmente disponíveis”. Tal afirmação no voto conduz à conclusão de que as relações comerciais, em regra, tratam de direitos disponíveis e o estabelecimento, em contrato, de compromisso arbitral compõe o acervo acessível à atividade empresarial.

De fato, a atividade empresarial, tanto sob à ótica da autonomia da vontade, quanto sob os direitos e deveres envolvidos, em sua grande maioria são disponíveis ante à natureza jurídica do Direito Mercantil. Como bem apontado por Barreto Filho, a atividade empresarial ostenta princípios próprios impostos pelas exigências econômicas como, por exemplo, a elaboração de leis uniformes para regular operações de comércio internacional, assentando, ainda, que “[i]sso tudo mostra que a atividade mercantil se reveste de contornos próprios e de um sentido institucional específico, que a distingue da atividade civil comum [3].

A atração do setor mercantil à arbitragem se justifica por algumas razões. A primeira, apontada por Rechsteiner, é a conservação das relações comerciais em razão da solução da controvérsia de forma célere, discreta e “levando em conta critérios e valores próprios das partes que estão envolvidas[4]. A celeridade tem previsão na Lei n.º 9.307 de 1996, especificamente no art. 23, que dispõe que caso as partes não tenham convencionado, “o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses”.

Outro fator considerado como atrativo ao sistema arbitral é indicado por Inês Campolina. A autora expõe que o “sigilo é um importante instrumento negocial” e que é forçoso reconhecer as “implicações advindas da simples divulgação de ações judiciais envolvendo o nome da empresa[5]. O sigilo é peça central dos contratos comerciais em que as partes necessitam da confidencialidade para o sucesso da operação, especialmente aqueles contratos em que se verifica a presença de cláusula Non-Disclusure Agreement (NDA), a qual possui a função de proteger informações sensíveis e estratégicas para a empresa, evitando que estas sejam tornadas públicas e possam ser utilizadas por concorrentes[6].

Além disso, a autora destaca a vantagem da economia financeira, visto que “o procedimento arbitral geralmente é bem mais econômico que as custas e taxas que são pagas no Judiciário”. Por fim, acentua que a sentença arbitral é uma decisão técnica, na medida em que “é proferida por quem realmente conhece do objeto em litígio[7]. Embora a economicidade do procedimento arbitral seja discutível, como será deslindado adiante, em relação à tecnicidade, vale o realce da especialização das varas e câmaras arbitrais.

Conforme anotam Débora Chaves Martinez Fernandes e João Vicente Fernandez Pereira, por mais que o procedimento arbitral tenha algumas características vantajosas, a “cultura da arbitragem como substituto do Judiciário pode causar distorções no sistema brasileiro de resolução de conflitos empresariais”. Quanto a isso, os autores expõem a inovação do Tribunal de Justiça paulista em matéria empresarial:

Conquanto o TJSP já esteja dotado de Câmaras Reservadas à matéria empresarial, a coordenação do trabalho entre as duas instâncias facilita e agiliza o desenvolvimento, pelo Tribunal paulista, de jurisprudência coerente e de uma maior clareza do regramento comercial brasileiro – diminuindo os riscos e custos de transação, negociação, produtos e serviços, atraindo investidores e impactando positivamente empresários e consumidores.

O Brasil já tem excelentes provas dos benefícios da concentração temática desde a primeira instância. A jurisprudência do TJSP sobre a Lei nº 11.101/2005 se tornou referência consultiva e contenciosa para empresas em crises e seus credores durante o boom de recuperações judiciais dos últimos anos – e ousamos dizer que o trabalho conjunto das Varas de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo e das Câmaras Reservadas do TJSP potencializou os efeitos da uniformização rápida da boa jurisprudência.[8]

Sobre a mesma temática, Manoel de Queiroz Pereira Calças e Marcelo Guedes Nunes dissertam acerca do sucesso da criação de varas especializadas em direito empresarial e sublinham o aumento — significativo — de distribuições de demandas empresariais no TJSP, assinalando que “o ano de 2018 fechou com um total de 2.079 processos, um aumento de 84% na quantidade de disputas distribuídas quando comparado aos três anos anteriores”, e ressalta que “[s]e antes muitos empresários desistiam de recorrer ao Poder Judiciário por conta da excessiva demora e da insegurança sobre o resultado dos processos, hoje com a especialização o Poder Judiciário paulista passou a ser visto pela comunidade empresarialista como uma alternativa viável e competitiva para a resolução dessas disputas [9].

Contudo, apesar da alteração do cenário paulista quanto à eleição de foro judicial para solução de litígios em contratos nacionais, o mesmo parece não se confirmar na formatação de contratos internacionais entre empresas brasileiras e estrangeiras, pelo menos no mercado de mineração.

Indaga-se se a imposição do foro arbitral às pequenas empresas de mineração mitiga o atributo da autonomia da vontade empresarial, vez que a eleição de foro judicial é fator de risco para companhias estrangeiras, para se firmar contratos para exportação de minério com grandes players de outros países.

Há muito é consolidada na doutrina que, no âmbito dos contratos empresariais, vigora uma relação jurídica pautada na presunção de que ambas as partes são dotadas de conhecimentos específicos e que lhes dão autonomia para negociar cláusulas contratuais de acordo com seus interesses.

As teorias contratuais, em que pese serem de base civilista, explicam o fenômeno da autonomia da vontade na formatação de contratos. A teoria clássica expõe que a liberdade contratual independente produz certa autonomia para pactuar acordo conforme com os interesses, ao passo que a teoria contemporânea vem abordando a autonomia da vontade como “algo inadequado à realidade política, econômica e social atual[10], permitindo certo dirigismo contratual por meio do Estado-Juiz.

Na perspectiva judicial, o STJ já inclinou para a linha do dirigismo contratual em demandas que a relação jurídica empresarial era tipicamente empresarial. No bojo do REsp 1881149/DF, discutia-se a nulidade de contrato de franquia e a intervenção judicial, aplicando-se o princípio da boa-fé contratual como pedra de toque para solução do litígio. Assentou a Ministra Relatora Nancy Andrighi da 3ª Turma do STJ que “[n]esse contexto, a boa-fé objetiva, expressamente prevista no art. 422 do CC/02, assume especial relevo, à medida em que impõe aos sujeitos da relação jurídica o dever de agir com probidade, honestidade, lealdade e de modo a não frustrar as legítimas expectativas da contraparte”, e concluiu afirmando que“a execução do contrato pela recorrente por tempo considerável configura verdadeiro comportamento concludente, por exprimir sua aceitação com as condições previamente acordadas com a recorrida” [11].

Em outra oportunidade, a mesma 3ª Turma do STJ, em voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no REsp 1867551/RJ, optou por manter incólume o acordo de vontade estabelecido pelas empresas em contrato, afirmando que “a cláusula penal está inserida em contrato empresarial firmado entre empresas de grande porte, tendo como objeto valores milionários, inexistindo assimetria entre os contratantes que justifique a intervenção em seus termos, devendo prevalecer a autonomia da vontade e a força obrigatória dos contratos”.

Não se ignora que as empresas de mineração nacionais, ao firmarem contratos de fornecimento ou investimento com empresas estrangeiras, está a tratar de relação jurídica estritamente empresarial, a despeito do objeto social da empresa nacional estar vinculado às regras esposadas no codex minerário, e que, por tal razão, também estão sujeitas à legislação vigente. Portanto, as reflexões próprias do direito mercantil são aplicáveis aos contratos firmados entre empresas no ramo minerário, incluindo-se as posições jurisprudenciais quanto à análise de contratos empresariais.

A lógica do setor de mineração é pautada pela exclusividade do direito minerário, com isso se preserva a “regra da descoberta” de quem realizou a pesquisa e solicita a outorga para lavra do recurso mineral existente em dada área. Conforme ilustra Adriano Drummond Cançado Trindade:

A prioridade permite, assim, que a pequena mineração tenha acesso a áreas de pesquisa e, se for o caso, lavra mineral da mesma forma que a mineração de grande porte. Em última instância, as políticas empresariais de uma e de outra naturalmente depuração as preferências e buscas por jazidas[12].

Assim, pequenos empreendedores do setor mineral, ao fazerem pedido à Agência Nacional de Mineração para exploração de dadas áreas, podem fazer frente ao poder econômico de grandes empresas.

Dada a lógica do mercado minerário, no Brasil hoje, conforme apuração da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais de 2019[13], observa-se mais de 7 mil empresas de mineração em atuação.

No ano de 2017, segundo dados da Agência Nacional de Mineração, as micro e pequenas empresas mineradoras compõem quase 90% do setor mineral do Brasil, sendo assim disposto:

Fonte: ANM 2017. Valores relativos a ROM*, não sendo contabilizados aqui as lavras garimpeiras, licenciamentos e complexos de águas minerais.

A exportação de minério no Brasil tem sido grande vetor para o crescimento da economia. Em 2018, o setor exportou cerca de 410 milhões de toneladas, sendo a China a principal destinatária com aproximadamente 57% deste total. Em 2019, o setor exportou cerca de 360 milhões de toneladas, sendo 65% para a China[14].

Apesar do expressivo número de micro, pequenas e médias empresas no Brasil, tais empresas ainda sofrem dificuldades de atuação no mercado, seja pelo poder econômico, seja pela fragilidade nas áreas de tecnologia e acesso a novos mercados[15].

Constata-se, então, que em um cenário econômico no qual o maior comprador de minério brasileiro é um grande agente econômico mundial, permanece a indagação: micro e pequenas empresas do setor minerário nacional ostentam relação paritária frente aos compradores/investidores internacionais a ponto de eleger foro judicial para situações de litígio ao invés de estabelecer compromisso arbitral?

A resposta é negativa. A posição dominante das empresas estrangeiras influencia o comportamento das micro e pequenas empresas nacionais de mineração, na medida em que elas, em regra, não possuem estrutura econômica, jurídica e nem tecnológica para recusar qualquer disposição contratual advindas desses players estrangeiros.

Assim, eventual violação contratual por parte do contratante estrangeiro (ou investidor) deverá ser discutida em foro arbitral e nas câmaras arbitrais eleitas em contrato para tanto. De acordo com a realidade das micro e pequenas empresas nacionais, a princípio, os custos de instauração das câmaras de arbitragem e remuneração de árbitros é fator que inviabiliza o acesso à justiça.

O poder econômico da maioria das empresas que operam o setor minerário, demonstra a inviabilidade de instauração de procedimento arbitral para solução de litígios oriundos de contratos internacionais. É de se questionar se tal condição imposta pelas grandes empresas estrangeiras viola o corolário nacional de acesso à justiça.

Quanto ao conceito de custos e despesa com arbitragem, Thiago Marinho Nunes e Mariana Gofferjé Pereira expõem que os custos e despesas com a arbitragem são os gastos indispensáveis, relativos à administração do procedimento, como, por exemplo: honorários dos árbitros, despesas de viagem dos árbitros e do secretário do tribunal arbitral, honorários de eventuais peritos, despesas com a realização de audiências, incluindo custos de serviços de estenotipia, intérpretes, etc., e, finalmente, custos administrativos da instituição administradora do procedimento[16].

Além disso, outro fator que encarece o procedimento é o custo de instauração da câmara arbitral, o qual, geralmente, é calculado a partir do valor da causa que será objeto de análise pelos árbitros constantes daquela câmara. Ao pesquisar as despesas oriundas dos procedimentos arbitrais nas principais câmaras nacionais e internacionais, verifica-se que o importe, na maioria das vezes supera a casa de centenas de milhares de dólares, podendo-se chegar ao montante equivalente a quase 70% do valor da causa[17].

Não obstante a matéria de alto valor das custas judiciais já ter sido enfrentada pelo Poder Judiciário — concluindo pela ofensa à garantia de acesso à jurisdição —, o que culminou na edição da Súmula n.º 667 do Supremo Tribunal Federal[18], a questão relativa à arbitragem ainda pende de apreciação pelo Poder Judiciário do Brasil. Marcos Luiz de Melo denomina como “custo proibitivo” da arbitragem e conclui que restaria o socorro à jurisdição estatal para a solução da disputa, visto que a “jurisdição arbitral coloca obstáculo praticamente intransponível para seu acesso”, e justifica:

Ao impor óbices exorbitantes, desarrazoados, desproporcionais ao pleno exercício do direito de ação, estamos diante de impedimento do princípio da inafastabilidade da jurisdição, ante a impossibilidade material de levar à jurisdição arbitral ou estatal lesão de direito e excluindo a garantia da tutela jurisdicional efetiva. […]

A via de acesso à “Justiça”, […], deve caminhar pela via do Poder Judiciário, já que impossibilitada a própria instauração do processo arbitral, em face da abusividade das custas arbitrais, não sendo possível nem mesmo invocar o princípio Kompetenz-Kompetenz. Nesse caso, a via da jurisdição arbitral está obstaculizada, óbice já de início colocado pela exorbitância de custas arbitrais, que desafiam a razoabilidade e a proporcionalidade, e que impedem a própria abertura da porta de acesso arbitral para discutir o que quer que seja. [19]

Percebe-se que o autor conclui pela possibilidade de acesso à jurisdição estatal ante a abusividade dos custos e despesas de procedimento arbitral, sendo inclusive inviável invocar o princípio Kompetenz-Kompetenz para tanto. Conforme apontado, o STJ já excepcionou o aludido princípio em cláusulas compromissórias tidas por patológicas ou compromissos vazios (Resp 1082498/MT).

Ocorre que, sob à ótica analisada, o setor minerário ainda possui uma singularidade que teria o condão de despertar a análise pelo Poder Judiciário acerca da impugnação de cláusula compromissória: o direito minerário[20] como questão de ordem pública e imperativo de soberania nacional.

Para Flavia Muller David Araújo “[s]e o regime militar protegia a mineração de forma a garantir suas estratégias de defesa e de segurança nacional, a Constituição de 1988, além de pensar nisso, tratou também de tentar disciplinar a questão sob o viés econômico, como forma de exploração e de aumento do patrimônio nacional [21].

Embora a Constituição de 1988 autorize a exploração econômica por particular brasileiro ou empresas constituídas sob as leis nacionais – aqui não importando a composição de estrangeiros como sócios –, o exercício do direito minerário é regulado pela Agência Nacional de Mineração e precisa seguir um catálogo de regras para que possa exercer lavra de mineral em solo brasileiro.

A título de exemplo, a atividade de pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de recursos minerais na Faixa de Fronteira, bem como o exercício de atividade de mineração em terras indígenas possuem alguns fatores limitantes para aqueles que pretendem explorar tais áreas.

Constata-se, portanto, que tais matérias são dotadas de interesse nacional e de imperativo de ordem pública e, assim, caso algum compromisso arbitral ou laudo arbitral estrangeiro tenha se debruçado em tais matérias, permitirá ao Poder Judiciário julgar pela invalidade ou não homologação de laudos arbitrais por tais razões. Isso porque, não se trata, em alguns casos, de direito disponível, dependendo, por vezes, de autorização do Congresso Nacional, sob pena de ofender a ordem pública nacional.

Portanto, as demais matérias como abuso de poder econômico (violação à autonomia da vontade empresarial) e alto custo de instauração de procedimento arbitral não são razões suficientes para intervenção do Poder Judiciário, devendo as empresas nacionais de mineração demonstrar vício de vontade ou patologia no compromisso arbitral.

Já no que toca às matérias de interesse nacional em sede minerária, percebe-se que a intervenção judicial é factível, o que permite concluir pelo acesso franco à justiça, sem que viole os preceitos do princípio Kompetenz-Kompetenz do foro arbitral.

Como conclusão, pode-se constatar que o foro arbitral se demonstrou mais vantajoso ante à tecnicidade dos árbitros e sigilo do procedimento para resolução de controvérsias empresariais. No entanto, a institucionalização de varas e câmaras empresariais pelo Poder Judiciário brasileiro tem se mostrado otimista e com maior adesão nos últimos anos, fato que demonstra certa tendência de opção para eleição do foro jurisdicional, em oposição à escolha pela arbitragem.

Contudo, somente em casos excepcionais é que o órgão judicante tem afastado os compromissos firmados na relação mercantil. Com base nisso, a disparidade de poder econômico nem sempre será fundamento para análise de contratos comerciais com eleição de foro arbitral, isso porque a demonstração de abusividade de poder econômico deverá ser mais bem comprovada e admitida pelo Poder Judiciário.

Quanto às custas e despesas do procedimento arbitral, com a busca da legislação como fonte de previsibilidade para as decisões judiciais, é temerário estabelecer tal opção sem uma análise detida da questão. Assim, o mero custo da arbitragem, isoladamente considerado, não pode ser único fundamento para afastar o princípio Kompetenz-Kompetenz do foro arbitral no setor de mineração. Uma vez demonstrado que o direito minerário no Brasil guarda estreita relação com imperativos de interesse nacional e ordem pública, a modulação de tal princípio se mostra factível, principalmente em questões que envolvem operação de mineração em áreas sensíveis como, por exemplo, faixas de fronteira ou terras indígenas, onde a legislação nacional é mais restritiva e impositiva.

Portanto, a sensibilidade da temática “mineração” guarda singularidade e impende reflexão quanto ao compromisso arbitral e laudos arbitrais estrangeiros que envolvem tal matéria, haja vista a possibilidade de análise pelo Poder Judiciário em razão de eventual violação à ordem pública e ao interesse nacional.


[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgRg da Sentença Estrangeira 5.206-7, Reino da Espanha, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30.04.2004.

[3] BARRETO FILHO, Oscar. A dignidade do direito mercantil. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 68, n. 2, pp. 17-18.

[4] RECHSTEINER, Beat Walter. Arbritagem privada internacional no Brasil, teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28.

[5] CAMPOLINA, Inês Maria de Carvalho. op.cit. p. 69.

[6] REIS, Edgar Vidigal de Andrade. Startups: análise de estruturas societárias e de investimento no Brasil. São Paulo: Almedina, 2018, p. 125.

[7] CAMPOLINA, Inês Maria de Carvalho. op.cit. pp. 69-70.

[8] FERNANDES, Débora Chaves Martinez; PEREIRA, João Vicente Fernandez. Varas empresariais do TJSP: uma boa notícia. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/varas-empresariais-tj-sp-uma-boa-noticia-15022017

[9] CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira; NUNES, Marcelo Guedes. Um ano e meio das varas empresariais de São Paulo: um iniciativa de sucesso. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/varas-empresariais-sucesso-05082019

[10] VASCONCELOS, João Paulo Angelo; HUNGARO, Ana Paula do Carmo Galiciani; DOS SANTOS, Khetlen Eduarda Ferreira Marinho. Os contratos empresariais frente à pandemia da covid-19: excepcional abertura à solução judicial de conflitos parametrizada no princípio da preservação da empresa. In: Colloquium Socialis. ISSN: 2526-7035. 2020. p. 6.

[11] REsp 1881149/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 01/06/2021, DJe 10/06/2021

[12] TRINDADE, Adriano Drummond Cançado. A obtenção de direitos minerários segundo o regime de prioridade. In: FERRARA, Marina [et al]. Estudos de Direito Minerário. Belo Horizonte: Fórum, 2012. pp. 23-25.

[13] Disponível em: https://ibram.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Economia-Mineral-Brasileira-IBRAM-2020.pdf

[14] Disponível em: https://ibram.org.br/noticia/micros-e-pequenas-empresas-mineradoras-representam-quase-90-do-setor-mineral-do-brasil/

[15] VALE, Eduardo. Análise econômica das pequenas e médias empresas de mineração: relatório final. Brasília: CPRM, 2000, p. 77.

[16] Disponível em : https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/317140/breves-notas-sobre-custos-e-despesas-na-arbitragem-interna

[17] Disponível em: https://www.camaradearbitragemsp.com.br/pt/arbitragem/tabela-custas.html

Disponível em: https://www.camesbrasil.com.br/resolucao-de-disputas/arbitragem/tabela-arbitragem/

Disponível em: https://www.international-arbitration-attorney.com/pt/icc-arbitration-cost-calculator/

[18] Súmula 667, STF : «Viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa».

[19] MELO, Marcos Luiz. Custo proibitivo da arbitragem como óbice à jurisdição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-05/marcos-melo-custo-proibitivo-arbitragem

[20] PESSOA, Thiago Thomaz Siuves. A natureza jurídica do direito decorrente do título de concessão de lavra minerária. In: FERRARA, Marina [et al]. Estudos de Direito Minerário. Belo Horizonte: Fórum, 2012. pp 187-188.

[21] ARAUJO, Flavia Muller David. O licenciamento ambiental no direito minerário. 1ª ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2015, p. 78.


Luciano Ramos de Oliveira. Licenciatura em História. Bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. LLM em Direito dos Negócios e Governança Corporativa pelo IDP-Brasília. Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Advogado. Professor no curso de MBA do IDP-Online e na disciplina de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB.

José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Consultor independente e colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Advogado. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Colunista na plataforma WebAdvocacy.

Uma Réplica ao texto –Desestatização dos Correios no Brasil: Mais Uma Reforma Requerendo Urgência – César Mattos

Marco Aurélio Bittencourt

Adianto que discordo da análise esboçada no artigo quase que integralmente, principalmente em sua ênfase de urgência que vai na contramão do que se prega em termos de boa gestão pública (padrão alemão). Pressa infundada é de se desconfiar.

Inicialmente destaco que o texto remete para nota de rodapé quais atividades seriam monopólio em benefício à ECT. Vejamos:  atividades postais: I – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada; III – fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. Em síntese, a atividade que poderia ser de interesse do setor privado seria a de correspondência agrupada. Que venha a concorrência com o fim do monopólio estatal.

Ressalte-se que a receita para a ECT que vem do item postal como carta e impressos ou produtos que possam se enquadrar como carta não alcança a receita expressiva dos serviços Sedex e PAC. Vale lembrar que carta no segmento tradicional – simples correspondência entre pessoas comuns – tem receita recorrentemente decrescente. Mas na modalidade carta pode haver outros produtos como impresso, etc. Poderiam aproveitar e retirar também os privilégios licitatórios que porventura possam existir. Nada disso enfraqueceria o correio no seu formato atual; o estimularia a competir. O que é ótimo para o consumidor.

Mas no artigo não há indicativo em quanto tais privilégios de monopólio respondem em termos de receita da empresa. Creio que seja negligenciável se considerarmos o produto carta principalmente no seu padrão tradicional. E mesmo que fosse de alguma monta, seria necessário avaliar a viabilidade econômica do surgimento de uma empresa concorrente – neste segmento de carta o caráter de monopólio técnico seria justificável. Por isso, não vejo sentido em se falar do monopólio da correspondência por carta como um privilégio – quem estaria interessado em prestar este serviço e, como sugere o articulista, minguará e talvez até mesmo desapareça? Mais um ponto. Mesmo que a receita da ECT fosse afetada por privilégios de monopólio, a regra de regulação implícita na sua configuração jurídica atual entabularia automaticamente o ajuste, forçando despesa a ser igual a receita, quando da retirada do privilégio de monopólio ou por qualquer outra razão.

 O articulista coloca a mudança da configuração jurídica da empresa como se fosse uma vantagem. De fato, poucos entendem ou parecem não entender o que significa em termos regulatórios empresa pública no Brasil. Significa que receita tem que ser igual a despesa; o que equivale, nos termos regulatórios, uma regulação pelo custo médio. Como se sabe, tal regulação exige governança focada sobre os custos, porquanto a negligência nos custos acarretaria, como opção simples, reajustes tarifários para igualar receita à despesa. Essa regra, embora possa sugerir negligência com custos, pelos limites contábeis de receita = despesa, inibe o surgimento de crescimento de receitas exponencialmente. Evidentemente, se há uma negligência regulatória de fazer valer tal regra, o desbalanceamento entre receita e despesa pode induzir a aumento de gastos. De fato, nunca tive notícia de que o governo tenha confiscado receita da ECT, quando os resultados positivos da empresa apareceram de forma sistemática. Mesmo no caso adverso, a regulação implícita na regra receita = despesa que as empresas públicas deveriam observar, duas vias de solução imediata seriam possíveis:  redução de gastos (correntes ou de investimento) ou reajuste tarifário. Quanto ao caso de necessidade de aporte de capital, nada, a princípio, indica sua necessidade, porque, em caso de necessidade de investimento de longo prazo, os recursos poderiam vir do setor privado, através de empréstimos. O BNDES seria o caminho natural ou até mesmo o sistema financeiro privado. Se a situação fosse tal que exigisse ajustes estruturais, a regra despesa = receita poderia também ser posta em prática de forma efetiva. O certo é que não há nada que obrigue a União aumentar ou fazer aporte de capital – geralmente é uma opção burocrática e não atende necessariamente ao interesse público.

Não há nada de extraordinário nessa mudança na forma jurídica da empresa e só faz colocar na empresa mais uma amarra de gestão, abrindo caminho para uma burocracia que usualmente se mostra pilhadora e concentradora – os planos de demissão voluntaria mostram exatamente isso: um grupo na instituição se acha melhor do que os demais funcionários e pedem, em nome de ajustes, a cabeça dos que estão hierarquicamente em posição inferior. Evidentemente, as nossas leis trabalhistas garantem um pouco de estabilidade para a turma CLT. Não é por outra razão que tais planos de demissão carregam o adjetivo voluntaria.

Outras consequências importantes e trágicas pela mudança da forma jurídica – de empresa pública para sociedade de economia mista – envolveria o aparecimento de um componente tarifário sujeito a um processo de indexação que só extrapolaria as tarifas dos seus verdadeiros custos, além do incentivo às estratégias de conluio e cartelização. O articulista cita que “as tarifas poderiam ser diferenciadas geograficamente, com base no custo do serviço, na renda dos usuários e nos indicadores sociais. A regra de reajuste das tarifas do serviço postal universal concebida na Câmara será anual, adotando-se o modelo de price-cap, que se baseará na variação do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado-IPCA, podendo incluir um fator de desconto. Foi prevista também a revisão das tarifas com base nos indicadores de qualidade do serviço em um típico mecanismo de regulação de incentivos. Assim, o operador designado responsável pelo serviço universal, a ECT (que será renomeada para “Correios do Brasil”), contará com incentivos regulatórios para melhorar a prestação de serviço.”

Um arrazoado ilógico, pois desconsidera o esforço de se combater práticas de políticas de preço que carreguem inércia inflacionária; uma indexação vexatória para quem se diz amante do mercado. Isso me lembra os economistas tantãs da ditadura ao inventarem todo tipo de controle de preços. Abrir mão de uma estratégia regulatória simples e eficiente, como a de empresa pública, em prol de uma estratégia que embute fator inflacionário inercial (e talvez esse seja o problema fulcral da nossa privatização) além, como veremos, de incentivo à cartelização, denota que chegamos ao absurdo da privatização. Esses seriam os pontos críticos dessa privatização.

Além disso, se considerarmos que a precificação seria regional, decretaremos o fim do serviço postal em muitas regiões. A prática tarifária dos correios que já vem há décadas garante a universalidade dos serviços e atende a regra regulatória. Havendo subsídio cruzado, a regra receita = despesa já carrega a solução no âmbito da empresa e não a extrapola diretamente para toda sociedade.

Quanto ao caráter de incentivos à cartelização, baseia-se no fato de que, se privatizarmos os correios, estaríamos enfraquecendo a concorrência, porque a ECT se destaca no segmento encomenda e neste segmento não há monopólio. A sua liderança (ou a de quem quer que seja) obriga que as empresas que atuam nessa franja se ajustem às tarifações da ECT. Como a tarifação da ECT é eficiente em termos regulatórios, abriríamos espaço com a privatização para o comportamento cartelizado das empresas já que seguem a regra de maximização de lucros. O conluio entre as empresas seria possível. Exatamente o que devemos evitar!!!!! 

Portanto, não há nenhuma vantagem em mudar a configuração jurídica da empresa ECT. É exatamente o que não deveria fazer um bom órgão regulatório, porque mesmo não havendo monopólio estatal, a dimensão da empresa requer, para combater o poder de mercado, alguma estratégia reguladora. Transformá-la em sociedade de economia mista em nada contribuiria para a regulação eficiente como é o caso de uma empresa com o status de empresa pública em que os ajustes regulatórios são totalmente endógenos – claro, a vigilância quanto à negligência aos custos é necessária, embora seja mais importante fazer valer a regra contábil.

 O problema das estatais, e nesse caso inclui-se a ECT, estaria na ausência de uma boa governança. Que se diga logo: não vejo nada no atual governo (e em governos passados também, obviamente) que aponte para uma governança a levar a recuperação do padrão de gestão que a empresa teve em épocas passadas. Eu trabalhei nos correios na década de 1980, na assessoria do Departamento de Finanças, e pude presenciar uma gestão autocrática, mas dentro dos parâmetros de eficiência e inovação. De fato, a primeira medida que o governo (principalmente este que se diz sério ou pretende ser) teria que tomar seria promover a melhoria na governança das empresas estatais e não há nada complicado nesse padrão ideal de governança das estatais. É trivialmente simples estabelecer regras que ajudem a preservar o interesse público, mesmo considerando perspectivas sombrias para o comportamento dos agentes públicos.

Ter uma visão privatista como axioma de gestão revela-se claramente dogmática ou ideológica. Mas isso não respeita a constituição que não estabelece tal orientação. O que demonstra o repetir cansativo de privatizar, privatizar, privatizar (Friedman, embora tardiamente, fez a ressalva: antes de privatizar, privatizar, privatizar teríamos que regular, regular, regular) é uma atuação orquestrada da burocracia: geralmente funcionários com salários fora do mercado a promoverem políticas que eliminem os concorrentes ao caixa do Estado ou que promovam interesses privados não tão republicanos. A terceirização dessa turma poderia ser uma solução (outra jabuticaba brasileira que só pega os pobres e miseráveis, poupando a classe média alta), mas não conta com meu apoio, porque o resultado seria a destruição plena do padrão salarial brasileiro. O empenho é para que todos possam se beneficiar do padrão salarial ideal ou desejável. Mas adianto aqui uma regra de gestão simples, para evitar funcionários públicos audaciosos: demissão do funcionário público que promover ou propor a destruição do padrão salarial e o fim dos concursos públicos. Um simples processo seletivo e talvez até mesmo cotas é o que recomendaria. Claro, aqui me afasto do liberalismo raiz que nunca vi proclamado pela turma privatista que tem cargos na burocracia estatal: o arranjo do leiloeiro walrassiano.

O articulista fala da lógica empresarial da ECT considerando informações fora do âmbito da própria ECT; o que demonstra desconhecer ou não querer conhecer a realidade operacional e financeira da empresa. A ECT está enfrentando as mudanças tecnológicas e de demanda de forma acertada, conforme se depreende de seus resultados contábeis.

Nada do que foi dito pelo articulista quanto ao padrão de gestão atual da ECT comprova que a empresa não esteja no caminho certo. Evidentemente, o desconhecimento da forma de tarifação dos correios pode sugerir que no segmento encomendas o correio pudesse ter um padrão aquém das expectativas, muito embora o montante de receitas nesse segmento aponte exatamente o contrário. Mas o articulista opta por considerações exógenas à empresa e não encara o problema per se. Bom destacar que nesse segmento dinâmico da indústria não há monopólio público.

Afirmações que não respeitam a lógica poluem o texto. Cito por exemplo a seguinte passagem: “Ainda que não exista um modelo único de correios no mundo, a OCDE (1999)[2] considera que a abertura ao capital privado e o fim do monopólio são fundamentais para a melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços…” São considerações puramente axiomáticas e de mãos dadas com uma ideologia liberalizante. E cada um tem a sua. O ponto correto é a retirada do monopólio – que, de fato, nem se apresenta como condição restritiva. Mas o que defende o articulista não gera a implicação de que há de se privatizar os correios.

Para piorar a sua argumentação, tenta fazer crer que os correios nos padrões atuais se depreciariam ou desapareceriam. Diz o articulista que “a dramática redução na demanda de serviços de correspondências se deriva da simples constatação que pessoas de todas as classes sociais atualmente se comunicam umas com as outras por meios alternativos como e-mail ou whatsapp. De outro lado, foram incrementadas substancialmente as encomendas de bens, caracterizando um outro tipo de necessidade do consumidor. “De novo, faz-se consideração mercadológica sem levar em conta os resultados que a ECT apresenta e muito menos a missão da empresa que espelharia seu planejamento. Faz sugerir que a empresa como um todo tem prejuízo sistemático por conta dessa atividade. Esquece como se faz a tarifação nos correios. Esquece dos resultados contábeis da empresa. Esquece do lado operacional da ECT. Esquece do grupo técnico de excelência da ECT.  Como tudo indica que há um bom resultado nesse período de gestão bolsonarista, os órgãos reguladores deveriam mesmo é se empenharem na redução tarifária, cumprindo-se a regra receita =despesa; o que certamente não agradaria a franja toda dessa indústria.

Indica-se no artigo da necessidade de investimento e sugere que a União é quem provê os recursos. De fato, o articulista não indica ou faz referência (demonstrando não conhecer) aos planos de investimento da empresa, bem como ao seu padrão contábil que pudesse comprovar tal situação de pindaíba empresarial. Os resultados contábeis atuais não sugerem isso. Segundo, não há nada que obrigue que os investimentos sejam financiados por aporte de capital. Empresa pública significa que o padrão a ser seguido é o de receita = despesa. Assim, havendo necessidade de investimento, a empresa poderia recorrer ao mercado de crédito e principalmente ao BNDES. Aumentar o capital da empresa com aporte da União é uma possibilidade, mas não uma exigência técnica.

Existe um plano de investimento da empresa que está sujeito a interferência do Ministério das Comunicações. O que aconteceu nesse ambiente? É de se estranhar a introdução dessa nova jabuticaba, porquanto o efeito, se valer a privatização sem aporte da União, seria a redução no ágio da empresa ou no valor das ações por conta da privatização.  Antes, a praxe era arrumar a casa em seus possíveis ou aventados desvarios de custeio. Agora, entra em cena os desvarios de investimento. Na verdade, teremos mais um novo capítulo no esquema de privatização tupiniquim.

No tocante ao impacto trabalhista, há de se ressaltar o padrão salarial do setor público que é bem superior ao padrão privado. A privatização certamente reduzirá o padrão salarial; o que por si só é péssimo. Evidentemente que a crítica relevante sobre o padrão salarial atual da ECT seria se ele reduz de forma significativa a capacidade de investimento da empresa, estando fora, portanto, de um padrão tecnológico e econômico eficientes. Não há estudo sobre isso e seus resultados contábeis apontam para eficiência econômica, embora a atuação regulatória seja simplesmente precária.

Quanto aos planos de demissão voluntaria, seja qual for a razão, deveria garantir a renda permanente do trabalhador e não nos termos que a burocracia sugere aos legisladores.  Como diz o ditado popular: pimenta na sopa dos outros é refresco. Isso retrata o essencial: a falta de ética da burocracia. O que só confirma o caráter quadrilheiro dessa turma burocrática tupiniquim, exatamente como prevê a literatura em escolha pública.

A assertiva do articulista de que as remunerações da estatal tendem a ser negativamente correlacionadas às reais competências dos funcionários carece de mínima prova indicativa de que tal ocorra na ECT. Tal assertiva talvez valha não para as estatais, mas para os estatutários, principalmente dos órgãos do legislativo e judiciário. Existem planos de cargos e salários nas empresas estatais coordenados por departamentos de recursos humanos. No caso da ECT, existe uma política de treinamento e qualificação de excelência que se espelha no seu centro de treinamento técnico, em destaque para a escola de administradores postais criada na década de 1970 que hoje carrega o status de universidade.

Desconheço estudo que possa minimamente garantir que esse é o caso dos correios – correlação negativa entre salário e competência. De fato, nunca ouvi falar que um carteiro ocupe ou possa ter ocupado função por exemplo de gerente financeiro que é exercida pelos administradores postais (o equivalente à função dos bacharéis em administração). Claro, no período petista, os sindicalistas assumiram posição de gerência e muitos deles tinham pouca qualificação. Não é atoa que a imagem do  PT está bem prejudicada e, juntamente com o partido político, a de seus operadores, como os sindicalistas. Mostraram atuar como verdadeira quadrilha e novamente com a complacência (sendo generoso no meu julgamento) da burocracia em geral. De novo, o retrato indica a falta de governança que poderia ser facilmente melhorada, se contássemos com regras legais votadas no parlamento. Observe-se ainda que a bagunça administrativa também alimenta o raio de ação e de poder de políticos e burocratas. E a privatização nos termos aqui defendida certamente aumentará a burocracia regulatória, porque abre-se mão de uma regulação com componente endógeno de valor – o padrão empresa pública e se estabelece regras de revisão tarifaria indexada e criam-se incentivos para a cartelização.

O articulista fala em franqueados e esquece de falar que isso demonstra que a empresa já está parcialmente privatizada. Sugere ainda que funcionários poderiam conseguir franquias; simplesmente desconheço que algum funcionário tenha algum dia conseguido o privilégio de ter uma franquia. Entendo como algo esquisito o silencio da turma franqueada, porque certamente serão onerados com a privatização. Digo isso, já que a estrutura atual dos correios atenderia a lógica acumulativa dos novos donos, no caso de a empresa ser privatizada. Mais ainda um outro ponto a ser trazido a baila. Existe uma contabilidade envolvendo essas empresas franqueadas que o articulista simplesmente desconhece; o que denota que regulação no Brasil tem as suas piadas se não for a própria.

A ECT segue um padrão tarifário consagrado e que tem como consequência a universalização dos serviços postais e homogeneidade tarifária.  Isso sempre esteve nas nossas leis e regulamentos que tratam dos correios, respeitando-se convenções internacionais que a empresa sempre participou e já tendo um brasileiro, ex-presidente da ECT, como dirigente máximo da União Postal Internacional. Quanto aos problemas tarifários, o que se quer saber é se os serviços que têm caráter deficitário (pelo menos parcialmente) serão mantidos e subsidiados; o que indica certamente ser um contrassenso a privatização da ECT. Sabe a turma privatista que o empresário não irá assumir atividades que gerem prejuízos. O esquema atual da ECT como Empresa Pública contorna esse problema. O projeto de privatização   vai garantir a solução do problema tarifário com subsídios cruzados por tempo determinado; depois que se lasquem os usuários desses serviços. Certamente, como a lógica tem que ser lucro máximo (ainda bem que assim), os segmentos deficitários seriam eliminados. E se a lei exige a manutenção dos serviços, quem pagará? Tudo isso, no caso de ser a empresa privatizada nos termos presente, seria refletido no deságio ou nas tarifas. Na verdade, o assunto demonstra que os correios não deveriam ser privatizados e muito menos deixar de ser empresa pública que carrega um fator endógeno de regulação que agora poderia se perder com a ideia descabida de torná-la sociedade de economia mista. Exatamente o que um bom regulador não faria.  Tal privatização injustificada sugere outros interesses ou a prevalência do canto da sereia. Mais a frente falarei sobre isso.

Poderiam retirar o monopólio e manter a ECT como empresa pública. Onde estaria o problema? O problema está exatamente na sua privatização.

Em resumo, não existe uma linha nesse artigo que demonstre a urgência da privatização. Talvez a urgência seja apenas uma estratégia para esconder o indefensável. Uma lástima. De fato, a turma privatista nunca alinha os prós e contras. Os argumentos favoráveis seriam a redução dos gastos públicos, redução tarifaria e garantia de investimentos. Quanto à questão do padrão salarial, muitos argumentariam que é uma questão de mercado. Algo que aceito parcialmente, porque sei bem o que é ter amparo trabalhista do ponto de vista legal. Os argumentos contra seriam os mesmos da pró-privatização, mas com sinal invertido. Então, fazendo as contas. Redução dos gastos públicos é simplesmente retórica e arranjo da burocracia, porque a regra de regulação da ECT é clara: empresa publica exige receita=despesa. Quanto à tarifação, certamente pode inicialmente ficar aquém, mas a custa do desaparecimento de serviços deficitários como a remessa de cartas para pontos longínquos. E pior, pela estratégia que carrega o fator inercial, o aumento sistemático das tarifas ocorrerá. Se ainda prevalecer o conluio empresarial como sói acontecer em indústrias propícias à cartelização, mais uma razão para o poder de mercado aumentar. Quanto ao ponto do investimento, o efeito negativo é óbvio. O que se quer é avançar sobre a estrutura física da ECT que tem, dentre outras coisas, centros de triagem que funcionam a contento. A Amazon não tem tal padrão, pelo menos no Brasil. Mas até aí tudo bem, porque a estrutura não seria extinta. Mas o poder de monopólio da empresa Amazon aumentaria. Entretanto, há mais considerações em relação à estrutura física. Os correios estão presentes em quase todos os municípios brasileiros que têm um padrão mínimo de urbanização. E já estão presentes há tempo. Isso significa que a ECT é proprietária de imóveis valiosíssimos. O efeito imediato seria a dilapidação urbana (coisa que poucos se importam) com o sumiço desses imóveis. O que está em jogo é o butim público. As receitas com Sedex e PAC, juntamente com o patrimônio da ECT aguçam o apetite dos burocratas corruptos e empresários de quinta categoria. Ainda poderíamos incluir possíveis interesses escusos sobre o Plano de Previdência dos funcionários dos correios. Uma quadrilha que não é de forró. Evidentemente o canto da sereia da ideologia privatista pode atuar tal qual a parábola de Ulisses e a Sereia. O melhor a fazer é tapar os ouvidos aos cantos das sereias.

Portanto, o que é urgente é abortar essa privatização infundada tecnicamente. Não vejo razão técnica para privatizá-la. Pelo contrário; urge mantê-la no padrão de empresa pública e que se proceda a uma governança que elimine todos os vínculos políticos que porventura ainda possam existir e garanta que os funcionários não extraiam rendas indevidas da instituição.

* Doutor em Economia. Ex-funcionário da ECT – Assessoria do Departamento de Finanças e Professor de Gestão Pública do IFB.

CADE e Banco Central na defesa da concorrência do mercado financeiro

Leandro Oliveira Leite

O mercado bancário brasileiro tem passado por mudanças importantes nos últimos anos, impulsionadas principalmente pelo desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócios. Nesse contexto, o PIX, a segmentação financeira, os bancos digitais, o WhatsApp Pay, o Open banking e a Autonomia do Banco Central do Brasil (BCB) são alguns exemplos de iniciativas que contribuíram para tornar o mercado bancário mais eficiente.

A colaboração entre o Banco Central e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) é essencial para garantir um mercado financeiro saudável e competitivo. As responsabilidades complementares de ambas as autarquias permitem uma supervisão mais eficaz do mercado financeiro e uma resposta mais ágil a possíveis problemas de concorrência. A colaboração também ajuda a promover a inovação e a entrada de novas empresas no mercado financeiro, o que beneficia os consumidores.

Enquanto o Banco Central tem competência em supervisionar e regular o Sistema Financeiro Nacional (SFN), o CADE é responsável por garantir que as empresas do setor financeiro cumpram as leis antitruste e promovam a concorrência saudável, sendo responsável por investigar e punir as empresas que violam as leis de defesa da concorrência. Isso inclui o combate a práticas anticompetitivas no mercado financeiro, como acordos de fixação de preços ou ações para limitar a entrada de novas empresas. O CADE também pode avaliar previamente as fusões e aquisições do setor e tomar medidas preventivas quando necessárias.

O Banco Central, por sua vez, possui competências complementares ao CADE na medida em que é responsável por monitorar e regulamentar a entrada de novas empresas no mercado financeiro, principalmente no caso das fintechs. O termo em inglês Fintech vem da junção das palavras financeiro e tecnologia, se tratando da tecnologia e inovação aplicadas na solução de serviços financeiros e que competem diretamente com o modelo tradicional ainda prevalente do setor. Deste modo, empresas startups que buscam operar e aperfeiçoar serviços financeiros através de soluções tecnológicas são consideradas empresas fintech.

De uma forma geral, as fintechs fazem uso de tecnologias como Inteligência Artificial, Computação em Nuvem e Big Data para criar um ambiente totalmente digital e automatizado, distribuído para seus clientes nos diversos canais digitais existentes, sobretudo smartphones. Isto permite que as empresas trabalhem de maneira remota, sem a necessidade de agências físicas ou mesmo de operadores humanos, como é o caso do atendimento operado por bots.

Trabalhando na fronteira da inovação, o CADE tem atuado na melhor eficiência do mercado com o uso das tecnologias e o Banco Central tem criados incentivos para promover a concorrência, seja com (i) a segmentação regulatória financeira, (ii) o Sandbox Regulatório e (iii) o Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas (LIFT). Este último tem-se oferecido um ambiente tecnológico controlado para que as empresas testem novas ideias e produtos financeiros. Isso permitiu que novas empresas concorram com os bancos tradicionais e tragam inovação e benefícios para os consumidores.

A segmentação financeira instituída pelo Banco Central, por sua vez, é uma classificação das instituições financeiras em cinco categorias (S1 a S5), de acordo com sua complexidade operacional. Essa classificação é utilizada pelo Banco Central para atender às exigências regulatórias às características específicas de cada instituição. Esse modelo tem permitido que os bancos mantenham produtos e serviços mais adequados às necessidades de cada segmento, ou seja, quanto maior for a instituição financeira maiores serão as exigências normativas, tratando os desiguais na exata medida de suas desigualdades normativas.

Corroborando com este entendimento, o Sandbox Regulatório é um ambiente controlado criado pelo Banco Central para permitir que as empresas testem novos produtos e serviços financeiros, sem estar sujeitos a todos os requisitos regulatórios de forma imediata, desde que cumprem com requisitos mínimos de segurança e proteção ao consumidor. Nesse sentido, o Sandbox Regulatório do Banco Central tem se mostrado uma importante ferramenta para a concorrência, uma vez que permite que novas empresas entrem no mercado e aumentem a competição entre as instituições financeiras.

Ao fomentar a inovação no mercado bancário, o programa contribui para a diversificação dos produtos e serviços oferecidos pelas instituições financeiras, bem como para a redução dos custos e melhoria da eficiência no setor. Isso traz benefícios tanto para os consumidores, que têm acesso a produtos e serviços mais adequados às suas necessidades, quanto para as empresas, que conseguem se diferenciar no mercado e conquistar novos clientes. Além disso, aumenta a pressão competitiva sobre as instituições financeiras tradicionais, inibindo a possibilidade de práticas anticompetitivas, como a formação de cartel ou a criação de barreiras à entrada de novas empresas.

Outra inovação importante no mercado bancário foi o PIX (pagamento instantâneo brasileiro), em que permitiu a transferência imediata de dinheiro entre bancos e instituições financeiras em tempo real e sem custo para o usuário final, eliminando a necessidade de intermediários e atendendo os custos e tempo das transações financeiras. Com isso, o PIX trouxe maior eficiência ao mercado bancário e caiu no gosto popular.

Estas inovações têm contribuído para a extensão do acesso aos serviços financeiros, bem como para a redução dos custos de transação no mercado bancário, uma vez que elimina a necessidade de intermediários e torna as transações financeiras mais rápidas e seguras. Uma das principais vantagens apontadas pelo modelo é a maior acessibilidade e praticidade por parte dos clientes, promovidas pela difusão do produto em smartphones.

O WhatsApp Pay, por exemplo, integrado ao PIX, permite que as pessoas façam pagamentos e transferências de dinheiro diretamente pelo aplicativo de mensagens, sem a necessidade de baixar um aplicativo bancário separado. Apesar de inovações polêmicas, como no caso do WhatsApp Pay, o Banco Central e o CADE têm atuado em conjunto para monitorar e garantir a melhor concorrência no mercado de pagamentos, tornando o processo mais fácil e conveniente para os usuários, garantindo a eficiência em menos cliques.

O Open banking é outra sacada do regulador que permitiu que os clientes compartilhem seus dados bancários com outras instituições financeiras, o que facilita a criação de produtos financeiros personalizados e adaptados às necessidades de cada cliente. Com isso, o mercado bancário se torna mais eficiente ao oferecer produtos e serviços que atendam melhor às necessidades dos clientes, avaliando-o melhor e reduzindo as taxas do crédito. O Open Banking é um conjunto de tecnologias e padrões que permitem o compartilhamento de dados financeiros entre instituições, de forma segura e padronizada.

Por fim, assim tão importante quanto a função judicante do CADE de entidade independente – a exemplo das agências reguladoras, a recente autonomia do Banco Central permitiu que possa atuar de forma mais eficiente na condução da política monetária e cambial do país, garantindo a estabilidade do sistema financeiro e a manutenção da estrutura da livre concorrência. Isso contribui para a eficiência do mercado bancário, criando um ambiente de estabilidade e confiança, bem como favorece a concorrência e o desenvolvimento do setor.

Em resumo, todas essas iniciativas têm em comum o objetivo de tornar o mercado financeiro mais eficiente, mais acessível e mais inovador, desejável para a promoção da concorrência e para o benefício dos consumidores. Tanto o Banco Central quanto o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ilhas de excelência no serviço público, têm papéis importantes na promoção da concorrência no Sistema Financeiro Nacional (SFN). Esses avanços até aqui, com o uso consciente de tecnologias para tornar os serviços financeiros mais acessíveis e mais baratos, tem contribuído para aumentar a previsibilidade, confiança e a transparência das políticas públicas, o que tem efeitos de externalidades positivas sobre a economia como um todo.

Bibliografia:

Banco Central do Brasil. Memorandos de entendimento entre o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 2018. Disponível em: https://www.Banco Central.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/memorando_cade_bc_28022018.pdf

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Banco Central do Brasil. (2020). Resolução BANCO CENTRAL nº 25, de 24 de fevereiro de 2020. Estabelece os requisitos e as condições para a prestação de serviços de pagamento iniciados por meio de dispositivos móveis. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-25-de-24-de-fevereiro-de-2020-245854155

Banco Central do Brasil. (2021). Openbanking. https://www.Banco Central.gov.br/estabilidadefinanceira/openbanking

Banco Central do Brasil. (2021). Segmentação de clientes e de produtos no Sistema Financeiro Nacional. https://www.Banco Central.gov.br/estabilidadefinanceira/segmentacaodeclientes

Banco Central do Brasil. (2021). Autonomia do Banco Central do Brasil. https://www.Banco Central.gov.br/autonomia

Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). (2021). Atuação do CADE no Sistema Financeiro Nacional. https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/sistema-financeiro-nacional

Conselho Monetário Nacional (CMN). (2012). Resolução CMN nº 4.196, de 31 de dezembro de 2012. Dispõe sobre o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER) e estabelece critérios para a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/2011/Lei/L12431.htm#art9

GALLO, F. et al. Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE): concorrência no Sistema Financeiro Nacional. Escola Nacional de Administração Pública, 2014. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/5199/1/2-lugar-tema-1-profissional.pdf

Gazeta do Povo. (2021). Sandbox regulatório: entenda como funciona e sua importância para fintechs. https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/startups/sandbox-regulatorio-entenda-como-funciona-e-sua-importancia-para-as-fintechs/

Jornal Valor Econômico. (2021). BC cria laboratório de inovações tecnológicas financeiras. https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/05/25/bc-cria-laboratorio-de-inovacoes-tecnologicas-financeiras.ghtml

LUIZ, RPS O papel do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) na defesa da concorrência no Sistema Financeiro Nacional. Revista de Direito, Viçosa, v. 7, n. 1, pág. 91-105, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/revistadir/article/view/6280/5508

MENDONÇA, S. B.; IVO, F. de P. O conflito de competência entre o Cade e o BACEN sob a ótica do princípio da eficiência. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 7, n. 1, p. 160-187, 2019. Disponível em:  https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/422.

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ROS, LG Análise do papel regulatório do Banco Central do Brasil no mercado de serviços financeiros brasileiros. 2014. 91 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/9957/1/2014_LuizGuilhermeRos.pdf

SOUZA, ER et al. Concorrência no Sistema Financeiro Nacional: atuação do Banco Central do Brasil e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. São Paulo: Revista USP, n. 106, pág. 131-147, 2015. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001272661

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VASCONCELLOS, MAS de; SILVEIRA, FGA (Org.). Sociedade e Economia: estrutura produtiva, trabalho, tecnologia e instituições. Rio de Janeiro: Ipea, 2007. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3225/1/Livro_Sociedade


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Obs. Este artigo foi escrito no curso de defesa da concorrência da WebAdvocacy ofertado no primeiro semestre de 2023 e não reflete a opinião pessoal do autor.

É mesmo necessário regular plataformas digitais? Por quê? Como? Por quem?

Lucia Helena Salgado & Bianca Mollicone

Plataformas digitais são empresas de tecnologia que operam como intermediários entre ofertantes e demandantes, em mercados de dois ou múltiplos lados. Como desenho de negócios, não são uma inovação da era digital; veículos de comunicação (jornais) e de meios de pagamento (cartões de crédito) são exemplos mais antigos e conspícuos de mecanismos facilitadores e multiplicadores de transações entre compradores e vendedores. Nem mesmo a aparente gratuidade de serviços de redes sociais ou busca é uma invenção das plataformas digitais: basta recordar o exemplo do rádio e tv aberta, remunerados pela propaganda.

O que há de disruptivo na economia de plataformas é algo de dupla dimensão: de um lado o tratamento de dados dos usuários – coleta e análise crescente por poderosas ferramentas de inteligência artificial, utilizados como fonte de geração de valor (monetização); de outro lado a amplitude planetária do fenômeno, capaz de influenciar os rumos da economia e sociedade nas mais diversas jurisdições. As grandes empresas de tecnologia souberam aplicar resultados de décadas de pesquisa em ciência básica – a internet, o gps, a transmissão de dados por satélites e por fibras óticas – em produtos e serviços. A economia do conhecimento e da informação, potencialmente geradora de bens públicos e bem-estar, deu lugar neste século a tecnologias proprietárias, incorporadas ao modelo de negócios em plataformas, dando origem à concentração de poder econômico até então jamais vista na história humana.

A dominância exercida hoje pelas plataformas tecnológicas reproduz em escala superior o movimento de centralização e concentração de capital do final do século XIX e início do século XX, protagonizado pelas indústrias mais dinâmicas naquele período, formando trustes e cartéis: energia, metalurgia, siderurgia, ferrovias. Nos Estados Unidos, epicentro desse processo, as transformações do ambiente econômico geraram desconfiança e revolta nos mais diferentes segmentos entre empresários, trabalhadores e consumidores, traduzindo-se em ácidas críticas, nas ruas e nos meios de comunicação, aos riscos à democracia e aos princípios formadores daquela sociedade impostos pela monopolização de indústrias.

O mal-estar provocado pelo visível desequilíbrio de forças na sociedade em favor dos segmentos mais avançados e concentrados da indústria canalizou-se no Congresso norte-americano para a legislação que gerou as inovações institucionais que hoje tão bem conhecemos. Da mesma forma que a demanda social por uma resposta política à concentração de poder econômico naquele momento deu origem ao antitruste e à regulação de serviços de utilidade pública, em diversas jurisdições hoje (tendo a União Europeia à frente), estuda-se e debate-se o que fazer para frear a dominação exercida pelas plataformas digitais.

A União Europeia (UE) promulgou recentemente duas leis regulando serviços digitais. O Digital Services Act (DSA), cujas regras para operação de plataformas entraram em vigor em novembro de 2022, determinando às empresas digitais o envio de dados em fevereiro deste ano. Com base neles, a Comissão Europeia adotou, em 25 de abril de 2023, as primeiras decisões de designação previstas no DSA, apontando dezessete plataformas[1] como “Very Large Online Platforms” (VLOPs) e duas como “Very Large Online Search Engines” (VLOSEs), que atingem pelo menos 45 milhões de usuários ativos mensais. A partir da designação, essas plataformas e mecanismos de busca terão quatro meses para estar em conformidade com as novas obrigações, o que deverá ocorrer até setembro de 2023.  Empresas e Estados nacionais têm prazo para adaptação às regras até fevereiro de 2024.

O DSA, embora tenha um escopo bem mais amplo, serviu de inspiração ao PL 2.630/2020 (“PL das Fake News”). O PL busca estabelecer regras para a geração e divulgação de conteúdo pelas plataformas, responsabilizando-as solidariamente pelo conteúdo veiculado em caso de distribuição por meio de publicidade ou do descumprimento do dever de cuidado trazido pelo novo texto do Projeto.

A segunda lei é o Digital Market Act (DMA), que entrou em vigor na EU em 1º de maio deste ano, estabelecendo ex-ante as condutas proibidas às denominadas Gatekeepers. O DMA define regras de conduta (“do’s and dont’s”) buscando impedir, antes que ocorram, abusos de posição dominante. Seguindo os debates e estudos travados desde 2019, a lei cria uma mescla de antitruste e regulação assimétrica, ao estabelecer a proteção da concorrência – com a intenção de preservar a contestabilidade e o potencial de inovação de novos entrantes, impedindo práticas de fechamento de mercado e predação de rivais, garantindo o acesso justo (fair access) aos mercados existentes (multi-homming) e mercados adjacentes.

O DMA inspirou o Projeto de Lei 2768, proposto em novembro de 2022 no Brasil, visando a regulação, fiscalização e sanção das plataformas digitais, delegando essa tarefa à Agência Nacional de Telecomunicações. O projeto mira nas plataformas consideradas detentoras de poder de controle de acesso essencial, assim definidas como aquelas que auferirem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões com a oferta de serviços ao público brasileiro, nos termos de regulamentação da ANATEL.

Na agenda de regulação das plataformas digitais em todo o mundo estão ainda estudos sobre leis que visam definir regras para o uso de inteligência artificial (IA). Na UE, pioneira nessa iniciativa, foi proposto, em abril de 2021, o AI Act, cuja aprovação avançou  mais um passo em 11 de maio último. As regras seguem uma abordagem baseada no risco, estabelecendo obrigações escalonadas para provedores e usuários, com base no nível de risco que a IA pode gerar. Sistemas de IA com um nível inaceitável de risco para a segurança das pessoas são estritamente proibidos.

Novamente com inspiração na UE, o presidente do Senado brasileiro protocolou, no dia 03.05.23, o Projeto de Lei 2338/23, que cria o marco regulatório da Inteligência Artificial no país. O projeto prevê maior transparência sobre a utilização e o funcionamento dos sistemas de IA e o direito a explicação. Assim como no AI Act europeu, os sistemas de IA também serão categorizados pelo nível de risco.

O exemplo europeu é inspirador: após profundo debate e análise, incluindo consultas públicas, dos problemas levantados pelo surgimento das plataformas digitais e a intensa concentração de poder econômico, formou-se consenso em torno da complexidade das questões a serem enfrentadas. Foram identificadas as três principais fontes de danos à sociedade geradas pelo modelo de negócio das plataformas: a) a rentabilização via propaganda e posicionamento em resultados de busca do tempo de atenção capturada do usuário, por meio de táticas de mobilização de emoções e filtragem de informações (bem conhecidas pela economia comportamental); b) condutas exclusionárias impulsionadas pelas externalidades de rede diretas e indiretas presentes nos mercados digitais; c) riscos para a coesão e mesmo convivência social advindos da utilização ilimitada e opaca de inteligência artificial. Para o enfrentamento de cada dimensão de riscos vêm sendo definidas e postas em prática regras visando a proteção da privacidade, da concorrência, da coesão e da convivência social, de modo a preservar os benefícios gerados pelas inovações tecnológicas ao tempo em que se mitigam danos ao bem-estar.

No Brasil tampouco estamos distantes de inovar institucionalmente, estabelecendo regras de conduta e mecanismos de monitoração e cumprimento da legislação por plataformas digitais, na mesma direção do que se vem construindo na União Europeia, como visto, e do mesmo modo no Canadá, na Austrália e países nórdicos.

A economia digital, com estratégias focadas no uso intensivo de dados e inteligência artificial, tem trazido desafios significativos nas esferas da proteção de dados, defesa do consumidor e defesa da concorrência. Certamente uma futura entidade de supervisão deveria aliar competências nessas áreas, que já possuem legislação e órgãos reguladores próprios no Brasil.  Temos dois Projeto de Lei em tramitação na Câmara de Deputados tratando de pontos levantados no DSA e DMA europeus. Contudo, para seguirmos avançando precisamos inovar no desenho institucional.

O aparato regulatório e de proteção da concorrência e do consumidor não tem se mostrado (aqui como em outras jurisdições), isoladamente, suficiente para estabelecer com clareza limites e obrigações para as empresas com posições dominantes nos mercados digitais.

Conferir autoridade para aplicar as leis que virão resultar dos Projetos de Lei 2630/2020 e 2768/2022 a um dos entes públicos já existentes pode estar longe de configurar uma solução inteligente, visto que há “n” dimensões da economia digital a serem tratadas, sendo que cada uma delas ultrapassa tanto competência como expertise dos entes públicos federais aqui referidos. Tampouco faz sentido criar uma autoridade regulatória específica quando várias das dimensões dos problemas gerados pela economia digital tangenciam ou são passiveis de tratamento pelas autoridades já existentes.

A solução institucional que propomos requer a mobilização transversal da capacidade técnica, ferramental e procedimental já em operação transferida para um ente destacado composto por conjunto de técnicos e gestores atuantes nas agências reguladoras, no CADE, SENACON e ANPD (sem excluir outros agentes públicos interessados e futuros concursados) a serem convocados para treinamento e capacitação nos fundamentos técnicos necessários para a compreensão dos mecanismos em uso na economia digital e respectivos impactos.

Esse núcleo de técnicos (experiente em regulação e/ou defesa da concorrência, do consumidor e proteção de dados e capacitado, pela nova iniciativa, em ciência de dados, ciência comportamental e até ciência da computação) seria responsável pela análise de denúncias e acompanhamento sistemático de mercados. As notas técnicas preparadas à forma de parecer seriam encaminhadas a um colegiado composto por representantes das autoridades (ANPD, ANATEL, CADE, SENACON e eventualente do BACEN, tendo em vista o avanço das plataformas nos serviços financeiros), representante do Ministério Público (direitos difusos), representante de entidade de defesa dos consumidores e representante de instituto de estudos de mercados digitais, sem fins lucrativos. Esse corpo de representantes, da Sociedade e do Estado, decidiria o encaminhamento de providências como determinar ordem de fazer ou não fazer que, caso descumprida, importaria em remessa à autoridade indicada pelo colegiado (conforme tipo de infração), sugerindo a imposição de penalidade, assim como denúncia fundamentada ao MPF, tudo com ampla ciência da Sociedade.

Esse desenho institucional inovador – que não importaria em aumento da máquina estatal nem aumento expressivo de gastos de custeio (visto que os representantes da sociedade participariam das sessões do colegiado sem remuneração, recebendo apenas eventual cobertura de custos de deslocamento) – daria conta de aplicar uma “Lei das Plataformas Digitais”, que comportaria medidas como as previstas no PL 2768/2022,  equivalentes às definidas no DMA europeu, que definem ex-ante o código de conduta das plataformas detentoras de poder de controle de acesso essencial, de modo a proteger a concorrência e o consumidor na era digital, sem prejuízo à inovação.


[1] https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/dsa-vlops

Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.

Bianca Mollicone. Doutoranda em Direito pela USP, com pesquisa na área de concorrência e regulação de IA, Mestre em Administração pela UFBA, com pesquisa na área de competitividade e inovação, Economista pela UFBA. Pós-graduada em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e em Direito Tributário pelo IBET. Formação complementar em Negociação pelo Program on Negotiation da Harvard Law School e em Law & Economics pela Law School da Universidade de Chicago. Professora convidada dos cursos de Direito e Economia e Proteção de Dados da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora do Legal Grounds Institute. Diretora Acadêmica da Associação Brasileira de Direito e Economia – ABDE. Membra da Comissão Juridica do IBGC. Sócia responsável pela área de Proteção de Dados e Compliance do Pessoa e Pessoa Advogados.

O Novo paradigma desenvolvimentista: produtivismo.

Marco Aurélio Bittencourt

Dani Rodrik, economista colocado no topo junto àqueles que contribuem para questões de políticas públicas relevantes para o desenvolvimento  de países com baixa renda per capita, traz agora uma visão resumida para os tempos atuais: o paradigma neoliberal encontrou seu limite e só aprofunda problemas de política econômica. Em seu lugar propõe um novo paradigma: produtivismo. Do que se trata?

Em suas próprias palavras, diz que “uma abordagem que prioriza a disseminação de oportunidades econômicas produtivas em todas as regiões da economia e segmentos da força de trabalho …. enfatiza a produção e o investimento sobre o financiamento e a revitalização das comunidades locais sobre a globalização, trabalhando no lado da oferta da economia para criar boas oportunidades de empregos produtivos para todos”.

Ele põe ênfase nos principais problemas econômicos como pobreza, desigualdade, exclusão e insegurança que são reproduzidos e reforçados diariamente no curso da produção, como um subproduto imediato das decisões de emprego, investimento e inovação das empresas, ou seja, essas decisões estão repletas de externalidades para a sociedade.

E nesse compasso produtivo de efeitos colaterais temos dois lados: externalidades negativas e positivas que podem ser reforçadas por políticas públicas. Rodrik vai se ater as externalidades positivas pela geração de “bons empregos.” 

Segundo Rodrik, “Os formuladores de políticas em nações avançadas estão agora lidando com as mesmas questões que há muito preocupam os formuladores de políticas de desenvolvimento: como atrair investimentos, criar empregos, aumentar as habilidades, estimular o empreendedorismo, melhorar o acesso ao crédito e à tecnologia – em suma, como fechar a lacuna com as partes mais avançadas e produtivas da economia nacional?”

Certamente, nossas mazelas têm um pé nas externalidades negativas das próprias políticas públicas. A dificuldade de se identificar a tempo tais eventos perversos, talvez justifique em parte tal omissão corretiva. Mas sobram outras questões, principalmente a mentalidade escravagista. Mas isso não foi assunto tratado por Rodrik em seu artigo sobre o produtivismo – on production 2023.

Essa indagação de como fechar a lacuna entre os setores produtivos tem que primeiro desvendar o padrão produtivo atual que pode ser refletido pelo gráfico abaixo (Parkin, economics).

O Brasil se aproxima quantitativamente do padrão americano, conforme se depreende do gráfico abaixo (IBGE).

O Capital humano acompanha essa estrutura produtiva. Para o padrão americano, temos a seguinte estimativa :

Para o padrão brasileiro, temos a seguinte configuração para o capital humano:

Uma análise mais aprofundada poderia revelar onde se encontram os mais qualificados. Certamente em serviços , por conta da participação governamental e da importância do segmento saúde, teremos fatia importante. Resta o setor financeiro e aqueles ramos de alta tecnologia. A indústria ocuparia outra faixa e agricultura uma faixa provavelmente pequena.

É essa estrutura produtiva nacional que me faz crer que a reforma do ensino médio está no caminho correto, privilegiando o setor serviços que demandam capital humano na faixa do ensino médio e superior incompleto. Mas chama atenção a faixa dos que detêm pouca qualificação o que demandaria política educacional específica.

As políticas públicas sugeridas por Rodrik devem necessariamente observar o padrão produtivo estampado nos gráficos acima. O trabalho recente do banco mundial – Equilíbrio Delicado para a Amazônia Legal Brasileira – Um Memorando Econômico – é uma tentativa nessa direção de Rodrik. Mas certamente o estímulo ao pleno funcionamento de instituições que promovam uma economia competitiva também deve entrar no rol de políticas públicas relevantes para abrir espaço para novas oportunidades de negócios.

Algumas dúvidas frequentes de pequenos negócios sobre concorrência

Fernando de Magalhães Furlan

Estudos têm demonstrado que a maioria das MPMEs tem um conhecimento muito limitado de seus direitos e obrigações em relação às leis de concorrência, e ainda menos inclinação para utilizá-los em seu benefício, a menos que seja assistida por uma associação comercial ou organismo semelhante[1].

Isso também se aplica quando uma MPME é vítima de uma violação da lei de concorrência por outra empresa. Muitas sequer têm ciência de tais violações ou conhecimento das medidas corretivas disponíveis. Além disso, o sistema legal na maioria dos países é lento, caro de utilizar e raramente oferece um resultado comercialmente viável. Consequentemente, em questões de concorrência, as pequenas empresas estão efetivamente tendo o acesso negado à justiça e a políticas públicas econômicas eficazes[2].

Para as economias em desenvolvimento, onde o conhecimento das leis e políticas de concorrência pode ser limitado, as associações representativas têm um papel fundamental a desempenhar, tanto educando suas MPMEs sobre a existência de leis de concorrência, quanto auxiliando no seu cumprimento e na sua aplicação[3].

Apesar de se reconhecer que, muitas vezes, associações podem ser instrumentos para, por exemplo, a formação de cartéis “inocentes” envolvendo MPMEs[4], também deve-se considerar que a colaboração empresarial lícita pode resultar em melhor acesso a mercados.

A pesquisa empírica constata[5] que os laços horizontais permitem o uso coletivo de recursos, bem como a inovação conjunta de produtos e fornecem um meio de contornar a limitação de escala e infraestrutura[6]. Da mesma forma, os laços verticais podem fornecer maneiras eficazes de atualizar empresas nacionais, facilitando a transferência de tecnologia, conhecimento e habilidades, melhorando as práticas de negócios e de gestão e facilitando o acesso a mercados[7].

As associações empresariais de MPMEs, portanto, têm um papel essencial de conscientização e compliance em relação aos mecanismos disponíveis nas leis de concorrência para isentar ou autorizar condutas. É natural que as MPMEs, individualmente, tenham receio de represálias ou de danos à reputação com fornecedores e consumidores, sendo crucial a representação por meio de associações.

São muitas e frequentes as dúvidas dos pequenos negócios em relação ao cumprimento da legislação antitruste e do seu próprio papel no mercado e seus direitos. Abaixo tentamos reunir brevemente algumas das dúvidas mais frequentes das MPMEs quanto à defesa da concorrência.

Potenciais condutas anticompetitivas no relacionamento com fornecedores

a. Recusa de contratação/fornecimento

Em geral, um vendedor tem o direito de escolher seus parceiros de negócios. A recusa de uma empresa em negociar com qualquer outra empresa é lícita, desde que a recusa não seja produto de um acordo anticompetitivo com outras empresas ou parte de uma estratégia predatória ou excludente para adquirir ou manter um monopólio.

Pergunta: Sou proprietário de uma pequena loja de roupas e o fabricante de uma linha popular de roupas recentemente me deixou como outlet (loja de preços com descontos). Tenho certeza de que foi porque meus concorrentes reclamaram que eu vendo abaixo do preço sugerido. A explicação foi a política do fabricante: seus produtos não devem ser vendidos abaixo do preço de varejo sugerido, e os revendedores que não cumprirem estão sujeitos à rescisão. É legal que o fabricante me corte?

Resposta: Sim. Um fabricante pode ter uma política de que seus revendedores devem vender um produto acima de um determinado preço mínimo e encerrar um revendedor que não honre essa política. Os fabricantes podem optar por adotar esse tipo de política porque incentiva os revendedores a fornecer atendimento completo ao cliente e impede que outros revendedores, que podem não fornecer o serviço completo, retirem clientes e “peguem carona” nos serviços prestados por outros revendedores. No entanto, pode ser ilegal que o fabricante o abandone se ele tiver um acordo com seus concorrentes para cortá-lo para ajudar a manter um preço com o qual eles concordaram.

Vale destacar que a prática de fixação de preços de revenda – em diferentes modalidades, como preço sugerido, preço mínimo de revenda, preço máximo de revenda etc. – é vista com reservas por autoridades de defesa da concorrência em diferentes jurisdições, como Estados Unidos da América, Reino Unido, União Europeia e, inclusive, Brasil – sendo que em sua análise os possíveis benefícios decorrentes desse tipo de política alegados pelas empresas devem ser claramente demonstrados.

b. Contratos de exigência ou negociação exclusiva

Contratos exclusivos de negociação ou de requisitos entre fabricantes e varejistas são comuns e geralmente são legais. Em termos simples, um contrato de negociação exclusiva impede um distribuidor de vender os produtos de um fabricante diferente, e um contrato de requisitos impede um fabricante de comprar insumos de um fornecedor diferente. Esses arranjos são julgados sob um padrão de regra de razão, que equilibra quaisquer efeitos pró-competitivos e anticompetitivos.

Contratos de negociação exclusiva podem ser benéficos porque incentivam o suporte de marketing para a marca do fabricante. Ao se tornar um especialista em produtos de um fabricante, o revendedor é incentivado a se especializar na promoção da marca desse fabricante. Isso pode incluir a oferta de serviços ou comodidades especiais que custam dinheiro, como uma loja atraente, vendedores treinados, horário comercial longo, estoque de produtos à mão ou serviço rápido de garantia. Mas os custos de fornecer algumas dessas comodidades – que são oferecidas aos consumidores antes do produto ser vendido e podem não ser recuperados se o consumidor sair sem comprar nada – podem ser difíceis de repassar aos clientes na forma de um preço de varejo mais alto. Por exemplo, o consumidor pode pegar uma “carona” nos valiosos serviços oferecidos por um varejista e, em seguida, comprar o mesmo produto a um preço mais baixo de outro varejista que não oferece comodidades de alto custo, como um armazém de desconto ou um serviço online. Se o varejista de serviço completo perder vendas suficientes dessa maneira, poderá eventualmente parar de oferecer os serviços. Se esses serviços fossem genuinamente úteis, no sentido de que o produto mais os serviços juntos resultaram em vendas maiores para o fabricante do que o produto sozinho teria, há uma perda tanto para o fabricante quanto para o consumidor. Como resultado, a lei antitruste não veda a priori restrições verticais não relacionadas a preços, como contratos de negociação exclusiva que visam a incentivar os varejistas a fornecer serviços extras.

Por outro lado, um fabricante com poder de mercado pode potencialmente usar esses tipos de arranjos verticais para impedir que concorrentes menores tenham sucesso no mercado. Por exemplo, contratos exclusivos podem ser usados ​​para negar a um concorrente o acesso a varejistas ou distribuidores sem os quais o concorrente não pode realizar vendas suficientes para ser viável.

Em algumas situações, a negociação exclusiva pode ser usada pelos fabricantes para reduzir a concorrência entre eles.

Pergunta: Sou um pequeno fabricante de monitores de tela plana de alta qualidade. Eu gostaria de colocar meus produtos em um grande varejista, mas a empresa diz que tem um acordo para vender Resposta: Acordos de distribuição exclusiva como este não são proibidos pela lei antitruste. Embora o varejista seja impedido de vender monitores de tela plana concorrentes, esse pode ser o tipo de produto que requer um certo nível de conhecimento e serviço para vender. Por exemplo, se o fabricante investe no treinamento da equipe de vendas do varejista sobre a operação e os atributos do produto, pode razoavelmente exigir que o varejista se comprometa a vender apenas sua marca de monitores. Este nível de serviço pode beneficiar os compradores de produtos eletrônicos sofisticados. As leis antitruste provavelmente não interferirão nesse tipo de acordo exclusivo, a menos que se observem efeitos líquidos claramente negativos à concorrência, acarretando prejuízos aos consumidores, como por exemplo, restrição das possibilidades de escolha do consumidor (em relação à variedade de produtos e de ofertantes) e aumentos de preços.

c. Requisitos impostos pelo fabricante

A imposição de preço razoável, território e restrições de clientes aos revendedores são legais. Os requisitos impostos pelo fabricante podem beneficiar os consumidores ao aumentar a concorrência entre diferentes marcas (concorrência intermarcas) e ao mesmo tempo reduzir a concorrência entre revendedores da mesma marca (concorrência intramarcas). Por exemplo, um acordo entre um fabricante e um revendedor para estabelecer preços máximos (ou “teto”) impede os revendedores de cobrar um preço não competitivo. Ou um acordo para definir preços mínimos (ou “pisos”) ou para limitar territórios pode incentivar os revendedores a fornecer um nível de serviço que o fabricante deseja oferecer aos consumidores quando eles compram o produto. Esses benefícios devem ser ponderados em relação a qualquer redução na concorrência das restrições.

Em regra, todos os programas de preços verticais (máximos ou mínimos) impostos pelo fabricante devem ser avaliados usando uma abordagem da regra da razão. Pois, “na ausência de restrições verticais de preços, os serviços de varejo que aumentam a concorrência entre marcas podem ser mal fornecidos. Isso ocorre porque os varejistas com descontos podem pegar carona nos varejistas que fornecem serviços.

Se um fabricante, por si só, adota uma política relativa a um nível de preços desejado, lhe é permitido que negocie apenas com varejistas que concordem com essa política. Um fabricante também pode deixar de negociar com um varejista que não segue sua política de preços de revenda. Ou seja, um fabricante pode implementar uma política de revendedor em uma base de “pegar ou largar”.

As limitações sobre como ou onde um revendedor pode vender um produto (ou seja, restrições de cliente ou território) são geralmente legais — se forem impostas por um fabricante agindo por conta própria (não em conluio). Esses acordos podem resultar em melhores esforços de vendas e atendimento na área atribuída do revendedor e, consequentemente, maior concorrência com outras marcas.

Podem surgir questões antitruste se um fabricante concordar com fabricantes concorrentes em impor restrições de preço ou não na cadeia de suprimentos (ou seja, ao lidar com fornecedores ou revendedores), ou se fornecedores ou revendedores agirem em conjunto para induzir um fabricante a implementar tais restrições. Novamente, a distinção crítica é entre uma decisão unilateral de impor uma restrição (legal) e um acordo coletivo entre concorrentes para fazer o mesmo (ilegal). Por exemplo, um grupo de revendedores de automóveis ameaçou não vender uma marca de automóveis, a menos que o fabricante alocasse carros novos com base nas vendas feitas aos clientes no território de cada revendedor. A autoridade antitruste considerou as ações dos revendedores irracionais e projetadas principalmente para impedir que um revendedor vendesse a preços baixos “sem pechincha” e via Internet para clientes em todo o país.

Determinar se uma restrição é “vertical” ou “horizontal” pode ser confuso em alguns mercados, particularmente onde alguns fabricantes operam em muitos níveis diferentes e podem até fornecer insumos importantes para seus concorrentes. O rótulo não é tão importante quanto o efeito: a restrição reduz excessivamente a concorrência entre os concorrentes em algum nível? A contenção vertical é produto de um acordo entre concorrentes? E rotular um acordo como um arranjo vertical não o salvará do escrutínio antitruste quando houver evidência de efeitos horizontais anticompetitivos.

Pergunta: Um dos meus fornecedores marca seus produtos com um preço de varejo sugerido pelo fabricante. Tenho que cobrar este preço?

Resposta: A palavra-chave é “sugerida”. Um revendedor é livre para definir o preço de varejo dos produtos que vende. Um revendedor pode definir o preço no de acordo com o valor sugerido pelo fabricante ou em um preço diferente, desde que o revendedor tome essa decisão por conta própria. No entanto, o fabricante também pode decidir não usar distribuidores que não adiram ao seu preço sugerido.

Pergunta: Sou um fabricante e ocasionalmente recebo reclamações de revendedores sobre os preços de varejo que outros revendedores estão cobrando pelos meus produtos. O que devo dizer a eles?

Resposta: Os concorrentes em cada nível da cadeia de suprimentos devem definir os preços de forma independente. Isso significa que os fabricantes não podem concordar com os preços no atacado e os revendedores não podem concordar com os preços no varejo. No entanto, um fabricante pode ouvir seus revendedores e agir por conta própria em resposta ao que aprende com eles.

Muitos casos antitruste privados envolvem um fabricante cortando um revendedor com desconto. Muitas vezes, há evidências de que o fabricante recebeu reclamações de revendedores concorrentes antes de encerrar o contrato com o vendedor que oferece descontos. Esta evidência por si só não é suficiente para mostrar uma violação; o fabricante tem o direito de tentar manter seus revendedores satisfeitos com sua afiliação. Questões legais podem surgir se parecer que os revendedores concordaram em ameaçar um boicote ou pressionar coletivamente o fabricante a agir.

Pergunta: Gostaria de vender os produtos de um determinado fabricante, mas a empresa já possui um revendedor franqueado na minha região. Isso não é uma restrição à concorrência?

Resposta: Um fabricante pode decidir quantos distribuidores terá e quem serão. Do ponto de vista da concorrência, um fabricante pode decidir que usará apenas revendedores franqueados com territórios exclusivos para competir com maior sucesso com outros fabricantes. Ou pode decidir que usará revendedores diferentes para atingir grupos de clientes específicos.

Há prós e contras em ser um revendedor franqueado. Ao concordar em ser um revendedor franqueado, você provavelmente terá que cumprir os requisitos do fabricante para vender o produto, como horário de funcionamento, padrões de limpeza e similares. Essas restrições são vistas como limites razoáveis ​​sobre como você administra seus negócios em troca de negociar com uma marca estabelecida que os consumidores associam a um certo nível de qualidade ou serviço. Por exemplo, um cervejeiro pode exigir que todas as lojas de varejo armazenem sua cerveja a uma certa temperatura para preservar sua qualidade, porque os consumidores provavelmente culparão a má qualidade do fabricante – reduzindo assim as vendas em todos os pontos de venda – em vez de culpar o método inadequado de armazenamento do varejista.

Pergunta: Meu fornecedor oferece um programa de publicidade cooperativa, mas não posso participar se anunciar um preço abaixo do preço mínimo anunciado do fornecedor. Acho isso injusto.

Resposta: É permitido que um fabricante tenha uma margem de manobra considerável para definir os termos da publicidade que ele ajuda a pagar. O fabricante oferece esses programas promocionais para competir melhor com os produtos de outros fabricantes. Existem situações limitadas em que esses programas podem ter um efeito irracional nos níveis de preços. Por exemplo, uma determinada autoridade antitruste contestou as políticas de preço mínimo anunciado de cinco grandes distribuidores de música pré-gravada porque as políticas não eram razoáveis ​​em seu alcance: proibiam anúncios com preços com desconto, mesmo que o varejista pagasse pelos anúncios com seu próprio dinheiro; aplicavam-se à publicidade na loja; e uma única violação exigia que o varejista perdesse os fundos de todas as suas lojas por até 90 dias. Essas políticas, em vigor para mais de 85% das vendas do mercado, não eram razoáveis ​​e impediam os varejistas de informar aos consumidores sobre descontos em discos e CDs.

Pergunta: Sou prestador de serviços de saúde e quero ingressar em um novo grupo de seguros para prestar serviços a um grande empregador em minha cidade. Meu contrato com outro grupo de seguros exige que eu dê a eles o menor preço pelos meus serviços. Se eu aderir ao novo grupo, terei que baixar meus preços para o outro grupo de seguros?

Resposta: Essas cláusulas, chamadas de “cláusulas de nação mais favorecida (MFN)”, são bastante comuns. Geralmente, uma MFN promete que uma parte do acordo tratará a outra parte pelo menos tão bem quanto trata as outras. Na maioria das circunstâncias, as MFNs são uma forma legítima de reduzir os riscos. Em algumas circunstâncias, no entanto, as MFNs podem limitar de forma irracional a oferta de descontos direcionados e criar um preço industrial de fato. Uma determinada autoridade antitruste contestou uma cláusula MFN usada por uma rede de farmácias em contratos individuais com suas farmácias-membro que as desencorajava a oferecer descontos nas taxas de reembolso. A rede era um grupo de mais de 95 por cento das farmácias concorrentes no mercado relevante. A MFN desencorajou qualquer farmácia individual de oferecer preços mais baixos para outro plano porque quaisquer descontos teriam que ser aplicados a todas as suas outras vendas por meio da rede.


[1] Schaper, M. (2016) “Small Business, The Law and Access to Justice: Issues and Challenges” in Clark, D.; McKeown, T. & Battisti, M. (eds) (2016) Rhetoric and Reality: Building Vibrant and Sustainable Entrepreneurial Ecosystems, Melbourne: Tilde Press, pp.21-35.  Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[2] Australian Small Business & Family Enterprise Ombudsman (2018) Access to Justice: Where Do Small Businesses Go? Canberra: ASBFEO; Burgess, R. (2016) “SMEs and Private Enforcement of Competition Law: Achieving Redress” Global Competition Law Review, No. 3, pp.85-88. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[3] Burgess, R. Trade Associations: Competition Law Advocates or Offenders? in Schaper, M. and Lee, C. (eds) (2016) Competition law, Regulation and SMEs in the Asia-Pacific: Understanding the Small Business Perspective, Singapore: ISEAS – Yusof Ishak Institute. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[4] How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[5] Mesquita, L. & Lazzarini, S. (2009) Horizontal and vertical relationships in developing economies: Implications for SMEs’ access to global markets in New Frontiers in Entrepreneurship, Springer, pp. 31–66. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[6] Markusen, A. (1996) Sticky Places in Slippery Space: A Typology of Industrial Districts. Economic Geography, Vol 72, No.3, pp. 293-313. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[7] UNCTAD (2008) Creating business linkages https://unctad.org/en/Docs/diaeed20091_en.pdf (accessed on 28 June 2020).

Discriminação como infração. A propósito de um painel instigante mas enigmático

Mauro Grinberg

Durante o recente Antitrust Spring Meeting, da Section of Antitrust Law da American Bar Association, que ocorreu nos dias 29 a 31 de março em Washington DC, um dos painéis chamou a atenção para a (talvez tentativa de) revigoração do Robinson-Patman Act (RPA) de 1936, diploma destinado originariamente a proteger os pequenos empresários num período de recessão pelo qual os Estados Unidos então passavam. Com o passar do tempo, o objetivo, ao mesmo tempo que ampliado, perdeu seu vigor. 

O que se procura aqui é traçar o paralelo entre os direitos norte-americano e brasileiro, uma vez que em ambos a discriminação – o tema possivelmente mais importante do RPA – constitui infração não só nos dois países como em todo o mundo ocidental.

Para exemplificar, uma rede de lojas de departamentos normalmente consegue um preço substancialmente mais baixo do que pequenos comerciantes de bairros, já que fazem suas aquisições em quantidades muito grandes. Mas nada é tão simples assim. É importante entender que a grande loja de departamentos pode vender por preço mais baixo mas, por outro lado, o pequeno comerciante de bairro precisa sobreviver para manter a concorrência. As linhas divisórias aqui são tênues.

A conta que um cliente normal deve fazer – e aqui a constatação é prosaica, despida de considerações jurídicas e econômicas sofisticadas – diz respeito aos custos de transporte e de tempo (e talvez até entrem valores emocionais) que precisam ser gastos para procurar um produto mais barato, em vez de recorrer ao comerciante vizinho.

O problema se torna mais gritante quando tratamos de estabelecimentos comerciais em ambientes praticamente encapsulados, como aeroportos, rodoviárias, escolas, etc., em que não ocorre a pressão da concorrência e a procura de outros pontos de venda se torna praticamente inviável. As pessoas não saem, por exemplo, de um aeroporto para tomar um café, comprar uma revista ou (como ocorria antigamente) ter seus sapatos engraxados.

A verdade é que a discussão norte-americana tem andamento de forma um pouco confusa, mesmo sem definir os produtos, que podem ser uniformes ou diferenciados, daí dependendo as conclusões que se pode tirar. É claro que produtos uniformes têm nos preços o seu maior trunfo para a escolha do cliente e produtos diferenciados têm outros atributos para exibir e oferecer, aí entrando prestigio de marcas, gostos pessoais e possivelmente fatores afetivos (“minha mãe usava este produto”). Aqui entra a questão da substitutibilidade dos produtos uniformes e que, nos produtos diferenciados, depende de fatores diversos, como gosto, utilidade, adaptabilidade, etc.

Esse tipo de infração nos leva ainda a uma enorme dificuldade probatória, partindo-se da constatação de que ninguém pode ser condenado sem prova convincente e cabal da infração. Por exemplo, como provar que um determinado medicamento pode substituir outro? No Brasil, com a possibilidade de uso de medicamentos genéricos e/ou similares, essa dúvida se tornou menos aguda; mas ainda assim existe a possibilidade de uso off label de determinados medicamentos. Ou como demonstrar que um determinado alimento contém mais proteínas do que outro? A pergunta é importante porque precisamos sempre definir o mercado relevante, nas suas vertentes tanto material quanto geográfica, acrescentando-se aqui a (por vezes não menos importante) vertente temporal.

Os operadores do direito concorrencial conhecem bem as dificuldades da definição do mercado relevante, sabendo que delas não podem fugir e que elas tornam difícil (embora não impossível) o andamento de um processo administrativo ou judicial para tal punição. É preciso definir quais produtos concorrem pela vontade do adquirente (mercado relevante material) e até onde um adquirente pode ir para comprar um produto de outro fornecedor (mercado relevante geográfico).

Como aferir a vontade do consumidor de sair de sua zona de conforto para adquirir um produto concorrente daquele ao qual está habituado ou de marca para ele desconhecida em favor de determinado ganho que pode ter? Sabemos que há produtos tão tradicionais que suas marcas passam a designar os próprios produtos. A marca, nesses casos, independentemente do produto (é bom? é seguro? satifaz plenamente? etc.) passa então a constituir a zona de conforto do adquirente (comprando desta marca, dá tudo certo…). Na verdade, a intersecção do direito concorrencial com o direito de marcas constitui, desde o caso Colgate/Kolynos, um campo fértil a ser explorado.

Como aferir a vontade do consumidor de sair de uma região para se dirigir a outra com a finalidade de obter um produto melhor e/ou um preço menor? Todas as formulações econômicas esbarram em algo sutil, talvez até psicológico, que fica em torno da vontade. Quando se trata de produto homogêneo, essa vontade pode ser mais clara, tomando-se o exemplo dos postos de combustível: até onde um motorista se desloca para encontrar um produto mais barato (deixamos de tratar aqui das possíveis adulterações, matéria que às vezes aparece no noticiário criminal)? Nem o direito nem a economia podem fornecer respostas precisas; podem, quando muito, tratar de probabilidades, eventualmente altas.

Dito tudo isso, o grande desafio das autoridades concorrenciais é o de definir se e quando ocorre uma infração. Se concordamos em que uma indústria pode conceder descontos em função de quantidades compradas, como definir qual o limite desse desconto? Ou seja, a partir de qual porcentagem o desconto deixa de ser legítimo e passa a constituir uma infração, prejudicando a concorrência? Ou qual o preço que um concorrente verticalizado (indústria – distribuição – varejo) pode cobrar de seus adquirentes não verticalizados (sobretudo em se tratando de produto essencial em que não existam outros produtores e/ou distribuidores)? Qual o preço legítimo, acima do qual tem-se eliminação total ou parcial da concorrência?

As respostas a estas (e tantas outras) dúvidas, às quais as autoridades concorrenciais devem responder, certamente colocam tais autoridades quase na posição de legisladores. Assim, é a jurisprudência que vai ter que responder sobre a legitimidade de determinados comportamentos empresariais. Mas aí entra mais uma das várias faces do problema: o princípio da não surpresa, já constante da nossa legislação. O empresário não pode ser surpreendido ao ver caracterizado como infração uma conduta por ele praticada desde sempre e que ele, de boa-fé, considerava legal.

O dilema da autoridade aqui é: como fazer as advertências prévias ao mercado sem assumir o papel explícito de legislador e ao mesmo tempo deixar claro o que constitui infração? A autoridade tem à sua disposição um arsenal normativo (portarias, instruções normativas, resoluções) que p.ode usar para tanto, assim satisfazendo o princípio da não surpresa. Mas resulta obvio que há pontos sobre os quais não é possível fazer previsões exatas (por exemplo, a porcentagem de desconto). Mas o mercado tem que ser advertido de alguma forma.

Acrescente-se que estamos em uma quadra de aplicação do princípio da razoabilidade, que pode ser alterada de acordo não apenas com o mercado relevante mas com as próprias condições de mercado (este contempla sucessivamente períodos de crise e de escassez com períodos de euforia e abundância).

É extremamente salutar que este tipo de infração esteja novamente na mira das autoridades concorrenciais mas devemos ter em mente que este simples fato não elimina a perplexidade ante as dificuldades antevistas.

Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional e Presidente do Ibrac (do qual é hoje Conselheiro). É advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio fundador de Grinberg Cordovil Advogados

Direito de apresentar alegações finais no PA

Arthur Villamil Martins

O processo administrativo para imposição de sanções por infração da ordem econômica (PA) previsto nos art. 69 e seguintes da Lei 12.529/2011 é tipicamente um processo de natureza punitiva e, portanto, deve se orientar pelos princípios inerentes ao devido processo, assegurando aos representados a garantia de ampla defesa e o exercício pleno do contraditório.

As alegações finais estão previstas no art. 76 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC). Esse dispositivo legal foi redigido de modo pouco claro – talvez por deficiente técnica legislativa consistente em aglutinar em uma mesma frase questões distintas – deixando margem para questionamentos acerca da efetiva existência do direito de apresentação de alegações finais pelos representados.

O exame da sequência dos dispositivos legais que disciplinam o processo administrativo ajuda a lançar luz sobre a questão. O art. 74 da LDC trata da remessa do PA ao Tribunal, depois que a Superintendência-Geral tiver concluído a instrução processual e opinado, em relatório circunstanciado, pela condenação dos representados ou pelo arquivamento do processo. O art. 75 dispõe que o Presidente do CADE realizará a distribuição do processo ao Relator por sorteio. O art. 76, caput, trata da possibilidade de o Conselheiro Relator determinar (ou não) a realização de diligências complementares antes do julgamento. Já o parágrafo único do art. 76 dispõe que o Conselheiro Relator poderá ordenar novas diligências, caso entenda necessário, e que depois de realizadas as novas diligências dará vista aos representados para apresentação de alegações finais. Eis a disposição literal da lei:

Art. 76. O Conselheiro-Relator poderá determinar diligências, em despacho fundamentado, podendo, a seu critério, solicitar que a Superintendência-Geral as realize, no prazo assinado.

Parágrafo único. Após a conclusão das diligências determinadas na forma deste artigo, o Conselheiro-Relator notificará o representado para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, apresentar alegações finais.

Da literalidade do parágrafo único exsurge a seguinte dúvida: o Relator somente deve oportunizar a apresentação de alegações finais quando tiver realizado novas diligências ou deve sempre, independente da realização de novas diligências, franquear a oportunidade de apresentar alegações finais aos representados? Muito embora a lógica processual pareça apontar para a necessidade de sempre oportunizar aos representados a apresentação de alegações finais, essa questão é controversa.

O tema já foi objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Na ação anulatória de autos nº 0013987-53.2015.4.01.3803, o Juízo da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de Uberlândia/MG acolheu a arguição de cerceamento de defesa e declarou a nulidade do julgamento do PA Nº 08700.000649/201378, por não ter sido oportunizado aos representados a apresentação de alegações finais antes do julgamento do Tribunal. Já na ação anulatória nº 0013976-24.2015.4.01.3803, o Juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Uberlândia/MG rejeitou a alegação de nulidade do julgamento, acolhendo as alegações do CADE no sentido de que somente seria necessário abrir prazo para alegações finais quando forem realizadas novas diligências pelo Relator. Ambas as sentenças foram apeladas e se encontram pendentes de julgamento no Tribunal Regional da Sexta Região.

Como se vê, a questão é controvertida no âmbito do CADE e do Judiciário. Porém, em nossa visão, com a devida vênia e respeito aos que se posicionam em sentido contrário, a questão não é de difícil solução.

O PA é um processo de natureza exclusivamente punitiva e, ademais, também se reveste de certas nuances inquisitivas. Logo, indispensável que se lhe apliquem os princípios e as garantias processuais inerentes ao direito processual sancionador, dentre os quais, o direito do representado de falar por último (falar depois da acusão), antes do julgamento pelo Tribunal.

Da leitura atenta do Capítulo IV da LDC verifica-se que PA tem seis etapas bem definidas até ser remetido ao Tribunal para julgamento: i) O representado é intimado para apresentar defesa no prazo de 30 dias (art. 70); ii) A Superintendência-Geral analisa a defesa e determina a realização de provas (pela letra fria do art. 72 a SG teria uma espécie de prerrogativa de “determinar as provas que entende pertinentes” – nuance tipicamente inquisitorial); iii) As provas são colhidas; iv) O representado é intimado para apresentar, em cinco dias, o que o art. 73 chamou de “novas alegações”, cuja função nos parece ser principalmente reavivar os pontos da defesa em face das provas produzidas no PA; v) A SG encerra a instrução e em seguida apresenta suas conclusões, opinando pela condenação do representado ou pelo arquivamento do processo (art. 74); vi) O PA é remetido ao Tribunal e o Relator poderá determinar novas diligências ou requerer a inclusão do feito na pauta de julgamento.

Do exame do fluxo processual do PA previsto na LDC verifica-se que a última oportunidade de fala do representado teria sido nas “novas alegações” previstas no art. 73 da LDC. Depois disso, a SG, que exerce nitidamente função acusatória, irá falar nos autos, opinando pela condenação ou pelo arquivamento do caso (art. 74). Em seguida, o feito é remetido ao Tribunal e, caso o Relator não determine a realização de novas diligências, se ele não oportunizar ao representado a apresentação de alegações finais isso significa que o acusado não terá qualquer direito de defesa escrita perante o Tribunal. Pior ainda, a acusação (SG) terá sido a última a falar nos autos, pervertendo, por óbvio, a garantia processual de que a defesa deve falar por último.

Por fim, para que não restem dúvidas acerca da necessidade de sempre se oportunizar aos representados o direito de apresentar alegações finais escritas perante o Tribunal, como fala final da defesa, note-se que o art. 77 da LDC determina que “No prazo de 15 (quinze) dias úteis contado da data de recebimento das alegações finais, o Conselheiro-Relator solicitará a inclusão do processo em pauta para julgamento.” Ou seja, o feito somente estará maduro para julgamento depois que a defesa tiver tido a oportunidade de apresentar as alegações finais, independentemente da realização (ou não) de novas diligências pelo Relator.

É necessário que o CADE esteja atento para a boa aplicação dos princípios que norteiam o devido processo administrativo disciplinar, não apenas para evitar nulidades processuais desnecessárias, mas, acima de tudo, para assegurar um julgamento justo e equilibrado, o que somente se pode obter quando se assegura às partes (acusação e defesa) simétrica paridade de armas. Uma das formas mais comezinhas de paridade de armas no devido processo é a definição do momento de manifestação das partes: a acusação fala primeiro e a última palavra antes do julgamento é sempre do acusado, jamais do acusador.

Ônibus elétricos em São Paulo são a melhor escolha?

Felipe Lima Meneguin & Fernando B. Meneguin

Conforme divulgado na mídia[1], a prefeitura de São Paulo anunciou que substituirá parte da frota atual de ônibus por veículos elétricos. A meta é que, até o final de 2024, o município tenha 2,6 mil ônibus elétricos rodando, o que representa 20% da frota que hoje circula na cidade de São Paulo.

O senso comum enquadra essa medida como uma iniciativa louvável; no entanto, uma avaliação técnica deve estar permeada de evidências concretas para permitir a conclusão de ter havido ou não ganhos de bem-estar social; há que se comparar todos os custos envolvidos, incluindo custos de oportunidade, entre as várias opções que poderiam ser escolhidas.

No caso da adoção de veículos elétricos, podem-se trazer alguns dados simples que demonstram o tamanho do gasto e, consequentemente, a necessidade de criteriosa avaliação. Conforme informação da Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade[2], somando os custos de adaptação de infraestrutura – afinal, é necessário todo um suporte específico para recarregar os veículos –, com o custo dos novos veículos, o governo gastaria R$ 8 bilhões. Para se ter ideia relativa desse investimento, a Prefeitura de São Paulo destinou em 2023 para a função transporte 8,5% de seu orçamento, o que significa R$ 8,16 bilhões[3]. Dada essa restrição orçamentária relevante, o trade-off existente entre gastar com ônibus e gastar com outros modais – em especial, com linhas de metrô e trens –, torna-se consideravelmente relevante.

Assim, para verificar a racionalidade econômica da aquisição dos ônibus elétricos, o presente artigo propõe a realização de um exercício simples baseado na análise de custo-benefício para comparar os dois principais modais “verdes” da cidade de São Paulo, isto é, os ônibus elétricos e os tradicionais trens e metrôs.

Na literatura econômica, o debate ônibus versus metrô não possui um vencedor claro; existem trabalhos empíricos que defendem o primeiro meio em detrimento do segundo e vice-versa. Dada essa controvérsia ainda em aberto, é preciso se valer de características específicas inerentes à cidade de São Paulo.

De acordo com estudo sobre mobilidade urbana conduzido pela organização da sociedade civil Rede Nossa São Paulo[4], o tempo médio gasto para se locomover na cidade em 2022, considerando deslocamento de ida e volta para a realização de todas as atividades diárias, foi de 2h19min para quem usa carro e 2h23 para usuários de transporte público. Dentre os transportes públicos, os ônibus levam ampla vantagem em relação ao modal ferroviário no quesito aderência (33% versus 11%).  Por fim, hoje, São Paulo é a segunda cidade em termos de taxa de engarrafamento do país, perdendo somente para Belo Horizonte, de acordo com o Global Traffic Scorecard[5].

Frente a essas considerações iniciais, é plausível se afirmar que o modal terrestre apresenta sinais de sobrecarga evidentes – o gap praticamente inexistente entre carros e transportes públicos, pouco usual para a maioria das metrópoles, é um indicador bastante forte nesse sentido. A baixa penetração dos metrôs e trens no universo total dos meios de transporte também é algo que demanda atenção. 

A fim de se analisar empiricamente a questão da subpenetração dos metrôs e trens, construiu-se uma série de tempo da média mensal de usuários da linha amarela de 2018 até 2022 usando tabelas fornecidas em relatórios da ViaQuatro[6] – empresa responsável pela administração da linha. A partir dessa série, foi possível mensurar o efeito da inauguração de uma nova estação – no caso, das estações São Paulo-Morumbi e Vila Sônia-, em termos de novos passageiros. Em menos de três meses de operação, as novas estações atraíram, respectivamente, em torno de 26 e 34 mil passageiros diários, sem que isso afetasse a movimentação em outras estações anexas, como Butantã e Pinheiros.

No final de 2022, as duas estações, somadas, representaram um acréscimo mensal de 1,3 milhão de passageiros. Podemos inferir, portanto, que existe uma certa demanda pelo modal ferroviário ainda não atendida, especialmente em regiões mais distantes do centro. De fato, quanto maior a distância do centro, maior a preferência por trens e metrôs: na zona leste, por exemplo, 11% responderam que utilizavam o metrô/trem todos os dias, enquanto no centro, esse número foi de 4%, conforme estudo da Rede Nossa São Paulo.

Em termos de custos para o Estado, no ano de 2022, o governo gastou cerca de R$ 829 milhões com subsídios ao sistema de metrô[7], ao passo que gastou mais de R$ 5 bilhões com subsídios para o transporte coletivo viário[8].  Assim, ponderando por número de passageiros, o primeiro se mostra quase três vezes mais cost-efficient que o segundo, uma vez implementado.

 Por outro lado, comparando de maneira bem simples os custos fixos iniciais da nova frota elétrica com novas estações, os ônibus saem na frente: assumindo uma média de 200 passageiros em um ônibus por dia – consoante a valores da Associação Nacional de Transportes[9] –, 2600 ônibus movimentariam mais de 11 milhões de pessoas por mês. Com esse mesmo investimento (R$ 8 bilhões) – e assumindo o valor observado para as estações Vila Sônia e São Paulo-Morumbi[10] –, seria possível movimentar cerca de 5,2 milhões de pessoas/mês com novas estações.

Vale ressaltar, no entanto, que o projeto da frota elétrica almeja não adicionar, mas substituir a frota atual. Dentro do panorama já descrito de alto tráfego, adicionar mais ônibus sem a construção de novas vias preferenciais poderia ser contra produtivo, especialmente dado que o ganho marginal de novos usuários seria baixo. Além disso, o número estimado para as estações está viesado para baixo; afinal, há notáveis ganhos de escala conforme as linhas se ampliam, além de existir um forte efeito substituição com outros modais.

Em síntese, ainda que não seja possível chegar a uma conclusão definitiva, é possível delinear argumentos consistentes para, no mínimo, promover uma reflexão sobre a nova política da prefeitura de São Paulo. Se o intuito era se adequar às novas tendências urbanas com enfoque na sustentabilidade, seria mais interessante focar no ainda subpenetrado modal ferroviário, extremamente eficiente não só no transporte de passageiros, mas também na redução de níveis de CO2 na atmosfera. Alternativamente (ou até adicionalmente), soluções como o BRT – Bus Rapid Transit-, ônibus que opera em faixas completamente segregadas das pistas convencionais, também poderiam se apresentar como mais eficiente.


[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2023-01/sao-paulo-quer-20-da-frota-de-onibus-sendo-eletrica-ate-2024

[2] https://www.investe.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sp-fecha-parceria-com-enel-em-projeto-de-r-8-bilhoes-para-onibus-eletricos-1/

[3]https://orcamento.sf.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/uploads/2023/CADERNO%20OR%C3%87AMENTO%20LOA%202023.pdf

[4] https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2019/01/211404_Viver-em-Sao-Paulo_Tematica-2-Mobilidade-v1.pdf

[5] https://inrix.com/scorecard/

[6] https://www.viaquatro.com.br/linha-4-amarela/passageiros-transportados

[7] https://www.metrocptm.com.br/operacao-do-metro-de-sao-paulo-gerou-economia-de-r-85-bilhoes-em-2021/

[8] https://www.estadao.com.br/sao-paulo/valor-pago-pela-prefeitura-de-sp-a-empresas-de-onibus-e-recorde-governo-ja-banca-metade-da-tarifa

[9] https://ntu.org.br/novo/

[10] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/17/estacao-vila-sonia-da-linha-4-amarela-e-inaugurada.ghtml


Graduando em Economia na FEA/USP. Vice-Presidente da Liga de Mercado Financeiro FEA/USP. Estagiário na área de Macro Research do Bradesco BBI.

Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

Um feliz dia das mães em 2023? Devolução do IR retroativo sobre valores das pensões alimentícias recebidas e Recomendação CNJ nº 128/2022: motivos para comemorar.

Vanessa Vilela Berbel

Escrevo esta coluna para lhe dizer que, do ano passado para cá, avançamos no judiciário brasileiro em relação à pauta da mulher. Lembra-se de que, neste mesmo período do ano anterior, escrevi sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5422, que estava aguardando alguns dos onze detentores de reputação ilibada e notável saber jurídico do nosso STF ter um tempinho para olhar a causa das mães que pagavam imposto de renda sobre a pensão de seus filhos e filhas? Pois bem,  não bastasse arcar com a maior parte das responsabilidade dos cuidados, ainda passavam por mais essa…nada bom. Enfim, essa luta se foi, julgada, em 23/08/2022, favoravelmente às mulheres.

É, de fato não precisava uma decisão judicial arrastar por tanto tempo essa discussão se houve a mínima sensibilidade institucional do órgão arrecadador. Será mesmo que a própria Receita Federal não poderia ter resolvido uma questão tão banal, que agudizava a desigualdade entre homens e mulheres deste país, por meio de um instrumento administrativo? Para mim sempre pareceu bem óbvio que alimentos ou pensão alimentícia oriundos do direito de família não se configuram como renda nem proventos de qualquer natureza do credor dos alimentos, mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante para ser dado ao alimentado. No julgamento da ADI, o ministro Luís Roberto Barroso recordou que a tributação não pode aprofundar as desigualdades de gênero. Assim, sendo certo que o dever de cuidado é atribuído primordialmente às mulheres, fazê-las ainda pagar, como se renda fosse, os valores destinados pelo genitor à manutenção da prole, enquanto o pagador (em regra, o pai) poderia abater da base de cálculo de seu imposto a integralidade desses valores, era de fato anacrônico. Agora resta saber quem reparará o dano e restituirá os mais de 6 bilhões injustamente expropriados destas mulheres, visto ter Tribunal negado o pedido da União para que a decisão não tivesse efeito retroativo.

Justamente para se evitar essas distorções causadas pela legislação e interpretações oficiais é que a Ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conclamou todos a revisarem práticas e políticas que reproduzam a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade e, em especial, no Poder Judiciário.

Esforços coletivos ainda são necessários para reafirmar o direito das mulheres à igualdade de tratamento, tornando concreta a chamada “imparcialidade” e “neutralidade”, corrompidas por padrões discriminatórios insculpidos nos desenhos institucionais.

Neste aspecto, no âmbito do Poder Judiciário, foi elaborada a Recomendação 128/2022, que orienta os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, visando avançar na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Dentre as orientações dispostas em suas 132 páginas, evidencia-se a convocação a se desmistificar a neutralidade do direito, comprometida em razão da involuntária e inconsciente reprodução de estereótipos forjados pela nossa peculiar e desigual construção social. Ideais de neutralidade, imparcialidade e objetividade, tão caros ao direito liberal, dependem da correção destas distorções para seu império.

O que de fato nada tem de neutro é o Protocolo. Navegando entre Ideologia e Utopia[1], adota uma perspectiva valorativa clara, que não lhe eximirá de críticas dos opositores. Porém, ainda que você discorde destas posições, não poderá desprezar as contribuições da Segunda Parte do documento, que serve como um “guia para magistrados e magistradas”, um ferramental para auxiliar os julgadores a “interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar desigualdades estruturais”. Uma metodologia para que os julgadores se atentem ao contexto no qual o conflito está inserido, o que, diante de sentenças pré-prontas (quem nunca recebeu uma destas, escrita no cabeçalho “Modelo X”), julgamentos televisionados e pressões por produtividade é, independentemente da posição política, muito bem vindo.

Talvez você se questione se de fato isso seria necessário. Digo-lhe que sim. Notícia de 12 de abril de 2023, site Migalhas: ”Após negativa, advogada grávida de 9 meses terá audiência remarcada: em 1º grau o pedido foi negado sob o argumento de que a advogada já sabia do seu impedimento para a prestação dos serviços.” A funesta decisão de primeira instância[2] denegatória do pedido de adiamento, proferida, pasme, pela Excelentíssima Senhora Juíza Substituta da 17ª Vara do Trabalho da Comarca de Fortaleza, afirmou, ainda, que: “o pedido beira a litigância de má fé, no sentido de trazer uma oposição ao andamento do processo criada pela própria parte ao buscar profissional que não poderia estar presente à audiência”. Certamente essa julgadora é um dos que precisam seguir a Recomendação 128/2022.

É por isso que, neste dia das mães, desejo às nossas leitoras uma dia mais feliz do que o de 2022 e menos feliz do que o de 2024.


[1] alusão à obra de  Karl Mannheim, cuja noção de ideologia corresponde a um conjunto de representações que se orientam para a estabilização da ordem estabelecida, enquanto, por Utopia, entende-se a aspiração de outra realidade ainda inexistente, e,portanto, t subversiva da ordem vigente.

[2] processo nº 0000087-79.2023.5.07.0017