Como as regras multilaterais de comércio podem auxiliar no fim da pandemia e a restaurar o prestígio da OMC

Fernanda Manzano Sayeg

A Organização Mundial do Comércio (“OMC”) é, indiscutivelmente, uma das mais importantes organizações internacionais. Desde os inícios de suas atividades, em 1º de janeiro de 1995, a OMC tem gerenciado os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio, atuado como fórum para a negociação de novas regras, supervisionado a implementação dos acordos pelos membros e solucionado os conflitos gerados pela aplicação de suas regras.

Contudo, a OMC foi perdendo, progressivamente, a capacidade de atualizar a sua agenda temática e, atualmente, vive um momento extremamente delicado.

Nos últimos anos, as disputas comerciais entre Estados Unidos e China resultaram na adoção de medidas protecionistas e sanções comerciais que são contrárias às regras da OMC. Além disso, o Órgão de Apelação da organização está impossibilitado de funcionar por falta de quórum, visto que os Estados Unidos conseguiram bloquear a indicação de novos membros para o Órgão.

Em meio às discussões sobre a necessidade de reforma da organização, teve início a pandemia da COVID-19 e, com ela, ficou clara que a interdependência das cadeias produtivas, que são transnacionais, bem como a relevância da liberalização do comércio internacional, já que insumos para medicamentos, equipamentos de proteção individual e vacinas são, muitas vezes, importados.

Assim, quando foi deflagrada a pandemia, com o intuito de evitar a escassez doméstica, muitos países, incluindo os Estados Unidos e alguns membros da União Europeia, impuseram restrições temporárias à exportação de certos produtos médicos e alimentícios. Entre tais medidas estava a necessidade de autorização para a exportação para equipamentos de proteção individual. Outros países aumentaram a concessão de subsídios e incentivos fiscais para fortalecer a produção interna de medicamentos e equipamentos médicos. 

No entanto, a maioria das medidas introduzidas pelos países buscavam facilitar o comércio, com a eliminação ou a redução da alíquota de imposto de importação para bens relacionados ao tratamento ou prevenção da COVID-19, bem como a aceleração das inspeções alfandegárias para determinados bens, como equipamentos médicos usados no tratamento da doença.

Nesse cenário, não é surpreendente que, até 21 de agosto de 2020, os Membros tenham apresentado à OMC 225 notificações sobre a adoção de medidas relacionadas à COVID-19. Como as notificações dependem de apresentações oficiais e, portanto, muitas vezes estão atrasadas ou incompletas, acredita-se que o número real de medidas introduzidas no contexto da COVID-19 seja ainda maior.

Assim, a pandemia trouxe à tona a necessidade de se repensar e, quem sabe, reestruturar as cadeias globais e valor de forma a garantir o suprimento de itens essenciais a todos os países, mesmo em situações excepcionais, como aquela gerada pela COVID-19. Da mesma forma, a pandemia está acelerando tendências como a mudança para uma economia prioritariamente digital, que não era uma realidade em muitos membros da OMC antes da COVID-19, sobretudo em países de menor desenvolvimento econômico relativo. E, principalmente, a pandemia tem colocado em xeque questões como a proteção às patentes em um momento em que milhares de vidas humanas poderiam ter sido salvas com vacinas, medicamentos e equipamentos hospitalares, muitos dos quais são protegidos por direitos de propriedade intelectual.

Em outubro de 2020, momento em que as vacinas para a COVID-19 estavam em fase de testes, e de modo a evitar o que se chamaria posteriormente de “nacionalismo da vacina”, Índia e África do Sul apresentaram ao Conselho do TRIPS uma proposta para a concessão de um waiver temporário à implementação, aplicação e execução das Secções 1, 4, 5, e 7 da Parte II do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) em medicamentos utilizados na prevenção, na contenção ou no tratamento da COVID-19. A proposta objetiva suspender as proteções dos direitos de propriedade intelectual (patentes, direitos autorais, desenhos industriais e informações não divulgadas) em medicamentos utilizados na proteção e no tratamento da COVID-19 até que a pandemia esteja sob controle. 

Se por         um lado a proposta de waiver conta com o apoio de 57 Membros, incluindo todo o Grupo Africano e países menos desenvolvidos, por outro, países desenvolvidos como Inglaterra, Suíça e os Estados Unidos, que têm grandes indústrias farmacêuticas domésticas, se manifestaram contrários, alegando que a proteção dos direitos de propriedade intelectual incentivou a pesquisa e a inovação e que a suspensão desses direitos não resultaria em um súbito aumento no fornecimento de vacinas. O Brasil, após semanas de silêncio sobre o tema – com vistas a evitar uma crise política com a Índia, que é um importante fornecedor do imunizante se manifestou contrariamente à proposta da Índia e da África do Sul.

Propostas alternativas, incluindo a decretação de uma moratória de dois anos para a aplicação de patentes, sem as exigências de renúncia à proteção da propriedade intelectual sobre direitos autorais, desenhos industriais e informações confidenciais, bem como a proposta de flexibilização de quaisquer restrições e impostos de exportação que possam estar restringindo o fluxo de vacinas e tratamentos para a COVID-19.  Também há esperanças de que os Membros possam chegar a um acordo com empresas farmacêuticas sem que necessariamente ocorra um waiver do TRIPS, como vem sugerindo a Diretora-Geral da OMC.

Em todos os cenários, o que se depreende é que a necessidade de consenso entre todos os Membros, que é um dos princípios basilares da OMC, tornou-se um dos principais obstáculos à atuação da Organização, seja como um fórum que poderia estar criando novas regras mais adequadas para o momento atual, seja atuando na fiscalização do cumprimento das normas existentes. É imprescindível que os membros repensem essa questão e procurem uma solução, que pode estar na celebração de acordos plurilaterais.

Portanto, a crise da COVID-19 pode dar o impulso necessário para que os 164 membros da OMC busquem modernizar a organização e cheguem a um acordo sobre uma ambiciosa agenda de reformas. A Conferência Ministerial da OMC, que ocorreria no Cazaquistão, em junho de 2020, e que foi transferida para junho de 2021, parece ser a ocasião perfeita para esse acordo.

Neste cenário otimista, a nova Diretora-Geral, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, que tomou posse, no início de março de 2021, tem a oportunidade de fazer história não apenas como a primeira mulher e a primeira africana a dirigir a OMC, mas como a mulher que ajudou colocar fim à pandemia e a desenhar uma nova OMC, adequada ao Século XXI. Afinal, a liberalização comercial não é mais um objetivo, mas uma realidade inexorável.

Referências Bibliográficas

FUNKE, Martha. Geopolítica envolve o licenciamento compulsório. Publicado no Valor Econômico em 25/02/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2021/02/25/geopolitica-envolve-o-licenciamento-compulsorio.ghtml

SAYEG, Fernanda M. O papel decisivo da OMC na pandemia. Publicado no JOTA em 18 de março de 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-papel-decisivo-da-omc-na-pandemia-18032021

SCHNEIDER-PETSINGER, Marianne. Reforming the World Trade Organization: Prospects for Transatlantic Cooperation and the Global Trade System. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2020/09/reforming-world-trade-organization/02-wto-reform-and-covid-19.

ZUCOLOTO, Graziela; MIRANDA, Pedro; PORTO, Patrícia. A propriedade industrial pode limitar o combate à pandemia? Publicado em 04/30/2020. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/en/topics/188-a-propriedade-industrial-pode-limitar-o-combate-a-pandemia

Atualização das regras aplicáveis às investigações de subsídios e aos procedimentos de verificação in loco

Fernanda Manzano Sayeg

O mês de outubro de 2021 foi marcado pela modernização do arcabouço normativo na área de defesa comercial.

Em 19 de outubro de 2021, foi publicado o Decreto no 10.839, de 18 de outubro de 2021, que regulamentará as investigações sobre subsídios conduzidas pela autoridade brasileira e a aplicação de medidas compensatórias. O decreto entrará em vigor 120 dias após sua publicação e substituirá o Decreto no 1.751/1995, que foi promulgado no contexto da criação da Organização Mundial do Comércio (“OMC”). Desde então, houve avanços significativos na defesa comercial, no Brasil e no mundo, tendo o antigo decreto ficado à margem dessa evolução.

O Decreto no 10.829/21 atualiza as normas procedimentos utilizados nas investigações de subsídios e atualiza os conceitos de subsídios com base na jurisprudência construída pela OMC, além de harmonizar os procedimentos das investigações de subsídios com as investigações de dumping, cujo regulamento foi modernizado em 2013. Grande parte dos artigos do novo decreto é bastante similar às disposições do Regulamento Antidumping Brasileiro, tanto no conteúdo quanto na ordem de disposição.

Da mesma forma que ocorre em investigações antidumping, o novo Decreto prevê a possibilidade de não-aplicação de medida compensatória pela Câmara de Comércio Exterior (“CAMEX”) caso seja constatado interesse público. 

O novo regulamento estabelece um cronograma preciso sobre as etapas da investigação, como fases probatórias e de manifestações, além de estabelecer a obrigatoriedade de determinações preliminares para investigações originais, que são essenciais para aplicação de direitos compensatórios provisórios. Ademais, traz inovações importantes em temas não abarcados pelo decreto antigo, como o procedimento de avaliação de escopo, a redeterminação e a anticircunvenção. Há também disciplinas específicas para investigações que envolvam Estados Partes do Mercosul e um maior detalhamento para as condições de aceitação de compromissos de preços.

A SDCOM estima que haverá maior celeridade e segurança jurídica ao processo investigação de subsídios e medidas compensatórias, reduzindo os prazos de análise das petições e das investigações. A expectativa é que os trâmites sejam encurtados em até um terço. Cumpre notar, ainda, que a elaboração do novo decreto foi debatida com o setor privado, por meio de consulta pública.

A atualização da legislação brasileira sobre subsídios e medidas compensatórias é extremamente necessária e bem vinda. Não há dúvidas que a aproximação entre essas investigações e aquelas relacionadas à prática da investigação de dumping é um grande avanço para a indústria doméstica, para os importadores, para os exportadores e para os consultores que atuam nessa área, que lidam há quase 10 anos com o detalhado Regulamento Antidumping Brasileiro.

Com a modernização da legislação, a tendência é que a indústria doméstica recorra cada vez mais a esse instrumento de defesa comercial. Atualmente, há apenas três medidas compensatórias em vigor no Brasil em comparação às 141 medidas antidumping em vigor. No mundo, a frequência na aplicação de medidas compensatórias pelos membros da OMC tem aumentado. Acredita-se que estratégias de incentivos às indústrias nacionais pós-pandemia pelos Estados possa levar a uma maior necessidade de utilização de medidas compensatórias pela indústria brasileira. A modernização do arcabouço normativo no Brasil, garantindo maior transparência e previsibilidade nas investigações de subsídios conduzidas pela autoridade investigadora brasileira, certamente aumentará a atratividade dessa medida de defesa comercial.

Durante o período de vacatio legis do Decreto nº 10.839, será publicada nova portaria com a atualização do arcabouço normativo relacionado às investigações de subsídios e medidas compensatórias, a qual já foi objeto de consulta pública. Também está nos planos da SDCOM publicar em 2022 um guia de investigações de subsídios e medidas compensatórias, nos moldes dos diversos guias da SDCOM já publicados.

Adicionalmente, em 26 de outubro de 2021, a Secex abriu consulta pública sobre quatro petições relacionadas às investigações de subsídios que não tinham fundamento legal na legislação anterior, a saber: (i) petição de revisão anticircunvenção, que trata da investigação de práticas elisivas que frustrem medidas compensatórias aplicadas; (ii) petição de restituição de direitos recolhidos, se o montante de subsídios apurado para o período de revisão for inferior ao direito vigente; (iii) petição de avaliação de escopo, por meio da qual qualquer parte interessada poderá solicitar que se apure se um certo produto está sujeito à medida compensatória em vigor; e (iv) petição de redeterminação, na qual é determinado se a medida compensatória aplicada teve sua eficácia comprometida em razão da forma de aplicação da medida ou em razão da absorção da medida compensatória. A ideia é manter o paralelismo com o já estabelecido nas investigações antidumping.

Nessa mesma data, foi publicada a Circular nº 71, que abriu o prazo de 20 dias para que sejam apresentados dúvidas, questões e temas de interesse no âmbito de investigações sobre subsídios e medidas compensatórias, que serão abordados pela SDCOM no Guia de Investigações sobre subsídios que será publicado futuramente.

Já a Instrução Normativa Secex nº 3, de 22 de outubro de 2021, quer foi republicada no Diário Oficial da União em 3 de novembro, traz novas determinações sobre a realização da verificação in loco em investigações de defesa comercial. Em razão da pandemia da COVID-19, as verificações presenciais das informações prestadas pelos exportadores estavam temporariamente suspensas desde julho de 2020. De acordo com a nova Instrução Normativa, a partir de agora, será dada preferência à verificação in loco e, apenas na impossibilidade de realização desse tipo de verificação, será realizada a verificação dos elementos de prova, por ofício.

Essa alteração é muito benéfica para os exportadores, que foram muito prejudicados com as demasiadas exigências burocráticas e com os prazos extremamente curtos da verificação dos elementos de prova, e voltarão a ter oportunidade de comprovar as informações apresentadas nas respostas aos questionários de forma presencial, em suas próprias instalações.  

A necessidade de aprimoramento da avaliação de interesse público em casos de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

Nos últimos anos, a principal alteração na legislação brasileira de defesa comercial diz respeito à avaliação de interesse público.

O Decreto nº 9.745, de 2019, transferiu à Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”) do Ministério da Economia a competência para propor a suspensão ou alteração de aplicação de medidas antidumping ou compensatórias em razão de interesse público, e a Portaria SECEX nº 13/2020 disciplinou o processo administrativo de avaliação de interesse público no Brasil.

Essa avaliação não está prevista nos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, a maioria dos Membros da OMC não adotou previsão específica sobre o assunto em suas legislações. Entre os poucos países que ponderam o interesse público ao aplicar medidas de defesa comercial estão Brasil, Canadá, União Europeia, Nova Zelândia, China, Malásia e Tailândia, os quais incluíram provisões normativas de interesse público em suas legislações.

A avaliação de interesse público tem por objetivo analisar se há elementos que justifiquem a suspensão ou a alteração de medidas antidumping definitivas compensatórias, provisórias ou definitivas. A avaliação de interesse público também pode concluir pela necessidade de não aplicação de medidas antidumping provisórias, caso seja recomendada a aplicação desses direitos na investigação de defesa comercial.

Interesse público é um bastante conceito bastante amplo. A legislação brasileira tenta delimitar esse conceito ao estabelecer que há interesse público sempre que o impacto da imposição da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos se mostrar potencialmente mais danoso quando comparado aos efeitos positivos da aplicação da medida de defesa comercial. O processo administrativo de avaliação pública visa a analisar o eventual impacto da adoção da medida de defesa comercial na oferta do produto em questão no mercado brasileiro, de modo a prejudicar a dinâmica do mercado nacional (incluindo os elos a montante, a jusante e a própria indústria), em termos de preço, quantidade, qualidade e variedade entre outros.

Atualmente, tanto processo administrativo da investigação dumping ou de subsídios quanto o processo administrativo de avaliação de interesse público são conduzidos pela SDCOM, de forma concomitante, seguindo o mesmo rito processual. No caso da avaliação de interesse público, a SDCOM recebe informações, as analisa e pode recomendar: (i) a suspensão da exigibilidade de direito antidumping definitivo ou de compromissos de preços; (ii) a não aplicação do direito antidumping provisório, a homologação de compromisso de preços ou a aplicação de direito antidumping definitivo em valor diferente do recomendado; (iii) a suspensão da aplicação de direito compensatório provisório ou definitivo ou a não homologação de compromissos e a aplicação do direito compensatório provisório ou definitivo em valor diferente do recomendado. Contudo, cabe ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX/CAMEX) o encerramento da avaliação de interesse público e da decisão final na investigação de defesa comercial, em caso de determinação positiva de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória[1].

Sem querer adentrar na discussão se o argumento de interesse público seria compatível com a lógica da defesa comercial – em que medida o reconhecimento de uma prática desleal de comércio como o dumping comporta uma mitigação? – há alguns aspectos do processo administrativo de avaliação de interesse público que não só podem como devem ser aprimorados, de modo a possibilitar que essa análise seja ainda mais precisa e completa.

No caso de investigações originais, de modo geral, o prazo para envio da resposta ao questionário de interesse público é o mesmo prazo para envio da resposta ao questionário do importador e do exportador. Na maioria das vezes, empresas acabam dedicando muito tempo ao preenchimento do questionário do importador e/ou do exportador a ser apresentado na investigação de dumping ou de subsídios, sem o qual não é possível obter uma margem individual de dumping, e não conseguem se dedicar a obter todas as informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse público.

As informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse não são informações fáceis de ser obtidas, sobretudo por importadores, que são os principais interessados em evitar a aplicação ou suspender uma medida de defesa comercial em vigor. Ao contrário do questionário do importador e do exportador, que devem ser preenchidos com informações contábeis e do dia-a-dia das empresas, o questionário de avaliação de interesse público solicita informações de natureza concorrencial e de mercado que muitas vezes são desconhecidas por aqueles que não são fabricantes. Basta lembrar que o questionário solicita que sejam apresentados dados de natureza concorrencial como o cálculo de índices de concentração de mercado (em especial do HHI) considerando produção nacional (nos termos de defesa comercial), importações e substitutos e barreiras à entrada. Essa dificuldade é ainda maior quando se trata de um bem que é apenas um dos diversos bens classificados em uma determinada sub posição da NCM, já a que é com base nessa classificação que é possível obter parte das informações publicamente disponíveis sobre determinado produto.

Ao contrário da que ocorre em uma investigação de defesa comercial, não há peticionário nas avaliações de interesse público em investigações originais. O fato de não haver empresa ou associação faz com que o processo administrativo não receba tantas informações nem tanta atenção das autoridades, o que pode resultar em uma avaliação de interesse público incompleta, imprecisa e superficial. Isso é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, já que a aplicação de direito antidumping ou compensatório pode resultar no encarecimento do produto objeto da investigação, com reflexos nos demais bens que utilizam esse produto em sua fabricação.

É importante notar que a avaliação de interesse público representa um custo adicional às partes, visto que, como desconhecem as informações solicitadas recorrem à contratação de advogados, economistas e consultorias especializadas, bem como de institutos de pesquisas e relatórios setoriais, para obter as informações solicitadas no questionário.

Não há dúvidas que, dada a relevância da verificação dos efeitos das medidas de defesa comercial sobre o interesse público, a insuficiência de dados substantivos que subsidiem devidamente o processo decisório pode prejudicar a funcionalidade dessa avaliação. Assim, é importante que a sociedade debata formas de tornar essa análise ainda mais eficaz.

Entre as possíveis sugestões, estão a ampliação do escopo da análise – que, na prática, está limitada aos itens estabelecidos no questionário de avaliação de interesse público – para que ela seja adaptável a cada tipo de produto. É evidente que o impacto de uma medida antidumping sobre um bem intermediário deve ser analisada de forma diferente do impacto de uma medida antidumping sobre um bem final. Da mesma forma, há questões específicas relacionadas a produtos agrícolas que não se aplicam a produtos químicos e vice-versa.

Outra medida que pode fazer muita diferença é um maior engajamento da SDCOM não só na análise, mas também na obtenção das informações. Hoje observa-se uma grande passividade na condução da avaliação de interesse público. Não é aceitável que a SDCOM decida que não há impactos apenas porque não recebeu informações das partes, as quais muitas vezes não dispõem dos dados ou de condições econômicas para levantá-los.

Por fim, os aspectos atinentes à concorrência doméstica que fazem parte da análise também deveriam receber mais atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora o CADE seja consultado nas avaliações de interesse público, suas análises são superficiais e em nada se assemelham àquelas analises profundas realizadas em atos de concentração ou investigações de cartel. Da mesma forma, outros órgãos da administração pública poderiam ser engajados, de modo que a avaliação de interesse público seja cada vez mais precisa e completa.


[1] Sempre que a SDCOM concluir por a uma determinação negativa de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória na investigação original ou na revisão de final de período, caberá à Secretaria de Comércio Exterior (“SECEX”) o encerramento concomitante da investigação de defesa comercial e da avaliação de interesse público, por perda de objeto.

Há razões econômicas para se obrigar os licitantes à contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar?

Vanessa Vilela Berbel

Combater a violência doméstica é tarefa compartilhada por todos e claramente enunciada na Constituição Federal, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; destaca-se, ainda, o §2º, art. 3º, da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que reza caber à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos por ela enunciados.

Mas, infelizmente, se o combate à desigualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres integrassem a matriz curricular do ensino universal, poucos países passariam de ano. Estudo do Fórum Econômico Mundial de 2020 (World Economic Forum/ WEF) revelou que nem eu ou você estará vivo para ver a paridade entre homens e mulheres na saúde, educação, no trabalho e na política, a qual demorará, com sorte, 99,5 anos.

A dimensão “participação econômica e oportunidades”, infelizmente, hoje, não escapa ao trágico diagnóstico, estando o Brasil na posição 89 do ranking (The Global Gender Gap Index rankings by subindex, 20, WEF). Apesar da progressiva queda histórica na diferença entre a taxa de participação masculina e feminina no mercado de trabalho, ela continua substancial, sendo de 22 pontos percentuais em 2015; vários fatores são apontados como causas dessa diferença, dentre eles: discriminação no mercado de trabalho, responsabilização da mulher da maior parte dos trabalhos não remunerados domésticos, dentre outros.

Há muito a se fazer, não se nega; trata-se de resultado histórico que não se logra mudar em curto tempo ou sem a participação maciça dos atores sociais. A questão é: estamos fazendo algo para essa mudança? Parece-nos que sim. Estudo elaborado por FOGUE e RUSSO (IPEA, 2019), aponta a expectativa de elevação da presença feminina no mercado de trabalho para 64,3% em 2030, ou seja, 8,2 pontos percentuais acima da taxa em 1992[1], considerando uma população de idade ativa demarcada entre 17 e 70 anos.

Contudo, apesar de todos os avanços promovidos pelo processo contínuo de cooperação transversal entre governo, sociedade civil e comunidade internacional, há uma classe no universo de mulheres carece de maior atenção: as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Daí serem louváveis todas as iniciativas que foquem neste grupo, dentre elas a disposição contida no artigo 25, § 9º, inciso II, da Lei 14.133, de 1° de abril de 2021, que permite aos editais dos processos licitatórios preverem que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Infelizmente, a família, lugar de acolhimento e suporte, pode, para alguns, representar sofrimento e agressão. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos[2] revelam que das 221.427 denúncias de violência contra pessoas do sexo feminino (entre mulheres e crianças), 75.753 delas referem-se à violência doméstica e familiar contra mulheres.

Os dados reforçam a constatação do relatório “Progress of The World’s Women 2019–2020: families in a changing world”, da ONU Mulheres: “famílias são espaços contraditórios para as mulheres. São lugares de amor, nutrição e solidariedade, mas também local onde as mulheres mais experimentam violência e discriminação”. Não se quer, com essa afirmação, desprestigiar a família; famílias não são apenas importante para o amor e cuidado do indivíduo, mas também representam relação simbiótica com governo e economia. Mercados e Estados que funcionam bem precisam das famílias para produzir trabalho, comprar bens e serviços, pagar impostos e nutrir membros produtivos de sociedade; devem ser, portanto, tratadas com muito zelo pelas legislações e políticas governamentais.

 Recente estudo elaborado por Paulo RA Loureiro (LOUREIRO, 2020) revela que uma mulher que sofre violência doméstica normalmente ganha menos que aquela que não vive em situação de violência; a análise vai além, apura os custos econômicos e financeiros da violência doméstica, justificando a atuação do Estado para o aumento da oferta de emprego e ampliação do acesso ao capital humano.

Segundo levantamento feito por LOUREIRO[3], a violência tem alto custo econômico em países de centro e periferia. Os custos da violência doméstica, em 1995, nos Estados Unidos, chegam a valores atuais de US$ 8,3 bilhões anuais: uma combinação de US$ 5,8 bilhões para cuidados da saúde física e mental e US$ 2,5 bilhões em perda de produtividade. Inglaterra e País de Gales somam o custo de £ 15,7 mil milhões de libras anualmente; por sua vez, Chile e Nicarágua estimam em 6% e 2%, respectivamente, o impacto da violência doméstica sobre o produto interno bruto, dada as perdas de renda das mulheres (LOUREIRO, 2020, p.06).

Além dos custos sociais globais, o estudo revela que a violência doméstica é um dos fatores

predominantes nas perdas salariais individualmente sentidas pelas mulheres. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com aquelas que não sofrem violência doméstica têm uma perda de 30,6 % do salário real. Mulheres agredidas tiveram, na média, renda do trabalho principal de R$ 528, contra R$ 1.056 das que não sofrem agressão (LOUREIRO, 2020).

Logo, pode-se concluir que andou bem o legislador ao prever a possibilidade de se obrigar licitantes a empregar mão de obra feminina vítima de violência doméstica, não sendo desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação; a  mulher, além de eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em âmbito privado, ao sofrê-los também importa em custos econômicos sociais e individuais, cabendo a todos internalizá-los e prevenir suas ocorrências. Esperamos que as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entendam a importância de darem efetividade ao dispositivo legal.


[1] FOGUE, Miguel Nathan e RUSSO, Felipe Mendonça. Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados – IPEA. Decomposição e projeção da taxa de participação do Brasil utilizando o modelo idade-período-coorte, 1992 a 2030. In: Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 25: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/190515_bmt_66_NT_decomposicao_e_projecao.pdf

[2] Somatória dos dados obtidos em Painel de Dados 2021/1 e 2020/2, disponível em: Painel de dados da ONDH — Português (Brasil) (www.gov.br)

[3] LOUREIRO, Paulo RA. A Violência Doméstica Causa Diferença Salarial entre Mulheres?. No prelo.

Adicional de obstetrícia nos planos de saúde: equilíbrio econômico do contrato ou tratamento não igualitário do sexo feminino?

Vanessa Vilela Berbel

Metrópole, o clássico filme do austríaco Fritz Lang, roteirizado em parceria com Thea von Harbou, passa-se em 2026 e tem como protagonista um robô, Maria (Brigitte Helm), que tem como objetivo semear a discórdia entre os trabalhadores em um mundo devastado pelos paradoxos do capitalismo. Bem, estamos em 2021 e, ainda que muito avançada a inteligência das coisas, eu não tive a oportunidade de duvidar se meus interlocutores eram humanos ou máquinas…Metrópole ainda parece ser uma realidade bastante distante.

Enquanto isso, continuamos morrendo e nascendo pelos métodos tradicionais, contando com um apoio ou outro da ciência para superação de algumas barreiras biológicas. Portanto, provavelmente você que lê esse artigo nasceu de uma mulher de carne e osso, a qual deve ter precisado de apoio hospitalar e médicos para que isso ocorresse.

Todavia, para que uma mulher tenha o assessoramento de saúde ao parto no Brasil, exceto se contar com o sistema de saúde público, deverá programar o pagamento antecipado de um adicional do seu plano de saúde. E veja, não pagará pelo serviço de saúde, pagará pelo risco de ficar grávida, visto que há carência ao uso dos serviços.

A Lei 9.656/98 prevê a segmentação dos planos de saúde segundo a amplitude de cobertura, prevendo as seguintes categorias: (i) plano referência, (ii) ambulatorial, (iii) hospitalar sem obstetrícia, (iv) hospitalar com obstetrícia e (v) odontológico.

O plano-referência, previsto no artigo 10 da Lei, consiste no “pacote completo” da assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos realizados no Brasil, centro de terapia intensiva, ou similar, e internação hospitalar; todavia, ao lado desta modalidade, faculta-se a venda das demais modalidades listadas acima, incluindo o atendimento hospitalar com e sem obstetrícia.

Ressalva-se que desde o Projeto de Lei n° 4.425, DE 1994 (Do Senado Federal) PLS 93/93 já se proibia a exclusão de cobertura de despesas com tratamento de determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas, ressalvando a possibilidade de exclusão da cobertura obstétrica. Não se trata, pois, de alteração legislativa recente.

O segmento hospitalar tem função de conferir cobertura de serviços em regime de internação (sendo vedado o limite de tempo), facultando-se a inclusão de cobertura da assistência ao parto (obstetrícia), que poderá ter até 300 dias de carência para partos a termo, ou seja, partos dentro do tempo convencional de gestação. Ou seja, apenas partos de bebês prematuros estão cobertos quando, contratado o adicional de obstetrícia, não esteja completada a carência.  

Ademais, a quem paga o adicional de obstetrícia é facultada a cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto, seja o adicional pago pelo pai ou pela mãe. Mas veja, nada disso lhe será garantido se, antes de pensar em engravidar, os genitores já não tiverem previsto o risco “gravidez” e aderindo ao adicional.

Se de um lado a obstetrícia é tratada como uma opção a quem prospecte ser genitor/genitora, de outro a Resolução Normativa nº 167 da ANS tornou obrigatória, a partir de 2 de abril de 2008, a cobertura de procedimentos para anticoncepção (DIU, vasectomia e ligadura tubária).

Não se nega que existam métodos contraceptivos que permitem a programação familiar, mas, ao que nos parece, a legitimação legal da exclusão da obstetrícia dos planos de saúde se trata de política pública que, muito além de objetivar reduzir os ônus financeiros dos que não almejem a maternidade/paternidade, impõe à mulher o ônus de planejá-la por meio de métodos contraceptivos naturais ou artificiais, ao viabilizar a carência de trezentos dias para a cobertura.

De fato, não podemos programar a doença, por isso o legislador impediu que se extraia a cobertura a doenças e lesões, inclusive as preexistentes; contudo, quanto à gravidez, podemos impor a responsabilidade por sua programação a partir de métodos contraceptivos (naturais ou não) e penalizar, com a exclusão de cobertura, aos que não o utilizam? Ainda, trata-se de pena ou de incentivo ao planejamento familiar responsável?

Conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade [maternidade] responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

A Lei 9656/98 deve dialogar, pois, com a Lei 9263/96, a qual regula o planejamento familiar, direito de todo cidadão e parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde; com base nestas disposições, tem-se que compete ao Estado a garantia de direitos iguais de reprodução ao homem e à mulher, orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade, exigindo-se, como contrapartida a responsabilidade no ato de reprodução, sem, contudo, a exclusão de cobertura e assistência à saúde materna quando as formas de previsão e educação falhem. Os serviços de saúde suplementar necessitam prever métodos que, resguardando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, viabilizem o exercício do direito à maternidade saudável.

BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: L9263 (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1996. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em L9656 (planalto.gov.br)

*Vanessa Vilela Berbel é coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher (Ligue 180) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Doutora (PUC/SP) e mestre (USP) em Filosofia e Teoria geral do Direito, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná e

Não existe almoço de graça (?)

Vanessa Vilela Berbel

“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro”, questiona Clarice Lispector em seu conto “A repartição dos pães”. A não nominada “dona de casa” (nas palavras da autora), resignada, acostumou-se a servir. Doadora de si e do que é seu, a “dona de casa” oferece mesa farta aos convidados pouco desejosos da partilha – provavelmente seus filhos e familiares, que, constrangidos, aceitam a oferta sincera e desinteressada; deleitam-se, sem nenhuma palavra de amor. Apesar de deixar claro ao leitor que a farta mesa foi construída e posta com o labor da “dona de casa” generosa (a mãe), a narradora (provavelmente filha) revela a quem pertenciam os produtos consumidos: “aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade”. À dona de casa não é atribuída qualquer propriedade ou remuneração; reserva-se a ela apenas o constrangimento dos participantes pela sua benevolência.

Há um consenso geral de que o trabalho doméstico é subvalorizado, mal pago, desprotegido e mal regulado; infirmar ou confirmar cientificamente esse senso comum depende da apuração econômica do trabalho doméstico: pode esse labor ser mensurado? qual sua importância para o desenvolvimento econômico?

Há 80 anos James Meade and Richard Stone ditaram os padrões que globalmente formam o Produto Interno Bruto (PIB). Como a maioria dos estatísticos econômicos da época, Meade e Stone se concentraram quase inteiramente na medição do valor dos bens e serviços que foram realmente comprados e vendidos.

Por sua vez, a padronização internacional sobre a compilação de mensurações econômicas, System of National Accounts (SNA,2009), produzida pelas Nações Unidas, a Comissão Europeia, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Fundo Monetário Internacional e  Banco Mundial, expandiu o limite de produção, de modo que as contas deveriam incluir o trabalho de subsistência e o trabalho informal. Recomendou-se, por este método, a consideração de toda produção para consumo próprio, mas a continuidade de exclusão da produção do trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que a agricultura (de subsistência) e produção não mercantil de bens para o consumo das famílias são mensuradas e contabilizadas pelo SNA, permanecendo a exclusão do trabalho doméstico (incluindo o preparo de refeição), cuidado com crianças, idosos e deficientes, e outros serviços relacionados à família. Esta tomada de decisão promove contradições; como alerta WARING (2004): “um balde de água: lave a louça, lave a criança, cozinhe o arroz – não produção. Use a mesma água para pulverizar o milho e lavar o porco – isso é produtivo”. Em termos, o trabalho doméstico não remunerado permanece excluído das contas macroeconômicas, inviabilizando a formulação de políticas, análises e pesquisas.

Como se nota, a par do consenso majoritário, há quem acuse esses padrões de subestimar a mensuração interna anual da produção econômica. Há razões para a acusação? Economistas como Phyllis Deane também nos conferem argumentos para se opor a esta tradição e reivindicar a consideração do trabalho doméstico não remunerado nas contas macroeconômicas. Após analisar famílias das Colônias britânicas do Malawi e na Zâmbia, Deane foi pioneira em perceber que era um erro excluir o trabalho doméstico não remunerado do PIB. Especialmente em países em desenvolvimento, a mensuração do trabalho não remunerado nos agregados macroeconômicos importa para a promoção de igualdade de gênero, sendo ferramenta indispensável para uma mudança social positiva.

Muitos serviços que as famílias produzem para si mesmas não são reconhecidos em receita oficial e medidas de produção, mas constituem um aspecto importante da atividade econômica. Nesta esteira, como recomenda o Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi Report (Stiglitz, Sen and Fitoussi, 2009), são necessários trabalhos sistemáticos nesta área para mensurar como pessoas gastam seu tempo ao longo dos anos, visto que, especialmente nos países em desenvolvimento, a produção de bens e serviços (por exemplo, comida e limpeza) pelas famílias são também termômetros do processo de desenvolvimento.

Muitos dos produtos e serviços produzidos de forma não remunerada por familiares, ao longo do desenvolvimento econômico,  passaram a ser adquiridos no mercado, expressando uma mudança econômica importante, uma “conta satélite” dos agregados macroeconômicos que expande o conceito de produção. A análise desta modificação é importante, visto que a lacuna entre o tempo médio gasto por homens e mulheres para o trabalho não remunerado diminuiu com o desenvolvimento econômico mais por causa do advento de substitutos perfeitos ao trabalho das mulheres na cozinha, na lavanderia, nos cuidados, do que por uma mudança na distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, notadamente os homens.

Segundo a PNAD Contínua, em 2019, 146,7 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade destinam horas para a realização dos afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e produção para o próprio consumo.

Todavia, a destinação de esforços e tempo nestas tarefas é desproporcional em relação aos gêneros, afetando sobretudo as mulheres. Entre o grupo de mulheres que despendem labor não remunerado no âmbito familiares, são ainda mais afetadas aquelas que se encontram na faixa etária de 25 a 49 anos e com maior grau de escolaridade. A taxa de realização de afazeres doméstico é de 93,4% para as mulheres de nível superior, contra 85,7% para os homens do mesmo nível de escolaridade.

Outrossim, se analisarmos com grano salis os afazeres domésticos realizados por homens e mulheres, tem-se que enquanto as tarefas mais desempenhadas pelo gênero masculino consistem em cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados, etc.) e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, às mulheres destina-se prioritariamente as atividades de preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça e cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos. São atividades que requerem competência e habilidades bastantes diversas, inclusive quanto ao desgaste físico.

Esta distribuição desigual é prejudicial para as mulheres, sobrecarregando de forma bastante desproporcional principalmente às que estão em faixa etária em que se dá o auge da produtividade e escalonamento profissional; por consequência, elas têm menos tempo para aprender, relaxar, trabalhar em hobbies, ou se dedicarem a horas extras no trabalho.

E é justamente o destino do tempo e as pesquisas sobre ele, como afirma Marilyn Waring, que podem revelar “qual sexo torna o trabalho servil, chato, de baixo status e invisível não remunerado”. Neste aspecto, importa mensurá-lo e mais, considerá-lo em políticas públicas eficientes para a superação das desigualdades criadas por este desequilíbrio de atribuições. Por exemplo, atualmente se é possível a dedução tributária de custos com empregados domésticos em imposto de renda da pessoa física, mas não se pode fazer o mesmo com a redução de remuneração obtida pelo membro familiar que destina seu labor à esta atividade; ao mesmo tempo, é possível a dedução de pagamento de pensão de dependentes, mas não se pode proceder o mesmo abatimento das horas de trabalho com cuidados com a prole. Incoerências que precisam ser repensadas de forma séria e imediata e que, infelizmente, pesam mais ao gênero feminino.

Referências:

European Communities; International Monetary Fund; Organisation for Economic Co-operation and Development; United Nations and World Bank. System of National, 2008. Disponível: SNA complete.book (un.org)

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínu. PNAD Contínua – 2019: outras formas de trabalho. 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf

STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, 2009. Disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

WARING, Marilyn. 1999. Counting for Nothing: What Men Value and What Women Are Worth. Toronto: University of Toronto Press.

______. Unpaid Workers The Absence of Rights. CANADIAN WOMAN STUDIESILES CAHIERS DE LA FEMME. 2004. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/article/viewFile/6245/5433

Violência de gênero e regulação das mídias digitais

Vanessa Vilela Berbel

Estudo da ONU, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, revelou que, em 2019, 53,6% da população de todo o mundo possuía acesso à internet. O estudo apontava, contudo, desigualdades de gênero no acesso ao mundo digital, estimando-se que a proporção de todas as mulheres do globo que usavam a internet era de 48%, contra 58% de todos os homens, à exceção da América Latina em que há quase paridade de gênero neste quesito.

Ainda em 2019, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet, sendo que, destes, 99,5% valem-se de dispositivos móveis (smartfones). Com um celular na mão e a internet à disposição, não mais se pode controlar as expectativas de receptores e emissores nas trocas comunicativas, como se fazia nas interações face a face.

Antes dos meios de difusão, os emissores eram facilmente identificados. Difamar, humilhar ou injuriar alguém demandava que o (a) agressor(a) o fizesse cara a cara com o(a) agredido(a). Agora, no mundo digital, as faces se transmutam em perfis, muitos deles falsos, mas, ainda assim, determináveis e rasteáveis.

A pandemia do COVID-19 acelerou ainda mais a inclusão digital da população mundial e a redução da desigualdade de gênero ao acesso à internet; computa-se, em 2021, mais de 4,66 bilhões de usuários da Internet em todo o globo, ou seja, 59,5% da população mundial, dos quais 49,6% são mulheres e 50,4% homens.

Destes incluídos no mundo digital, 4,20 bilhões são também usuários de mídia sociais, o que equivale a mais de 53% da população total do mundo, sendo facebook, youtube e whatsapp as três plataformas mais utilizadas.

Calcula-se, em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários das mídias sociais a cada dia, os quais dedicarão de 51 minutos (média do Japão) a 4 horas e 5 minutos (média das Filipinas) diários ao uso das ferramentas digitais.

No Brasil, o usuário médio gasta 3 horas e 42 minutos em mídias sociais digitais, o que equivale a mais de um dia inteiro na semana. Se, em regra, a maioria se vale da ferramenta para conhecer conteúdos e interagir com famílias e amigos, alguns apropriam-se da facilidade para ataques de ódio, pelo que são chamados de “haters”.

Em 2021, no Brasil, são mais de 213.3 milhões de usuários da internet, em sua maioria mulheres (50.9%), com média de idade de 33.7 anos e alfabetizadas. Destes, 150 milhões são também usuários de mídias sociais, o que equivale a 70,3% da população brasileira, dos quais 130 milhões valem-se do Facebook, sendo 53,5% mulheres e 46,5% homens. Essas mulheres, maioria no mercado de consumido dos serviços das mídias sociais necessitam ter o direito à não violência também neste espaço de socialização humana.

Infelizmente, no mundo físico, pesquisa do Banco Mundial apontou que, em 2019, 35% da população feminina mundial sofreu violência psicológica e/ou física, 7% sofreu violência sexual e 200 milhões de mulheres sofreram mutilação genital. Em 2021, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) , uma a cada três mulheres sofreu violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência pelo simples fato de ser mulher.

Uma característica da violência de gênero é que ela não conhece fronteiras sociais ou econômicas e afeta mulheres e meninas de todas as origens socioeconômicas, pelo que as agressões sofridas no mundo físico veem sendo repercutidas no mundo digital; são ataques que objetificam a mulher, seu corpo, sua imagem e ameaçam-lhe a integridade física e psíquica.

Um estudo de 2018 realizado pela União Interparlamentar em 45 países europeus descobriu que mais da metade das mulheres parlamentares e funcionários parlamentares entrevistados (58%) sofreram ataques sexistas nas redes sociais, incluindo repetidos insultos misóginos e incitação ao ódio, fotomontagens de nudez e pornografia. Metade dos entrevistados (47%) sofreram ameaças de morte ou estupro. Na maioria dos casos (76%), os perpetradores eram homens anônimos (União Interparlamentar, 2018).

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Ligue 180) revelam mais de 5.520 denúncias de violência praticadas contra pessoas do sexo feminino e ocorridas no âmbito da internet, em sua maioria contra a integridade psíquica da vítima, tais como ameaças, constrangimentos, torturas psíquicas, calunias, injúrias e difamações. Destas denúncias de violência contra a mulher no âmbito digital, 78,14% foram praticadas por agressores do sexo masculino.

Sabe-se que as interações nas redes sociais são impulsionadas a partir de algoritmos capazes de compreender padrões de comportamentos dos usuários. São os algoritmos imunes à propagação de misoginias e conteúdos de ódio? Segundo Francis Haugen, não.

Haugen, ex-funcionária do Facebook, engenheira da equipe de integridade cívica, em 03 de outubro deste ano (2021) rompeu o anonimato em entrevista ao “Wall Street Journal” e “CBS News” e acusou a rede social de promover conteúdo nocivo e não fazer nada a respeito daqueles que os disseminam.

Na mesma toada, Marianna Springs, repórter da BBC, em matéria intitulada “Recebo xingamentos e ameaças online – por que é tão difícil combater isso” (Estado de Minas, 20/10/2021) relatou que, após receber diariamente mensagens abusivas nas redes sociais carregadas de expressões de ódio em referências a estupros e atos sexuais, decidiu criar um perfil fake de “trollagem” nas cinco redes sociais mais populares do mundo para ver se elas promoviam conteúdos misóginos. Para sua surpresa, a conta falsa recebeu recomendações de conteúdos de ódio contra mulheres, inclusive envolvendo violência sexual, o que demonstra a ausência de uma efetiva autorregulação das plataformas.

Entende-se, a partir destes fatos, a importância da existência de autorregulação e controle interno das mídias sociais para a tomada de iniciativas imediatas à suspensão das agressões (retirada do conteúdo e bloqueio do perfil), a partir da construção de um due dilligence obligations que permita remediar danos decorrentes de publicações indevidas sem ferir a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, permita a rápida apuração e encaminhamento dos conteúdos aos órgãos da rede de enfrentamento à violência para punição efetiva dos agressores.

Contudo, a autorregulação não dispensa o controle externo, a partir de uma metarregulação, ou, em outros termos, uma “autorregulação regulada”, como explica Lucas Amato em seu artigo “Fake News: regulação ou metarregulação?” (2020). Nestes termos, caberá ao Estado cobrar das mídias sociais o desenvolvimento de mecanismos de responsabilização e os parâmetros de sancionamento necessários.

Portanto, compete ao Estado traçar as diretrizes gerais para viabilizar a construção normativa própria das mídias sociais quanto aos procedimentos internos de abertura de canais de reclamação e monitoramento de denúncias, desenvolvimento de procedimentos para a suspensão de contas inautênticas e suspensão das atividades de usuários que descumpram seus regramentos; todavia, ao mesmo tempo, deve instituir regras jurídicas claras quanto ao descumprimento destes deveres de fiscalização interna e vigilância, impondo a responsabilização destes fornecedores em caso de desídia no controle interno das práticas de integridade cívica e do encaminhamento dos casos delitivos às autoridades responsáveis pela rede de enfrentamento à violência.

Fontes:

AMATO. Lucas Fucci. Fake News: regulação ou metarregulação?. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 58, n. 230, p. 29-53 abr./jun., 2021

BRASIL. Ministério das Comunicações. Notícia: Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet — Português (Brasil) (www.gov.br), disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, de 14.04.2021. Acesso em 24.10.2021

Inter-Parliamentary Union, 2018. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/gender-equality-index-2020-report/abbreviations?lang=nl. Acesso em 24.10.2021

WE ARE SOCIAL AND HOOTSUITE. Digital 2021: Global Overview Report. Disponível em: https://wearesocial-net.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/common/reports/digital-2021/digital-2021-global.pdf. Acesso em 24.10.2021

THE WORLD BANK. Gender-Based Violence (Violence Against Women and Girls) (worldbank.org). Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/socialsustainability/brief/violence-against-women-and-girls. Acesso em 24.10.2021

OMS e PNUD. Global, regional and national estimates for intimate partner violence against women and global and regional estimates for non-partner sexual violence against women, 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devastadoramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em 24.10.2021

Hidrogênio: mais uma possibilidade para o futuro do Brasil

Daniela Santos

Fernando Montera

Volto a escrever com o economista Fernando Montera sobre energias alternativas, por conta do espaço de destaque que a pauta de descarbonização vem ganhando como questão central no combate às mudanças climáticas. Se dúvida, as metas para a neutralidade de carbono passam cada vez mais a ditar a dinâmica econômica e regulatória dos Países.

E são diversas as soluções possíveis para reduzir as emissões: geração de energia a partir de fontes renováveis, compensações ambientais, tecnologias de captura de carbono, maior eficiência na queima, substituição por combustíveis menos poluentes, ampliação de uso de biocombustíveis, são alguns exemplos. E é dentro desse rol de soluções que a produção de hidrogênio (H2) tem atraído cada vez mais atenção.

De fato, considerando que o H2 entrega grandes quantidades de energia, tem usos diversos, não emite poluentes no seu uso final e pode ser produzido através de fontes 100% renováveis – chamado Hidrogênio Verde, não há dúvidas que se trata de uma aposta chave para contribuir ativamente na redução de gases de efeito estufa. O seu uso, entretanto, não é novidade, sendo realidade em diversas aplicações industriais – produção de derivados de petróleo, amônia e na indústria siderúrgica, por exemplo.

Como resultado desse cenário, de acordo com o Hydrogen Council, são estimados que os investimentos em projetos de H2 até 2030 estejam na casa de US$ 500 bilhões em todo o mundo. Destes, aproximadamente 30% são considerados pela instituição como projeto maduros, ou seja, que estão na etapa de planejamento após decisão final de investimento ou que estão associados a algum projeto em construção, comissionamento ou operacional.

E o Brasil, como se encaixa nesse contexto? Também aqui o H2 não é novidade, sendo tema de projetos e programas federais para desenvolvimento da tecnologia desde meados da década de 2000. Mais recentemente, conforme a Resolução CNPE nº 6, de 20 de abril de 2021 – que determina a realização de estudo para proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – passou a ser considerado como tema prioritário de investimentos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) pelo Conselho Nacional de Política Energética e estruturação das diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – EPE. Confira-se:

“Art. 1º Determinar ao Ministério de Minas e Energia que, no prazo de até sessenta dias, contados da publicação desta Resolução, em cooperação com os Ministérios da Ciência, tecnologia e Inovação e Desenvolvimento Regional, com o apoio técnico da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, apresente a este Conselho proposta de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio, observados:

(…)  II – a inclusão do hidrogênio como um dos temas prioritários para investimentos em pesquisa desenvolvimento e inovação, conforme Resolução CNPE nº 2, de fevereiro de 2021, aprovada pelo Conselho Nacional de Política Energética.”

E não é só: nessa mesma linha, o CNPE, por meio da Resolução nº 7, de 20 de abril de 2021, instituiu o Programa Combustível do Futuro e criou o seu Comitê Técnico com o objetivo de desenvolver medidas para expandir o uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono. Nesse movimento, já ficou definida uma ação direcionada ao desenvolvimento do H2 no Brasil: o uso do energético como combustível de veículos automotivos. Confira-se:

“VI – propor estudos para ampliação do uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono, como, por exemplo:

(…) b) avaliação das tecnologias de célula a combustível disponíveis para orientar pesquisa, desenvolvimento e inovação”

Com isso, o Conselho que propõe políticas nacionais e medidas específicas ao Presidente da República, evidenciou os direcionadores mínimos referentes ao uso do H2 no Brasil. Como resultado da Resolução no 6 do CNPE, o recém-publicado Programa Nacional do Hidrogênio[1], pautado pelos pilares de Políticas Públicas, Tecnologia e de Mercado, identificou a necessidade de se trabalhar o desenvolvimento desse mercado a partir de seis eixos – fortalecimento das bases tecnológicas, capacitação e recursos humano, planejamento energético, arcabouço legal-regulatório, crescimento do mercado e competitividade e cooperação internacional.

Portanto, equacionadas as questões acima, restam outras que deverão ser debatidas e devidamente esclarecidas de modo a garantir a segurança da opção pelo H2 no Brasil: conscientização do mercado consumidor (o que implica no seu custo competitivo) e a competência e alinhamento regulatório.

A sensibilização do mercado consumidor passa por diversas fatores culturais e econômicos. Quando se fala do potencial interno brasileiro, a já mencionada resolução do CNPE que define o Programa Combustível do Futuro, também explicita que se deve encontrar maneiras de educar o consumidor:

“Art. 3º

V – propor ações para fornecer ao consumidor as informações adequadas contribuindo par a escolha consciente do veículo e da fonte de energia considerando o ciclo de vida dos combustíveis”

Não se pode perder de vista que, assim como ocorre com o gás natural, o H2 pode ser comercializado entre continentes pelos mares. Com efeito, em tese, há espaço para o Brasil fornecer H2 para países que vinculados a uma forte pauta de descarbonização da economia, como é o caso dos países europeus.

Outro ponto a ser considerado é a eventual criação de medidas para expandir o consumo interno no Brasil. O Reino Unido, por exemplo, incluiu taxas na conta dos consumidores para estimular a produção de H­2, que seria misturado, por exemplo, no gás natural entregue.

De todo modo, a expansão do consumo estará diretamente relacionada a capacidade de inserção em bases competitivas do energético. De acordo com a BloombergNF[2], a difusão da tecnologia levaria a preços competitivos do Hidrogênio Verde apenas em 2050. A necessária redução do custo do H2 de modo a torná-lo competitivo, dependerá, em grande medida, do sucesso de tais escolhas[3].

Sobre a regulação, é possível prever a existência de mais de um ente diferente atuando no tema, acrescentando, portanto, complexidade no alinhamento e harmonia das diretrizes regulatórias, AIR, ARR etc.  Veja o caso das versões verde e azul do hidrogênio: caso seja produzido 100% com energia renovável, dependerá principalmente da regulação da ANEEL, mas caso seja produzido utilizando gás natural, com tecnologias de captura de carbono, deverá envolver a ANP e, em alguns casos, os estados que regulam a distribuição de gás natural.

Ao ser utilizado diretamente como combustível (misturado ou não com gás natural) a atuação da ANP e, em alguns casos, das agências estaduais de regulação da distribuição de gás natural, teria ainda seu papel em destaque quanto aos usos na síntese de biocombustíveis.

Nada obstante, apesar da complexidade adicional por conta disso, não há obstáculos intransponíveis para a definição de regulações harmônicas, isonômicas, com base na transparência e com foco na concorrência. Neste sentido, novamente citamos o inc. I do art. 1º da Resolução CNPE nº 6/21, que, entre as diretrizes do Programa de Hidrogênio, corrobora o “interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas”.

Portanto, é possível afirmar que o assunto está encaminhado, mas precisa ser avaliado a partir de uma política pública específica para o Brasil, considerando suas características, necessidades e a diversidade de fontes energéticas disponíveis no País. Exemplos de outros países são importantes, mas apenas dentro de um contexto que realmente reflita os caminhos que o País deseja trilhar nas próximas décadas.

E, como sempre, as (boas) possibilidades no Brasil são inúmeras e, se bem-organizadas, com regras simples, objetivas e transparentes – o que, como se sabe, ainda é um grande desafio – atenderão plenamente às nossas necessidades.

Por fim, considerando que não é possível falar sobre H2 sem falar sobre gás natural, devemos considerar a existência de uma questão ainda pendente que precisa ser equacionada: a especificação do gás natural. Isso porque se pretendemos aproveitar o H2 misturado ao gás natural, é necessário que se tenha clara a composição do gás natural entregue ao consumidor.

*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.

(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)


[1] https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/FIEMGHidrogenioMMEconvertido.pdf

[2]https://data.bloomberglp.com/professional/sites/24/BNEF-Hydrogen-Economy-Outlook-Key-Messages-30-Mar-2020.pdf

[3] https://gasenergy.com.br/custos-de-hidrogenio-perspectivas-no-longo-prazo/

Energia OFFSHORE: um tema novo que une as experiências elétrica e do petróleo e gás

Daniela Santos

Felipe Fernandes Reis

Hoje o foco da minha coluna mensal, com a participação especial do Fernando Montera, é a exploração da energia offshore, ou seja, a energia gerada no mar – eólica, inclusive, mas pode ser qualquer outra, a partir das ondas, das marés, das correntes marítimas entre outras.  Um tema muito atraente para todos aqueles que se interessam pela diversificação da matriz energética nacional, pela inovação tecnológica e pelo meio ambiente.

Para termos uma ideia do “tamanho da coisa”, somente Reino Unido, Alemanha e China respondem por um total de aproximadamente 27 GW de energia proveniente apenas de eólicas offshore[1]. E o mercado continua em franca expansão, incluindo a participação de outros Países como os Estados Unidos.

Apesar do tema não ser tão novo assim – se considerarmos que as primeiras experiências na produção de energia offshore ocorreram na Dinamarca em 1991 – é certo que, no Brasil, trata-se de uma nova frente energética, com um potencial enorme de geração de energia e, consequentemente, de estímulo de novos entrantes no setor.

Considerando todo o movimento mundial, em 2020, a EPE divulgou seu estudo sobre o tema no Brasil – Roadmap Eólica Offshore – Perspectivas e caminhos para a energia eólica marítima. Nele, são apresentadas informações que devem ser consideradas para o amadurecimento do debate sobre a nova fonte energética – já inserida no Plano Decenal de Expansão de Energia –PND.

Em síntese, o trabalho da EPE aponta para (i) a existência de um “potencial técnico de cerca de 700GW em locais com profundidade até 50m” em todo o litoral brasileiro, mas especificamente na região Nordeste (sem excluir outras áreas, inclusive o Rio de Janeiro, por exemplo, com a sua expertise em mercado offshore); (ii) a necessidade de estrutura portuária adequada para a construção, montagem e transporte dos equipamentos eólicos; (iii) custos elevados de implantação e operação dos parques eólicos offshore (tecnologia e equipamentos diferentes da eólica onshore) ; (iv) necessidade de conexão com as linhas de transmissão de energia (e eventuais reforços); (v) ajustes normativos/regulatórios e ambientais.

Paralelamente, no final de 2020, o IBAMA elaborou o Termo de Referência Padrão para Complexos de Energia Eólica Offshore, de modo a garantir o correto entendimento sobre os estudos de impacto ambiental de empreendimentos de geração eólica offshore. A iniciativa é importante para garantir celeridade e segurança para o investidor e o Termo já está sendo utilizado na análise dos projetos já apresentados ao IBAMA.

Em relação à regulação, a despeito de não haver impedimentos para o desenvolvimento da atividade eólica no País, o foco é a geração onshore, que, como sabemos, é uma atividade já estabelecida e diferente da offshore. Assim, recentemente o Ministro de Minas e Energia noticiou que devemos ter as adequações regulatórias necessárias equacionadas ainda em 2021.

Por outro lado, há algumas possibilidades de arcabouço legal que estão sendo cogitadas, o que inclui a adoção do modelo de Oferta Permanente do setor de petróleo e gás e possibilidade de se optar por uma nova lei federal, de modo a garantir segurança aos empreendimentos offshore. No Brasil, há dois projetos de lei sobre o assunto tramitando no Congresso. O mais antigo é o PL nº 11.247/18 (que trata da promoção ao desenvolvimento da geração de energia elétrica a partir de fontes eólica e solar fotovoltaica offshore) e o segundo o PL nº 576/21 (que trata do potencial energético offshore – sem limitar as fontes).

O PL 11.247/18 encontra-se, desde janeiro de 2019, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara do Deputados. Em extrema síntese, o PL propõe alteração na Lei nº 9.074/95 de modo a incluir as usinas eólicas e solares e a autorização da ANEEL para a atividade (com a obrigação de chamada pública). Igualmente, propõe ajustes nos artigos sobre princípios e objetivos da Política Energética Nacional – com o intuito de promoção e incentivo às novas fontes – políticas nacionais e medidas específicas recomendadas pelo CNPE e nas definições (incluindo prismas eólico, fotovoltaico e energia de fonte solar fotovoltaica) contidas na Lei nº 9.478/97.

O mencionado PL propõe a alteração da Lei nº 9.427/96 – garantindo a competência da ANEEL para regular as atividades e promover os procedimentos para a outorga de concessão ou de autorização de uso do bem público associado às usinas eólicas e solar offshore – e da Lei nº 10.847/04, esclarecendo a competência e atribuições da EPE sobre o assunto.

No mais, especifica os regimes de concessão e autorização de uso do bem público associado a implantação das usinas, detalhando o processo licitatório e as cláusulas essenciais do contrato de concessão. Sobre as participações que deverão ser pagas pelos autorizados/concessionários, o PL propõe o seguinte:

“Art. 14. O edital de licitação e o contrato de concessão ou de autorização de uso do bem público disporão sobre o pagamento pela ocupação ou retenção de área, a título de arrendamento ou taxa de ocupação, a ser feito mensalmente, nos termos estabelecidos em resolução do CNPE.” (g.n.)

Por outro lado, o PL 576/21 encontra-se, desde fevereiro de 2021 no Plenário do Senado Federal aguardando a escolha do relator. De forma resumida, o PL altera as Leis nº 9.478/97, nº 9.074/95 e nº 10.438/02, disciplinando a outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore, seja ele eólico ou qualquer outro. O texto apresentado define offshore, prisma energético e descomissionamento, além de esclarecer os princípios e fundamentos da exploração e desenvolvimento da geração de energia a partir de fonte instalada offshore.

O PL estabelece o regime de autorização – e não concessão – de uso de bens da União (com suas respectivas obrigações), por meio de outorga planejada (conforme planejamento do CNPE, por meio de processo seletivo público, considerando, entre outros, a disponibilidade de ponto de interconexão à rede básica) ou de outorga independente (conforme prismas sugeridos pelos interessados – após estudos, por sua conta e risco – com realização de consulta pública prévia).

O texto também define os estudos exigidos para a autorização, o que remete a avaliação técnica e econômica, EIA e avaliação da segurança náutica e aeronáutica. Detalha questões referentes aos prismas energéticos, inclusive indicando a possibilidade de constituição de prismas nas áreas de exploração e produção de petróleo e gás nos casos de constituição de prismas pelos seus operadores ou com sua anuência – boa oportunidade para as concessionárias de E&P!

Ademais, o PL mais recente, além de detalhar o descomissionamento, também fala sobre participações governamentais obrigatórias, o que merece a transcrição do dispositivo proposto:

“Art. 13. O processo seletivo público e o respectivo instrumento de outorga dele resultante disporão sobre as seguintes participações governamentais obrigatórias:

I – bônus de assinatura, que terá seu valor mínimo estabelecido no respectivo instrumento de outorga e corresponderá ao pagamento ofertado na proposta para obtenção da autorização, devendo ser pago no ato da assinatura do termo de outorga;

II – pagamento pela ocupação ou retenção de área, que será pago mensalmente, a partir da data da assinatura do termo de outorga, fixado por quilômetro quadrado ou fração da superfície do prisma energético, na forma da regulamentação;

III – participação proporcional, que será paga mensalmente, a partir da data de entrada em operação comercial, em montante correspondente a cinco por cento da energia efetivamente gerada e comercializada relativamente a cada prisma energético;

§ 1º Regulamento disporá sobre a apuração, o pagamento e as sanções pelo inadimplemento ou mora relativos às participações governamentais devidas pelos autorizatários.

§ 2º O Poder Executivo poderá estipular redução de até sessenta por cento dos valores previstos neste artigo mediante recomendação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) pelo prazo de até cinco anos, sem renovação.” (g.n.)

Em qualquer dos dois projetos, é fundamental garantir que uma eventual lei sobre o tema não engesse a atividade e os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo que assegure a sua competitividade e redução de custos, considerando que hoje, a despeito do imenso potencial, devido aos elevados custos associados à tecnologia, a atividade ainda não é competitiva no Brasil. Nesta medida, a questão das participações devidas pelo agente – que impacta na sua competitividade – deverá ser alvo de amplo debate de forma a assegurar que não representem obstáculos ou barreiras para o desenvolvimento da nova atividade.

As oportunidades para eólicas offshore são grandes e estão em linha com o cenário internacional de redução das emissões, incluindo nesse rol a sua convergência com o desenvolvimento de outras tecnologias como o Hidrogênio Verde.  Por fim, importante não perder de vista que a “aposta” nas eólicas onshore foi certeira para o Brasil, tratando-se de uma atividade limpa e competitiva consolidada há anos no País, com resultados excepcionais. E é precisamente isso que se espera da eólica offshore, em harmonia com as práticas ESG, gerando mais empregos e competitividade nos próximos anos.

*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.

(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)


[1] De acordo com o Irena o valor de 2020 para esses 3 Países é de 27 GW, equivalente a 80% da capacidade mundial de OW. GWEC-Global-Wind-Report-2021.pdf