Sham litigation e a importância do desenvolvimento de parâmetros para o abuso de petição no direito brasileiro

Angelo Prata de Carvalho

A evidente influência do Direito da Concorrência norte-americano sobre o direito brasileiro já foi, por diversas vezes, objeto das discussões trazidas por esta coluna. No artigo de hoje, pretende-se tomar como exemplo uma conduta específica – o abuso de direito de petição com finalidade anticoncorrencial, conhecido como sham litigation – para demonstrar as dificuldades oriundas dos potenciais descompassos entre os fundamentos que orientam os ordenamentos jurídicos de cada uma das jurisdições.

A conduta conhecida como sham litigation¸ referente ao uso abusivo de procedimentos administrativos ou processos judiciais com a finalidade de afastar concorrentes do mercado, nasce no direito norte-americano como exceção à chamada doutrina Noerr-Pennington, segundo a qual a legislação antitruste não poderia impedir o acesso dos cidadãos aos poderes públicos[1], reconhecendo a validade de ações legítimas para influenciar decisões de agentes públicos[2]. Contudo, o direito de petição é assegurado tão somente até o limite do razoável, não podendo ser utilizado como estratégia para mascarar a implementação de estratégia tendente a lesionar a livre concorrência. Trata-se, sem dúvida, de conduta de fundamental relevância, na medida em que tem o condão de afetar fortemente a concorrência sem sequer exigir poder de mercado considerável, já que seus efeitos decorrem de decisões do poder público[3], o que se agrava em grande medida quando se referem a searas delicadas como a propriedade intelectual[4].

Assim, a jurisprudência norte-americana desenvolveu uma série de testes para a verificação do sham litigation, destacando os conhecidos testes PRE e POSCO. O teste PRE, desenvolvido no âmbito do caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. (508 U.S. 49), quando se afirmou que, para que se excepcione a doutrina Noerr-Pennington, é necessário cumprir dois requisitos: (i) um subjetivo, referente à intenção de utilização de um procedimento estatal como instrumento para a implementação de objetivos anticompetitivos; e (ii) um objetivo, que exige que os pleitos sejam objetivamente infundados (objective baseless claims). O teste POSCO[5], por sua vez, refutou o requisito objetivo do teste PRE ao inferir que o sucesso ou os fundamentos legítimos de um pleito isolado não legitimam uma estratégia anticompetitiva como um todo, sendo necessário verificar, em perspectiva macroscópica, a legitimidade do padrão de conduta verificado no âmbito das diversas ações judiciais apresentadas.

No entanto, deve-se observar esses testes com parcimônia, uma vez que foram desenvolvidos sob cultura jurídica diversa e sob aspectos concretos que não necessariamente se coadunam com os preceitos do ordenamento brasileiro. No Brasil, o sham liigation foi recepcionado como abuso de direito de petição, o que congrega não apenas a doutrina do abuso de direito, mas também uma concepção específica do direito de ação que, na cultura jurídica pátria, foi construída sobre bases distintas daquela pensada no common law.

É necessário, pois, que se desenvolvam parâmetros que sejam consentâneos com os princípios processuais e concorrenciais vigentes o ordenamento brasileiro, sob pena não apenas de indevidamente transplantar institutos jurídicos alienígenas para a ordem interna, mas também de irremediavelmente subverter a lógica constitucional que deve perpassar a aplicação do Direito da Concorrência. Da mesma maneira, é preciso que eventual limitação ao direito de ação por meio do antitruste se justifique segundo a mesma ordem constitucional que garante o acesso aos poderes públicos. 

Por mais que o CADE já adote sentido mais amplo da noção de sham litigation, já que – como não poderia ser diferente[6] –, adota como elementos de análise os princípios da livre concorrência e livre iniciativa constantes da Constituição em lugar de pura e simplesmente aplicar testes importados da jurisprudência norte-americana, um conceito mais amplo de abuso de direito de petição ainda carece que densificação a partir das próprias premissas teórico-normativas que orientam a aplicação do direito brasileiro, sob pena de despir a análise antitruste de critérios operacionais mínimos[7].

O adequado desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer reflexão igualmente adequada sobre suas premissas e pressupostos, seja por integrar sistema constitucional complexo, seja por estar inserido em conjuntura histórica e tradição dogmática específicas. É imprescindível, portanto, que as categorias punitivas do antitruste sejam elaboradas segundo critérios próprios ao ordenamento pátrio, e não somente a partir de categorias importadas do direito norte-americano. Tal necessidade fica ainda mais patente quando o Direito da Concorrência apresenta intersecções com outros ramos jurídicos, muito mais associados à tradição romano-germânica do que aos parâmetros do case law anglo-saxão. É o caso do sham litigation, vinculado tanto ao imperativo constitucional de proteção à livre concorrência quanto ao direito fundamental de acesso aos poderes públicos.

O Direito da Concorrência brasileiro, no entanto, idoso em existência, porém jovem em relevância, ainda luta para adquirir autonomia em relação aos mais desenvolvidos direitos antitruste dos países centrais. Desse modo, o antitruste brasileiro se encontra em constante tensão entre a necessidade de reafirmação de parâmetros seguros, consagrados pela jurisprudência internacional, para demonstrar sua autonomia e independência, e sua emancipação enquanto ramo jurídico decorrente da ordem econômica constitucional brasileira, que dialogue de maneira fluente com os conceitos que informam o ordenamento pátrio.

Assim, para utilizar – e subverter – a interessante construção de Marcelo Neves[8], o CADE prossegue no complexo paradoxo de atuar a partir da aplicação de ideias em outro lugar (o emprego de conceitos consagrados norte-americanos em realidade jurídico-social completamente distinta) e de, ao mesmo tempo, no mesmo lugar (uma vez que o CADE não opera isoladamente, mas no espaço global de discussão e aplicação de princípios de defesa da concorrência). A continuidade do desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer não somente que o CADE fale na língua compreendida pelas demais autoridades da concorrência de destaque no cenário internacional, mas também que o antitruste nacional faça jus a seu estatuto constitucional ao promover a harmonização de sua atuação com os demais preceitos regentes do ordenamento brasileiro. Com isso, aos poucos, o Direito da Concorrência brasileiro poderá passar a falar com linguagem própria, mais consentânea com o lugar em que se desenvolve – ainda que com algum sotaque.


[1] Eastern Railroad Presidents’ Conference v. Noerr Motor Freight, Inc., 365 U.S. 127.

[2] United Mineworkers of America v. Pennington, 381 U.S. 657. Ver: WOOD, Lisa. In praise of the Noerr-Pennington doctrine. Antitrust. v. 18, pp. 72-77, 2003.

[3] FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017.

[4] FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. The relation between antitrust and intellectual property on CADE’S case law. In: SILVEIRA, Paulo Burnier. Competition Law and Policy in Latin America: recent developments. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2017.

[5] USS-POSCO Indus. v. Contra Costa County Bldg. & Constr. Trades Council, 31 F.3d 800.

[6] Ver, em análise mais aprofundada da jurisprudência do CADE sobre o tema: PRATA DE CARVALHO, Angelo. Do sham litigation ao abuso de direito de petição: desafios e parâmetros de análise para o abuso do direito de petição no direito brasileiro. Revista de direito da concorrência. v. 7, n. 2, 2019.

[7] RECENA, Martina Gaudie Ley; LUPION, Ricardo. Breves reflexões sobre a aplicação da sham litigation. Revista jurídica luso-brasileira. v. 4, n. 4, pp. 1519-1554, 2018.

[8] NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista brasileira de ciências sociais. v. 30, n. 88, jun. 2015.

As Escolas de Direito Antitruste: o que a história revela

Polyanna Vilanova & Catharina Araújo Sá

Ao escrever sobre Direito Antitruste, nos deparamos com uma infinidade de temas. Um dos mais caros se relaciona com as Escolas de Direito Antitruste, por trazer diversas nuances no que se refere aos objetivos e finalidades deste ramo do Direito. É um debate que aborda como o Direito Antitruste é e como deveria ser. Nesse sentido, hoje em dia, muito se fala em superação do antitruste tradicional, principalmente tendo em vista os desafios trazidos pelas famosas big techs e o elevado poder econômico que as permeia, por exemplo. Contudo, para entender o que seria a superação do antitruste tradicional, bem como os objetivos deste ramo de estudo, é fundamental revisitar as Escolas de Direito Antitruste.

Tendo em vista as recentes alterações no contexto norte-americano, de elevada preocupação com o poder político-econômico das plataformas digitais, o presente artigo abordará as escolas norte-americanas, por meio da história, buscando demonstrar como cada uma delas foi influenciada pelo contexto em que se inseriu ou se insere.

Na década de 1880, o poder estava concentrado nas mãos de poucos agentes econômicos que atuavam por meio da formação de trustes. Os Estados Unidos passavam por um processo de aumento da produção e as pequenas empresas deram lugar a monopólios e oligopólios, mediante processos de integração vertical e horizontal.[1] Nesse contexto, as discussões sobre a necessidade de combater os trustes e o poder econômico que concentravam ganharam força. Normas como o Sherman Act (1890), o Clayton Act (1914) e o FTC Act (1914) surgiram nesse objetivo de acabar com as grandes concentrações econômicas.

As discussões sobre o combate aos grandes monopólios tiveram influência de uma grande personalidade para o Direito Antitruste: Louis Brandeis, considerado precursor da Escola de Harvard. Com o seu slogan “regulação da competição”, elaborou o Programa antitruste do Governo de Woodrow Wilson, denominado “New Freedom”, que defendia, dentre outras medidas, o fortalecimento do Sherman Act e o combate aos trustes.[2]

Os ideais de Brandeis, bem como este contexto norte-americano apresentado, influenciaram o surgimento da Escola de Harvard (ou estruturalista), que possuía foco nas estruturas de mercado. Para seus defensores, empresas com poder de mercado podem utilizá-lo para implementar condutas anticoncorrenciais e assim, devem ser evitadas elevadas concentrações, evitando disfunções no mercado.[3]

Em seus primórdios, não se defendia uma finalidade única para o Direito da Concorrência, mas sim diversas finalidades que coexistiam. Assim, os objetivos poderiam estar relacionados com “a defesa dos pequenos agentes econômicos contra os grandes”, “a proteção da concorrência”, “a proteção do consumidor”, dentre vários outros. Por sua vez, quando ocorresse choque entre os objetivos, o julgador ponderaria sobre qual deveria prevalecer.

De outra monta, essa visão de múltiplos objetivos já foi arduamente criticada. Para John Wright, por exemplo, o resultado da abordagem “multi-dimensional” do Direito Antitruste trouxe “decisões conflitantes” e “pouca noção se a doutrina antitruste estaria alcançando seus diversos objetivos”.[4]

No extremo oposto dos ideais da Escola de Harvard, surgiu a Escola de Chicago que nasceu com o economista Aaron Director, com a aplicação do Price Theory ao antitruste e atingiu seu auge na década de 1980. Essa escola apresenta a análise econômica para o antitruste e defende o menor grau de intervenção possível no que se refere à regulamentação da economia pelo Estado.[5] Para os defensores dessa escola, as concentrações econômicas e as restrições verticais podem ser justificáveis, pois garantem eficiências econômicas que não poderiam ser alcançadas de outra forma.[6]

No que se refere aos doutrinadores dessa escola, destaca-se Robert Bork e sua obra The Antitrust Paradox (1978) que aborda as finalidades do Direito Antitruste. Para ele, a política antitruste apenas pode tornar-se racional ao responder as perguntas: “qual é a finalidade da lei?”, “quais são seus objetivos?”. Na visão de Bork, o objetivo do Direito Antitruste deve ser perseguir o “bem-estar do consumidor”, conceito pautado no paradigma econômico neoclássico de análise com foco em eficiências econômicas.

O conceito de bem-estar do consumidor recebeu diversas críticas dos defensores da Escola Neoestruturalista, como Lina Kahn e Tim Wu, que entendem que o Direito Concorrencial não possui uma finalidade única. Em seu artigo Amazon’s Antitrust Paradox, Lina Kahn propõe uma expansão das finalidades do Direito Concorrencial e critica a definição de Bork de bem-estar do consumidor, uma vez que não consegue atender os desafios trazidos por novos mercados na economia moderna.[7]

De acordo com Tim Wu, também é necessário repensar a finalidade de proteção do consumidor. Segundo o professor, há dois grupos que visam este objetivo. O primeiro, denominado Escola Pós-Chicago, acredita que este objetivo do bem-estar do consumidor foi mal interpretado ou mal utilizado. [8] Por sua vez, para o segundo grupo, os Neoestrutalistas ou Neobrandeisianos, o objetivo correto do antitruste foi perdido. Os neoestruturalistas defendem que o problema da análise antitruste não é relacionado à economia, mas sim à lei, uma vez que houve falha ao entender a intenção do legislador e, por essa razão,necessário resgatar o real objetivo da lei antitruste.[9] Tim Wu é um dos críticos da interpretação das leis antitruste norte-americanas. Para ele, o antitruste possui vários objetivos e cabe ao Judiciário ponderar qual deve prevalecer quando ocorrer choque entre os valores.[10]

Assim, os neoestruturalistas apresentam ideias de reformas, principalmente dentro do contexto dos mercados digitais, sob a alegação de que o paradigma neoclássico de análise antitruste não é suficiente para abarcar todos os desafios concorrenciais trazidos por estes mercados inovadores. Ou seja, defendem uma necessidade de afastamento de fundamentos econômicos, mas uma aproximação aos fundamentos políticos.

Do mesmo modo que os defensores da Escola de Chicago recebem críticas quanto à uma limitação do conceito de bem-estar do consumidor, pautado exclusivamente em eficiências econômicas, os neobrandeisianos também recebem críticas, principalmente considerando que a suposição trazida pela Escola Neoestruturalista de que os indivíduos estariam melhores em um mundo com empresas menores e preços mais altos ainda não foi testada.[11]

Diante do quanto exposto, é evidente que a pergunta de qual deve ser a finalidade do Direito Antitruste é bastante complexa. O que se sabe é que, ao menos atualmente, as análises antitrustes são pautadas, em sua maioria, no paradigma de análise neoclássico. Ademais, fato é que apesar de no Direito Concorrencial, e em vários outros ramos do Direito, termos uma análise muito pautada em olhar para modelos de fora, é preciso considerar a realidade de um país emergente como o Brasil e ainda mais do que isso: é preciso lembrar que o Direito Antitruste não é solução para todos os problemas.[12]  


[1] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 67.

[2] MCCRAW, Thomas K., et al. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984. p. 126

[3] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 166.

[4] WRIGHT, Joshua. The dubious rise and inevitable fall of hipster antitrust. George Mason Law & Economics Research Paper No. 18-29, 2019. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3249524. Acesso em 03.05.2022. p. 8.

[5] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 169.

[6] BECKER, Bruno Bastos; MATTIUZZO, Marcela. Plataformas Digitais e a Superação do Antitruste Tradicional: Mapeamento do Debate Atual. In: PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva (org.). Defesa da Concorrência em Plataformas Digitais. São Paulo: FGV Direito SP, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30031/Defesa%20da%20Concorrência%20em%20Plataformas%20Digitais.pdf?sequence=1&isAllowed=y. p. 48.

[7] KHAN, Lina M. Amazon´s Antitrust Paradox. The Yale Law Journal, v. 126, n. 710, 2017. Disponível

em: https://www.yalelawjournal.org/pdf/e.710.Khan.805_zuvfyyeh.pdf. Acesso em 10.05.2022.

[8] WU, Tim. After Consumer Welfare, Now What? The ‘Protection of Competition Standard´ in Practice.

The Journal of the Competition Policy International, 2018. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3249173. Acesso em: 09.05.2021. p. 2.

[9] Ibidem, p. 5.

[10] Ibidem, p. 6.

[11] HOVENKAMP, Herbert J. Is antitrust’s consumer welfare principle imperiled? Faculty Scholarship at

Penn Law, 1985, 2019. Disponível em: https://scholarship.law.upenn.edu/faculty_scholarship/1985/. Acesso em 17.04.2022. p. 103.

[12] CORDEIRO, Alexandre; SIGNORELLI, Ana Sofia Cardoso Monteiro. Os objetivos do Direito Antitruste: evolução e perspectivas para o pós-Covid-19. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-objetivos-do-direito-antitruste-evolucao-e-perspectivas-para-o-pos-covid-19-01082020. Acesso em 04.05.2022.


[*] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[**] Catharina Araújo Sá é advogada no escritório Vilanova Advocacia.

Entre o Fisco e o Contribuinte – Direito de Coadjuvação

Fábio Luiz Gomes

Ao longo da história, a relação entre o fisco e o contribuinte sempre foi conturbada, não havia uma relação de confiança, somente de um poder hierarquizado.

O termo “imposto” já dissemina a sua natureza compulsória, a sua gênese encontra em Genghis Kahn, um dos grandes méritos do notório conquistador de outrora, foi impor o pagamento de impostos aos povos conquistados, como meio de lhes garantir proteção-vida-hierarquia.

Já em Roma os impostos eram utilizados não só para custeio das intermináveis guerras em que se envolvia, mas também para a ampliação das prestações positivas do Estado, começaram a cobrar dos seus próprios cidadãos não só impostos, mas também as taxas.

Conforme se constata, a origem dos tributos foi turbulenta e o medo era o espelho da sua cobrança.

Nos dias de hoje, o “Leão” é o grande símbolo do Fisco, uma fera que impõe temor aos contribuintes, os quais devem servir ao Estado através do pagamento de tributos.

Não se nega a importância da tributação para manutenção do Estado, contudo, a relação entre o Estado e o Contribuinte deve ser mais humanizada, pautada na confiança-transparência-boa-fé.

Portanto, o “Leão” não seria o símbolo mais adequado para estreitar essa relação.

Observa-se que segundo o relatório Insper 2020 o custo do contencioso tributário em 2019 aos cofres públicos foi de 5,44 trilhões de Reais, correspondendo a 75% do PIB neste mesmo ano nas três esferas públicas.

Acrescenta-se que somente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tramita um contencioso de 784,5 bilhões de Reais.

Essa relação conflituosa entre o Fisco e o Contribuinte, além de gerar um grande passivo contencioso tributário, mantém a desconfiança entre esses.

No terceiro milênio não há como justificar tamanho descalabro, resquício de sociedades tirânicas.

Dever-se-ia buscar normas que não priorizassem somente o combate aos “jogadores” que com argúcia burlam a legislação.

Ao invés, deveriam ser criadas normas direcionadas à coadjuvação entre o Fisco e o Contribuinte, com sanções severas àqueles que abusassem do seu direito praticando ilícitos.

Já há movimentos internacionais neste sentido (OCDE – Fórum Global de Transparência e Troca de Informações Tributárias) e, no Brasil, a Lei nº 13.988 de 14 de Abril de 2020, que dispõe sobre a transação resolutiva de litígio a cobrança de créditos da Fazenda Pública.

A Lei nº 13.988/2020 já conseguiu resultados expressivos, pois já conseguiu formalizar 268 mil acordos com os contribuintes e recuperou um passivo de R$ 81,9 bilhões de Reais.

Mas, os números mostram que há muito que se fazer – a relação entre o Fisco e o Contribuinte deve avançar para uma coadjuvação, isto é, pautada na necessidade de igualdade entre o Fisco e o Contribuinte e a Presunção da Boa-fé do Contribuinte.

Ativos não-operacionais e a obrigação de notificação

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde a entrada em vigor da 12.529/2011, lei que recentemente completou sua primeira década de vida, o controle dos chamados atos de concentração tem sido realizado de maneira “ex ante”, de modo que as operações notificáveis somente possam ser consumadas após a autorização da autoridade concorrencial brasileira.

Dentre as principais alterações do regime de controle de estruturas anterior para o modelo atual encontra-se a especificação no que diz respeito à necessidade de notificar ao Cade as operações envolvendo a aquisição de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis.

Na última sessão de julgamento do ano passado, ocorrida em 15/12/2021, o Tribunal do Cade resolveu, por unanimidade, absolver a JBS, havendo entendido, conforme dispôs o voto condutor, que a aquisição do frigorífico localizado em Iguatemi/MS não deveria ser entendida como uma operação de notificação obrigatória, uma vez que, à época da consumação do ato, ou seja, em 08/08/2014, inexistia outro direcionamento da Autarquia senão o entendimento manifestado pelo então conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, que ao julgar o possível descumprimento de seis Atos de Concentração envolvendo a JBS[1], pontuou:

“Ora, é evidente que o arrendamento de uma unidade fabril em pleno funcionamento equivale, em tudo e por tudo, e ao menos pelo prazo em que durar o arrendamento, a uma operação societária de aquisição dos mesmos ativos por meio da aquisição de controle societário. O ponto, aqui, é antes substantivo que formal. Trata-se de perceber que o conceito de “empresa” em direito não diz respeito a uma certa estrutura societária, mas sim à organização de um conjunto de fatores produtivos destinada a produzir certos resultados que seriam impossíveis de serem produzidos pelos fatores isoladamente, ou seja, a um organismo econômico que põe esses fatores em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, para produzir um certo resultado de lucro, na famosa conceituação de Cesare Vivante. Portanto, ter acesso a esse sistema de fatores produtivos, ordenados para a produção, é ter acesso à própria empresa, ainda que isso não implique participação societária formal e ainda que esse acesso seja transitório, como no caso das operações de arrendamento de unidades fabris. O critério, para que tais operações possam ser consideradas “atos de concentração”, é que elas incidam sobre a empresa como um todo, e não sobre seus elementos isolados. Em outras palavras, é que incidam sobre o conjunto dos elementos que forma a empresa entendidos como um sistema em plena atividade. Por isso, não tenho dúvida que as operações de arrendamento de unidades em atividade deveriam ter sido submetidas ao CADE, mas concordo que os arrendamentos de ativos que já não estavam mais a serviço de uma certa atividade empresarial não”. (grifo próprio)”[2]

De fato, como bem asseverou a Conselheira-Relatora, existem dois cenários jurisprudenciais que não podem ser ignorados, isto é, o cenário que remonta o entendimento do Cade à época da aquisição (agosto de 2014) e o cenário mais recente, no qual a Autarquia tem reiteradamente manifestado seu entendimento no sentido de que, mesmo a aquisição de ativos não-operacionais seria de notificação obrigatória.

Entretanto, há que se atentar para o fato de que, em 2013, quando o então Conselheiro Marcos Paulo manifestou seu entendimento, ele procurava interpretar os fatos (descumprimento dos seis atos de concentração) à luz da Lei 8.884/1994, que vigorava à época das operações sob análise, e cuja redação dispunha:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE” (grifo próprio)

A Lei 12.529/2011, por sua vez, entende que um ato de concentração realizar-se-á quando, in verbis:

Art. 90 (…) (I) 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (II) 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; (III) 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (IV) 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. (grifo próprio)

Ora, não precisa de muito para se perceber que a distinção entre os dois tratamentos legislativos é latente, isto é, ao passo em que a lei anterior dá ampla discricionariedade para que o legislador interprete o que será entendido como atos que limitem ou possam vir a prejudicar a livre concorrência (ou mesmo resultar na “dominação de mercados relevantes”)[3], a nova norma define de forma objetiva as hipóteses que devem ser entendidas como possíveis atos de concentração, especificando, dentre elas, a aquisição de ativos, seja ela contratual ou não.

Reabre-se então a discussão sobre se a aquisição de um ativo não-operacional deveria despertar preocupação da Autarquia. O “novo cenário jurisprudencial” entendido pela Conselheira-Relatora demonstra que, para além da operacionalidade do ativo à época da aquisição, é importante também analisar qual viria a ser a destinação deste ativo na atividade econômica em questão, considerando-se ainda quais seriam os investimentos necessários para o desenvolvimento desta atividade.

Assim, para além dos casos citados pela Conselheira, a saber, o AC nº 08700.006524/2016-02, que envolveu as empresas Biomm S.A. e Novartis Biociências S.A., e o AC nº 08700.002190/2020-76, envolvendo a Aircastle Holding Corporation Limites. e a General Electric Company, há outros precedentes em que o tema foi tratado no contexto de decisões sobre o conhecer ou não da operação, como foi o caso, por exemplo, do AC 08700.003501/2020-14, onde argumentou-se que a aquisição de um imóvel inativo onde estava localizado o antigo resort Club Med Itaparica pela hoteleira Eidom não deveria ser de conhecimento do Cade, tendo-se em vista não apenas a inatividade do imóvel, mas também o fato de que, à época da operação, o comprador ainda não havia definido a sua finalidade.

Na ocasião, a SG manifestou o entendimento de que tal aquisição conferiria sim capacidade produtiva ao grupo, vez que lhe permitiria desenvolver atividades no ramo hoteleiro ou ainda imobiliário, mesmo que o ativo, à época da aquisição, ainda não estivesse operacional. Explicou ainda que a estrutura instalada existente poderia produzir reflexos no mercado, não obstante a sua inatividade momentânea, vez que os requisitos para a construção de um hotel são exatamente disponibilidade imobiliária, adequação da propriedade e aprovações ambientais e regulatórias – todos estes, presentes no imóvel adquirido, mesmo sendo de difícil constituição.

Noutra oportunidade, inclusive citada no precedente anterior, a SG igualmente manifestou-se no sentido de que a transferência de ativos, apesar de não estarem operacionais à época da apreciação da operação, poderia “implicar um aumento na capacidade de oferta de um player relevante do mercado em questão, em detrimento dos demais concorrentes (que, eventualmente, podem enfrentar dificuldades para expandir sua capacidade de oferta)” – AC nº 08700.008315/2016-95 (Silcar Empreendimentos, Comércio e Participações LTDA. e Polimix Concreto LTDA).

Ora, a evolução neste entendimento em nada contraria o conceito de empresa segundo Cesare Vivante, conforme parafraseou o ex-Conselheiro Veríssimo, isto é, de “um organismo econômico que põe os fatores produtivos em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, visando um resultado de lucro”. De fato, isoladamente, é impossível que um ativo não-operacional atinja esse status, exatamente por faltar-lhe a capacidade de coordenação. Também no contexto de uma aquisição, só é possível atingir a funcionalidade conjunta na medida em que haja uma identificação entre a possível finalidade do ativo e o ramo de atividade da adquirente – é precisamente o que se verificou nos precedentes citados e também na situação da JBS, ao adquirir o frigorífico inativo de Iguatemi/MS.

Assim, em que pese a decisão unânime dada pelo Conselho, respeitando a segurança jurídica, no sentido de manter a instrução dada pelo ex-Conselheiro Veríssimo, no ano de 2013, de que a aquisição de ativos não-operacionais não deveria ser submetida à notificação obrigatória, é necessário que este precedente não seja interpretado de forma equivocada, ou seja, como um passo atrás para a instituição. 


[1] AC no 08012.008074/2009-11 (JBS S.A. e Bertin S.A.); AC no 08012.002148/2012-01 (JBS S.A. e JEMA Participações Ltda.); AC no 08012.002149/2012-48 (JBS S.A. e MJE Administração de Bens Ltda.); AC no 08012.003367/2012-08 (JBS S.A. e FR Participações Ltda.); AC no 08700.004230/2012-12 (JBS S.A. e SSB Administração e Participações Ltda.); AC no. 08700.004226/2012-46 (JBS S.A., Tiroleza Alimentos Ltda. e Rodo GS – Transportes e Logística Ltda.)

[2] Ato de Concentração 08012.002148/2012-01, Volume 2, Página 290.

[3] Ao analisar o Ato de Concentração 08012.009064/2009-95, o então Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan entendeu que, por se tratar de um bem imóvel, a aquisição indireta de imóveis da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) não seria de notificação obrigatória, devendo ser considerado como crescimento orgânico ou crescimento interno da empresa.

Os ventos do norte não movem moinhos? O Direito da Concorrência brasileiro diante das transformações do Antitruste norte-americano

Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro contemporâneo parte de bases constitucionais sólidas, é disciplinado por robusto diploma normativo, com institutos já amplamente testados na prática, e conta com uma dogmática nacional já bastante desenvolvida a partir dessas bases normativas. Não obstante, não se pode ignorar as profundas influências que tanto a teoria quanto a prática do Direito da Concorrência brasileiro ainda sofrem diante dos influxos do Antitruste dos Estados Unidos – que remontam à primeira lei antitruste brasileira e mesmo aos comentários de Benjamin Schieber (cuja influência será objeto do próximo artigo desta coluna), mas que também podem ser verificadas nas posturas jurisprudenciais mais recentemente adotadas ao norte.

Basta ver que, na medida em que o Antitruste norte-americano acolheu as ideias da Escola de Chicago, notadamente a partir da adoção dos critérios propostos por Robert Bork para, a pretexto de defender o bem-estar do consumidor, substituir a racionalidade jurídica pelo critério da eficiência econômica, as metodologias de análise desenvolvidas naqueles contexto foram em larga medida adotadas também na prática do Direito da Concorrência brasileiro.

De fato, Bork soube apresentar a sua proposta de forma interessante e sedutora, porém o “bem-estar do consumidor” propalado pelo autor, além de descolado da realidade, não apresentava nenhum componente ético ou jurídico, assim como era indiferente a qualquer problema relacionado à pobreza ou à distribuição de renda, na medida em que dizia respeito exclusivamente à eficiência – por mais controversos e limitados que sejam critérios como o de Pareto e o de Kaldor-Hicks.

A adoção desses critérios metodológicos, como aponta Tim Wu, levou a um intenso movimento de concentração no contexto norte-americano, com inúmeros exemplos de monopólios e oligopólios formados com a anuência das autoridades da concorrência[1]. Exemplo disso são as posições hoje detidas pelos chamados gigantes da internet, que ao longo dos anos beneficiaram-se da postura leniente das autoridades para adquirir concorrentes efetivos ou potenciais para perpetuar seu poder de mercado e originar estrutura de mercado que dificilmente poderá ser desafiada.

Diante desse cenário, com a eleição do Presidente Joe Biden, os ventos do Direito Antitruste nos Estados Unidos pareceram iniciar uma mudança, tendo em vista que determinados autores com posições críticas relevantes contra as metodologias de Chicago e o movimento concentracionista dos últimos anos assumiram importantes nas autoridades norte-americanas. É o caso das indicações de Lina Khan para a Federal Trade Commission e de Tim Wu para o National Economic Council, que produziram importantes repercussões: basta ver que, no dia 9 de julho, a FTC publicou comunicado manifestando sua intenção de alterar as suas Merger Guidelines diante da excessiva permissividade a autoridade com a concentração de mercado e da realidade econômica contemporânea[2].

Após vários anos de reafirmação das metodologias de Chicago, o Direito Antitruste norte-americano parece estar incorporando às suas práticas institucionais tanto achados empíricos recentes sobre estruturas de mercado – notadamente no âmbito de mercados digitais – quando novas perspectivas metodológicas, assim iniciando um processo de verdadeira transformação na análise antitruste. De fato, pode ainda ser muito cedo para que se conclua que tais mudanças alterarão fundamentalmente as bases do Direito da Concorrência, porém minimamente representam uma oportunidade de incorporar perspectivas críticas às metodologias e sobretudo à ideologia de Chicago, que não raro serve muito mais para ocultar aspectos relevantes da realidade econômica do que para analisar o funcionamento de mercados reais.

Restar aguardar, nesse sentido, se o Direito da Concorrência brasileiro terá com essas transformações a mesma permeabilidade que teve para com a incorporação das premissas da Escola de Chicago e outros institutos oriundos da prática dos Estados Unidos. Do contrário, será possível verificar se a influência norte-americana no contexto brasileiro limita-se a um determinado período histórico cujas perspectivas somente seguirão sendo aplicadas em virtude de um inexplicável movimento inercial – em que, ao passo que os ventos do norte mudam de direção, os moinhos do sul giram no mesmo sentido.


[1] Ver: WU, Tim. The curse of bigness. Nova York: Columbia University Press, 2018.

[2] Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2021/07/statement-ftc-chair-lina-khan-antitrust-division-acting-assistant.

O dia da aprovação das MPs

Quarta-feira | 18 de maio de 2022

Nesta terça-feira foram votadas importantes proposições legislativas. Os destaques ficam por conta das apreciações das seguintes proposições:

– O Senado Federal manteve o despacho gratuito de mala em viagem de avião (MP 1089/2021);

– Câmara aprova MP que permite renegociação de dívidas do Fies (MP 1090/2021); e

– Câmara aprova MP que altera incentivos fiscais à indústria petroquímica (MP 1095/2021).

A primeira votação importante diz respeito a apreciação pelo Senado Federal da MP 1089/2021[1], também chamada de MP do Vôo Livre, que trata do retorno da gratuidade das bagagens para os usuários do transporte aéreo, ta. A MP retorna para a Câmara dos Deputados.

A Câmara dos Deputados aprovou a MP 1090/2021[2], que estabelece os requisitos e as condições para realização das transações resolutivas de litígio relativas à cobrança de créditos do Fundo de Financiamento Estudantil – Fies. A MP segue para o Senado Federal.

Por fim, e não menos importante, foi a apreciação da MP 1095/2021[3], altera incentivos tributários para a indústria química e petroquímica no âmbito do Regime Especial da Indústria Química (Reiq). A MP segue para o Senado Federal.


[1] Altera a Lei nº 6.009, de 26 de dezembro de 1973, a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, e a Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, para dispor sobre o transporte aéreo.

[2] Estabelece os requisitos e as condições para realização das transações resolutivas de litígio relativas à cobrança de créditos do Fundo de Financiamento Estudantil – Fies e altera a Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, a Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, e a Lei nº 12.087, de 11 de novembro de 2009.

[3] Revoga dispositivos da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, e da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, referentes à tributação especial da Contribuição para o Programa de Integração Social e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/Pasep, da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação relativa à nafta e a outros produtos destinados a centrais petroquímicas.

As Fake News são passíveis de serem analisadas pela teoria antitruste?

Elvino de Carvalho Mendonça

O mercado de informações é composto por editores e produtores de conteúdo. Os produtores de conteúdo podem produzir Fake News e notícias verdadeiras, onde as Fake News possuem custo próximo de zero, ao passo que as notícias verdadeiras apresentam custos positivos.

Os editores de mídias tradicionais se remuneram pela venda de assinaturas e pelo faturamento com anúncios publicitários, enquanto os  editores de mídias sociais disputam os mesmos recursos no mercado publicitário.

Os produtores de conteúdo verdadeiro se remuneram a partir da venda do seu conteúdo, ao passo que os produtores de conteúdo Fake News se remuneram a partir de grupos interessados na veiculação da informação fraudulenta.

O mercado de informações tende a ser encharcado por Fake News e a razão está associada com o problema da seleção adversa observado no modelo de Akerlof. No modelo em comento, os carros bons tendem a ser excluídos do mercado, uma vez que o consumidor somente observa o custo médio do salão de vendas. Sendo assim, carros com qualidade que impliquem em preços superiores à média nunca serão demandados.

Com as informações acontece a mesma coisa. O consumidor de notícias observa o preço médio das informações, de maneira que informações que tenham preços superiores aos preços médios nunca serão demandadas e, nesse caso, somente serão demandadas Fake News.

As empresas de mídias sociais ofertam informações a custo zero para os consumidores, ao passo que as empresas de mídia tradicional exigem pagamentos e assinaturas para a obtenção da informação. No entanto, as empresas de mídias sociais somente são capazes de ofertar informações a custo zero porque existem produtores de conteúdo que desenvolvem essas informações a custo zero.

A diferença fundamental entre os editores de mídias sociais e os editores tradicionais (i) está na capacidade dos primeiros de possuir os dados de grande parte da população, inclusive de gostos e preferências, e (ii) na elevada concentração de empresas de mídias sociais.

É importante lembrar que o produtor de conteúdo de informações verídicas pode disponibilizar os seus produtos de forma remunerada ou gratuita, significando dizer que este produtor de conteúdo pode atuar nas mídias sociais ou nas mídias tradicionais. Entretanto, este fato não acontece para o produtor de conteúdo de Fake News, pois ele somente tem acesso para veicular as suas informações nas mídias sociais.

Tendo em vista que o produtor de conteúdo Fake News somente pode trabalhar com as mídias sociais e que o custo para fazer a publicação das informações é zero junto a essa mídia, o incentivo deste tipo de produtor é o de entender a forma como o algoritmo funciona e, a partir daí, reproduzir o seu conteúdo.

O editor de mídia social, por seu turno, necessita da informação (qualquer que seja ela) para gerar conteúdo para o seu espaço virtual. Tendo em vista que o custo de obtenção do conteúdo Fake News é zero, empresas como as Big Techs tendem a divulgar uma quantidade de Fake News muito superior à divulgação das informações verdadeiras.

De acordo com Hubbard (2017)[1], as Fake News tornam-se um problema de defesa da concorrência porque as empresas do mercado de Big Techs ganham participação de mercado a partir das informações fraudulentas, elevando, dessa forma, os custos dos editores da mídia tradicional.

A aquisição de informação fraudulenta como forma de ampliação de participação de mercado, haja vista que as Big Techs possuem elevadas participações de mercado, nada mais é que abuso de posição dominante.

Hubbard (2017) entende que a solução das Fake News como problema de defesa da concorrência está na necessidade de haver concorrência nos mercados de informação das mídias sociais, pois assim, o produtor de conteúdo Fake News[2]  se defrontaria com os custos de aprendizagem dos algoritmos das empresas, o que tenderia a fazer com que o preço da produção desse conteúdo se tornasse próximo ao preço do conteúdo verdadeiro.

Portanto, não parece haver dúvidas que as Fake News também devem ser tuteladas pela defesa da concorrência e, a partir dessa assertiva, passa-se a analisar que remédio deve ser aplicado para minimizar o efeito anticompetitivo das informações fraudulentas.


[1] HUBBARD, Sally. Fake News Is A Real Antitrust Problem. Competition Policy International. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/fake-news-is-a-real-antitrust-problem/. Acesso em: 24.11.2021

[2] https://laweconcenter.org/wp-content/uploads/2018/01/CPI-Hurwitz.pdf

A análise de defesa da concorrência no Brasil: aplicação da Escola Harvard, da Escola de Chicago ou de ambas?

Elvino de Carvalho Mendonça

Certa vez eu fui convidado por um amigo para dar uma aula inaugural no curso de pós-graduação de direito econômico em uma importante universidade brasileira.

Comecei por explicar que o guia de análise de concentrações horizontais brasileiro, americano e da comunidade europeia compreendiam um misto do paradigma Estrutura-Conduta-Desempenho (ECD) e da Escola de Chicago.

Qual não foi a minha surpresa quando o anfitrião mencionou que nunca havia pensado que um instrumento como o Guia brasileiro e outros tantos carregavam consigo tantos fundamentos teóricos e que os pontos de vistas tão antagônicos pudessem conviver em um único documento orientativo.

Aqueles que militam na defesa da concorrência, quer seja submetendo atos de concentração ao CADE quer seja instruindo e julgando os mesmos atos, partem, inexoravelmente, dos mesmos elementos e sempre começam dos mesmos pontos: definição de mercado relevante; análise de posição dominante; avaliação das barreiras, da rivalidade e das condições de entrada; e estudo das eficiências da operação.

Prima facie, estes elementos nada mais são do que a confluência de elementos da escola de Harvard (paradigma ECD) e da Escola de Chicago.

Pois é!! A controvérsia “saudável” entre a escola de Harvard e de Chicago é muito conhecida pelos amantes da defesa da concorrência, mas nem todo mundo se dá conta de que convivemos com as duas escolas na elaboração dos seus afazeres diários. Senão Vejamos!!!

O paradigma ECD, nas próprias palavras de Bain (1951), significa que a estrutura dos mercados (concentração) conduz a condutas nestes mesmos mercados e o seu desempenho (efeitos preços e quantidades) depende inevitavelmente de quão concentrados são os mercados[1].

A escola de Chicago, por seu turno, inverte a relação de causalidade, afirmando que o desempenho precede a estrutura, o que significa, em apertada síntese, que a concentração de mercado é, na verdade, responsável pelos ganhos de eficiência na economia, uma vez que as empresas com maiores poderes de mercados são aquelas mais capazes de fazerem inovações.

De fato, o Guia de Análise de Concentração Horizontal do CADE é fundamentado no paradigma ECD até o ponto em que se chega à análise de eficiências. Nesta etapa, avalia-se a possibilidade de que as eficiências geradas pela operação contraponham a ampliação da concentração de mercado ou, em outras palavras, que os benefícios das eficiências compensam a eliminação de um concorrente no mercado.

Na verdade, o que é certo é que controle de estruturas no Brasil e em grande parte das jurisdições se utiliza dos ensinamentos da Escola de Harvard e da Escola de Chicago, sendo que a análise sempre começa pelo paradigma ECD da Escola de Harvard e pode, em alguns casos, terminar com a prevalência das eficiências sobre a concentração de mercado postulada pela Escola de Chicago.

Entretanto, vale registrar que a combinação destas teorias em um documento não impede que o CADE adote uma ou outra teoria de forma mais prevalente, pois prevalência depende, em grande medida, da composição do plenário, não sendo fato estranho nem incomum observar, ao longo da história da autoridade de defesa da concorrência brasileira, decisões colegiadas que oscilam entre a Escola de Harvard e a Escola de Chicago.


[1] O paradigma ECD foi dominante nas décadas de 1960, 1970 e 1980 com Bain, Mason, Kaysen eTurner e recebeu o nome de Escola Estrutural de Harvard.

BAIN, J. Barriers to New Competition: Their Character and Consequences in Manufacturing Industries (1956); J. Bain, ‘Relation of Profit Rate to Industry Concentration: American Manufacturing, 1936-40’ 65 Quarterly Journal of Economics 293. 1951.

MASON, E. Economic Concentration and the Monopoly Problem. 1964.

KAYSEN, C; TURNER, D.  Antitrust Policy: An Economic and Legal Analysis. 1959.

Da Lei de Concessões ao Decreto de AIR: o tortuoso (será?) caminho da regulação econômica no Brasil

Elvino de Carvalho Mendonça

Muito se tem falado a respeito da importância da Análise de Impacto Regulatório (AIR) nas agências reguladoras. Um dos reclames da sociedade sobre a condução da regulação econômica via agências reguladoras estava centrado na grande quantidade de regramentos que acabavam por representar verdadeiras barreiras à entrada regulatórias e, nesse caso desmoronavam a missão precípua da regulação econômica que é a de mimetizar o ambiente concorrencial onde existem falhas de mercado instransponíveis para a economia de mercado.

Antes da Constituição Federal de 1988, os setores econômicos que hoje são conduzidos pelas agências reguladoras eram “regulados” pelos Ministérios do Poder Executivo. Nesse formato, havia a influência direta das questões do governo central e a política era menos de Estado e mais de governo.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o art. 174 previu a possibilidade de constituição de agências reguladoras como agente normativo e regulador da atividade econômica com as finalidades de fiscalização, incentivo e planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado,[1] permitindo maior autonomia, privilegiando a técnica. Por outro lado, no art. 175, também previu que os serviços públicos poderiam ser concedidos ou permitidos a iniciativa privada mediante a realização de processos licitatórios, por prazo longo e mediante contrapartidas das empresas vencedoras[2].

Dada essa condução, a decisão foi a de privatizar as empresas estatais que prestavam serviços públicos, que eram monopólios naturais (ex. eletricidade e telefonia) e criar marcos regulatórios com agências independentes operacional e financeiramente para a gestão das empresas, segundo métodos tradicionais de regulação econômica, como, por exemplo, o regime de preço-teto.

O desafio dos marcos regulatórios era o de selecionar uma empresa por meio de processo licitatório que viesse a ofertar a melhor combinação de tarifa/qualidade da prestação serviço para o contribuinte e recursos para a União. Com esse marco regulatório vieram as regulamentações e com estas as normas, portarias e resoluções.

Várias experiências se sucederam após a criação dos marcos regulatórios dos onze setores regulados no Brasil, mas foi somente com a publicação da Lei das Agências (Lei nº 13.848/2019) e da Lei de Liberdade econômica (Lei nº 13.874/2019) e do Decreto de AIR (Decreto nº 10.411/2020) que a análise de impacto regulatório se tornou uma realidade exigível não somente para as agências reguladoras, mas também para toda a elaboração de atos normativos da administração pública direta, não obstante, aqui e ali, algumas agências já fizessem análises de impacto regulatório.

Os mencionados diplomas legais, sobretudo o Decreto de AIR, disciplinaram o rito do AIR e os métodos para se obterem medidas quantitativas e qualitativas dos atos normativos sobre os regulados e a sociedade como um todo. Salvo para as exceções, toda norma deve ser precedida de AIR e deve ser transformada em relatório, que será submetido ao escrutínio da participação social (tomadas de subsídio, consultas públicas e audiências públicas).

Está claro, portanto, que a regulação econômica no Brasil seguiu as premissas dos bons manuais de regulação econômica ao redor do mundo, pois privatizou empresas estatais deficitárias, criou agências reguladoras, elaborou marcos regulatórios e agora institucionalizou a prática do AIR em todas as agências.      

A ausência de instrumentos que medissem a intervenção do Estado por meio da regulação talvez seja o ponto mais negativo da regulação econômica no Brasil nesses últimos 26 anos. Antes da entrada em vigor da lei das agências, da lei de liberdade econômica e do Decreto de AIR, o Estado era soberano na elaboração de normas, o que fazia dos seus atos uma intervenção ativa no domínio econômico, com efeitos, muitas vezes, não muito positivos para a segurança jurídica dos regulados e dos investidores privados.

É inescapável que a instituição do AIR veio para atribuir poder a sociedade no balanço de forças com o Estado, na medida em que algumas normas anticompetitivas e/ou excessivas regulatoriamente tendem a ser eliminadas no processo de análise de impacto regulatório. Mas fica uma dúvida: qual é a medida certa?

Se é certo que a ausência de barganha de forças com o Estado acabou por gerar normas, muitas vezes, excessivas que acabaram gerando barreiras à entrada para o mercado, por outro lado, também é certo que é fundamental que o Estado tome a condução de diretrizes, ao menos, mínimas em mercados onde são visíveis as falhas de mercado, evitando o abuso do poder de mercado.

A medida correta é a de controlar o abuso, seja do Estado (abuso de poder regulatório) ou abuso do mercado (abuso do poder de mercado).

Não é difícil perceber que a quantidade de atos normativos que são necessários para a boa regulação é muito superior à capacidade de análise das agências reguladoras. Obviamente que um grande percentual desses atos não possui qualquer prejuízo para os setores regulados, a exemplo do que acontece com os 80% de atos de concentração submetidos ao CADE não possuem qualquer problema de natureza concorrencial.

 Esse é um desafio que o CADE e grande parte das agências de defesa da concorrência ao redor do mundo resolveram a partir da elaboração de critérios para separar os casos que realmente eram problemáticos daqueles que não o eram. A solução de triagem com publicidade ao público por meio da publicação de atos simples no DOU deu celeridade ao processo decisório, reduziu a insegurança jurídica e transformou o CADE em uma das melhores agências das Américas.

No entanto, nem sempre foi assim para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Quem não se lembra do duplo trabalho na elaboração de pareceres pela então Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) antes da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência)? Foram precisos alguns bons anos para que o SBDC identificasse que o modo como o sistema funcionava era disfuncional e gerava custos amplos tanto para o erário quanto para o setor privado.

Não obstante o Decreto de AIR tenha trazido os métodos para calcular o impacto regulatório, que nem sempre é uma boa solução devido ao engessamento da autoridade regulatória, não trouxe qualquer critério de triagem. A exemplo do que se viu com a experiência do SBDC, a eliminação do que não é relevante abre espaço para a aplicação de métodos sofisticados em casos que realmente merecem ajustes. Importante lembrar que há diferenças consideráveis entre as operações no CADE e os atos normativos das agências e a principal delas está no fato de que o órgão antitruste é um examinador externo das condições de concorrência que são geradas pela ação de duas ou mais empresas, ao passo que a AIR é elaborada por um examinador interno, que transforma a decisão diretamente conectada à vontade da agência.

Portanto, como criar um fast track para algo que está permeado por interferência direta? É importante lembrar que a AIR é um ônus da prova da agência para publicar um novo normativo e o julgamento é feito pela sociedade por meio da participação social (consulta pública, audiências públicas etc).

Há quem diga que a obrigatoriedade de realização da AIR inibe a produção de normas ruins do ponto de vista regulatório e concorrencial, pois há uma alta probabilidade de que esses normativos não sejam publicados na forma como foram propostos ou que sequer sejam produzidos, em razão da necessidade de produção de um trabalhoso AIR. Nesse caso, o entendimento seria de que somente seriam submetidas para AIR normativos que fossem relevantes e o problema do fast track estaria resolvido.

No primeiro caso, não há o comando da aprovação, ao passo que no segundo, o fast track no CADE, está baseado no tamanho das empresas que fazem as operações (faturamento bruto e participação de mercado).

Mais do que dizer que método utilizar é importante excluir aquilo que não gera preocupação e dar publicidade para a sociedade, pois, do contrário, é como “matar uma formiga utilizando uma bomba atômica”.


[1] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.         (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

[2] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.