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Liberalismo, esse desconhecido: uma apresentação em 700 palavras.

Amanda Flávio de Oliveira* e Adriano Paranaiba**

É fato notório que as ideias liberais encontram muita resistência no Brasil, aprioristicamente e desde sempre. Sabe-se também que quase nada nos é apresentado das teorias liberais no decorrer de nossa formação acadêmica no Brasil: da escola à pós-graduação, os autores liberais são negligenciados nos currículos. Esse estado de coisas, no entanto, não nos impede de assistir a muita crítica a eles – aqueles que ninguém leu, mas é contra.

Uma expressão clara disso consiste no sempre referido criticamente “neoliberalismo” que por vezes parece “ameaçar” o bem-estar do país e de seu povo. É só surgir uma medida desreguladora de um mercado ou uma proposta de afastamento do Estado em algum assunto que logo ela é “acusada” de “neoliberal”. O termo, na grande maioria dos casos em que é empregado, com o prefixo que diz respeito à “novo”, não tem significado preciso algum, a não ser o de que aquele que o proferiu não sabe do que está falando, mas é contra.

Outros “argumentos” são lugar comum em discussões contra o “neoliberalismo” malvadão: as sempre reiteradas invocações de Adam Smith e sua “mão invisível”, a suposta “falácia” do laissez faire, assim entendido aquele Estado negligente, irresponsável e ausente, além das afirmações de que “a ideia até poderia dar certo, mas não em um país tão desigual” ou de que “a ideia só funciona depois de um certo grau de desenvolvimento”, e por aí vai.

Este breve texto tem a missão ingrata de explicar o que são as ideias liberais em apenas 3 páginas. Claro que ele pagará todos os pecados pela sua brevidade: é que há escolas de liberalismo econômico, com pontos de vista por vezes divergentes entre elas. Mas, principalmente, explicar o que é liberalismo em 3 páginas só seria possível se ele fosse aquilo a que é acusado e que ele não é: uma proposta anárquica de extinção do Estado, defendida por pessoas irresponsáveis e despreocupadas com o outro e com a pobreza, e que advogam a ideia egoísta de que cada um cuide de si.

Primeiramente, esclareça-se de que o liberalismo não é uma instituição, um modelo que podemos implantar em um país. Sempre nos perguntam: onde o liberalismo foi implantado? De fato, nunca foi – o que é bom, pois não se trata de um regime. Também não é uma filosofia completa acabada, muito menos um dogma.

Liberalismo também não é só economia. O liberalismo econômico é apenas uma vertente – há também o liberalismo político, responsável pela defesa da liberdade de expressão, locomoção e crença.

De fato, o liberalismo constitui uma doutrina política, que utiliza fundamentos da Economia, buscando alternativas para a melhora do padrão de vida das pessoas. E aqui é importante pontuar: historicamente, o liberalismo, em seus primórdios, foi o primeiro movimento político que buscou promover o bem-estar para pessoas que não faziam parte de grupos especiais e elites. Esse ponto é importante destacar, por que os detratores do liberalismo o acusam justamente do oposto: que o liberalismo é cruel, principalmente com os mais pobres, pequenos e desprovidos.

Se há escolas de pensamento diferentes dentro de um grande universo das teorias liberais, alguns pontos em comum elas possuem e que as tornam partes de um todo: o enaltecimento da pessoa humana e a sua proteção contra os arroubos do Estado é ponto fulcral entre elas. Liberais defendem a definição precisa dos direitos de propriedade, as trocas voluntárias, a liberdade de expressão, os preços de mercado. Se há divergências entre elas, isso dependerá do quanto de Estado se admite em cada uma, mas em todas a preferência é dada ao indivíduo.

Em épocas de uso abusivo de expressões, conferir às pessoas liberdade e exigir responsabilidade em seu uso representa a melhor forma de empoderamento a se desejar. O mesmo se pode dizer de empatia: a tolerância constitui valor importante para os teóricos liberais, o que pressupõe discordância respeitosa de ideias, o que, infelizmente, em épocas de cancelamentos, não vem sendo a tônica. Por fim, o liberalismo será sempre contra guerras, exatamente por configurarem atentados à propriedade privada de outros povos e países. A paz, portanto, é cara aos liberais.

Essas são apenas as 3 primeiras páginas de uma proposta maior: explicar o liberalismo e afastar críticas apriorísticas infundadas ou frutos de desconhecimento ou exclusivamente ideológicas. Invocar Adam Smith, mão invisível, laissez faire e desigualdade é passar recibo de que não conhece o que é criticado. Mas isso não é exatamente culpa de ninguém: conforme mencionamos no primeiro parágrafo deste texto, o liberalismo não nos é apresentado nos bancos escolares. Recebam nosso convite para conhecer o liberalismo, em todas as suas expressões.

*AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1996, onde também cursou Mestrado (2000) e Doutorado (2004), tendo realizado formação complementar em Louvain-la-Neuve, Bélgica (1999). É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

**ADRIANO PARANAIBA. É Economista, Doutor em Transportes. Professor do IFG e Diretor Acadêmico do Instituto Mises Brasil. Já atuou como Subsecretário de Competitividade e Melhoria Regulatória no Ministério da Economia.

Regulação de risco em tempos de incerteza: lições da ciência comportamental

Lúcia Helena Salgado*

A ciência comportamental vem informando a tomada de decisão em políticas regulatórias há mais de uma década. Trazida ao conhecimento do público leigo em 2008, com a publicação do livro de Cass Sustein e Richard Thaler, Nudge[1], os relatos de experimentos ali reunidos revelaram quão potente pode ser a “arquitetura da escolha” para elevar o nível de bem-estar social. Os exemplos hoje já clássicos – como a mudança na disposição de itens saudáveis à frente de ultraprocessados em cantinas escolares, induzindo mudanças de hábitos alimentares, e a mudança do default de não-doador” para “doador” em cadastros, levando a significante aumento do número de doadores de órgãos na Suécia -, demonstraram que pequenas alterações em menus de escolhas podem levar a mudanças importantes de comportamento, com reflexos positivos tanto para a sociedade como para o próprio tomador de decisão.

Ao tempo em que Nudge se revela um best-seller e era traduzido para várias línguas, Obama vencia as eleições presidenciais estadunidenses e tomava posse, convidando para liderar o OIRA[2] – o ente na Casa Branca responsável desde 1980 por avaliar e encaminhar todas as propostas regulatórias do Executivo – seu ex-professor em Yale e autor da obra, Cass Sustein. Richard Thaler[3] por sua vez, no ano seguinte, foi convidado pelo governo bipartidário britânico de Cameron a criar e dirigir uma unidade executiva capaz de rever e propor políticas regulatórias fundamentadas nos ensinamentos da ciência comportamental, o Behaviour Insights Team. A unidade completou 10 anos em 2020, e vem servindo de inspiração para unidades com o mesmo desenho e propósito, na Comissão Europeia, na província de Vitoria, Austrália, no Banco Mundial e na OMS, dentre outras[4]. O núcleo de estudo, revisão e desenho de politicas implantado originalmente no Reino Unido segue um formato bem-sucedido naquela jurisdição, já testado desde o governo de Tony Blair para reformular a intervenção regulatória: é uma força tarefa interdisciplinar, conectada em rede de diálogo e cooperação com órgãos de governo e com a academia, em permanente processo de aperfeiçoamento e revisão de desenho[5].

Em paralelo a essas iniciativas, a OECD[6] abraçou a missão de pesquisar e relatar a aplicação de ciência comportamental[7] nos processos de melhoria regulatória. A abordagem mostrou-se perfeitamente ajustada ao objetivo perseguido desde o inicio do milênio por muitos países, inclusive o Brasil, de aperfeiçoamento da regulação por meio da adoção de análises de impacto tanto ex-ante como ex-post, baseadas em evidências empíricas obtidas com metodologia científica[8]. Nos relatórios que publica regularmente sobre experiências nacionais[9], a organização costuma assinalar que a abordagem de politica regulatória fundamentada em insights comportamentais é apoiada em evidências, ao procurar identificar o que de fato guia as decisões dos cidadãos, deixando de lado premissas de como os cidadãos “deveriam agir” para fundamentar intervenções regulatórias[10].

Insights comportamentais têm iluminado com especial brilho situações a demandar intervenção regulatória em que há riscos a serem ponderados (em contraponto a benefícios). A premissa é que é essencial compreender como as pessoas tomam (de fato) decisões em condições de incerteza e risco, os atalhos mentais utilizados e os erros sistematicamente incorridos, para desenhar regulações que auxiliem os indivíduos a evitar os erros de avaliação. Por que a regulação em condições de risco beneficia-se especialmente de fundamentos da ciência comportamental? Porque erros nessas condições são sinônimos de tragédias, envolvem perdas de vidas, danos irreparáveis à sociedade e a seu ecossistema. Riscos envolvem probabilidade e gravidade de ocorrências. Um evento pode ser de altíssima gravidade mas de probabilidade insignificante; pode ser de gravidade média – danos reparáveis – com probabilidade moderada, pode ser de baixa gravidade mas com alta probabilidade – o que recomendaria medidas preventivas leves, e daí por diante; consideradas em um contínuo, gravidade e probabilidade, as combinações tendem ao infinito, embora possam ser abordados por intervalos. Amos Tversky e Daniel Kahneman, no artigo “Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases[11], marco dos estudos em economia comportamental, concluem que as regras da estatística não fazem parte do repertório inato humano; não obstante, é parte da condição humana a tomada de decisões a todo momento, sendo elas em grande parte referidas a um futuro – imediato ou distante – sobre o qual paira incerteza. Para transitar nesse mundo de incertezas, povoado por riscos, motivados seja por receios seja por esperanças, os indivíduos tomam decisões, fazem escolhas, arriscam ou se protegem, com base em heurísticas – regras práticas de comportamento, que simplificam inconscientemente o processo de tomada de decisão. Os autores identificam especialmente três heurísticas empregadas nas inferências sob incerteza: representatividade, disponibilidade e ancoragem, destacando, nas suas palavras, que:

“Essas heurísticas são altamente econômicas e usualmente efetivas, mas levam a erros sistemáticos e previsíveis. Uma melhor compreensão dessas heurísticas e dos desvios a que levam podem aperfeiçoar julgamentos e previsões em condições de incerteza.” (pp. 1124, tradução livre).

Adiante Thaler denominaria essas regras práticas, que podem levar, por afastamento da racionalidade, a erros sistemáticos de avaliação em tomada de decisão (com consequências econômicas significativamente negativas), de “anomalias”[12]. Pesquisas subsequentes expandiram o rol de erros de avaliação (ou vieses cognitivos) e revelaram importante aplicabilidade para politicas de intervenção regulatória, a ponto de hoje ser obsoleto tratar-se de intervenção regulatória para lidar com um problema sem considerar com o devido cuidado o impacto na percepção dos agentes e sua reação em face tanto do problema como da intervenção.

A pandemia de COVID-19 colocou em evidência a importância da análise de riscos para o desenho regulatório. Quando incluída com método e rigor, a variável risco pode aumentar a efetividade e eficiência da politica pública, à medida em que substitua receios, esperanças e opiniões – que traduzem heurísticas tipicamente humanas – por diretivas simples e claras, balizadas no exame criterioso de dados.

Este momento histórico representado pela pandemia já proporciona a observação de verdadeiros experimentos naturais, como a variância de comportamentos com respeito ao protocolo básico indicado pela OMS, tão logo os estudos levaram ao consenso cientifico em torno da importância de afastamento mínimo, higiene das mãos e uso de máscaras adequadas. Onde o público foi orientado pelas autoridades diretamente, com clareza e objetividade sobre a importância do protocolo, a adesão prevaleceu; onde essa condução não se deu, as heurísticas conduziram as decisões. Na dúvida sobre que conduta adotar? O mais seguro é a heurística de conformidade: seguir o comportamento do seu grupo social, daqueles em quem o sujeito deposita confiança, daqueles com quem se identifica.

Muitos estudos ainda serão publicados sobre os impactos da pandemia nos rumos do planeta; a produção científica vem tomando proporções gigantescas desde 2020, assim como tem crescido a colaboração em pesquisa e compartilhamento de dados, proporcionados pelas novas tecnologias. O desenho de politicas regulatórias tem muito a ganhar nesse processo em que a avaliação de risco fundamentada nos ensinamentos da ciência comportamental venha a se tornar rotineira na condução de processos de tomada de decisão em políticas públicas.

[1] Cutucada ou cutucão, em português informal, foi o título escolhido pelo editor e seu faro comercial para a obra de Sustein e Thaler sobre a arquitetura da escolha: Nudge, Improving Decisions about Money, Health and Happiness, Yale University Press, 2008.

[2] Office of Information and Regulatory Affairs. https://www.whitehouse.gov/omb/information-regulatory-affairs/

[3] Que em 2017 recebeu o Nobel de Economia, o segundo prêmio conferido à linha de pesquisa de economia comportamental, atrás de Daniel Kahneman, que recebeu o Nobel em 2002 em função da importância dos achados em psicologia comportamental para a revisão do princípio individual-metodológico baseado em perfeita racionalidade.

[4] Organização Mundial da Saúde. Uma consulta rápida ao Google oferece os endereços virtuais de cada uma dessas unidades.

[5] Tanto que, uma vez consolidada como instituição, após dez anos passou a operar de forma independente do governo. Confira em www.bi.team

[6] Organization for Economic Co-Operation and Development.

[7] Behaviour Isights tem sido a expressão mais frequente para designar essa nova abordagem.

[8] A respeito vale consultar Marcos Regulatórios no Brasil – Aperfeiçoando a Qualidade Regulatória, Salgado, L.H. e Fiuza E.S.P. (orgs), volume de 2015 da coleção disponível no repositório de conhecimento do IPEA http://repositorio.ipea.gov.br

[9] Acessiveis em www.oecd-library.org

[10] O que equivale a substituir a hipótese do indivíduo (tomador de decisão) racional-maximizador perfeitamente informado pela observação da decisão humana em contexto social e condições de incerteza e informação incompleta.

[11]Science, New Series, Vol. 185, No. 4157. (Sep. 27, 1974), pp. 1124-1131. Stable URL: http://links.jstor.org/sici?sici=0036-8075%2819740927%293%3A185%3A4157%3C1124%3AJ

[12] Richard Thaler, quando editor da American Economic Review, publicou como prefácio, a cada número, um ensaio sobre eventos econômicos em que a tomada de decisão dos agentes demonstrava uma sistemática viloação do princípio racional-mazimizador. Esses ensaios posteriormente foram publicados no livro The Winner’s Curse: Paradoxes and Anomalies of Economic Life, 1991.

* LÚCIA HELENA SALGADO. Professora Associada da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ. 

Impedimento à posse em concurso público de condenados por violência contra mulher e outros grupos vulneráveis

Vanessa Vilela Berbel

Iniciemos com uma situação hipotética: Ana estabeleceu convivência com Marcos; desta relação adveio Susana, hoje com três anos. Ana foi agredida psicologicamente por Marcos, que lhe proferiu xingamentos e humilhações, o que culminou no deferimento de medida cautelar para preservar a integridade psicológica da vítima. Marcos paga pensão à sua filha em valor é insuficiente para o adequado cuidado da prole. Aprovado em concurso público, Marcos restou impedido de tomar posse no cargo, em razão de possuir medida cautelar decorrente de violência doméstica.

O Projeto de Lei 2.556/21 visa, a partir de alteração das Leis nº 8.112 de 1990 e 14.133 de 2021, criar mecanismos para impedir que pessoas que estejam sob medidas cautelares ou condenadas por crimes de violência doméstica, contra mulher, crianças e adolescentes e contra idosos não possam tomar posse em cargos públicos, nem contratar com a Administração Pública Direta e Indireta.

Apesar de ser uma resposta social ao agressor, as consequências negativas do impedimento à posse em concurso nem sempre serão suportadas por ele, podendo atingir o próprio sustento da prole, da vítima e daqueles que sofreram a violência.

Nestas hipóteses, creio que ao legislador caberá a missão de reformular o texto legal, refletindo sobre situações em que há a transcendência dos efeitos negativos da lei; talvez, a via melhor, em alguns casos, não seja o impedimento à posse em cargo público, mas o estabelecimento de desconto compulsório da remuneração auferida, destinando-o aos afetados pela violência ou até, por hipótese, a fundo destinado a ações positivas para as vítimas de violência doméstica e familiar.

A justificativa do projeto invoca boas razões para seus termos. Também não se discute a necessidade de se estabelecer medidas que efetivamente reprimam ou desestimulem a violência; sem dúvida, combater a impunidade e não premiar os malfeitores é um caminho correto.

Contudo, a par das excelentes intenções, precisamos discutir os reais efeitos sociais da norma e desenhá-la de forma adequada para que atinja de fato os efeitos desejados. Nesta senda, faz-se necessário ter maior atenção com as situações em que há a transcendências dos efeitos da medida punitiva, afetando negativamente aqueles que dependam economicamente do agressor e que sejam vítimas diretas ou indiretas da ofensa.

O princípio da moralidade impõe que a investidura em cargo ou emprego público seja reservada a pessoas probas, não sendo ilícita a previsão editalícia de inexistência de condenação criminal como requisito para a posse. Todavia, conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, não se pode estabelecer a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade; seria, a medida cautelar nos casos de violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos uma dessas exceções?

Talvez o caminho precise ser inverso. Em um país em que a cultura da informalidade no emprego se legitima como via para burlar o pagamento de pensões alimentícias, o impedimento à posse em concurso público não parece ser o caminho mais adequado de coibir o potencial agressor ou de dar a ele a justa repreensão. Ao invés, o desconto compulsório de indenização e pensão aos atingidos parece-me um modo mais inteligente de se realizar a resposta social.

Outrossim, não se afasta, nesta ou em outras situações, o princípio da presunção de inocência. Há de se primar pelo trânsito em julgado da ação condenatória para que o impedimento à posse se legitime, não bastando a concessão de medida cautelar. Se contrário for, nestas hipóteses, a lei, ao invés de garantir a repreensão adequada ao agressor, pode se tornar um obstáculo à própria concessão da cautela, visto que os magistrados poderão refrear o uso de seus poderes.

Não vamos, porém, jogar fora o bebê com a água do banho. O PL anda bem no objetivo geral de impedir condenados por violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos de tomar posse em concurso público, mas, nesta hipótese, não se pode dispensar o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Outrossim, deve-se pensar em situações excepcionais em que o impedimento afete o sustento das vítimas diretas e indiretas da tragédia; deste modo, não havendo correlação entre o crime e as funções públicas a serem exercidas, não sendo conferido ao agressor o acesso a porte de armas ou meios que facilitem a reiteração da violência (ao exemplo dos agentes de segurança pública ou de inteligência), deve-se formatar medida em que, ao invés de se impedir a posse, imponha-se desconto compulsório de indenização e pensão alimentícia aos agredidos ou às vítima indireta da tragédia (filhos e dependentes economicamente do agressor).

Parece-me, neste ponto, que o PL ainda carece de amplo debate e de um desenho mais elaborado das hipóteses sociais afetas ao tema, a fim de não prejudicar as próprias vítimas com o desamparo econômico quando dependentes do agressor ou credoras de indenização indispensável à reparação da lesão sofrida.

Desafios atuais do Acesso Não-Discriminatório às Infraestruturas Essenciais

Daniela Santos

Felipe Fernandes

Um dos assuntos historicamente mais discutidos no setor de gás natural é a garantia de acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais – detalhadas no próximo parágrafo. Não é de hoje que o tema volta a protagonizar análises técnicas e pareceres jurídicos, mas é certo afirmar que a partir da nova Lei do Gás e do seu Decreto regulamentador (14.134/21 e 10.712/21, respectivamente) o que ainda gerava insegurança – a despeito da vedação da recusa e/ou discriminação de contratar, prevista na Lei de Defesa da Concorrência (12.529/2011) – foi superado, e isso gerou novas expectativas para o setor.

De forma geral, podemos afirmar que os mencionados dispositivos legais não apenas asseguram o acesso não discriminatório de terceiros interessados aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás natural e aos terminais de GNL, mas igualmente esclarecem que os proprietários das instalações deverão: (i) elaborar, em conjunto com os terceiros interessados, observadas as boas práticas da indústria e as diretrizes da ANP, código de conduta e prática de acesso à infraestrutura, assegurar a publicidade e transparência desses documentos e (ii) receber a remuneração acordada entre as partes, com base em critérios objetivos, previamente definidos e divulgados na forma do código de conduta e prática de acesso à infraestrutura, (iii) restando a ANP a função de dirimir eventuais controvérsias sobre o tema (salvo no caso de instauração de arbitragem).

Ou seja, qualquer alternativa ao acesso não discriminatório, independentemente da regulamentação da ANP, é contrária à lei e à concorrência. E isso decorre da necessidade de se garantir que todos possam usufruir, sem qualquer discriminação e de forma transparente, de uma estrutura única – essencial– para movimentar o gás.

No passado, é sabido que a Petrobras detinha os ativos de infraestrutura essenciais e movimentava, quase que exclusivamente, o seu próprio gás. Portanto, naquele contexto, a necessidade de garantir o acesso não discriminatório era reduzida, em razão da presença de poucos agentes no mercado. Mas o cenário mudou e, após a celebração do Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) entre o CADE e a Petrobras, em 2019 – e os seus desdobramentos – passou a ser fundamental assegurar o acesso às mencionadas infraestruturas para os novos entrantes.

Neste sentido, mesmo antes da edição da nova legislação do gás, o próprio TCC foi enfático ao afirmar na cláusula 2.3 que “a PETROBRAS se compromete a negociar, de boa fé e de forma não discriminatória, o acesso de terceiros aos sistemas de escoamento de gás natural, respeitados, para os casos em que os sistemas possuírem coproprietários, o regramento estabelecido para tais sistemas.”.

Então a pergunta que se coloca é, hoje a garantia de acesso não discriminatório é, de fato, uma realidade?

Para responder é necessário esclarecer que muito já foi feito no sentido de assegurar o acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais. A unidade de processamento de gás natural (UPGN) de Guamaré, à época de propriedade da Petrobras no Rio Grande do Norte, abriu as discussões em 2020 e, hoje, a UPGN está sendo utilizada por terceiros – o que foi muito festejado pelo setor uma vez que decorreu de um trabalho árduo e inédito envolvendo a ANP, o Estado do RN, o MME e a petroleira proprietária do ativo.

Entretanto, no caso da UPGN Guamaré, é importante notar que a Petrobras não divulgou a metodologia de cálculo dos preços referente ao acesso, o que, como se sabe, é fundamental para garantir a transparência e a segurança indicadas na Lei do Gás, e, consequentemente, a competitividade ao mercado. Ademais, sequer foi possível identificar quais etapas foram impostas pela Petrobras, e seu respectivo prazo para concretizar tal negociação, uma vez que tais informações não foram disponibilizadas. Ou seja, ainda há mais espaço para novas reduções do preço do gás praticado ao consumidor final!

Neste sentido, citamos o CADE, que em outras oportunidades já se pronunciou em defesa na adoção de medidas de transparência como forma de impedir práticas discriminatórias[1]:

  1. Em consonância com as preocupações trazidas aos autos pelos Terceiros Interessados, essa racionalidade de tratamento isonômico deve alcançar todos os momentos nos quais poderiam ocorrer discriminações ou estratégias de fechamento de mercado, ou seja, a oferta, a contratação e a operação cotidiana de todas as atividades que impliquem integração vertical de mercados atingidos pela operação.

(…)

  1. Portanto, indo ao encontro da regulação, o Acordo negociado com as Requerentes estabelece a obrigação de observar parâmetros objetivos para a precificação dos serviços prestados aos Concorrentes. Tais parâmetros objetivos serão representados por um conjunto de variáveis que guardarão uma relação fixa e pré-ordenada entre si. Ou seja, as Compromissárias fixarão desde o presente momento as variáveis que influenciarão a precificação de seus serviços e, principalmente, o “peso” de cada uma dessas variáveis nessa precificação, sendo representadas em uma Fórmula.
  2. Uma vez que as variáveis a compor o preço estarão plenamente fixadas, bem como sua influência na formação desse preço, será possível decompor qualquer preço praticado, permitindo a identificação objetiva das particularidades de cada Usuário que justificariam um tratamento diferenciado, bem como a quantificação e qualificação dessas particularidades de forma a se aferir a razoabilidade dessa diferenciação. Assim, qualquer tratamento discriminatório restará inevitavelmente evidenciado. (grifos nossos)

No caso de compra e venda de gás, o tema ainda é mais nebuloso e com pouca discussão aberta. O que se sabe é que, de modo a cumprir as determinações do TCC, a Petrobras enviou, no final do ano passado, cartas para alguns operadores offshore para aprofundar o debate. Sem qualquer dúvida, é fundamental discutir o tema de forma ampla. Até porque, somente assim será possível avançar na direção de um mercado de comercialização de gás aberto e competitivo.

Mas não se pode perder de vista que, em julho de 2022, teremos 3 anos de vigência do TCC, e, a despeito de o CADE já ter sido provocado diversas vezes por representantes da indústria, na prática, ainda estamos vivenciando discussões individualizadas que prejudicam a implementação integral do princípio de acesso não discriminatório na compra e venda do gás. Ou seja, ainda não conseguimos incluir a ampla divulgação da metodologia de cálculo do preço do serviço de forma a contribuir para a maior competitividade no mercado e menor preço ao consumidor.

Certamente não estamos com isso defendendo a divulgação de informações comerciais das empresas e tampouco aquelas que, segundo a lei, devem ter tratamento confidencial. Na verdade, defendemos a ampla divulgação prévia da forma de cálculo do preço do serviço – além de todo o detalhamento necessário – que será utilizado pelo proprietário do ativo a qualquer parte interessada no acesso à infraestrutura.

Dito de forma ainda mais direta: resolver “caso a caso” o preço e as condições não é acesso não discriminatório, é simplesmente, no melhor caso, simples acesso. Não discriminar, neste caso, significa garantir que todos tenham o conhecimento das variáveis aplicáveis para calcular os valores que serão cobrados pelo serviço. Senão, como saber se não está sendo praticado um acesso discriminatório, por que não isonômico?

Em uma hipotética negociação entre vendedor e comprador de gás (atualmente há muito movimento neste sentido no mercado nacional), o fato de não se conhecer previamente a metodologia de preço aplicável a todos os interessados no acesso à infraestrutura de escoamento existente, por exemplo, já inibe ou torna insegura a expansão de negócios. Porque a aplicação de valores sem aderência a uma lógica previamente conhecida é um risco que, muitas vezes, afasta a liberdade e incentivos de contratação, ou mesmo cria soluções transitórias sem a segurança esperada. Logicamente, isso é uma forma de limitar o acesso, o que é contrário ao TCC, à concorrência, à Lei e ao Decreto do gás.

E tal situação foi recentemente exemplificada durante o evento da Gas Week de 2022 pela Vice-Presidente da Equinor, Claudia Brun, ao afirmar que, para que o gás da empresa chegasse ao mercado, foi necessário “muita negociação” e “resiliência” para garantir “uma solução transitória de acesso à estrutura de escoamento e processamento de gás na Bacia de Campos”.

Não há dúvidas sobre os avanços alcançados, mas tampouco há dúvidas sobre a necessidade de garantirmos mais segurança e menos “soluções transitórias” para o acesso às infraestruturas essenciais e isso, repita-se, somente poderá ser alcançado com transparência e publicidade das regras aplicáveis e remuneração acordada entre as partes, com base em critérios objetivos, previamente definidos e divulgados.

E mais: neste caso, considerando outro compromisso estabelecido na cláusula 2.5 do TCC – qual seja, de que a Petrobras não poderá comprar volumes adicionais de gás de outros produtores – é certo admitir que, em um cenário de produção crescente de gás, será primordial assegurar o acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais por terceiros. Esse cenário já é uma realidade com a celebração de contratos de compra e venda para fornecimento de gás a partir de janeiro 2022 entre as distribuidoras estaduais e produtores offshore.

Para evitar prejuízos para o desenvolvimento do Novo Mercado de Gás (NMG), é fundamental o posicionamento ativo do CADE em relação ao efetivo cumprimento do TCC. Nesse sentido, vale lembrar que se trata de problema de ordem concorrencial, que se não for devidamente enfrentado pela autoridade antitruste, inviabilizará a efetiva competição de novos comercializadores junto à Petrobras. Exemplo disso foi a situação vivenciada no final do ano de 2021, quando as distribuidoras de gás se depararam com a ausência de opções de suprimento além da estatal, a qual impôs condições consideradas abusivas, como aumento da ordem de 50% a 300% do preço de gás, cláusulas restritivas e prazos de longa duração, por exemplo – o que, por certo, gerou prejuízos aos consumidores, o fechamento de mercado e a judicialização do assunto, visando atenuar o efeito danoso de tal aumento por meio de liminares…

Além do CADE,  apesar da atuação destacada da ANP a respeito do tema e da possibilidade de o regulador lidar com questionamentos durante a transição – reforçada na apresentação do Superintendente da ANP, Hélio Bisaggio, na Gás Week de 2022 – considerando as conhecidas dificuldades dos agentes de divulgar informações que comprovam os problemas de acesso, não há dúvidas de que a recém-divulgada agenda regulatória da ANP (2022-2023) precisa priorizar os novos dispositivos referentes ao acesso de terceiros, sendo fundamental que a previsão de conclusão para janeiro de 2024 seja antecipada, de forma a assegurar a segurança jurídica do tema. Ademais, seria de grande valia que a ANP passasse a ser mais acionada na sua função de dirimir eventuais controvérsias sobre o tema, conforme assegura a Lei do Gás.

[1] Voto Relator: Conselheiro Gilvandro Araújo, Ato de Concentração nº 08700.005719/2014-65 (Rumo & ALL).

Planos de saúde coletivos: análise econômica do reajuste por faixa etária*

Fernando Boarato Meneguin

As políticas públicas na área de saúde são cruciais para o desenvolvimento adequado de um Estado. De fato, a saúde é considerada na literatura tanto como capital humano, quanto como insumo para outros fatores, o que alicerça o desenvolvimento.

No Brasil, é notória a insuficiência do sistema público de saúde. Daí ser especialmente alarmante a sensível queda no acesso da população brasileira aos planos de saúde suplementar (a taxa de crescimento do número de beneficiários foi negativa ou praticamente nula em todos os períodos desde 2015).

Tal situação ressalta a importância de um desenho correto da regulamentação estatal, de maneira que se ache um equilíbrio entre interesses das administradoras dos planos de saúde e seus consumidores, para que não haja abuso por parte dos fornecedores de saúde privada, mas tampouco se imponha um regramento inviabilizador do negócio.

Dada a importância dessas regulações, cuidados devem ser tomados para que elas sejam concebidas de maneira a trazer mais benefícios do que custos à sociedade, mitigando possíveis efeitos colaterais negativos em decorrência da intervenção. Caso contrário, pode-se ter situações nas quais a medida, preliminarmente destinadas a ajudar o consumidor, acabam por prejudicá-lo.

Esse efeito adverso é conhecido na literatura como “Efeito Peltzman”, situação em que a regulação tende a criar condutas não previstas para os regulados, anulando os benefícios almejados.

Nesse sentido, com foco na atuação estatal, tem-se uma questão extremamente atual relacionada à saúde suplementar, com grande repercussão na sociedade, que merece debate: a validade de cláusula contratual de plano de saúde que preveja reajuste por faixa etária, especialmente para planos de saúde coletivos.

A regulamentação e a supervisão dos reajustes dos planos cabem à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que possui normatização sobre como devem acontecer esses reajustes. Apesar da atuação da Agência, o assunto foi judicializado.

Importante pontuar que, atualmente, são permitidas duas espécies de reajustes nos preços de planos de saúde: (i) anual (periódico) e (ii) por faixa etária do segurado.

No tocante aos contratos de planos de saúde do tipo coletivo (que representam mais de 80% do mercado), diferentemente dos planos individuais e familiares, o percentual de reajuste anual independe de prévia aprovação da ANS, ficando a operadora obrigada apenas a comunicar o reajuste aplicado no ano, o qual será livremente negociado com a pessoa jurídica contratante (empresa, sindicato, associação). Nesse caso, a ANS restringe-se a monitorar o mercado.

Já as regras de reajuste por variação de faixa etária são as mesmas para as diversas espécies de planos de saúde (individuais ou familiares e coletivos). As faixas para correção variam conforme data de contratação do plano e os percentuais de variação precisam estar expressos no contrato, mas não dependem de prévia aprovação da ANS. De todo modo, somente é permitida a incidência do reajuste de acordo com as faixas etárias estabelecidas pela agência reguladora.

A norma mais recente sobre este assunto é a Resolução Normativa nº 63, de 2003 – ANS (RN nº 63/03), que define os limites a serem observados para adoção de variação de preço por faixa etária nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 2004. Nessa Resolução foram previstas dez faixas etárias, aplicáveis a todos os tipos de planos (individuais, familiares e coletivos).

O art. 3º da RN nº 63/03 dispõe ainda que os percentuais de variação em cada mudança de faixa etária deverão ser fixados pela operadora, sendo que: o valor fixado para a última faixa etária não poderá ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária; a variação acumulada entre a sétima e a décima faixas não poderá ser superior à variação acumulada entre a primeira e a sétima faixas; as variações por mudança de faixa etária não podem apresentar percentuais negativos.

No âmbito do Poder Judiciário, o STJ apreciou a legalidade dos reajustes por faixa etária em planos individuais ou familiares no REsp nº 1.568.244, julgado sob o rito dos repetitivos em dezembro de 2016. Naquela ocasião, foi firmado o entendimento de que é válida a cláusula que prevê o reajuste de mensalidade de plano individual ou familiar pautado na mudança de faixa etária do beneficiário. Os argumentos caminharam em prol do equilíbrio econômico-financeiro dos planos de saúde, admitindo-se, entretanto, a solidariedade intergeracional, a fim de que não ocorra um exacerbado incremento no preço a ser cobrado dos idosos. Outrossim, não pode haver aumento de preços a beneficiários com mais de 60 anos, ante a vedação prevista no Estatuto do Idoso (art. 15, § 3º, da Lei 10.741/03).

Em poucas palavras, deve ser encontrada a calibragem ideal dos preços para que mais pessoas, de todas as idades, possam ter acesso à saúde suplementar, sem inviabilizar esse mercado.

Quanto aos planos coletivos, ainda não há decisão definitiva. As Cortes de Justiça têm, usualmente, seguido as mesmas diretrizes estatuídas no REsp nº 1.568.244. No entanto, há decisões conflitantes – e por vezes dotadas de alto grau de subjetividade – reconhecendo a nulidade de reajustes por faixas etárias. As várias decisões divergentes têm gerado bastante insegurança jurídica ao setor.

Por exemplo, reajustes de 51% e 67,57% foram tidos como abusivos pelos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), respectivamente (Apelação Cível [AC] nº 1004264-21.2014.8.26.0562 e AC nº 0030706-35.2016.8.07.0001). As decisões foram fundamentadas na ausência de elementos idôneos a justificarem o reajuste e na violação do dever de informação ao consumidor. No último caso, chegou-se a afirmar: “Revela-se abusivo e discriminatório o aumento demasiado na prestação do beneficiário idoso, pois a desvantagem contratual inibe a permanência no referido plano de saúde, em violação aos princípios da boa-fé objetiva e da equidade”.

Em consequência das divergências, a matéria será apreciada pelo STJ no bojo do Recurso Especial n.º 1.715.798/RS – afetado à sistemática dos recursos repetitivos (art. 1.036 do CPC), a fim de firmar precedente qualificado e específico sobre os planos de saúde coletivos, mais especificamente sobre: a) a validade de cláusula contratual de plano de saúde coletivo que prevê reajuste por faixa etária; e b) o ônus da prova da base atuarial do reajuste.

Para uma análise econômica do assunto, há que se enfatizar que o setor de saúde suplementar possibilita um nível elevado de assimetria de informação que, se não tratada adequadamente, pode inviabilizar o seu funcionamento.

O primeiro problema informacional é a seleção adversa. Os beneficiários dos planos privados de assistência médica conhecem bem o seu estado de saúde, mas a operadora não detém essa informação. Assim, a seguradora estabelece o valor da mensalidade com base em um risco médio. Contudo, fazendo isso ela seleciona os clientes com maior exposição ao risco, ou seja, a seguradora seleciona adversamente os piores segurados.

Evidentemente, os planos de assistência médica estão a par dos problemas de seleção adversa e investem recursos para dividir os segurados em graus de riscos diferentes para, consequentemente, cobrar de maneira diferente. Uma variável que serve de indicativo para o grau de risco é a idade do segurado. Esse indicativo que está em jogo por meio da atuação do Estado.

Outro tipo de problema envolvendo a assimetria informacional é o risco moral ou incentivo adverso. Nesse aspecto, o obstáculo encontra-se na dificuldade de as operadoras monitorarem o quanto cada segurado cuida da sua própria saúde, ou, ainda, se o segurado está usando demasiadamente os serviços sem haver necessidade.

Perceba que a assimetria de informação no setor de saúde suplementar exige a construção, por parte do Estado, de uma sinalização correta para que os tipos de planos de saúde sejam oferecidos de maneira adequada, criando interesse para segurados e seguradoras.

Essa sinalização, juntamente com a respectiva precificação gerada, deve ser transposta para um contrato claro, com concordância expressa das partes, diminuindo as chances de intervenções estatais indevidas prejudiciais ao setor.

Uma vez que o Poder Judiciário poderá vedar o uso da idade como forma de diferenciação, cabe avaliação, com base na teoria econômica de incentivos e da análise econômica do direito, dos efeitos da proibição dessa diferenciação, notadamente os impactos na oferta e na solidariedade intergeracional embutidos nos planos de saúde em equilíbrio.

Os principais resultados sugeridos por modelagem microeconômica são os seguintes:

Se houver total liberdade na precificação nos planos de saúde coletivos, não haverá solidariedade intergeracional.

Por outro lado, se for proibida a cobrança diferenciada entre jovens e idosos, existe probabilidade alta de se inviabilizar o mercado de planos coletivos direcionados aos jovens. Nesse caso, os mais novos terão como alternativa planos individuais mais caros, persistindo a falta de solidariedade intergeracional.

 Na situação intermediária, em que o Estado permite a diferenciação por idade nos preços dos planos coletivos, mas estabelecendo uma amplitude nos preços, poderá existir incentivos para um certo nível de solidariedade intergeracional com a manutenção da oferta de planos coletivos de saúde para cada faixa etária, desde que essa amplitude seja corretamente delimitada.

Assim, o recado que se quer deixar consiste na importância de haver uma análise cuidadosa das consequências das ações do Poder Público. O desafio estatal, considerando ações oriundas dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, é regrar os preços dos planos de saúde, de maneira que estes sejam sustentáveis do ponto de vista econômico-financeiro, mantendo atratividade tanto para os consumidores quanto para as operadoras de saúde suplementar. Um erro nesse regramento pode representar sérios danos para a saúde suplementar no Brasil e consequentemente para todos seus beneficiários. Espera-se dessa maneira um desfecho no qual a calibragem seja correta, promovendo bem-estar social.

* Texto baseado no seguinte artigo acadêmico: MENEGUIN, F. B.; BUGARIN, M. S.; BUGARIN, T. T. S. Planos de saúde coletivos: Análise econômica do reajuste por faixa etária. Revista de Análise Econômica do Direito. vol. 2. ano 1. São Paulo: Ed. RT, jul.-dez. 2021.

Economia política e concorrencial em tempos de Bigtechs

Luiz Alberto Esteves

Nenhum fenômeno tem preocupado mais as autoridades antitruste ao redor do mundo do que as condutas unilaterais, comumente originadas do excesso de poder de mercado exercido pelas grandes empresas de tecnologia: as Bigtechs. A maioria das empresas de tecnologia são plataformas digitais e plataformas eficientes são plataformas grandes. Por exemplo, uma operadora de plano de saúde é um tipo de plataforma (não necessariamente digital) de dois lados, onde de um lado temos os pacientes e do outro temos os médicos, clínicas e hospitais. Uma administradora de cartões de crédito também é uma plataforma. Numa plataforma eficiente e bem-sucedida, os usuários devem desfrutar dos benefícios dos efeitos de rede (network effect). Esse benefício será maior, quanto maior o número de usuários nos dois lados da plataforma. Por exemplo, nenhum paciente ficará feliz em adquirir um plano de saúde com uma rede credenciada reduzida. Os médicos também terão incentivos reduzidos em aceitarem um seguro de saúde que cobre poucos usuários.

Uma rede social é uma plataforma digital, onde as pessoas partilham conteúdo. Tais plataformas podem trazer grande valor para seus usuários, sem que tais usuários necessariamente paguem por compartilhar conteúdo. Os usuários também proporcionam grande valor para as plataformas, afinal a circulação massiva de pessoas e organizações naquela infraestrutura a torna uma espécie de “Rua 25 de Março” de proporções globais. Com uma diferença relevante: a plataforma é capaz de coletar informação estratégica (inferência sobre hábitos, costumes, padrão de consumo, capacidade de pagamento etc.) de cada uma das pessoas daquela multidão. Tais inferências são possíveis por conta dos comportamentos e dos padrões de interação dos usuários na plataforma. O potencial de geração de valor econômico disso é incomensurável e é refletido no enorme valor de mercado de tais corporações.

O poder de edição das plataformas digitais é também conhecido como gatekeeper power. A teoria do gatekeeper power foi originalmente associada ao poder de edição da imprensa e o suposto exercício de noticiar apenas o que os jornalistas assim desejam. Cabe destacar que não há um consenso na teoria do jornalismo se tal poder de edição de fato exista. No caso das plataformas digitais, o poder de edição se daria de forma semelhante, mas não estaria limitado à circulação de notícias, mas também a qualquer forma de conteúdo partilhável, inclusive publicidade e propaganda.

Algumas questões merecem ser endereçadas nesse ponto: as plataformas digitais teriam de fato poder de influenciar preferências e decisões de consumo? Você compraria um produto pelo simples fato de um algoritmo inferir isso e divulgá-lo em sua timeline? As corporações que adquirem espaços publicitários nestas plataformas realmente acreditam que vão alavancar vendas? As respostas parecem ser positivas para todas estas perguntas.

Isso também significa que podemos ser potenciais consumidores de um bem ou serviço que sequer sabíamos da existência, mesmo porque tal bem é capaz de suprir uma necessidade que sequer nos incomodava até então. Mito ou realidade, o fato é que os empreendedores são guiados por tal crença, como pode ser constatado nas palavras de Steve Jobs: “a lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”. Se de fato isso for verdadeiro, o poder econômico de edição das plataformas digitais é, mais uma vez, proporcional ao valor de mercado de tais corporações.  

O poder econômico de uma grande corporação, associado ao poder de edição de veiculação de informações (gatekeeper power) acerca de bens e serviços (que as pessoas não sabiam que desejavam até que tenham sido apresentados e elas), proporciona à plataforma uma capacidade gigantesca de geração de sinergias com novos negócios. Por exemplo, distribuir e comercializar conteúdo digital em geral, tal como notícias, músicas, filmes, softwares, soluções e aplicativos em geral.

Contudo, o mesmo poder de edição pode ser usado para imputar custos aos rivais e a potenciais entrantes nos diferentes mercados explorados pela plataforma, inclusive contra startups provedoras de produtos altamente inovadores e diferenciados. Um suposto uso abusivo do poder de edição teria como efeito a restrição de espaço para divulgação de tais soluções aos potenciais consumidores, de modo que a probabilidade de sucesso na introdução de uma inovação por rivais ficaria, ao menos teoricamente, bastante reduzida. Parece claro que as consequências disso em termos de bem-estar da sociedade são bastante negativas, uma vez que limitaria a velocidade com que as inovações são produzidas e difundidas na economia.

Em artigo publicado em 2017 no prestigioso periódico Journal of Economic Perspectives, Luigi Zingales sugere a construção de uma teoria política da firma. A proposta teórica do artigo, intitulado “Towards a Political Theory of the Firm”, gira em torno da noção do que o autor denomina de círculo vicioso de Médici, em referência ao poder econômico da família de banqueiros e mecenas fiorentinos da Renascença. Os Médici não apenas acumularam fortuna com seus negócios, mas também tiveram papel fundamental na construção da revolução cultural e científica do Renascentismo. Adicionalmente, obtiveram êxito político extraordinário ao garantirem, por exemplo, que quatro de seus membros exercessem um dos postos políticos mais poderosos e influentes do mundo ocidental: o Papado da Igreja Católica.   

Sabemos que o faturamento de muitas das modernas corporações da economia digital supera até mesmo a arrecadação tributária de vários países. Isso significa que tal poder econômico seja capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Portanto, grandes corporações podem usar o poder econômico para obtenção de poder político, de forma a influenciar as “regras do jogo”, garantindo assim mais poder econômico, que proporcionará mais poder político e ainda maior capacidade de influenciar na construção das “regras do jogo” e assim por diante. Cabendo destacar que as “regras do jogo” não se limitam ao âmbito dos Estados Nacionais, mas também as “regras do jogo” dos mercados globais e dos acordos multilaterais.

A lógica da alocação de recursos no interior das firmas não segue, necessariamente, a mesma lógica de alocação de recursos por meio dos mercados. Como foi brevemente descrito na primeira seção deste artigo, segundo a TCT, quando os custos de transação dos mercados são elevados, a firma internalizaria tais trocas. Portanto, a firma seria, sob algumas condições e circunstâncias, um substituto dos mercados. Logo, não faria muito sentido imaginarmos que firmas e mercados seguissem os mesmos padrões de regras alocativas. Neste sentido, fica claro interpretar o argumento de Zingales, quando o autor sugere que a extensão do círculo vicioso de Médici depende de vários fatores não relacionados aos mercados. 

Vários países dispõem de legislação antitruste (algumas mais sofisticadas que outras) que busca endereçar alguns dos problemas acima relacionados. O “pacote básico” de política antitruste inclui controle de concentrações (análise de fusões e aquisições) e repressão às condutas unilaterais (abuso de posição dominante) e concertadas (cartéis). Algumas jurisdições dispõem de relativa riqueza de recursos humanos e materiais para exercer tais tarefas, como são os casos do sistema FTC/DOJ dos EUA e do DG Comp da União Europeia. Mesmo em tais jurisdições, há um debate em torno da ideia de que o atual conjunto de ferramentas disponíveis para estas autoridades não seja suficiente para lidar com os novos desafios impostos pela economia digital. Parte disso se deve ao fato de que autoridades da concorrência se guiam em torno da noção de mercados (principalmente a noção de mercados relevantes) e, como já discutido ao longo deste artigo e sugerido por Zingales, os mercados podem ter muito pouco a revelar acerca da real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder econômico.

Failing Firm Defense: uma proposta de screening test

Marcio de Oliveira Junior*

Luiz Alberto Esteves**

Failing Firm Defense

A saída de uma empresa do mercado decorrente de sua falência pode implicar a diminuição da oferta e o aumento de participação de mercado das empresas sobreviventes, que, assim, aumentarão seu poder de mercado. Ademais, a failing firm defense reconhece que objetivos para além da concorrência podem ser considerados quando se analisa uma aquisição, entre os quais o de manter os ativos de uma empresa em estado falimentar em uso, de modo a garantir o emprego dos fatores de produção. Em assim sendo, a reprovação da venda de uma empresa pode causar prejuízos maiores que a aprovação, ainda que a venda seja feita para um concorrente com poder de mercado.

Do ponto de vista econômico, a doutrina é consistente com o princípio da eficiência, que pode ser aferida comparando-se os efeitos da saída da empresa em estado falimentar do mercado com aqueles decorrentes de sua aquisição, ainda que por um concorrente com poder de mercado. A saída da empresa em situação falimentar do mercado pode fazer com que seus ativos tenham outro uso, com menor valor social, ou fiquem ociosos, sem gerar emprego e renda. Em ambos os casos, haveria perda de bem-estar. A questão, portanto, seria estimar qual dos efeitos seria menor.

No entanto, a doutrina não prevê o sacrifício da concorrência a qualquer custo em prol da manutenção da operação dos ativos da empresa em situação falimentar. Na verdade, a doutrina propõe critérios objetivos para orientar a escolha a ser feita pela autoridade de concorrência ao avaliar essa possibilidade. Esses critérios foram incorporados aos guias para análise de fusões e aquisições usados pelas principais autoridades de concorrência.

O Horizontal Merger Guidelines de 2010 dos órgãos antitruste dos EUA (Federal Trade Commission e US Department of Justice) estabelece três exigências para a aplicação da doutrina: 1) a empresa adquirida deve estar prestes a falir, ou seja, incapaz de cumprir suas obrigações financeiras no curto prazo; 2) as perspectivas de recuperação da empresa que está sendo vendida devem ser inexistentes ou muito remotas, de acordo com o disposto no Bankruptcy Act; 3) não deve haver outros compradores para a empresa em estado falimentar ou para seu estoque de ativos; não havendo a aquisição da empresa em estado falimentar, seus ativos sairiam do mercado, gerando desemprego de capital e trabalho.

Na Europa, o Guidelines on the assessment of horizontal mergers under the Council Regulation on the control of concentrations between undertakings prevê que a failing firm defense será usada de forma excepcional. Três critérios são especialmente relevantes para seu uso: 1) a empresa em situação falimentar sairia do mercado em um futuro próximo devido a dificuldades financeiras caso não fosse adquirida; 2) não há alternativa de venda da empresa com menor impacto concorrencial; 3) na ausência da aquisição, os ativos da empresa em situação falimentar sairão do mercado.

O Guia para Análise dos Atos de Concentração Horizontal (Guia H) do CADE também trata da doutrina da empresa em situação falimentar, chamando-a de teoria da empresa insolvente. São três as condições cumulativas para a aplicação dessa teoria: 1) a empresa sairia do mercado caso reprovada a operação; 2) se a operação for reprovada, os ativos da empresa alvo não permaneceriam no mercado, causando uma possível redução da oferta e um maior nível de concentração, com consequente queda de bem-estar; 3) a empresa alvo deve demonstrar que buscou alternativas de venda com menor impacto concorrencial e que não há alternativa para se manter no mercado a não ser a aprovação da operação.

As condições para aplicação da doutrina nos três guias são similares e restritivas. Além disso, o ônus da prova cabe ao vendedor, que deve mostrar à autoridade de concorrência que se esforçou para obter compradores alternativos. Mas, principalmente em um período de forte retração econômica, um concorrente com poder de mercado pode ser o único interessado em adquirir a empresa em estado falimentar, por conhecer bem o setor de atividade, o que reduz os riscos da compra, e/ou pela necessidade de consolidação do mercado decorrente da queda da demanda. Nesse caso, o requisito de busca de um comprador alternativo que represente um menor impacto concorrencial pode nunca ser alcançado, inviabilizando a aplicação da failing firm defense.

No caso brasileiro, há uma restrição adicional, que torna o padrão probatório ainda mais oneroso ao vendedor. Essa restrição decorre da seguinte afirmação contida no Guia H do CADE:

“… o requisito de efeitos líquidos não-negativos deve ser preenchido. É dizer que o CADE deve concluir que os efeitos antitrustes decorrentes da reprovação da operação (e da, acredita-se, provável falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação. O ônus da prova da existência desses elementos recai sobre as requerentes”.

Depreende-se dessa passagem do Guia H que o vendedor tem que provar ao CADE que os efeitos líquidos não são negativos, o que é bastante desafiador e pode impedir que a doutrina seja usada.

As restrições são rígidas e o ônus da prova é alto porque se trata de uma situação excepcional. No entanto, em um período de grave retração econômica como o que se avizinha, a doutrina da empresa falimentar tende a ganhar relevância. Para ter parâmetros sobre seu uso, as empresas que nela julgam se enquadrar poderiam buscar amparo na jurisprudência, mas são poucos os casos em que a failing firm defense foi usada. Seguem três exemplos sob a vigência da Lei nº 12.529/2011.

A compra da PSUAPE e da CITEPE (subsidiárias da Petrobras) pelo Grupo Petrotemex[1] foi impugnada pela Superintendência Geral (SG) do CADE com recomendação de aprovação mediante acordo, o que foi feito pelo Tribunal do órgão. O então Conselheiro João Paulo de Resende apresentou voto vogal em que discutiu o argumento de failing firm.

O voto vogal reconheceu a dificuldade financeira das empresas que foram vendidas, mas afastou a aplicação da doutrina da empresa falimentar ao questionar o argumento de que só havia um interessado nos ativos, que teria sido o único requisito demostrado pela vendedora (Petrobras). Para o ex-Conselheiro, o desenho dos processos de venda afeta o número de interessados. Como os concorrentes diretos valorizam mais os ativos à venda, suas ofertas serão maiores, desestimulando a participação de entrantes. Com base nesse argumento, o voto vogal propôs que as evidências apresentadas pela vendedora de que não havia vários compradores potenciais deveriam ser afastadas.

Embora o voto vogal tenha sido vencido, isso mostra como o padrão probatório para se aprovar uma aquisição com base na failing firm defense é restritivo.

Outro exemplo que ilustra o quão restritivos são os critérios da doutrina da empresa falimentar é a venda da Mataboi para a JBJ[2], em que foi elaborado um parecer do Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE afastando a aplicação da doutrina para a aprovação da aquisição. O parecer da DEE/CADE afirma que, apesar de a Mataboi estar em recuperação judicial e de suas dificuldades financeiras, não houve a comprovação de que o plano de recuperação era inviável e que ela sairia do mercado sem a venda para a JBJ.

Em relação à possibilidade de outros compradores, o DEE/CADE afirmou que a vendedora deve provar (por meio de propostas públicas ou particulares críveis, por exemplo) que não houve outros interessados. Além de listar todos os interessados, a empresa deveria ainda fundamentar a rejeição caso não aceite alguma proposta com menor potencial de dano concorrencial. Como essa prova não foi feita, considerou-se que o critério de inexistência de compradores alternativos não foi cumprido.

O Tribunal do CADE corroborou a posição do DEE/CADE e concluiu que a doutrina da empresa em situação falimentar não se aplicava à operação de venda da Mataboi.

O terceiro exemplo que vale ser mencionado é a aquisição de controle da Neobus pela Marcopolo[3], que detinha 45% do capital social da empresa alvo e adquiriu os 55% restantes. As requerentes da operação informaram ao CADE que a operação viabilizaria a continuidade das atividades produtivas da Neobus, pois a empresa se encontrava em má situação financeira. Ressaltando que não estava aplicando a failing firm defense e que recuperação judicial da Neobus não foi analisada, a SG/CADE afirmou que não podia “deixar de considerar a situação econômica da empresa e a participação de 45% já detida pela Marcopolo” em seu capital social.

Portanto, a lei de defesa da concorrência não prevê um rito especial para empresas em situação falimentar, a jurisprudência é escassa e as condições previstas nos guias são restritivas e corretamente previstas para situações excepcionais. Além disso, os poucos casos em que a doutrina da empresa em situação falimentar foi discutida mostram que o ônus da prova é das empresas requerentes. Ainda, os precedentes não permitem às empresas ter informações precisas sobre qual padrão de provas é esperado pela autoridade, gerando incerteza. Nesse sentido, considerando que esta é uma crise excepcional e que a venda para concorrentes pode ser uma alternativa de saída do mercado para várias empresas, seria útil o CADE fornecer aos jurisdicionados algumas diretrizes sobre como lidará com a failing firm defense.

É com base nisso que propomos um mecanismo de screening que poderia ser adotado pela autoridade de concorrência para caracterizar a situação falimentar das empresas e a possibilidade de usar a failing firm defense. Com isso, as empresas teriam uma diretriz para saber quando é viável levar essa tese ao CADE, ainda que, por suposto, não consigam saber previamente se ela será aceita, pois isso depende da análise concorrencial a ser feita.

Uma Proposta de Screening Test para Failing Firm Defense

Comecemos pelas seguintes premissas: os agentes econômicos tomam decisões de investimento em condições de risco e incerteza. Por isso, projetam diferentes cenários para exercícios envolvendo fluxos de caixa, tais como a taxa interna de retorno (TIR) e o valor presente líquido (VPL). Isso ocorre porque muitas das variáveis que constituem os fluxos de caixa são aleatórias, tais como receitas e despesas futuras. O investidor também constrói cenários de estresse, bem como planos de contingência para mitigar eventuais riscos, de modo a assegurar a atratividade mínima do negócio.

Contudo, choques adversos imprevisíveis e exógenos, de grande magnitude, chamados de cisnes negros, podem proporcionar resultados muito piores que os inicialmente projetados pelos agentes econômicos quando da decisão pelo investimento. Situações do tipo cisnes negros são excepcionais e devem ser tratadas como tal.

Não parece um absurdo sugerir que um investidor que tenha incorrido em uma perda real decorrente de choques adversos muito superior àquela que seria normalmente esperada em uma análise estressada de investimento liquide sua posição de forma não estratégica (no-exit strategy), ou seja, se desfaça de seus ativos sem que os lucros esperados tenham sido realizados. Em uma situação do tipo cisne negro, tais ocorrências podem se tornar comuns. A questão passa a ser, então, como identificar as situações de no-exit strategy por meio de um screening test. É o que propomos a seguir.

Nosso objetivo é apresentar uma proposta para o caso de empresas que tenham (i) sofrido impactos negativos; (ii) queiram se desfazer de ativos de forma não estratégica (no-exit strategy); (iii) e que a operação de venda seja objeto de escrutínio pela autoridade antitruste. A proposta de screening test é composta de cinco passos:

  1. A autoridade de concorrência determina qual é o marco do evento adverso.
  2. Coletar informações da empresa que liquida os ativos (vendedora, ou alvo) para um período anterior ao marco. Por exemplo, coletar uma série histórica de variáveis de resultado, como as margens brutas ou receitas brutas mensais nos últimos cinco anos, pelo menos;
  3. A partir dos valores das distribuições das variáveis selecionadas, computar valores extremos negativos ( , que são thresholds distantes da média) que poderiam ser considerados em um cenário de estresse para uma análise de investimento com aquelas informações. Existem métodos alternativos de se obter esses thresholds a partir de uma distribuição estatística;
  4. Coletar informações da empresa que liquida os ativos para o período que sucede o marco. Trata-se das mesmas variáveis do segundo passo. Computar os valores médios das variáveis de interesse para o período pós-marco ( ).
  5. Subtrair o valor médio obtido no quarto passo do valor estressado (threshold) obtido terceiro passo ( ).

Um valor negativo da  significa que a média observada pós-marco foi menor que o valor extremo negativo da distribuição anterior ao marco. A empresa, em função da crise econômica, está em uma situação pior que o extremo negativo que ela planejou quando fez o investimento. Nesse caso, a venda da empresa poderia ser encarada como uma saída não estratégica (no-exit strategy), pois a saída de um investidor ou empresa dos negócios em uma situação de estresse geralmente está associada a perdas inesperadas e exógenas que inviabilizariam a continuidade nos negócios. Em outras palavras, haveria uma evidência robusta de que a empresa à venda está em uma situação falimentar, e de que a sua venda (saída do mercado) não tem objetivos estratégicos (exit strategy), como, por exemplo, a realização de lucros.

Em adição a esses cinco passos, é importante que o CADE considere indicadores adicionais, como, por exemplo, a análise do Índice de Herfindahl-Hirschman (HHI). Se a  for negativa e se a análise do HHI indicar mercados moderadamente concentrados, o CADE poderia considerar a análise da operação tomando como base a failing firm defense.

Considerações Finais.

Há algumas vantagens em se usar um mecanismo de screening. O CADE poderia reduzir a incerteza que cerca o tema failing firm. As próprias empresas poderiam fazer os cálculos e decidir se elas usarão o argumento. Como o número de empresas em dificuldade tende a crescer, a autoridade antitruste pode se beneficiar disso, pois as empresas que não atingirem as condições estabelecidas no teste acima saberiam de antemão que o CADE não aceitaria o argumento da empresa em situação falimentar. Além disso, essa metodologia seria aplicada a todos os setores de atividade, e não apenas àqueles que sofrem mais com a crise. Usando o mesmo critério objetivo, o CADE afastaria qualquer argumento de que privilegia alguns setores ou empresas e de que faz política industrial. Além disso, como a economia é cíclica, o mesmo mecanismo de screening poderia ser utilizado no futuro. Outra questão importante é que o CADE teria um critério objetivo de análise caso seja questionado por algum órgão de controle no futuro.

Há ainda outro ponto a destacar: para uma empresa provar que está em situação falimentar, ela deve mostrar que enfrenta problemas de fluxo de caixa por um longo período antes de sua venda. No entanto, um choque adverso como o atual é uma quebra estrutural, ou seja, ele pode deteriorar as condições financeiras de uma empresa que não necessariamente vinha tendo problemas no passado. Em outras palavras, o conteúdo informacional do passado cai e deixa de ser um bom previsor para o futuro. Nossa proposta contorna esse ponto, pois propõe como base de comparação um limite inferior de uma distribuição de probabilidade.

Em suma, considerando a gravidade da crise econômica, a expectativa de que muitas empresas irão enfrentar dificuldades financeiras, que a venda para concorrentes poderá ser uma alternativa de saída não estratégica do mercado e que há muita incerteza em relação à aplicação da failing firm defense, sugerimos que um mecanismo de screening como o que propomos seja adotado pelo CADE.

Por último, mas não menos importante, destacamos que esse é um instrumento para ser usado em situações excepcionais, do tipo cisne negro, quando há uma forte retração da economia.


[1] Ato de Concentração nº 08700.004163/2017-32.

[2] Ato de Concentração nº 08700.007553/2016-83.

[3] Ato de Concentração nº 08700.002084/2016-14.

*

[*] Doutor em Economia. Foi Conselheiro e Presidente Interino do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: mdeoliveirajr@crai.com

[**] Doutor em Economia. Foi Economista-Chefe do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: luiz.esteves@pakt.com.br

Análise de Atos de Concentração sem Delimitação de Mercado Relevante Antitruste

Luiz Alberto Esteves

Em janeiro de 2021 foi publicada na prestigiosa publicação acadêmica Review of Industrial Organization uma edição especial, intitulada “The 2010 Horizontal Merger Guidelines After 10 Years”. A edição especial traz uma coletânea de artigos que busca avaliar a experiência acumulada da análise de atos de concentração (AC’s) nos EUA após dez anos da publicação do Horizontal Merger Guidelines (2010 Guidelines) do U.S. Department of Justice (DOJ) e do Federal Trade Commission (FTC).

Tal documento equivale ao Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, que é uma publicação mais recente (2016), cuja elaboração foi influenciada pelas inovações trazidas pelo Horizontal Merger Guidelines norte-americano de 2010. Como os EUA acumulam maior tempo de experiência com tais inovações, importante acompanharmos qualquer discussão acerca de avaliações de impacto. Contudo, este não é o objetivo de análise do presente artigo.

Em ambos os casos – EUA e Brasil – a publicação de tais documentos representou uma atualização de versões pretéritas. No caso dos EUA, a versão de 2010 substituiu a versão de 1997. No caso do Brasil, a versão de 2016 substituiu a Portaria Conjunta SEAE-SDE n 50 de 01/08/2001. As inovações introduzidas com as novas versões foram substanciais para ambos os casos.

Considero que a maior destas inovações tenha sido a discussão metodológica em torno da possibilidade de análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste. Pelo teor dos artigos publicados na edição especial da Review of Industrial Organization, parece que esse aspecto também tenha sido considerado especialmente importante para aquela jurisdição.

Para muitos profissionais que militam na área concorrencial, a ideia de uma análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste soa bastante desconfortável. Por outro lado, para um grupo menor de profissionais, formado majoritariamente por economistas, essa possibilidade parece ser bastante atrativa. O principal documento de referência para este segundo público não é exatamente o Horizontal Merger Guidelines de 2010, mas um artigo bastante influente de autoria de Joseph Farrell e Carl Shapiro, intitulado “Antitrust Evaluation of Horizontal Mergers: An Economic Alternative to Market Definition”, publicado também em de 2010 no periódico acadêmico The B.E. Journal of Theoretical Economics, Volume 10 (1).

Ambos os autores são professores do departamento de economia da Universidade da Califórnia, Berkeley e na ocasião da publicação (2010) vinham exercendo diferentes posições nos altos escalões das estruturas hierárquicas do FTC e do DOJ. A proposta fundamental do artigo foi servir como material de insumo para as discussões em torno da elaboração da nova versão Horizontal Merger Guidelines, que viria a ser publicada naquele mesmo ano.

Farrell e Shapiro buscavam endereçar algumas das limitações da análise econômica de AC’s baseada nas noções de mercados relevantes, índices de concentração e testes do monopolista hipotético (denominaremos essa modelagem analítica de TMH). Adicionalmente, trouxeram métodos alternativos de análise, com destaque para o modelo Upward Pricing Pressure (UPP). O objetivo não era substituir a modelagem TMH pela modelagem UPP, mas introduzir um novo conjunto de ferramentas analíticas alternativas e complementares.

Neste sentido, faz-se necessário compreender as razões pelas quais a modelagem UPP conseguiu angariar entusiastas ao redor do mundo. Em termos práticos, um dos principais “testes de estresse” de qualquer autoridade concorrencial é chegar a uma decisão sobre um AC quando não há consenso dentro da própria autoridade acerca da correta ou adequada delimitação do mercado relevante antitruste.

O problema é que os mercados são entidades abstratas, onde são realizadas trocas de bens e serviços, que nem sempre podem ser facilmente discriminadas e alocadas dentro de grupos taxonômicos bem definidos (com base em produto e geografia). Nestes casos, a imposição de alguma regra discricionária costuma ser necessária. Em muitas ocasiões esse procedimento costuma funcionar muito bem, principalmente em AC’s sumários. Por outro lado, em um pequeno número de situações (uma fração dos AC’s complexos), esse procedimento pode implicar em elevado grau de incerteza e frustração. Um segundo problema é que isso costuma ocorrer nos AC’s de maior projeção e visibilidade. Não são raras as situações nas quais o público leigo interpreta tais excepcionalidades como uma fragilidade técnica recorrente por parte das autoridades concorrenciais.    

Ainda a respeito das dificuldades relacionadas à delimitação de mercados relevantes, tomemos como exemplo o caso da classificação oficial das atividades econômicas. Periodicamente os birôs oficiais de estatística atualizam suas classificações (internacionalmente harmonizadas) setoriais por atividades econômicas, agregando cada vez mais segmentos novos de negócios. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão responsável pelas atualizações da classificação nacional de atividades econômicas (CNAE).

Por exemplo: em 1994 a versão CNAE 1.0 (publicada no Diário Oficial da União em 26/12/1994) era constituída de 17 seções (A-Q). Já a versão CNAE 2.0 (Resolução Concla 01/2006 publicada no Diário Oficial em 05/09/2006) de 2006 trouxe 21 seções (A-U). Em suma: ao longo de 12 anos foram adicionadas 4 novas seções com centenas de novas subclasses de atividades econômicas[1]. Parte desse adicional é representado pela introdução de novos mercados, até então não existentes. Isso é fruto das inovações tecnológicas, evidentemente.

Mesmo reconhecendo que os mercados relevantes antitruste não necessariamente guardam uma relação direta com as CNAE’s, o desafio metodológico em classificar atividades econômicas e mercados relevantes é bastante similar. Uma diferença importante é que os birôs de estatística costumam recorrer à rubrica classificatória de “Outros”, quando estão em “apuros”. Já as autoridades antitruste se esforçam em garantir que cada um dos AC’s analisados tenham os seus mercados relevantes antitruste devidamente delimitados. Se tais delimitações seguirem a jurisprudência, melhor para a autoridade[2].

Uma outra limitação importante na modelagem TMH é que ela carrega uma hipótese implícita bastante restritiva, que deriva do cálculo do índice de concentração de Herfindahl-Hirschman (HHI). Suponha que um mercado relevante antitruste seja delimitado com três empresas (X, Y e Z), cada uma com 1/3 do mercado. O HHI neste caso hipotético seria de 3.334 pontos. Já os eventuais Delta HHI’s decorrentes dos AC’s envolvendo as empresas X e Y; ou Y e Z; ou X e Z; seriam exatamente os mesmos, sugerindo assim que qualquer um destes AC’s implicaria em efeitos unilaterais e coordenados muito similares.

Suponha agora que quando a empresa X eleva seu preço em 2%, sua demanda é reduzida em 100 unidades, sendo desviada de forma integral para seus dois concorrentes, Y e Z. Adicionalmente, suponha que 67 unidades destas 100 unidades sejam desviadas para a empresa Y e 33 unidades para a empresa Z. O exemplo sugere que, mesmo que cada empresa disponha de uma parcela idêntica de mercado, isso não assegura que sejam competidores simétricos, tampouco que a rivalidade exercida de Y sobre X seja igual a rivalidade exercida de Z sobre X. Logo, um AC envolvendo as empresas X e Y traria implicações completamente diferentes daquelas decorrentes de um AC entre X e Z. As análises de HHI e Delta HHI não são capazes de capturar essa assimetria de rivalidade entre players dentro de um mesmo mercado relevante. Tampouco é fácil identificar claramente quando um determinado nível de assimetria entre os diferentes players justifique a redefinição do mercado relevante.

A grande contribuição de Farrell e Shapiro (2010), com seu modelo UPP, foi ter trazido um instrumental analítico alternativo, que dispensa a delimitação de mercados relevantes antitruste, bem como o uso de medidas de concentração, tais como o HHI. A metodologia UPP busca inferir a pressão de preço decorrente de um AC por meio de estimativas estatísticas e econométricas das taxas de desvio (diversion ratios). Essa taxa de desvio (diversion ratio) é definida, por exemplo, como a proporção da demanda desviada do produto X e capturada pelo produto concorrente Y, em resposta de um aumento de preço do produto Y.

Não parece haver muita divergência entre os economistas de que a modelagem UPP é um recurso bastante potente, uma vez que providencia estimativas customizadas de pressão de preços para cada um dos AC’s sob escrutínio da autoridade. Outra vantagem da modelagem UPP é sua versatilidade, pois pode ser aplicada a qualquer tipo de modelo de estrutura concorrencial em oligopólio. Foi originalmente concebida para ser utilizada em modelos de competição preço com produtos diferenciados (Bertrand Competition), mas pode ser igualmente utilizada em modelos de competição em quantidades com produtos homogêneos (Cournot Competition).

Se por um lado, a potência e versatilidade da modelagem UPP a torna muito mais atrativa que qualquer modelo baseado na modelagem TMH; por outro lado, seria economicamente inviável para qualquer autoridade antitruste usá-la em larga escala em suas análises de AC’s. A modelagem UPP demanda coleta de informações pormenorizadas e séries históricas de receitas, custos, quantidades e preços de ambas as partes do AC, além de outras informações complementares de mercado. Adicionalmente, faz-se necessária a estimativa econométrica das demandas e elasticidades próprias e cruzadas, o que não é uma tarefa das mais triviais, até mesmo para as autoridades mais bem preparadas e equipadas com recursos humanos e materiais. 

Mesmo com suas limitações, as análises baseadas em mercado relevante, HHI’s e TMH parecem atender de forma bastante satisfatória (com baixo custo e parcimônia analítica) a grande maioria dos AC’s analisados pelas autoridades concorrenciais ao redor do mundo. Contudo, para uma minoria de casos de grande complexidade, tal instrumental analítico tende a perder potência pelos motivos já mencionados anteriormente. Para essa minoria de casos complexos, a utilização da modelagem UPP como recurso analítico complementar parece ser o protocolo mais adequado a ser seguido pelas autoridades concorrenciais.


[1] Uma CNAE é representada por diferentes níveis de agregações setoriais, sendo Seção, Divisão, Grupo, Classe e Subclasse. Exemplo: Seção A – AGRICULTURA, PECUÁRIA, PRODUÇÃO FLORESTAL, PESCA E AQÜICULTURA; Divisão 01 – AGRICULTURA, PECUÁRIA E SERVIÇOS RELACIONADOS; Grupo 01.1 – Produção de lavouras temporárias; Classe 01.11-3 – Cultivo de cereais; e Subclasse 0111-3/01 – Cultivo de arroz.

[2] Imagino que nesse ponto o leitor já tenha percebido que o argumento de jurisprudência na delimitação de mercados relevantes costuma causar bastante estranheza e desconforto entre estatísticos e economistas habituados com discussões acerca das atualizações periódicas do sistema internacional harmonizado de classificação de atividades econômicas.

A política concorrencial e a economia das cooperativas e associações

Luiz Alberto Esteves

Um dos principais desafios das autoridades antitruste ao redor do mundo é julgar casos de conduta em mercados de saúde suplementar, principalmente casos envolvendo condutas anticompetitivas por parte de associações e cooperativas de profissionais médicos. As investigações e punições nestes casos têm se concentrado em três tipos de condutas anticompetitivas: (i) tabelamento de preços; (ii) negociações entre cooperativas de especialidades médicas e operadoras de planos de saúde; e (iii) unimilitância, que envolve a exigência por parte das associações e cooperativas da exclusividade na oferta de serviços por seus associados.

Essa temática recebe atenção crescente ao redor do mundo por conta da rápida reestruturação destes mercados nas últimas décadas, motivada principalmente pelos custos crescentes dos tratamentos médicos, seja por conta da crescente introdução de inovações tecnológicas, seja por conta da rigidez da oferta de profissionais altamente especializados nas áreas médicas. O desdobramento foi o crescimento exponencial do mercado de financiamento de saúde suplementar (o primeiro elo da cadeia da saúde complementar).

Os seguros são acionados quando os consumidores demandam serviços médicos no segundo elo da cadeia de saúde suplementar, formado pelos pacientes demandantes e pelos médicos ofertantes dos serviços. Contudo, os honorários pela remuneração dos serviços médicos neste mercado são negociados entre os médicos e as operadoras ofertantes de planos e seguros de saúde.

A implicação é que os honorários médicos estarão sujeitos a um processo de barganha, em que a parte que dispuser de maior poder de mercado (leverage) terá maior probabilidade de captura de frações maiores dos lucros gerados ao longo da cadeia de saúde suplementar. Por conta disso, a prática autônoma entre os profissionais da medicina tem se reduzido significativamente em favor de estruturas organizacionais cooperadas ou associativas. Tal argumento fornece as bases para a tese de defesa das cooperativas médicas junto às autoridades antitruste em casos de condutas anticompetitivas, ou seja, a tese do poder compensatório.

Por outro lado, há um conjunto de argumentos que fornecem as bases para a acusação de conduta anticompetitiva por parte de cooperativas médicas. Os principais argumentos são: (i) não há poder de mercado a ser compensado, uma vez que a concentração de mercado no mercado de operadores de planos de saúde é pequena; (ii) a maioria das cooperativas de especialidades médicas está localizada em grandes centros urbanos, onde a oferta de profissionais altamente especializados é bem maior do que em regiões menos densamente povoadas; e (iii) a tese do poder compensatório tem seus efeitos pouco conhecidos na literatura econômica.

O objetivo aqui é abordar esta temática sob uma perspectiva completamente diferente. Uma das limitações da análise econômica antitruste é tentar reproduzir, na integra, o mesmo arcabouço analítico comumente utilizado em relações competitivas (horizontais ou verticais, de concentração ou de conduta) envolvendo empresas comerciais (a partir daqui denominadas firmas capitalistas convencionais) para o caso de relações competitivas envolvendo associações, cooperativas de profissionais ou empresas gerenciadas pelo fator trabalho (a partir daqui denominadas firmas cooperadas).

Seria desejável que as autoridades e os profissionais da área de política da concorrência analisassem e endereçassem os casos de concentração e conduta por parte de cooperativas ou associações de profissionais tomando como referência a literatura econômica específica e especializada sobre o tema, aqui denominada de Economia das Firmas Cooperadas (ou Economia das LMFs ou Economia da Firma Democrática)[1].

Assim como todos os demais ramos da Economia, há controvérsia entre os principais autores desta linha de pesquisa, porém num aspecto todos parecem concordar: os incentivos das firmas capitalistas convencionais são completamente diferentes das firmas cooperadas. A literatura econômica tem despendido décadas de esforço analítico para fornecer argumentos teóricos e evidências empíricas minimamente satisfatórias para responder as seguintes questões: Qual a diferença entre o fator capital contratar o fator trabalho e o trabalho contratar o capital? Por que é mais comum encontramos o capital contratando o trabalho e não o contrário? A firma capitalista convencional é mais eficiente que a firma cooperada? As firmas cooperadas são capazes de suavizar ciclos econômicos?

Como já mencionado, o tema é repleto de controvérsias entre os vários estudiosos sobre o assunto, mas um segundo aspecto também parece ser unânime entre os economistas: em equilíbrio walrasiano, com mercados perfeitamente competitivos e completos, com informação perfeita e ausência de externalidades, não haveria qualquer diferença de incentivos entre uma firma capitalista convencional e uma firma cooperada, ou seja, seria completamente indiferente o capital contratar o trabalho, ou o trabalho contratar o capital.

Do parágrafo acima podemos concluir que a única situação na qual podemos colocar firmas capitalistas convencionais e firmas cooperadas em condições de similaridade analítica é exatamente quando a análise antitruste é teoricamente irrelevante e desnecessária, ou seja, sob condições de concorrência perfeita.

Sobre esse ponto é importante lembrar que todo o projeto de pesquisa envolvendo a análise de estrutura-conduta-desempenho (E-C-D) foi construído tendo em mente os incentivos que norteiam as ações das firmas capitalistas convencionais, ou seja, baseado na noção da maximização dos lucros por parte das firmas. Isso não significa que os cooperados também não queiram auferir o maior rendimento possível, mas neste caso, os interesses individuais são subordinados ao interesse coletivo. Em termos econômicos, isso significa dizer que nestes casos os recursos não são alocados pela lógica descentralizada dos mercados, denominada por Adam Smith como “mão invisível”, mas pela lógica da ação coletiva.

Um ponto importante acerca da distinção entre estes dois tipos de organizações diz respeito às suas funções objetivo: as firmas capitalistas convencionais tendem a perseguir a maximização do lucro econômico, enquanto as firmas cooperadas tendem a buscar a manutenção da estabilidade do emprego e do produto (em face às variações de preços e demais choques).

Em termos práticos e empíricos, isso significa que as empresas cooperadas tendem a apresentar uma curva de oferta praticamente inelástica (curva de oferta vertical), enquanto as firmas capitalistas tradicionais tendem a apresentar uma curva de oferta padrão (curva de oferta ascendente). Acerca deste ponto, o leitor perceberá que a hipótese de constituição de falsas cooperativas (cooperativas que se comportam como firmas capitalistas tradicionais) com objetivos meramente anticompetitivos pode ser testada empiricamente, por meio da estimativa da inclinação da curva de oferta da firma cooperada. Portanto, faz-se necessário alertarmos para o fato de que o uso de referencial teórico e analítico inadequado para a análise de condutas envolvendo firmas cooperadas pode aumentar significativamente as probabilidades de ocorrência de erros do tipo I e erros do tipo I


[1] Autores de tradição neoclássica e novo-institucionalista denominam tais tipos de empresas como LMFs (labor-managed firms). Já economistas de tradição marxista, tais como os marxistas analíticos e economistas radicais denominam tais empresas como firmas democráticas.

Economia digital, antitruste e identificação de mavericks

Luiz Alberto Esteves

Grandes avanços tecnológicos nas últimas décadas têm proporcionado o advento do que hoje denominamos de Economia Digital, também conhecida como Nova Economia. Trata-se de uma economia totalmente baseada em tecnologias de computação digital. Uma caracterização pormenorizada da Economia Digital pode ser encontrada em Neto, Bonacelli & Pacheco (2020)[1], que trabalham com a noção de Sistema Tecnológico Digital, formado pelo cluster Inteligência Artificial, Computação em Nuvem e Big Data.   

O desenvolvimento dessa Economia Digital tem proporcionado a criação de um número crescente de novos modelos de negócios, muitos deles amparados em inovações disruptivas, desenvolvidas à margem das disputas concorrenciais que costumam envolver os grandes incumbentes com modelos de negócios tradicionais. Um exemplo tem sido a atual dinâmica da indústria bancária e financeira constituída, por um lado, pelos grandes conglomerados incumbentes e, por outro lado, pela proliferação de Fintechs (empresas que desenvolvem soluções financeiras totalmente digitalizadas).

Tal movimento tem implicações óbvias e imediatas para discussões regulatórias e concorrenciais. Esse movimento tem causado bastante entusiasmo entre consumidores, autoridades, reguladores e formuladores de políticas públicas. Acredita-se que essa concorrência adicional, trazida por Startups e Fintechs, proporcionará amplas vantagens e benefícios aos consumidores, seja na forma de mais opções de escolhas, seja na melhor qualidade de serviços e preços menores. Mesmo considerando o fato de que soluções disruptivas também possam ser desenvolvidas e trazidas ao mercado por grupos econômicos da Economia Digital (Bigtechs), muito maiores que os incumbentes (grandes bancos e seguradoras, por exemplo), as razões para entusiasmo não são infundadas.

Reguladores têm colaborado ativamente com esse movimento. No caso brasileiro, por exemplo, O Banco Central do Brasil tem apostado na agenda do Open Banking e do Open Finance. O Open Banking, por exemplo, possibilita que usuários de produtos e serviços bancários possam compartilhar suas informações com diferentes instituições. Trata-se de uma medida de enorme impacto para a competição bancária, pois um dos principais ativos de um banco é seu acervo de dados de clientes, principalmente as informações que orientam as decisões de concessão de crédito, tais como os 5 C’s (caráter, capacidade, capital, condições e colateral).

O cenário parece bastante alvissareiro para os consumidores. Contudo, quando tratando de formulação de políticas públicas, cabe sempre lembrarmos de duas importantes citações. A primeira é atribuída à John Heywood, poeta inglês do século XVI: “Um homem pode muito bem levar um cavalo até a água, mas ele não pode obrigá-lo a bebê-la”. A segunda é comumente citada como um provérbio alemão: “O diabo mora nos detalhes”. A combinação dessas duas citações sugere que algo bastante alvissareiro pode se transformar em desapontamento e frustração.

Bom, é praticamente impossível anteciparmos todas as contingências que possam implicar em desapontamentos e frustrações. Contudo, nestas circunstâncias, cabe buscarmos o maior número de “pontos cegos” possíveis, ou seja, aqueles detalhes que possam escapar da visibilidade dos formuladores da política pública.

Uma possível fonte de desapontamento e frustração nestes casos pode originar-se do controle de concentrações por autoridades concorrenciais. Por exemplo, uma fração importante de inovadores disruptivos pode ser adquirida pelos próprios incumbentes (grandes instituições bancárias e financeiras, por exemplo), ou por grandes grupos econômicos de tecnologia (Bigtechs), enquanto ainda são empresas pequenas com modelos de negócios incipientes. Tais tipos de operações podem “escapar do radar” das autoridades antitruste, uma vez que as variações de concentração de mercado (Delta HHI) nestes casos costumam ser muito marginais.

Os guias de análise de atos de concentração das principais autoridades antitruste ao redor do mundo não são omissos quanto a esta temática, que costuma ser abordada no tópico “Eliminação de Mavericks”[2]. Contudo, há uma grande distância entre não ser omisso e providenciar um protocolo muito claro de como lidar com tais situações (o que não é nada fácil, definitivamente).  Essa dificuldade é abordada de forma bastante precisa por OWINGS (2013)[3], em artigo intitulado “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”. O autor sugere o uso da Teoria da Inovação Disruptiva, desenvolvida originalmente por Clayton M. Christensen[4], para a identificação de comportamentos econômicos e estratégicos condizentes com a definição dos guias antitruste para Mavericks.

A proposta de OWINGS (2013) é bastante promissora, ao mesmo tempo em que a urgência para lidarmos com esse problema é crescente. O fato é que a medida de Delta HHI pode providenciar um teste de triagem (screening test) bastante poderoso para uma ampla maioria de atos de concentração. Contudo, seu poder pode ser bastante reduzido quando tratamos com fusões e aquisições no âmbito da Economia Digital. Talvez tenhamos que buscar soluções igualmente inovadoras para lidarmos com regulação e concorrência nestes mercados.    

[1] Neto, Bonacelli & Pacheco (2020). “O Sistema Tecnológico Digital: inteligência artificial, computação em nuvem e Big Data”, Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 19, e0200024: p. 1-31.

[2] Seção 4.3.1. (pág. 51) do Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE. O Guia define Mavericks como empresas “que apresentam um nível de rivalidade do tipo disruptivo. Geralmente são empresas com um baixo custo de produção e uma baixa precificação que força os preços de mercado para baixo ou empresas que se caracterizam por sua inventividade e estimulam a permanente inovação no segmento em que atuam. Nesse sentido, sua presença independente no mercado pode disciplinar os preços das empresas com maior market share”.

[3] Owings (2013). “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”, Vanderbilt Law Review, 66 (1): p. 323-354.

[4] Christensen (2012). O Dilema da Inovação: Quando as novas tecnologias levam empresas ao fracasso. M. Books Editora: São Paulo, SP.