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Ato de concentração ilícito a priori: um caso de inconstitucionalidade à vista

Amanda Flávio de Oliveira

É certo que o ordenamento jurídico brasileiro não admite a hipótese de ilicitude apriorística de atos de concentração de empresas. Assim se desenvolveu toda a história normativa, doutrinária e jurisprudencial no tema no país, cuja trajetória encontrou ponto de importante amadurecimento com a disciplina de análise prévia de atos dessa espécie instituída há quase dez anos pela Lei Antitruste atualmente em vigor.

Tampouco poderia ser diferente, dada a incontestável constatação de que, por fundamento, a disciplina de atos de concentração representa delicada intervenção estatal na propriedade privada. Relembre-se, por oportuno, que o constitucionalismo brasileiro, desde 1824, consagra a livre iniciativa como direito e, desde 1988, a livre concorrência como fundamento da Ordem Econômica.

Pois bem. É de se estranhar, portanto, que, a esta altura do campeonato, o legislador brasileiro se aventure a considerar a hipótese de incluir em lei – em flagrante afronta à Constituição – uma hipótese de ato de concentração a ser aprioristicamente considerado ilegal. Explica-se.

Dando continuidade ao esforço de reestruturar as bases do ambiente de negócios no Brasil, iniciado com a Lei de Liberdade Econômica (LLE), o governo federal fez publicar recentemente a Medida Provisória n. 1.040. Ao passo que a MP n. 881/2019, que se converteu na LLE, trazia em seu bojo um conteúdo essencialmente principiológico, de estabelecimento de diretrizes gerais, a atual MP preocupou-se com aspectos mais objetivos da atividade econômica, trazendo alterações pontuais mais concretas, sobre temas variados que regem a vida dos agentes econômicos no Brasil. Entre ambas revela-se o objetivo comum de propiciar um espaço de maior competitividade ao mercado brasileiro, sobretudo em comparação com outros países, tornando-o ambiente mais favorecedor para o exercício do empreendedorismo doméstico, assim como mais atraente para investimentos estrangeiros.

Tal qual a MP n. 881, a Medida Provisória n. 1.040 constitui tema de grande interesse aos estudiosos do direito concorrencial. Ainda se mostra incômoda a constatação de que, ao crescente reconhecimento público internacional da qualidade da política pública antitruste brasileira, não tem correspondido um estado de real rivalidade, inclusive potencial, entre empresas, no mercado nacional. Por sua vez, é assentado na literatura econômica que somente a rivalidade efetiva é capaz de oferecer os benefícios da concorrência à coletividade: melhores preços, mais opções de escolha ao consumidor e um ambiente propício à inovação.

Inúmeros foram os ganhos obtidos pela recente MP n. 1.040 a esse título, desde sua redação original, produzida pelo Executivo, até sua versão final, com as contribuições do Parlamento, incluídas durante sua tramitação. Atualmente, a MP aguarda sanção presidencial.

Um dos pontos de grande avanço, e que não constava da versão original do texto, constitui a – tardia, mas muito bem-vinda – incorporação, no ordenamento jurídico brasileiro, da possibilidade de atribuição de voto plural a uma ou mais classes de ações em uma empresa. É de senso comum a capacidade da adoção do instrumento do voto plural de ampliar o potencial de captação das empresas, o que permitirá àquelas que o adotarem ampliar fortemente sua capacidade de competir no mercado. A maior atratividade ao investimento decorrente dessa condição constitui ganho inegável para o agente econômico e para o país.

Entretanto, à nova disciplina foram incluídas excessivas condicionantes, debilitando excessivamente seus efeitos.

Sob o aspecto concorrencial, algumas dessas condicionantes revelam-se, sobretudo, flagrantemente inconstitucionais.

Refere-se, primeiramente, à disciplina disposta nos incisos I e II do art. 110-A. Estabelece-se, em relação às companhias abertas, que somente aquelas cujas ações e valores mobiliários conversíveis em ação ainda não estiverem sido negociados poderão ostentar a nova classe de ações criada. Cria-se, por essa norma, uma situação de “favorecimento” à competição para algumas empresas, sem justificativa econômica ou legal e em flagrante desrespeito ao princípio da liberdade de concorrência, constitucionalmente consagrado.

O ponto mais grave da questão reside, entretanto, no disposto no parágrafo 11 do art. 110-A. Ali, institui-se vedação a atos de concentração (fusões, incorporações, cisões etc) envolvendo empresas que apresentem essa nova classe de ações e empresas que não a adotem, sem qualquer amparo constitucional, tampouco legal. Sabe-se que a lei antitruste determina a obrigatoriedade de submissão dos atos de concentração que se enquadrem em alguns critérios que ela própria elenca à avaliação da autoridade. A submissão deve ocorrer previamente à realização do ato. À autoridade competirá averiguar se, apesar da concentração de mercado decorrente do ato, objetivos de bem-estar do consumidor estão sendo atendidos, entre eles, exatamente o aumento da competitividade ou produtividade (art. 88, parágrafo 6º, I, a, Lei n. 12.529/2011). Os atos de concentração poderão, então, ser aprovados com ou sem restrições ou reprovados, uma vez avaliados o atendimento a esses benefícios sociais.

O estabelecimento apriorístico de vedações a concentração de empresas conflita diretamente com a disciplina da matéria presente na lei antitruste e, igualmente, ofende o princípio constitucional da livre concorrência, orientador do exercício das atividades econômicas no Brasil (art. 170, IV, Constituição de 1988) e, o pior, sem qualquer justificativa econômica para tanto. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a vedação apriorística a atos de concentração e muito menos admite sua reprovação se identificadas vantagens deles decorrentes ao bem-estar do consumidor, mesmo nos casos de submissão obrigatória à análise da autoridade.

A preocupação de se rever as bases da disciplina do mercado brasileiro, endereçada pelo Executivo por meio da MP n. 1.040, e para a qual contribuiu o Legislativo, é urgente e necessária. Avanços consideráveis estão sendo obtidos pela futura lei. O voto plural pode ser um grande instrumento para esse fim. Mas as inconstitucionalidades a ele relacionadas no texto final da norma requerem indiscutível afastamento.

Sobre razões do antitruste, o “advogado do povo” Louis Brandeis e o neobrandeisianismo

Amanda Flávio de Oliveira* Júlia Gomes Mota** Luiz Guilherme Ros***

O antitruste é uma disciplina à procura da sua razão de ser. Desde seu surgimento, ainda no século XIX, teses vêm e vão, algumas às vezes voltam, na tentativa de se justificar o porquê do Estado interferir na competição entre as empresas.

Já há algum tempo a disciplina jurídica da concorrência vem-se justificando como tendo por razão de existir o bem-estar do consumidor, na acepção do termo que propugna a Escola de Chicago. Em suas origens, a preocupação com a estrutura do mercado já se revelou fundamento para a atuação do Estado. Grandes estruturas poderiam ser perniciosas pela própria existência – e estamos falando de grandes estruturas no fim do séc. XIX e início do séc. XX.

O tema voltou à baila com as multimencionadas “big techs”. Estudiosos avaliam serem estruturas sem precedentes, uma realidade inédita… e seu “tamanho” ou “poder econômico” despontam nos debates como motivos de preocupação. Se é bem verdade que as teses de Chicago vêm se mostrando limitadas ou frustrantes em importantes aspectos, parece curioso uma tentativa de superá-las buscando algo que lhe seja anterior, ao invés de se aprimorar a trajetória.

Um “novo/velho” movimento surge nos debates antitruste, então. Entre os “rótulos” de “populista” ou “hipster” que lhes foram atribuídos, não necessariamente atraentes, a alternativa “neobrandeisiana” surge com o propósito de conceder elegância e fundamento à ideia.

Somos seres à procura de líderes. A apropriação que hoje se faz da figura pública de Louis D. Brandeis pela corrente de estudiosos do antitruste que se intitula “neobrandeisiana” guarda imprecisões anacrônicas que se esmorecem ante a uma análise cuidadosa de suas trajetória e ideias ao longo de 60 anos de vida – e que antecederam sua altamente contestada ida para a Suprema Corte.

Formado em Direito pela Universidade de Harvard, Brandeis trabalhou como advogado por 38 anos, ininterruptamente, até ser nomeado para a Suprema Corte em 1916. Dedicado e apaixonado pela advocacia, nem mesmo a proximidade com o Presidente Woodrow Wilson e a influência que exerceu nas negociações que culminaram na criação da Federal Trade Commission (FTC) fizeram com que se afastasse de suas atividades. Pelo contrário, nunca aceitou as propostas de Wilson para tomar parte direta na Comissão. O estudo de sua biografia revela mais um advogado por excelência do que um pensador antitruste sofisticado.

O legado intelectual de Brandeis está, em grande medida, registrado em artigos para jornais, argumentos sustentados das tribunas, e correspondências. Ainda que a vida pública de Brandeis não deixe dúvida quanto a sua aversão aos grandes empresários e monopólios, sua trajetória profissional sugere que essa postura mais derivou dos casos e clientes com quem ele trabalhou do que de supostas construções teóricas.

De início, não há na sua larga trajetória ensaios que reflitam de forma aprofundada os modos pelos quais ele entendia que a organização dos mercados ou da concorrência devessem se dar. Ademais, ao analisar coleção de cartas deixadas por Brandeis, o historiador norteamericano Thomas McCraw esmiuçou seu perfil pragmático e casuístico[1], afirmando não haver no acervo indícios de reflexões ou ruminações de fôlego. Nem por isso deixou de ser contundente em sua atuação, e considerado por alguns radical.

A maioria de seus clientes eram pequenos empresários, sobretudo no início de sua carreira. Os três casos de maior relevância conduzidos por Brandeis foram Muller v. Oregon (1908), a controvérsia de Ballinger-Pinchot (1910), e o pedido de aumento de taxas da American Railroads diante da Interstate Commerce Commission (1910) e confirmam sua personalidade pragmática, populista e utilitária. A notoriedade pública dos casos e o apelo sensacionalista com que Brandeis os conduziu lhe selaram a fama de advogado do povo, e alguns pontos em comum entre os três casos reforçam o perfil brandeisiano desenhado por McCraw: argumentos técnicos e não jurídicos, o uso e abuso de veículos de mídia muckraker, e o emprego de elementos inesperados que pudessem surpreender seus adversários. Calha notar, ainda, que nenhum dos casos que lhe alçaram à fama tratava de política antitruste.

Se a atuação profissional de Brandeis era orientada para a defesa dos seus clientes, as teses de fundo que advogou, em temas que tangenciam o antitruste, não são nem de longe compatíveis com uma perspectiva que hoje se intitula “neobrandeisiana”. É o caso, por exemplo de sua defesa da legalidade de carteis[2]. Ou da defesa que fez da licitude da fixação de preços de revenda, ainda que tal fato importasse o aumento de preços ao consumidor.

Não se nega que Brandeis acabou por ter importante influência no desenvolvimento do direito antitruste. São a ele atribuídas fases de efeito bastante reverberadas, como “big is bad”, “the curse of bigness”e “small is beautiful”. Mas daí a tentar conferir-lhe uma posição de idealizador de uma teoria parece demasiado generoso.

É preciso ser justo e reconhecer que a “nova” corrente não admite uma mera preocupação com o tamanho das empresas – ou ao menos não o faz explicitamente. A ideia aproxima-se mais de um certo retorno às origens, por meio do qual a política de defesa da concorrência não deveria ter um objetivo único, mas diversos objetivos.

De todo modo, se a efervescente trajetória do advogado Louis Brandeis não permitiria alçá-lo a ícone da “nova” corrente, revelando antes um anacronismo, o problema principal talvez nem esteja no nome da “nova” Escola. O dilema mais dramático segue em aberto: há que se definir com segurança as razões do antitruste.

[1] MCCRAW, Thomas K., et al. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984.

[2] Como aponta Guimarães (2020), “de acordo com Brandeis, havia quatro tipos de trustes: (i) acordos entre concorrentes para não vender os produtos abaixo de determinado valor; (ii) acordos entre concorrentes em que os preços são equalizados e administrados por um terceiro; (iii) transferência das ações pelos acionistas de empresas concorrentes para um terceiro (trustee), que adquire o controle das empresas, determinando como se dá a administração do conjunto; e (iv) verdadeira fusão de empresas em uma grande corporação, com a extinção de qualquer independência individual. Para Brandeis, os trustes de tipo (i) e (ii) não geravam problemas relevantes, sendo aqueles de tipo (iii) e (iv) o objeto de preocupação.

Autores:

*AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1996, onde também cursou Mestrado (2000) e Doutorado (2004), tendo realizado formação complementar em Louvain-la-Neuve, Bélgica (1999). É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

**JÚLIA GOMES MOTA. Mestranda em Direito Regulatório pela Universidade de Brasília (UnB), é advogada, bacharel em Direito e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Laboratório e Grupo de Pesquisa DR.IA, da UnB. Ex-bolsista Santander da Universidade de Vigo, Espanha. Atuou como assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e pesquisadora na área de História política na UFRGS.

***LUIZ GUILHERME ROS. Sócio do escritório Silva Matos Advogados. É Consultor do Programa das Nações Unidas perante o CADE no projeto Control of Data, Market Power, and Potential Competition in Merger Reviews. Doutorando em Direito Econômico pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É Secretário da Comissão de Defesa da Concorrência e membro da Comissão de Direito Regulatório. Foi Vice-Presidente do Conselho de Administração da LoopKey S.A., e Data Protection Officer da Sociedade. Foi professor voluntário na Universidade de Brasília. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral do Cade. Foi assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Entre Eros e Tanatos: da ordem econômica constitucional à morte do antitruste

Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro conta com uma série de ferramentas analíticas – mormente oriundas da análise antitruste norte-americana – que foram sedimentadas ao longo do tempo seja pela própria autoridade da concorrência brasileira, seja pela prática estrangeira que em grande medida a inspira. No entanto, por mais sofisticadas que possam ser as reflexões sobre novos mercados, novas condutas e mesmo sobre os contornos atuais da concentração econômica, o Direito da Concorrência parece encontrar-se em uma constante ambivalência entre a consolidação de alguns de seus pressupostos dogmáticos e o permanente questionamento sobre suas finalidades.

Tal ambivalência é especialmente preocupante diante da circunstância de que o Direito da Concorrência brasileiro tem por fundamento bases radicalmente diversas daquelas sobre as quais se funda o direito norte-americano, notadamente a ordem econômica constitucional estabelecida pelo art. 170 da Constituição de 1988. A chave interpretativa do art. 173, § 4º, segundo o qual a lei reprimirá os abusos do poder econômico, evidentemente não é a lei a que alude o texto constitucional, mas o próprio art. 170. Não é sem motivo que Eros Grau, em sua obra clássica sobre a ordem econômica constitucional, assevera que as regras da legislação concorrencial “conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988”[1].

Se o ponto de partida da defesa da concorrência no ordenamento brasileiro deve ser a ordem econômica constitucional, causa certo estranhamento que a análise concorrencial permaneça infensa à diversidade de temas oriundos do art. 170 e prefira adotar análises consequencialistas fundadas em metodologias decorrentes da economia neoclássica – mesmo tanto tempo após a promulgação da Constituição de 1988[2]. Isso porque, como também esclarece Eros Grau, a redação do art. 170 não consiste em mera sugestão que pode ser afastada pela ideologia dinâmica da interpretação jurídica mas em um conjunto de preceitos que verdadeiramente vinculam a aplicação da legislação concorrencial em prol da sociedade, e não do indivíduo. Segundo o autor, “estão incrustadas na ideologia constitucionalmente adotada as razões do individualismo metodológico. A cumplicidade estabelecida entre ele e a ideologia liberal – o social produzido pelo individual – não autoriza a deslocação da titularidade da livre concorrência, na arena da ordem econômica, do indivíduo para a sociedade, mesmo no caso da Constituição de 1988”[3].

O Direito da Concorrência brasileiro sob a égide da Constituição de 1988, nesse sentido, é vocacionado não a ensimesmar-se em torno de tecnicismos associados a simplificações que são próprias de uma teoria econômica mais preocupada com ideais abstratos do que com os sujeitos afetados pela dinâmica dos mercados, mas a promover a livre concorrência em prol da coletividade e não de determinados indivíduos. Nem se argumente, aqui, que tais mandamentos constitucionais iriam perfeitamente ao encontro da lógica adotada pelas metodologias da Escola de Chicago, que adotam o bem-estar do consumidor como finalidade última da defesa da concorrência e, assim, no fim e ao cabo promoveriam o bem-estar da coletividade.

Isso porque diversos autores demonstram que a adoção dessas metodologias nos últimos anos tem conduzido a um processo de concentração nunca antes visto nos mais diversos mercados, conduzindo não somente à supressão da concorrência, mas a massivos aumentos de preços[4]. Dessa maneira, cabe indagar qual será a real função do Direito da Concorrência se, mesmo diante de uma ordem constitucional como a brasileira ou mesmo diante da constatação do fracasso das metodologias de Chicago para a proteção da concorrência e do consumidor, não consegue alcançar nem os objetivos pretendidos pela ordem econômica constitucional nem os ideais de eficiência preconizados pela teoria neoclássica.

Daí a razão da perplexidade de autores que, especialmente diante do advento dos mercados digitais e das novas formas de concentração daí decorrentes, vaticinam que ou o Direito da Concorrência precisa repensar radicalmente as suas metodologias para que permaneça relevante, ou mesmo já anunciam sua morte. Anunciada a morte do antitruste, outros passam a indagar o que fazer do cadáver insepulto do qual não se consegue retirar muito mais do que a saudade antes do adeus (parafraseando Nelson Rodrigues).  

Thibault Schrepel, por exemplo, ao tratar dos efeitos da tecnologia blockchain sobre o Direito da Concorrência, sugere que a morte do antitruste será como a morte do jazz: o ritmo ainda existe e ainda tem fiéis ouvintes e mesmo ótimos músicos, porém o jazz dificilmente cria novos debates ou movimentos que ultrapassem os limites de sua comunidade[5]. Por mais agradável que possa ser a comparação do Direito da Concorrência com o jazz ou até a perspectiva de se conservar uma comunidade permanentemente concentrada na reflexão a respeito do próprio Direito da Concorrência, o presságio da morte do antitruste pode servir para que se busque alguma vida nas possibilidades consagradas pela ordem econômica constitucional e aparentemente esquecidas pelo antitruste “desconstitucionalizado”[6].

Se o Antitruste fundado nas premissas consagradas pela prática norte-americana estaria fadado a uma morte semelhante à do jazz, cabe indagar se já é o momento de vestirmos luto ou se o Direito da Concorrência fundado na ordem econômica constitucional de 1988 não poderia ser mais parecido com o samba[7].


[1] GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 213.

[2] Nesse sentido: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 29-30

[3] GRAU, Op. cit., p. 216.

[4] TEPPER, Jonathan; HEARN, Denise. The myth of capitalism: monopolies and the death of competition. Danvers: Wiley, 2019; WU, Tim. The curse of bigness: antitrust in the new gilded age. Nova York: Columbia Global Reports, 2018.

[5] SCHREPEL, Thibault. Is blockchain the death of antitrust law? The blockchain antitrust paradox. Disponível em: https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=606070026007124079078073084082007086026071069006028088099020115064088031105069007022096019020106111061101119116017126110012092015046040047000106006094088111023106098054046076009094095096001075119071118065069091124015125080094026011118099115026125117113&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

[6] Ver: SCHUARTZ, Luis Fernando. A desconstitucionalização do direito de defesa da concorrência. Revista do IBRAC. v. 16, n. 1, p. 325-351, 2009.

[7] MULTISHOW, Música. Não Deixe o Samba Morrer | Alcione | Canta, Luan | Música Multishow. Youtube, 3 ago. 2017.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WrCuw1U0lq8.