Polyanna Vilanova & Rubens Cantanhede

Em nossa última coluna sobre o assunto [1], indicamos, com base na literatura econômica, que, de fato, há convergência, ao menos nos Estados Unidos, entre as discussões de direito antitruste e controle de inflação. Nesse sentido, as recentes declarações de Joe Biden sobre o combate à inflação estar entre os objetivos de sua política concorrencial não deixam dúvidas acerca de seu intuito, bem como apontam que tal confluência, ao menos nos termos sugeridos por alguns de seus detratores, talvez não fosse infundada.

Contudo, a conexão entre o binômio inflação e concorrência não se circunscreveu aos Estados Unidos, sendo agora também debatido em âmbito supranacional. Assim, em 30 de novembro de 2022, o Comitê de Concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) realizou mesa redonda para discutir concorrência e inflação, do que decorreu um relatório geral da entidade sobre o tema, artigos acadêmicos e contribuições das delegações. Aqui nos concentraremos em referido Relatório.

Logo no início de seu Relatório, intitulado “Competition and Inflation, OECD Competition Policy Roundtable Background Note” [2], a OCDE reconhece que, em que pese já ter recomendado há mais de 50 (cinquenta) anos a estruturação de um vigoroso enforcement competitivo como parte das medidas para combate à inflação, com o fim dos ciclos de alta inflação nos países desenvolvidos e sob novo prisma, referida  sugestão teria ficado obsoleta, ao menos em relação aos integrantes da OCDE, em períodos mais recentes (p.05).

Contudo, frisa a entidade em seu Relatório, sob o impacto dos altos índices de inflação em 2022, consequência direta do conflito armado entre Rússia e Ucrânia e seus inúmeros desdobramentos econômicos, referida discussão foi retomada, ao mesmo tempo em que emergia o debate mais estrutural sobre se e em que medida as altas taxas de inflação são evidências de possíveis problemas competitivos sistemáticos em vários países (p. 05).

Assim sendo, o Relatório da OCDE buscou endereçar referido impasse por meio de 3 (três) grandes questionamentos: primeiro, qual papel o nível competitivo possui em determinar os níveis de inflação; segundo, sobre o que um cenário inflacionário representa para a política concorrencial e para as autoridades antitruste e, por fim, se tal cenário inflacionário pode gerar riscos e adversidades ao processo competitivo (p.05).

Para explicar os efeitos da concorrência na inflação, a OCDE parte de um exemplo (hipotético) extremo [3] no qual uma economia possui apenas um mercado que produz apenas um bem, situação em que a inflação poderia ser mensurada apenas observando as variações de preços do bem em referência. Em tal cenário, o nível de competição afeta o preço na proporção em que as alterações que provoca na curva de oferta e demanda são repassadas ao consumidor hipotético via valor do objeto. Caso o mercado se constitua em um monopólio que resulte em aumento expressivo do bem, tal aumento seria detectado como uma alta de inflação no próximo período. Contudo, se após um tempo o preço continuar estável, ainda que elevado, e não haja mudança na estrutura competitiva do mercado, o índice de inflação para o próximo período seria zero. De agora em diante, no cenário construído, a inflação seria mensurada de acordo com o quanto de aumento de preços o monopolista repassaria aos consumidores.

Não obstante a aridez e grau alto de abstração do exemplo adotado pela OCDE, dele decorre algumas conclusões que consideramos pertinentes ao direito antitruste. Isto posto, é possível identificar 2 (duas) formas pelas quais os níveis de concorrência podem impactar a inflação. Primeiro, tendo em vista que reduções na concorrência em toda a economia podem ao longo do tempo levar a aumentos subsequentes de preços, do que decorreria processo inflacionário; segundo, quando a competição afetar o funcionamento dos mercados, disso advém aumentos ou diminuições dos níveis de inflação observados (p. 09).

É importante notar, ainda nos termos da argumentação da OCDE, que nem sempre o processo inflacionário é derivado de baixa competitividade. De todo modo, assegurar um ambiente competitivo saudável é importante para o controle da inflação, sendo a política concorrencial mais bem equipada para tratar problemas inflacionários no longo prazo (p. 10).

Em virtude disso, o Relatório dedica um tópico inteiro em relação a preocupações oriundas do arrefecimento da pressão competitiva em diversos países desenvolvidos (e normalmente integrantes da OCDE). Estudos apontam que a margem de lucro das empresas dos Estados Unidos subiram de 21%, em 1980, para 61%, em 2020 [4]. Fenômeno similar estaria ocorrendo também no continente europeu, com aumento de lucratividade das empresas obtido às custas de maiores preços repassados aos consumidores [5].

Mesmo que a redução do nível de concorrência não esclareça sozinho o aumento da inflação observado em países desenvolvidos, há provavelmente relevantes interfaces entre ambos os lados do binômio a serem estudados de modo mais detido. Nesse sentido, elenca a OCDE algumas evidências que sugeririam que o atual aumento da concentração empresarial é fator catalisador a amplificar a gravidade dos processos inflacionários [6].

Ainda com a OCDE, uma das principais maneiras pelas quais baixos níveis competitivos podem implicar em maiores índices de inflação é a constatação de que em mercados concentrados os custos de choque de preços são mais facilmente repassados aos consumidores (p. 12). Ademais, a inflação também pode impactar negativamente a concorrência ao supostamente facilitar condutas colusivas ao oferecer o disfarce perfeito para que as empresas, implicadas no cartel, alinhem e aumentem os preços juntas [7].

Referida situação é ainda agravada – escamotear a existência de condutas colusivas –em virtude de processos inflacionários prejudicarem o funcionamento da demanda no mercado ao distorcer a habilidade dos consumidores de terem acesso a informações precisas sobre os preços praticados pelos players no mercado. Dado as constantes mudanças de preço, associada à redução da pressão competitiva dos fornecedores, cria-se, portanto, o cenário e a tempestade perfeitos para a atuação duradoura de cartéis (p.18-20).

Outrossim, têm-se que, diante do cenário supracitado e recomendado regresso a parte do toolkit de 1971, a OCDE aconselha em seu Relatório que as autoridades concorrenciais reforcem suas atuações em face de possíveis práticas restritivas, bem como que adotem medidas mais robustas contra cartelistas ou em face de supostas condutas unilaterais e práticas restritivas envolvendo patentes e licenciamento de patentes. Além disso, sugere que se realize análises regulares da dinâmica de preços em mercados concentrados a fim de referida autoridade poder atuar mais apropriadamente contra aumentos excessivos que fujam da racionalidade econômica. Ainda, defende o aumento do orçamento a disposição da autoridade concorrencial e a adoção de medidas de longo-prazo, incluindo novas legislações antitruste contra diversas formas de conduta anticompetitiva (p. 22; p. 24-25).

Por fim, a despeito das suas prescrições, o Relatório conclui que as autoridades concorrenciais idealmente não devem ser direcionadas ao combate à inflação no curto prazo, seja porque elas possuem pouca expertise técnica no assunto, seja em decorrência de geralmente não ser algo ínsito às suas respectivas competências legais ou infralegais. Por conseguinte, opina a OCDE que a atuação da autoridade concorrencial deve, em consonância com a literatura econômica mais atual e malgrado a tentação a intervirem em debate tão essencial, circunscrever-se à busca por benefícios de controle da inflação no longo prazo (p. 32).

Em conclusão, o Relatório conclui que as recomendações da OCDE do toolkit de 1971 e, portanto, elaborado há mais de 50 (cinquenta) anos, permanece essencialmente válido: o antitruste é vital para um ambiente de baixa inflação e o seu enforcement deve ser priorizado, ainda que não às expensas das políticas fiscal e monetária, estas, sim, mais adequadas ao controle de inflação no curto prazo. Contudo, e pela atualidade do Relatório, verifica-se que o debate a respeito do binômio inflação/concorrência ainda não foi (e nem poderia sê-lo) internalizado por acadêmicos e instituições brasileiras. Mas perguntamos: deve sê-lo? E, se sim, em qual medida e mediante quais instrumentais e métricas o Brasil ou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) poderia oportunamente fazê-lo?

Referências bibliográficas:

[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2022/10/24/antitruste-e-inflacao-no-brasil-por-vezes-assuntos-diversos-mas-convergentes/ .

[2] OECD. Competition And Inflation OECD Competition Policy Roundtable Background Note. 2022. Disponível, em inglês e na integra, em:  https://www.oecd.org/competition/competition-and-inflation.htm .

[3] No original: “As an extreme example, consider an economy with just one market which produces a single good. In this world, inflation could be measured simply as the change in prices of this good. Competition would affect the price if its intensity changed or if it affected how changes to supply or demand were passed through to prices. If the market became a monopoly which resulted in a higher price for the good, then this would be seen as inflation in the next period. The period after, prices would not change as there is no change in competition, and thus inflation would return to zero. From now on, inflation will depend on how the monopolist passes on changes in supply and demand to customers (p. 09)”.

[4] DE LOECKER, Jan; EECKHOUT, Jan; UNGER, Gabriel. The rise of market power and the macroeconomic implications. The Quarterly Journal of Economics, v. 135, n. 2, p. 561-644, 2020.

[5] KOLTAY, Gabor; LORINCZ, Szabolcs; VALLETTI, Tommaso M. Concentration and competition: Evidence from Europe and implications for policy. 2022.

[6] BRÄUNING, Falk; FILLAT, Jose L.; JOAQUIM, Gustavo. Cost-price relationships in a concentrated economy. Available at SSRN 4142715, 2022.

[7] Disponível em: https://thehill.com/business/3564912-inflation-is-providing-cover-for-price-fixing-economists/


Polyanna Vilanova é graduada em Direito e Ciência Política, possui LLM em Direito Empresarial pela FGV, especialização em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV, é Mestre em Direito Público pelo IDP e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. É árbitra do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Foi Conselheira do Cade e é sócia fundadora do Vilanova Advocacia.

Rubens Cantanhede é graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É, também, membro do Grupo de Estudo Constituição, Empresa e Mercado da UnB (GECEM/UnB). Foi estagiário no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e é advogado do Vilanova Advocacia.

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