Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli
Os conhecidos debates sobre os objetivos do antitruste normalmente se deparam com o clássico – e controverso – dilema da defesa dos campeões nacionais. No Brasil, as novidades jurídicas que visam estimular o agronegócio não deixam dúvidas sobre a aposta da vez – amplamente difundida com o jingle “agro é pop, agro é vida” e estatisticamente confirmada, uma vez que o agronegócio correspondeu a cerca de 27,4% do PIB brasileiro no ano de 2021[1].
De fato, as últimas iniciativas, tanto do poder legislativo, quanto do executivo, nos últimos meses não deixaram dúvidas sobre a prioridade de estimular o acesso ao crédito e a criação de um framework normativo que permitisse maior segurança jurídica às teias contratuais que sustentam o agronegócio brasileiro. Exemplos destas iniciativas incluem tanto a publicação do Plano Nacional de Fertilizantes e a instituição do Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas (CONFEF), ambos a partir do Decreto 10.991, de 11 de março de 2022, quando a aprovação da Lei 14.130/2011, que instituiu a figura dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagros).
Ora, no momento em que os holofotes do Brasil – e do mundo – voltam-se ao agro, trazendo consigo a necessidade de expandir as bases para o crescimento deste setor, a competitividade não poderia ficar de fora. De acordo com o último Caderno do Departamento de Estudos Econômicos do Cade (DEE/CADE)[2], mercados de insumos agrícolas passam periodicamente por ondas de concentração, seja pela forte competição por inovação, seja em função das altas barreiras à entrada, uma vez que grande parte das atividades destes mercados são intensivas de capital.
De fato, nas duas últimas décadas (isto é, no período compreendido entre 1990 e 2019), o DEE identificou cerca de 279 Atos de Concentração notificados ao Cade, além de condutas anticoncorrenciais que foram objeto de investigação na Autarquia, envolvendo a recusa de acesso à infraestrutura essencial e outros abusos de posição dominante, que poderiam ocasionar no fechamento destes mercados.
De acordo com a Lei 12.529/2011, há dois critérios que definem as operações notificáveis ao Cade: faturamento e tipo de operação. Com relação ao faturamento, o Art. 88 da lei traz valores mínimos de faturamento bruto anual dos grupos econômicos da Adquirente e da Adquirida – sendo que os patamares originalmente adotados pela norma já sofreram atualização e hoje consistem, respectivamente, em R$ 750 e R$ 75 milhões[3]. O segundo critério, por sua vez, remete ao tipo de operação que estaria originando a concentração econômica, o que, de acordo com o Art. 90 desta lei, abrange as hipóteses de fusão, incorporação, aquisição de ativos e participações societárias, celebração de contratos associativos, consórcios e contratos que originem joint ventures.
Contudo, para além dos critérios trazidos pela norma, o Cade regulou, através da Resolução 33/2022 (que consolida, dentre outros normativos da Autarquia, a antiga Resolução 2/2012 alterada pela Resolução 9/2014), o tratamento do que deveria ser considerado como grupo econômico para fins de cômputo do faturamento.
Em se tratando de fundos de investimento, o Art. 4º, §2º da Resolução 33/2022 entendeu que, com relação aos cotistas, deveria ser considerado apenas aqueles que detiverem participação (direta ou indireta) igual ou superior a 50% das cotas dos fundos envolvidos na operação via participação individual ou conjuntamente – através de acordos societários. Com relação às empresas investidas, por sua vez, entendeu-se que deveriam ser consideradas integrantes do grupo todas aquelas que detivessem participação (direta ou indireta) igual ou superior a 20% do capital social votante.
Ora, com critérios de notificação obrigatória tão abrangentes e consequências bastante indesejáveis em relação à falha de apresentar ao Cade uma operação que seria notificável – infração batizada, no Direito Concorrencial, como “Gun Jumping” – importa debater como seria o tratamento das operações realizadas a partir de um Fiagro pelo Cade e, para além do controle de estruturas, de que forma os demais instrumentos da caixa de ferramentas antitrustes podem auxiliar na manutenção do grau de competitividade desejável ao setor.
Como já mencionado, a constituição dos Fiagros foi regulada a partir da Lei 14.130/2011, que visa facilitar a qualquer investidor, seja ele nacional ou estrangeiro, o direcionamento de seus recursos ao setor do agronegócio, o que pode ser feito de forma direta, a partir da aquisição de imóveis rurais, por exemplo, ou indireta, com a aplicação em ativos financeiros atrelados ao agronegócio.
Assim, a classificação dos Fiagros dependerá das características de seus investimentos, podendo ser constituídos sob a forma de Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs), Fundos de Investimento em Participação (FIPs) e Fundos de Investimento em Direito Creditório (FIDCs). Em cada uma destas três hipóteses, há operações que se enquadram como atos de concentração, envolvendo não apenas a aquisição de participações societárias, como também de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis, podendo abranger, inclusive, ativos que não estejam mais operacionais[4].
Dessa forma, estas operações seriam notificáveis ao Cade, que, por sua vez, as analisaria através de seu controle de estruturas, podendo concluir que, a depender do grau de concentração gerado a partir da operação, a adoção de remédios concorrenciais se fizesse necessária – fossem eles estruturais ou comportamentais. Este controle preventivo é um mecanismo importante para garantir a competitividade nos diferentes elos da cadeia produtiva deste setor, especialmente em razão da recente tendência de concentração, bem como do grau de dependência entre os elos e do enorme impacto que o desequilíbrio da cadeia pode ocasionar ao consumidor final.
Como ressaltou o DEE/CADE (2020)[5], a exclusividade entre distribuidores e fabricantes de defensivos agrícolas e fertilizantes não é incomum e muitas vezes pode ser justificada em razão do apoio prestado pelos fabricantes para a prestação de serviços adicionais aos seus clientes. Contudo, a figura dos distribuidores parece ser bastante central nesta cadeia produtiva, uma vez que produtores rurais beneficiam-se tanto da variedade de produtos que possam atender sua ampla gama de necessidades, como também de serviços adicionais fornecidos através do elo de distribuição, o que inclui, no caso dos defensivos agrícolas, por exemplo, os serviços de assistência técnica, consultorias de agrônomos, entrega programadas de insumos, financiamento da compra de insumos, consultorias sobre seguros e operações cambiais, além de programas de fidelização de clientes e armazenagem de grãos.
Assim, ao passo que Fiagros poderão, de fato, aprimorar o acesso a crédito no setor, considerando o histórico de concentração econômica comumente capitaneado através destes veículos de investimento nos diferentes segmentos que compõem o agronegócio, bem como outros elementos que corroboram com esta tendência de concentração, tal injeção de crédito há que ser acompanhada de boas doses de competição, de modo que as bases para expandir o agronegócio brasileiro possam desenvolver raízes sólidas e sustentáveis.
[1] https://www.cepea.esalq.usp.br/br/releases/pib-agro-cepea-pib-do-agro-cresce-8-36-em-2021-participacao-no-pib-brasileiro-chega-a-27-4.aspx#:~:text=Diante%20do%20bom%20desempenho%20do,52%2C63%25%2C%20respectivamente.
[2] CADE. Cadernos do Cade: Mercado de Insumos Agrícolas. Fevereiro de 2020. Disponível em <https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-insumos-agricolas-2020.pdf>. Acesso em 20/05/2022, p. 90.
[3] Esta atualização foi realizada através da Portaria Interministerial MF/MJ nº 994, de 30 de maio de 2012.
[4] Para uma discussão mais completa com relação à evolução do posicionamento da Autarquia sobre a obrigatoriedade da notificação de ativos não-operacionais, leia o artigo “Ativos não-operacionais e a obrigação de notificação. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Ana Sofia Cardoso Signorelli. 10 de janeiro de 2022“.
[5] Op cit, págs. 18-19.