Polyanna Vilanova[i]

Isabel Jardim[ii]

Ana Flávia Napoli[iii]

Em nosso artigo anterior desta coluna, buscamos apresentar, de forma sintética, um pequeno panorama histórico do desenvolvimento da tecnologia blockchain, bem como das discussões sobre sua inter-relação com o Direito Antitruste.

Conforme expusemos, muito se tem discutido sobre os impactos e transformações que esta tecnologia vem causando e ainda poderá causar na ordem econômica e social. Por este motivo, a partir de 2018, agências de defesa da concorrência e organizações intergovernamentais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), passaram a lançar luz às discussões sobre a interface entre blockchain e defesa da concorrência por meio da publicação de diversos estudos, bem como a publicação de diversos papers sobre o assunto[1].

No presente artigo, pretende-se apresentar, de forma um pouco mais detalhada, alguns desdobramentos e conclusões extraídas desses recentes estudos, os quais abordam esta inter-relação entre blockchain e concorrência.

Em geral, nota-se que estas produções tratam de análises teóricas sobre o tema, sem conclusões definitivas das possíveis condutas implementadas por meio da tecnologia blockchain e dos demais efeitos de seu uso e aplicações no ambiente concorrencial, uma vez que a atuação das autoridades de defesa da concorrência em relação à tecnologia ainda é incipiente.

Se, por um lado, a tecnologia blockchain parece “compartilhar a mesma ambição[2]” que o Direito Antitruste, por outro, também pode gerar preocupações para as autoridades de defesa da concorrência.

No que diz respeito às condutas coordenadas, as quais englobam acordos e práticas concertadas entre concorrentes, como cartéis, além de práticas verticais, diversas preocupações já foram lançadas por estudiosos do tema, como se verá adiante.

Schrepel (2019), no artigo “Collusion by blockchain and smart contracts“, busca responder, dentre outras, a seguinte indagação: a tecnologia blockchain mudará a natureza ou a forma como se organizam os conluios? Para respondê-la, o autor primeiramente propõe a distinção entre dois tipos de acordos, sendo do primeiro tipo aqueles que dizem respeito às condições de acesso, uso e/ou saída do blockchain, enquanto os do segundo são os acordos criados fora do blockchain, mas que usam a tecnologia para torná-los mais eficientes.

Schrepel (2019) também propõe a diferenciação, dentro das categorias de acordo citadas acima, entre aqueles que dizem respeito i) à blockchains públicas, ii) blockchains privadas e iii) a mecanismos que podem ser utilizados independentemente da blockchain ser pública ou privada.

Sobre o primeiro tipo, relacionado às blockchains públicas, o autor afirma que “The fact that several companies create a blockchain, or share information on it, could therefore be seen as an agreement because by doing so, they are expressing their joint intention to conduct themselves on the market in a specific way” (Schrepel, 2019, p. 130). Para ele, também parece possível que a criação de blockchains para fins anticompetitivos e para o compartilhamento de informações seja compreendida como uma prática que induz os participantes à conduta uniforme.

Sobre acordos colusivos relativos às blockchains privadas, o autor defende que a decisão de excluir um agente de mercado da blockchain a qual outros concorrentes façam parte pode ser compreendida como uma prática exclusionária e/ou como uma recusa concertada de negociar. Ressalta que as informações compartilhadas poderão ser utilizadas para adaptação de estratégias de mercado pelos agentes que as acessam.

Prosseguindo seu exame para além de acordos colusivos dos quais as análises dizem respeito às condições de acesso ou uso da blockchain, o autor argumenta que as empresas também podem usar a tecnologia para facilitar a criação e/ou o funcionamento de acordos de conluio sobre suas estratégias no mercado, incluindo preços, níveis de produção, estratégias de inovação e similares (Schrepel, 2019, p. 140).

Nesse sentido, Schrepel conclui que as blockchains podem funcionar como meios para prevenir e corrigir comportamentos desviantes de participantes de um conluio, o que, por consequência, poderia gerar ainda mais efetividade e estabilidade a estes arranjos anticompetitivos. Ainda, expõe como a blockchain pode proteger os conluios da detecção de suas atividades pelas autoridades antitruste.  Por fim, o autor destaca que os contratos inteligentes (“smart contracts”) “teriam a potencialidade de fazer com que o número de pedidos de leniência venha a ter uma diminuição, tendo em vista que a blockchain reforça a confiança durante a vigência da colusão”[3].

Nesse mesmo sentido, Lin William Cong e Zhiguo He (2018) argumentam que os smart contracts – que figuram na segunda geração de blockchain[4] – podem mitigar a assimetria de informações e melhorar o bem-estar do consumidor por meio do implemento de competição e abertura de maior espaço para negociação, ao mesmo tempo, também podem encorajar comportamento colusivo justamente em razão dessa distribuição de informações comerciais.

Por sua vez, Peder Østbye, Conselheiro Especial do Norges Bank, explica que há riscos de conluio e exclusão como resultado da tecnologia blockchain; no entanto, ele sugere que as ferramentas antitruste tradicionais podem ser usadas para lidar com esses riscos[5].

No que diz respeito à atuação das agências antitruste, Ajinkya Tulpule defende que a tecnologia poderá ajudar as autoridades a coletar mais dados, os quais permitirão que as agências executem análises mais sofisticadas e explorem teorias do dano mais complexas[6].

À vista dos entendimentos apresentados acima, conclui-se que a tecnologia blockchain e suas aplicações são capazes de gerar efeitos em duas direções distintas, sendo uma benéfica à concorrência e a outra prejudicial.

Por um lado, as blockchains podem promover condições mais igualitárias, reduzir a assimetria de informações entre agentes de mercado e entre estes agentes e os consumidores e ofertar novos meios de coleta de dados e monitoramento de mercados para as agências de defesa da concorrência, porém, ao mesmo tempo, a tecnologia pode encorajar comportamentos colusivos, tornar mais laboriosa sua detecção pelas autoridades e ser utilizada como meio para implementação de condutas exclusionárias.

Por sua vez, as condutas anticompetitivas unilaterais, isto é, aquelas praticadas por uma única empresa que detém posição dominante, têm ganhado cada vez mais os holofotes e sido objeto de preocupação das autoridades antitruste nesse cenário de constantes inovações tecnológicas. Isso porque, inserida no contexto digital, a ilicitude nem sempre é latente, requerendo, assim, uma atenção ainda maior por parte das autoridades de defesa da concorrência.

É certo que a formação de ecossistemas digitais torna a análise antitruste ainda mais desafiadora, principalmente em se tratando de casos que envolvam as blockchains privadas, que contam com o “efeito da opacidade”[7] e, por isso, podem encorajar o surgimento de novas práticas anticompetitivas, além de facilitar a manutenção de práticas já conhecidas pelas autoridades.

As blockchains privadas, como visto em nosso artigo anterior, possuem peculiaridades que as tornam mais preocupantes sob a ótica concorrencial, como, por exemplo, a existência de governança própria e a possibilidade de serem modificadas a qualquer tempo, sem a necessidade de aprovação dos usuários.

As características da tecnologia blockchain, especialmente as de natureza privada, tem gerado preocupações concorrenciais também no que diz respeito às condutas unilaterais, uma vez que por meio da tecnologia é possível que elas sejam implementadas e gerem efeitos de difícil detecção.

Há mais. Em uma blockchain privada, os ganhos decorrentes do efeito de rede são tão somente atribuídos à uma plataforma, potencializando, assim, o aumento do poder de mercado e gerando a preocupação acerca do surgimento de novas condutas.

Dessa forma, é notório que as blockchains privadas podem viabilizar  a implementação de diversas condutas anticompetitivas de difícil detecção por estarem além do alcance das autoridades antitruste[8], sendo essencial haver reflexão por parte destas autoridades sobre condutas unilaterais inseridas no universo das criptomoedas e demais tecnologias baseadas na blockchain.

Por outro lado, as blockchains públicas são menos suscetíveis de serem utilizadas como meio para práticas anticompetitivas, tendo em vista que, diferentemente das privadas, podem dificultar a adoção de estratégias similares por parte dos agentes sem que haja detecção, não possuem governança própria, contam com uma maior dificuldade para modificação do seu modo de funcionamento e garantem ampla visibilidade das ações aos usuários, pois são disponibilizadas a todos, indistintamente[9].

Da análise desse aparente paradoxo traçado entre o Direito Antitruste e a tecnologia blockchain, surgem algumas inquietações: De que forma tais condutas poderiam ser evitadas pelas autoridades, de modo a proteger a concorrência? Caso sejam detectadas condutas unilaterais anticompetitivas no sistema da blockchain privada, como responsabilizar o agente, em se tratando de uma tecnologia que possui o anonimato como característica? As métricas tradicionais adotadas para proceder à análise das condutas anticompetitivas tradicionais são suficientes? E quanto aos remédios aplicados, seria o caso de adotar remédios tradicionais mesmo em operações que envolvam a tecnologia blockchain?[10]

A dificuldade de compreensão das características dessa nova tecnologia e suas implicações para a análise antitruste são frutos desse novo contexto de rápido e amplo desenvolvimentos dos serviços digitais. Desse modo, é essencial que o enforcement antitruste acompanhe o desenvolvimento tecnológico, estimule a inovação e a competitividade, mas, ao mesmo tempo, proteja os consumidores e o mercado de possíveis abusos dos players

Para isso, é fulcral que haja um amadurecimento e melhor entendimento por parte das agências sobre esta tecnologia, de modo a estreitar o diálogo entre os operadores do direito antitruste e os desenvolvedores das blockchains, para que aqueles possam compreender, a fundo, o que são as blockchains, como elas funcionam e quais tipos de condutas podem estar inseridas nesse contexto, para, só então, passarem a desenhar possíveis formas de atuação que não impeçam ou desestimulem o desenvolvimento tecnológico e a inovação.


I Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade.  Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV

iii Advogada Antitruste no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Trabalhou como assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.

iiii Advogada no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).

[1] VILANOVA, JARDIM e NAPOLI. 2022. A interface entre blockchain e Direito Antitruste. WebAdvocacy. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/polyanna-vilanova/>

[2] Schrepel, T. (2019) Collusion by Blockchain and Smart Contracts. Harvard Journal of Law and Technology (33 Harv. J.L. & Tech. 117).

[3] ​​​​ RESENDE apud SCHEREPEL, 2021. Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin>  Acesso em: 16 de fevereiro de 2022. 

[4] VILANOVA, JARDIM e NAPOLI. 2022. A interface entre blockchain e Direito Antitruste. WebAdvocacy. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/polyanna-vilanova/>

[5] Østbye. Peder. OECD Competition Division.Blockchain and competition: Peder Østbye on the use of antitrust tools to address risks of collusion. Youtube, 27 de ago. de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fXytrHCeUI0>

[6] Tulpule. Ajinkya. Blockchain and competition: Ajinkya Tulpule and how blockchain might change the way agencies work. Youtube, 4 de set. de 2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=oM-NhHb4ngA >

[7] RESENDE. Guilherme. (2021) Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin . acesso em: 16 de fevereiro de 2022. 

[8] Schrepel, T. (2019) Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox (June 11, 2018). Georgetown Law Technology Review / 3 Geo. L. Tech. Rev. 281

[9] Schrepel, T. (2019) Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox (June 11, 2018). Georgetown Law Technology Review / 3 Geo. L. Tech. Rev. 281

[10]ATHAYDE. Amanda. (2019) Blockchain, Comércio Internacional e Concorrência. Disponível em:<https://www.amandaathayde.com.br/single-post/2019/04/15/blockchain-com%C3%A9rcio-internacional-e-concorr%C3%AAncia>


[i] Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade.  Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV

[ii] Advogada Antitruste no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Trabalhou como assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.

[iii] Trainee no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).

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