Economia

“Data is the new oil”. Algumas reflexões na área da saúde

Sandro Leal Alves

A famosa cunhada pelo matemático e cientista de dados inglês Clive Humby já é de reconhecimento amplo na sociedade da informação: Dados são o novo petróleo.  A discussão das possibilidades e consequências dessa nova economia digital vai muito além do setor de saúde, foco deste artigo. Há uma crescente literatura em desenvolvimento se dedicando ao estudo do impacto dessas mudanças sobre as práticas concorrenciais e estruturas dos mercados e sobre o impacto dessas novas tecnologias sobre as decisões judiciais (Mendonça 2022)[1]

O volume de dados gerados no setor de saúde é enorme e crescente. No entanto, ainda são usados de forma pontual em decisões individuais de tratamento. Há um enorme potencial para o aumento da eficiência dos sistemas público e privado. Alguns exemplos ajudam a ilustrar a utilidade dos dados organizados, estruturados e disponíveis para o setor de saúde.

Conhecer a história clínica do paciente logo na admissão no hospital revela se ele já foi internado previamente, seus antecedentes clínicos, eventuais alergias a medicamentos. Com essas informações disponíveis, a qualidade da prática médica e a segurança aumenta, evitando efeitos adversos sobre a saúde e geram volumosos custos evitáveis ao sistema. Estima-se que ocorrem cerca de 421 milhões de internações/ano no mundo e que aproximadamente 42,7 milhões de pacientes são prejudicados por eventos adversos durante essas internações, provocados por procedimentos inadequados e/ou ineficazes de cuidados de saúde. Segundo a OCDE, 15% dos gastos em saúde são usados para cobrir todos os aspectos dos eventos adversos. São externalidades produzidas diariamente que aumentam o custo global da saúde para quem financia: governos, famílias e empresas. O uso de dados de maneira mais eficiente poderia melhorar esses indicadores gerando economias ao sistema que poderiam ser mais bem alocados em outras atividades. [2]

Evidentemente, os incentivos no setor de saúde, particularmente o moral hazard (estímulo ao uso excessivo do plano) e o sistema de pagamento fee-for-service (pagamento por procedimento realizado) ampliam o estímulo à maximização do volume e não da qualidade assistencial. O uso de dados de mundo real poderia contribuir para evitar muitos procedimentos desnecessários. Evidentemente, a parte da cadeia de valor que lucra com o modelo atual vê com certa reticência a essas inovações tendo em vista que a repetição de exames e procedimentos significa mais receita para seus negócios. Faço esse comentário pois o compartilhamento de dados na saúde deve ser pensado sob o ponto de vista da política pública da saúde para além dos interesses particulares que no setor de saúde são divergentes em grande medida.

Uma segunda possibilidade virtualmente benéfica são as negociações de preços de medicamentos inovadores baseado em valor agregado à saúde do paciente. Para tanto, é fundamental ter dados de mundo real possibilitando compartilhamento de riscos entre a indústria farmacêutica e o comprador (governo ou plano de saúde), melhorando a eficácia do tratamento e, novamente, a eficiência no uso dos recursos, preocupação central dos economistas.

Esses exemplos mostram que nem sempre o interesse individual e coletivo está bem alinhado na saúde e o desafio regulatório para coordenação é crítico. No caso da saúde suplementar, a ANS regula as operadoras, mas não os prestadores de serviços assistenciais sejam eles hospitais, laboratórios, médicos, dentistas e outros profissionais de saúde responsáveis pelas decisões de cuidado terapêutico e pela alocação dos recursos no sistema. Como conciliar interesses particulares com regulação assimétrica?

Acrescente-se a isso outras dificuldades operacionais que precisam ser endereçadas para uma melhor integração de dados. Sabemos que as bases de dados foram construídas com premissas diversas a fim de atender objetivos específicos. A disparidade geográfica e econômica no Brasil também dificulta o acesso às melhores tecnologias. Não podemos desconsiderar as dificuldades para pareamento e vinculação (identificador único) a fim de eliminar duplicidade e a proteção dos dados.

Saúde Suplementar

Em meio à pandemia, as healthtechs receberam aportes financeiros e ficaram na mira de investidores. O que se viu foi a busca acelerada das operadoras por processos tecnológicos para atender os beneficiários durante o isolamento social instalado no país como o fortalecimento de canais digitais, a telessaúde, a interação eletrônica. Essas tecnologias diminuíram distâncias, reduzindo a necessidade da presença física em hospitais ou laboratórios e consequentemente auxiliando no bem-estar dos seus clientes. Nesse sentido, reduziu o custo de oportunidade do tempo das pessoas devido a deslocamentos que passaram a ser desnecessários. Uma consulta digital economiza muito o tempo das pessoas em deslocamentos nos trânsitos das grandes cidades principalmente e amplia o acesso a pessoas que vivem em locais remotos, mas para isso é fundamental a infraestrutura tecnológica e ausência de barreiras regulatórias que produzam reservas de mercado.

Todos os participantes do sistema de saúde contribuem de certa forma para gastos desnecessários, mas em graus diferentes. Médicos podem solicitar a repetição redundante dos exames que se fossem de propriedade do paciente e estivessem disponíveis (não em papel, mas em um aplicativo), não teriam necessidade de novas solicitações. Os médicos podem escolher um procedimento de tratamento desnecessário e caro, mesmo que exista uma alternativa mais barata. Em 2019 o número de exames de ressonância magnética por pessoa com plano de saúde privado no Brasil (179 por 1 000) foi 2,3 vezes maior do que a média da população na OCDE (79 por 1 000) e consideravelmente acima da taxa da Áustria (148 por 1000), que foi a mais alta da OCDE naquele ano.[3]

Mas que tecnologias são essas que podem criar grandes benefícios sociais ao mesmo tempo em que suscitam discussões regulatórias e concorrenciais? Me refiro a tecnologias utilizadas pelos profissionais de saúde e pacientes que ajudam a melhorar a saúde das pessoas. Envolve uma ampla gama de dispositivos inteligentes e conectados, incluindo a Internet das Coisas, computação avançada, big data, inteligência artificial, incluindo machine learning, e robótica. Também incluem os registros eletrônicos de saúde, vestíveis (wearables), dentre outros.

Esse conjunto de tecnologias contribui para digitalizar a economia da saúde. De acordo com o relatório da consultoria Precedente Research,[4] o gasto global em 2021 em produtos e serviços digitais em saúde superou US$ 270 bilhões e cresce a uma taxa de 20% a.a. Os serviços vão muito além como a computação e armazenamento em nuvens, que reduzindo o custo da infraestrutura tecnologia. A saúde conectada propicia o desenvolvimento de programas de alertas terapêuticos para populações específicas como diabéticos, idosos, monitoramento em tempo real de comportamentos de indivíduos podendo estimulá-los a mudanças positivas na saúde com maior qualidade de vida e prática de exercícios. O número de healthtechs cresceu 16,11% no Brasil entre os anos de 2019 e 2022, de acordo com dados da Liga Ventures em parceria com a PwC Brasil. Provavelmente, o boom se deu por conta do avanço da telemedicina, do crescimento das clínicas médicas populares, do custo dos planos de saúde, da saturação do SUS e do interesse da população em cuidar mais de sua saúde e bem-estar físico e mental. Atualmente, estão cadastradas no site Startup Scanner 545 startups na área da saúde.[5]

Gráfico 1 – Distribuição de Startups na área da saúde (Total=545)

Fonte: startups scanner.com

Mercado Global

Artigo muito interessante de Guilherme S. Hummel[6] aponta que a “ByteDance, empresa chinesa controladora da gigantesca plataforma TikTok, adquiriu em agosto/2022 a Amcare Healthcare, uma luxuosa cadeia hospitalar que conta com 7 unidades, 2 Centros Ambulatoriais e outras 5 unidades emergenciais. Localizada em Pequim, Xangai e Shenzhen, a Amcare existe desde 2006 e foi adquirida pela ByteDance por US$ 1,5 bilhão. Trata-se de outro passo significativo da empresa (avaliada em US$ 300 bilhões) na direção da Saúde, seguindo o cortejo dos “grandes players de tecnologia” (Big Techs) na direção de aquisições dentro do mercado privado de assistência médica. O portfólio da ByteDance na saúde cobre várias áreas, incluindo consultas digitais, clínicas offline, labs de diagnósticos, tratamentos hospitalares, bem como pesquisa e desenvolvimento de medicamentos”. O autor ainda esclarece que as “Big Techs são movidas pelo “futuro”. … Só o mercado de saúde dos EUA supera gastos de US$ 4 trilhões anuais(…) Se Amazon, Apple ou Google abocanharem 2% desse gasto, cada uma adicionaria US$ 80 bilhões de receita anual (…) O que as big techs ocidentais ou orientais trazem a mesa? Possivelmente alguns itens que o mercado de saúde tradicional só enxerga por luneta: (1) uma colossal base de consumidores, dados e análises, com know-how para entender a colossal escala de demanda deles (elas já fazem isso em outros setores); (2) são campeões de “experiência do usuário”, um elemento crítico na adoção de tecnologias digitais, (3) são versados e hábeis em tecnologias complementares, como wearables, que estão impulsionando rapidamente a consumerização da saúde; (4) possuem enorme expertise nas cadeias de suprimentos (delivery), constantemente otimizadas por novas ferramentas interoperáveis (blockchain); (5) como “moram” no futuro, não têm medo de errar no presente, não se intimidam com os “experimentos equivocados”; e o mais importante: (6) todas suas estratégias gravitam em torno do consumidor e não do influenciador (comunidade médica) ou do financiador (seguradoras)”.

A partir dessa visão do autor, pode-se ter uma ideia de como a economia digital na saúde trará uma nova configuração impondo desafios adicionais para as autoridades antitruste para a caracterização do mercado relevante nas dimensões tradicionais de produto e geográfica. Mais do que a configuração da estrutura industrial, atenção especial deve ser dada às práticas para se evitar problemas de discriminação tendo em vista que os dados da saúde são sensíveis e devem estar sob o escrutínio das autoridades públicas como a ANPD e ANS para garantir a sua privacidade sem desestimular a inovação.

Dados Abertos

Em abril de 2019, o Banco Central anunciou as diretrizes para implementação do Open Banking no Brasil. As medidas seguem a LGPD, que entrou em vigor em agosto de 2020. A premissa básica é que os dados bancários pertencem ao indivíduo e não à instituição financeira da qual ele é cliente, podendo, portanto, ser compartilhados com outras empresas, desde que com autorização do titular dos dados. As instituições participantes do Open Banking deverão compartilhar informações sobre diferentes produtos e serviços financeiros disponibilizados em sua rede, entre os relacionados a seguros, previdência aberta complementar e títulos de capitalização. Com o intuito de ampliar a disponibilidade de informações sobre produtos de seguros, previdência e capitalização em um sistema aberto foram publicadas em 20 de julho de 2021 a Resolução CNSP 415 de 2021 e a Circular Susep 635 de 2021, que dispõem e regulamentam o Sistema de Seguros Aberto (Open Insurance) no Brasil.

Em 19.1.22, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em entrevista ao jornal Valor Econômico, afirmou que pretende criar o open health, compartilhamento de dados de beneficiários entre as empresas de planos de saúde, com o objetivo de “ampliar a concorrência no setor de saúde suplementar”.[7] Segundo o ministro da Saúde, a proposta é de que o sistema seja autorizado por meio de Medida Provisória (MP). A ideia é seguir um modelo semelhante ao do Open Banking, implementado pelo Banco Central em 2021. A proposta foi elaborada a partir da    Portaria GM/MS nº 392, de 23 de fevereiro de 2022 que criou um Grupo de Trabalho (GT) coordenado pelo Ministério da Saúde e com a participação do Ministério da Economia, BACEN e ANS. O Relatório Final para o Aprimoramento do Setor de Saúde Suplementar divide o tema em dois pilares sendo o primeiro assistencial, via aprimoramento das informações disponibilizadas na Rede Nacional de Dados em Saúde e disseminadas pelo Conecte SUS, dentro dos preceitos da LGPD, e o segundo pilar financeiro, com o objetivo de estimular a concorrência entre operadoras de planos de saúde e diminuir o custo de transação, através de propostas que possibilitem que o beneficiário encontre um plano de saúde adequado a suas necessidades.

O GT definiu como escopo do plano de ação o compartilhamento de dados cadastrais de consumidores de planos de saúde, mediante consentimento e de forma segura, e de dados de operadoras de planos de saúde com registro ativo na ANS, e dos produtos por elas ofertados, com a finalidade de simplificar e facilitar a contratação de planos de saúde e aprimorar a portabilidade de carências na troca de plano. Com isso, objetiva estimular a inovação e a concorrência no setor, criando condições para melhorias na qualidade dos seus respectivos produtos e serviços, em benefício da sociedade. Deixa claro que a proposta estará em consonância com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o marco regulatório do setor (Lei 9.656/98), em especial no que diz respeito ao impedimento de acesso de tais dados por operadoras, de forma a proteger os cidadãos de práticas nocivas que levem à discriminação seja no acesso a planos de saúde, seja no ambiente de trabalho.  Há preocupação com a possibilidade de seleção de risco no qual as operadoras podem utilizar informações pessoais (saúde) para fazer discriminar e escolher a clientela (cream skimming), o que contraria a Lei 9.656/98 (Art. 14) e a LGPD (Art. 11).

No Brasil, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) é uma iniciativa do Departamento de Informática do SUS (DATASUS), da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, e teve como base importantes diretrizes: a Política Nacional de Informática e Informações em Saúde (PNIIS, 2021), a Estratégia da e-Saúde (CIT,2017), o Plano de Ação, Monitoramento e Avaliação de Saúde Digital  para o Brasil (PAM&A,2019) e a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 (ESD28).  Em maio de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 3.814/2020, que obriga o SUS a criar uma plataforma digital para unificar as informações de pacientes da rede pública e privada e que possibilitará a formação da RNDS. Pelo PL, a plataforma digital deverá centralizar nacionalmente os dados sobre prescrições, procedimentos ambulatoriais e hospitalares, encaminhamentos, prontuários médicos, laudos de exames e dados demográficos. O paciente deverá autorizar a inserção dos seus dados na plataforma, que continuarão protegidos por sigilo e serão acessíveis pelo próprio paciente ou por profissionais de saúde diretamente envolvidos em seu atendimento. Atualmente, o PL tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. Até 2028, a RNDS será a plataforma digital de inovação, informação e serviços de saúde para todo o Brasil, em benefício de usuários, cidadãos, pacientes, comunidades, gestores, profissionais e organizações de saúde. Na saúde suplementar esses dados serão extraídos da TISS, troca de informações entre operadoras e prestadores, que as operadoras encaminham regularmente para a ANS.

Diversos países estão avançando na estratégia de compartilhamento de dados de saúde, entre os prestadores assistenciais, alavancando grandes investimentos e healthtechs. Em todos há legislação específica, recomendada pela OECD, que permitem uso de dados secundários para pesquisa com privacidade garantida. [8] Nos EUA a legislação (21st Century Cures Act) foi publicada em 2016 para incentivar o desenvolvimento, descoberta e entrega de produtos para levar inovações e avanços para os pacientes. A Lei regulamentou o uso de dados para experimentos como clinical trial, dados de mundo real e resultados clínicos. Também projetou o programa de registro eletrônico de dados para pagadores (planos), prestadores (hospitais, médicos), dentre outros, e estabelece inclusive a criação de redes de compartilhamento de dados. A lei também estipulou um cronograma para que os dados reportados sejam eletrônicos (até 2023) dentro do Padrão estabelecido (United States Core Data for Interoperability standard). No mercado americano há empresas que certificam o compliance das empresas sujeitas à regulação (Health IT Certification Program). Até o API deve ser padronizado – standardized application programming interfaces (APIs). A legislação impõe penalidades para aqueles players que obstruírem a troca eletrônica de informações – Electronic Protected Health Information (ePHI).

Segundo pesquisa da OCDE, a disponibilidade, a maturidade e o uso do conjunto de dados são calculados por parâmetros que medem o grau de desenvolvimento de cada país nesses aspectos. O Brasil relatou desempenho muito bom em alguns desses parâmetros, como a porcentagem de conjuntos de dados disponíveis que compartilham o mesmo identificador único do paciente; e conjuntos de dados de saúde onde os códigos padrão são usados para terminologia clínica. Para outros parâmetros, o desempenho do Brasil é próximo à média dos membros da OCDE, como porcentagem de conjuntos de dados de saúde nacionais importantes disponíveis; conjuntos de dados de saúde com cobertura de 80% ou mais da população; conjuntos de dados de saúde onde os dados são extraídos automaticamente de registros clínicos ou administrativos eletrônicos; conjuntos de dados usados para informar regularmente a qualidade da saúde ou o desempenho de seu sistema; e conjuntos de dados vinculados regularmente para pesquisa, estatísticas e/ou monitoramento.

Gráfico 2 – Distribuição do desempenho geral dos países no desenvolvimento, na maturidade e no uso dos dados de saúde e na governança dos conjuntos de dados de saúde

Aspectos Econômicos da Privacidade de Dados

Sob o ponto de vista econômico, a privacidade não é o oposto ao compartilhamento. Na verdade, ela significa o controle individual sobre o compartilhamento.[9] A maioria dos modelos econômicos teóricos tratam a privacidade como um bem intermediário. Do ponto de vista individual, a escolha envolve alguma avaliação de custos e benefícios de manter o dado sob seu controle ou compartilhá-lo. Dependerá de como antecipar o efeito desses dados sobre os resultados econômicos futuros. Se, por exemplo, os dados levam uma empresa a cobrar preços mais altos com base no comportamento que observar nos dados, o consumidor pode desejar a privacidade. Se a empresa poderá se intrometer em seu tempo (enviando ofertas, ligações), então, novamente, o consumidor pode desejar privacidade. Por outro lado, se o compartilhamento do dado permite produtos mais adequados ao seu perfil bem como programas de saúde focalizados em suas necessidades, ele pode preferir compartilhar o dado. Raciocínio análogo é feito por empresas, de todos os segmentos. Ocorre que nem sempre a sociedade convergirá para resultados mais eficientes que maximizem o bem-estar social. Nestes casos, alguma regulação poderá estimular ou mimetizar o resultado ótimo.

Em primeiro lugar, grande parte do debate envolve se os consumidores são ou não capazes de fazerem a escolha certa em torno da decisão de fornecer dados, e se o “aviso e consentimento” fornecem informações suficientes aos consumidores para que façam a escolha certa. Trabalhos como McDonald e Cranor (2008) enfatizam que até dez anos atrás era irrealista pensar que os consumidores teriam tempo para se informar adequadamente sobre como seus dados podem ser usados, pois a leitura das políticas de privacidade levaria um tempo estimado 244 horas por ano.

Da mesma forma, mesmo que se suponha que os clientes tenham sido adequadamente informados, uma nova literatura “comportamental” sobre privacidade mostra que efeitos da economia comportamental, como o efeito de dotação ou “ancoragem”, também podem distorcer as formas como os clientes tomam decisões em torno de seus dados. Tais distorções podem permitir intervenções políticas do tipo “nudge” para permitir que os consumidores façam melhor decisões (Acquisti, Taylor e Wagman 2016). As empresas têm incentivos adequados para fornecer níveis adequados de privacidade? Qual é o trade-off entre privacidade e desempenho econômico? É amplamente reconhecido que os regulamentos de privacidade podem limitar a capacidade dos fornecedores de machine learging de combinar dados de várias fontes e limitar o uso da Inteligência Artificial.

Políticas restritivas podem gerar efeitos não intencionais. Um exemplo é o Health Insurance Portability and Accountability Act de 1996, comumente conhecido como HIPAA. A intenção original da legislação era estimular a competição entre as seguradoras, estabelecendo padrões para manutenção de registros médicos. No entanto, muitos pesquisadores argumentam que isso teve um impacto negativo significativo na quantidade e na qualidade da pesquisa médica. Qual seria a política ótima para garantir privacidade e inovação?

O fundador da computação, Jeff Hawkins, argumenta que a inteligência humana é, em essência, a previsão (Hawkins 2004). No entanto, muitos neurocientistas, psicólogos, e outros discordam. As tecnologias de inteligência artificial são tecnologias de previsão essencialmente. Para entender o impacto dessas tecnologias, é importante avaliar o impacto da previsão nas decisões. [10] Mas até que ponto devemos confiar nossas decisões aos modelos matemáticos? Esse é um alerta que deve ser lido não como um freio ao desenvolvimento das novas tecnologias. Do ponto de vista das ciências da saúde, tornar a incerteza associada a tratamentos em riscos calculáveis é bem-vinda e reduz o risco de má prática e erros médicos. Isso vale para a gestão de organizações de saúde.

Conclusão

A afirmação de que os dados são o novo petróleo tem fundamento no sentido de que ambos são geradores de valor para a sociedade. Ambos precisam ser refinados para serem úteis. Mas uma distinção importante, do ponto de vista econômico, é que o petróleo é um bem privado e o seu consumo é rival, no sentido de que o consumo de petróleo por uma pessoa torna-o indisponível para o consumo das demais pessoas. É cada vez mais barato armazenar informações o que significa que o dado pode permanecer muito tempo disponível após a sua geração mesmo que de forma não intencional. O dado pode ser reaproveitado para uso diverso do qual foi originalmente produzido, gerando externalidades negativas para outros indivíduos.

Isso significa que a regulação do mercado de dados deve levar esses aspectos em consideração ao mesmo tempo em que deve garantir o devido estímulo à inovação.[11] Ao avançar nessa discussão, aspectos como a propriedade dos dados, dados abertos, colusão algorítmica surgem como aspectos importantes para os policy makers. O desenho dos incentivos para proporcionar o nível ótimo de compartilhamento de dados deve ser alinhado aos aspectos mais amplos do interesse da sociedade.

No caso do Open Health, a discussão está começando pelos dados pessoais dos beneficiários, de enorme sensibilidade e deve avançar considerando a inexistência de padronização de dados de saúde sobre a experiência do usuário, de resultados clínicos que permitam acessar a qualidade assistencial.  Mas o desafio vai muito além e precisa levar em consideração a necessidade urgente de inclusão digital dos brasileiros.

Qualquer avanço das políticas públicas precisa levar em conta a desigualdade digital no país como mostra o estudo PWC/Instituto Locomotiva do Abismo Digital no Brasil.[12] No Brasil, “81% da população com 10 anos ou mais usam a internet, mas somente 20% têm acesso de qualidade à rede. Há diferenças marcantes no acesso à internet entre os extremos das classes de renda (100% na classe A, em comparação com 64% na DE)”. O Brasil ocupa a 80ª posição, entre 120 países, no ranking de alfabetização digital do índice “The Inclusive Internet 2021”, publicado pela revista britânica The Economist. O indicador mede o nível de competência para uso da internet, como a capacidade de leitura para acessar notícias na Web. Isso torna ainda mais crítico um dos principais desafios do nosso tempo que é eliminar o gap de habilidades que as pessoas têm no mundo digital


[1] Mendonça, R. (2022) A robotização do Poder Judiciário brasileiro (Justiça 4.0) e o par eficiência e celeridade: o Juiz de Lata e os perigos da algoritmização da função de julgar. (colunas webadvocacy/out de 2022) e Mendonça, R. (2022) Os algoritmos e a discriminação de preços: qual é o papel do direito antitruste na sociedade do capitalismo de vigilância? (colunas webadvocacy/jan de 2022).

[2] https://medicinasa.com.br/seguranca-do-paciente-confira-10-fatos-importantes-segundo-a-oms/

[3] Estudos da OCDE sobre os Sistemas de Saúde: Brasil 2021.

[4] Improving Health Care throught pro-competitive procurement policy. Digital Health Care market stydy Part 2. Competition Bureau Canada.

[5] https://startupscanner.com/mapas/health-techs-b788761a. Trata-se de ferramenta da Liga Ventures com o apoio estratégico da PwC Brasil. Consulta realizada em 9/10/22.

[6] TikTok compra rede hospitalar chinesa. Big Techs inovarão a saúde? Saude Business (7/10/2022).

[7] Governo estuda MP para criar o ‘Open Health’ – Valor Econômico de 19/01/2022

[8] OECD Health Policy Studies – Health in the 21st Century Putting Data To Work For Stronger Health Systems.

[9] Alessandro Acquisti, Curtis Taylor, and Liad Wagman The Economics of Privacy Journal of Economic Literature 2016, 54(2), 442–492

[10] Bickley,S., Chan H,Torgler, B. Artificial intelligence in the field of economics. Scientometrics (2022) 127:2055–2084

[11] Varian, H. (2019). Artificial Intelligence, Economics, and Industrial Organization. NBER. http://www.nber.org/chapters/c14017

[12] https://www.pwc.com.br/pt/estudos/preocupacoes-ceos/mais-temas/2022/o-abismo-digital-no-brasil.html