O sucesso dos Programas de Revitalização do Setor de Petróleo e Gás Natural deve ser um exemplo para os outros setores de energia

Daniela Santos

No final de 2020, fui convidada para participar do REATE 2020, que é o Programa de Revitalização da Atividade de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural (E&P) em Áreas Terrestres. O Programa, segundo o Ministério de Minas e Energia – MME, “é uma Política Nacional de fomento a atividade de exploração e produção de petróleo e gás natural em áreas terrestres no Brasil, de modo a propiciar o desenvolvimento regional e estimular a competitividade nacional.”

Mas não foi o primeiro REATE. No ano de 2018, o Programa já tinha contribuído para o encaminhamento de assuntos importantes para a E&P terrestre nacional, tais como: (i)  implementação do sistema de Oferta Permanente de blocos exploratórios e campos marginais pela ANP; (ii) adequação dos percentuais de royalties de novos contratos aos ambientes de elevado risco exploratório e baixo potencial petrolífero, relativos às bacias maduras e de novas fronteiras; (iii) simplificação de exigências contratuais para jazidas de baixa materialidade, relativos à medição por exemplo e (iv) criação de coordenação de E&P terrestre na ANP para facilitar a comunicação e solução de problemas relativos à regulação. 

Na sua página oficial, o Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP afirma que “além dos progressos acima destacados cabe mencionar as iniciativas da ANP para a retomada dos investimentos em E&P em áreas terrestres, e ainda em campos maduros em águas rasas. Tem-se ainda os projetos de desinvestimento de campos maduros da Petrobras, denominados por Ártico e Topázio, que podem, com sua conclusão, aumentar o número de operadores em terra”.

Ou seja, já em 2018 era inequívoca a contribuição do REATE para o debate de questões complexas e, muitas vezes com variações regionais, como é o caso da E&P em áreas terrestres.  Mas somente com o Programa em 2020 foi possível compreender a grande contribuição do modelo para a transparência, agilidade, aprimoramento, concorrência e competitividade, sinergia e atração de novos agentes para os setores que se pretende desenvolver.

O modelo do Programa é um acontecimento na direção da modernização da comunicação entre administradores e administrados. Porque ao invés de afastar, une. Ao invés de criar obstáculos, resolve. É uma forma de equacionar problemas e obstáculos juntando empresas concessionárias, fornecedoras, diversas autoridades envolvidas, sociedade e academia.

O entusiasmo não é só meu. Todos que acompanham a ferramenta têm expressado contentamento com o modelo e com o seu potencial. Quanto mais agentes atuantes, maiores as chances de resolver os assuntos mais complexos de forma adequada e equilibrada.

Neste ponto, importante não perder de vista que a regulação restringe a livre iniciativa. Ou seja, ela rompe com a regra, mas por uma causa legítima: garantir o afastamento de distorções que resultariam de um mercado totalmente livre. Nesta medida, o modelo do REATE é, fundamentalmente, uma forma legítima e eficaz de redução de riscos de abuso ou de desconformidades que, no final das contas, afetam negativamente os consumidores e usuários finais da atividade.

Ousaria dizer que o modelo do REATE, conjugado com outras ferramentas que deverão ser mais (e melhor) utilizadas pelo regulador após a edição da Lei das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/19) – tais como  publicação de Agendas Regulatórias (mecanismo de planejamento e compromisso regulatório perante os agentes regulados); a Análise de Impacto Regulatório – AIR (mecanismo ex ante de controle dos atos regulatórios) e Avaliação do Resultado Regulatório – ARR (mecanismo ex post de controle dos atos regulatórios) – poderá revolucionar a atual forma de gestão, aperfeiçoando políticas e regulações setoriais.

Se compararmos o formato do REATE com as audiências públicas realizadas pelas agências, mesmo se considerarmos as diferenças operacionais, temos ganhos expressivos no modelo do REATE, tanto na qualidade das interações e agilidade das respostas, quanto no aprimoramento das diretrizes energéticas e regulatórias, e, fundamentalmente, do debate.

E com isso não se defende a extinção das audiências e a sua substituição pelo modelo do REATE. Até porque, tal modelo não se presta a cuidar de todos os assuntos. Tampouco minha intenção é criticar as agências, que atuam de acordo com as normas aplicáveis. O que se propõe é repensar a forma com que as audiências hoje são conduzidas, com base no sucesso da experiência.

A real transparência – ou seja, a circunstância de ser límpido, cristalino, visível, compreensível – das decisões da Administração Pública decorre fundamentalmente do amplo debate. Ademais, não há controle e participação eficientes sem debate. Em alguma medida, as conhecidas consulta e audiência públicas podem ajudar, mas não são mais tão eficazes como deveriam.

Na mesa REATE, realizada no final de 2020 em Mossoró/RS, todos os agentes se sentaram na mesma mesa e foram escutados, houve (importantes) confrontos de interesses. A Empresa de Pesquisa Energética – EPE apresentou pertinentes resultados das suas pesquisas, o que ajudou no embasamento das discussões, assim como a Organização Nacional da Indústria do Petróleo — ONIP trouxe importantes esclarecimentos, especialmente para as universidades. O MME, de forma impecável, liderou os encaminhamentos e esclarecimentos necessários, registrando os próximos passos que deveriam ser tomados.

O trabalho realizado pela ANP durante e depois da MESA REATE 2020, merece destaque. Os competentes representantes da ANP fizeram os esclarecimentos pertinentes, ofereceram soluções imediatas e se comprometeram com uma série de pontos levantados pelos agentes, Estado, associações e academia, para o desenvolvimento do setor. Finalizado o evento, a ação do regulador tornou-se central para os avanços discutidos no REATE: deste importantes progressos para assegurar o acesso à UPGN, até a recente liberação de acesso gratuito aos dados terrestres[1].  

Obviamente, o mecanismo pode e deve ser aperfeiçoado, especialmente na definição da sua periodicidade, na garantia de aumento da participação de diferentes agentes representados pelas suas respectivas associações ou sindicatos e na ampla divulgação de todas as propostas apresentadas pelos interessados, não apenas daqueles temas que foram tratados durante as discussões, entre outros. A princípio, não vejo necessidade de criar procedimentos que engessem o Programa. O importante é que tudo seja acessível e de fácil compreensão para todos.

Assim, diante de tantos benefícios, por que não replicar o modelo ou adaptá-lo para outras áreas como de abastecimento de combustíveis, refino, biocombustíveis, e – por que não – para o setor elétrico?

Por exemplo, trago um tema muito discutido pelo setor de energia elétrica nos últimos anos, que logo de pronto chama atenção pela eventual adequação ao modelo REATE: a geração distribuída de energia elétrica (GD). Como se sabe, segundo a Resolução  ANEEL nº 482/2012, o consumidor brasileiro pode gerar sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis ou cogeração qualificada e, inclusive, fornecer o excedente para a rede de distribuição de sua localidade. A GD é capaz de diversificar a matriz energética e criar o produtor/consumidor de energia elétrica, garantindo mais econômica e segurança, com menos impacto ambiental, entre outros benefícios. É um caminho sem volta rumo ao desenvolvimento.

Neste artigo não tenho a pretensão de detalhar as atuais discussões sobre o assunto (tanto no âmbito regulatório – com a revisão da Resolução ANEEL nº 482/12 – quanto no Projeto de Lei nº 5.829/19), mas não há dúvidas que rever as diretrizes do GD em um modelo semelhante ao REATE, contando com o debate amplo e concomitante entre os interessados, associações, TCU, CADE, ANEEL, sob a liderança do MME, poderia servir para evitar a tomada de decisões equivocadas, que, obviamente, atrasam e impactam negativamente o avanço da GD.     

Parte do setor já entendeu o recado. Tanto é assim que, recentemente, o modelo REATE foi replicado para o Programa de Revitalização da Atividade de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural – PROMAR. Esperamos que outros mercados, inclusive o elétrico, percebam as vantagens e utilizem o modelo para a tomada de decisões. Para o bem das políticas públicas, da regulação, da concorrência e, sobretudo, em benefício dos usuários e consumidores finais de energia!     

Novamente: espero contribuir para o debate e aperfeiçoamento do setor!


[1] Neste sentido, ver Ofícios ANP nº 70/2021 e 491/2021.

Devido processo, contraditório e Administração pública

“Inimiga jurada do arbítrio, a forma é a irmã gêmea da liberdade”.

Rudolf von Jhering*

INTRODUÇÃO

Todo estudante de Direito sabe que qualquer decisão da Administração pública deve ser fundamentada e, antes e depois dela, deve ser oferecida oportunidade de manifestação a todos os interessados, em atenção aos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa.

Eventuais necessidades de maior prazo para análise de procedimentos e processos administrativos, em razão, por exemplo, de reorganização ou reestruturação internas, não podem ser motivo excludente da obrigação da Administração de garantir o respeito aos cânones do direito processual e do próprio Regime Jurídico Administrativo.

Dito de outra forma, constatada a inércia da Administração pública e a sua incapacidade de garantir o devido processo legal e o contraditório, ou seja, receber, analisar e decidir sobre todas as manifestações dos interessados, deve ela manter a situação em seu patamar de normalidade (status quo ante), até que seja dada a devida oportunidade, consideração e resposta às manifestações de interessados.

Afinal, a sociedade não poder ficar refém de eventual incapacidade, desorganização interna e demora na prestação do serviço público e no cumprimento das obrigações da Administração pública e seus agentes.

A demora da Administração, ainda que causada por dificuldades de reestruturação institucional ou quaisquer outras, não pode jamais ser utilizada como justificativa para a inadequada prestação do serviço público ou o atropelo aos princípios do due process e do contraditório. Além desses já citados, também devem ser considerados princípios como o da continuidade do serviço público e o da eficiência administrativa, para citar alguns.

Pouco importa, para fins de garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, se a Administração pública está assoberbada com mudanças estruturais, novos procedimentos, ou o que quer que seja. Os processos em tramitação não podem parar, e os direitos de todos os administrados não podem deixar de ser respeitados e rigorosamente garantidos.

É razoável trazer à baila, também, o princípio da proibição de comportamento contraditório[1], que prevê que as partes se comportem de forma leal nas suas relações; bem como a vedação de alegação da própria torpeza[2], segundo o qual, ninguém deve ser ouvido ao alegar a própria torpeza, inclusive o próprio Estado e seus agentes.

A Administração pública não pode alegar a própria incapacidade como justificativa para o desrespeito a consagrados princípios processuais e administrativos, como os já citados.

Independentemente da implementação de alterações institucionais ou estruturais, ou de um novo rito administrativo processual, ou de qualquer contratempo, os direitos dos administrados não podem deixar de ser rigorosamente observados. Não é porque a burocracia não andou bem, que o devido processo ou o contraditório também deverão tropeçar.

Além da ofensa aos princípios elencados acima, ao negar devida oportunidade de manifestação aos interessados, a Administração também estaria afrontando as mais triviais práticas de boa governança pública. 

Um comportamento hermético e dissimulado da Administração pública fere a moralidade administrativa, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé[3], conforme se verá abaixo. Faz pouco caso, também, do princípio da publicidade, que inclui a transparência na Administração Pública.

Não é outra a mens legis do art. 29 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), que prevê que:

Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão”.

Nesse mesmo sentido, como não poderia deixar de ser, também vai o art. 30 do mesmo diploma:

Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.

Decisões administrativas podem envolver variadas políticas públicas, que afetam inúmeros agentes econômicos e setores produtivos, até o consumidor final. A todos esses interessados, efetivos ou potenciais, deve ser dada a oportunidade de manifestação sobre determinado ato administrativo. Além disso, que seus comentários e informações sejam devidamente analisados e respondidos, pois, para isso, há o processo administrativo.

DO DIREITO

O art. 5º, LV, da Constituição Federal prescreve que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O parágrafo único, do art. 2o, da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99), prevê que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios da atuação conforme a lei e o Direito; da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; e da observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados.

O art. 3o, do mesmo diploma, estipula ainda que:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;”.

O art. 29 da Lei 9.784/99, esclarece que as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão “realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias”.

Além disso, de acordo com o art. 38 daquela lei:

O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.

§ 1o Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão.

§ 2o Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.

DA DOUTRINA

Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, o contraditório pressupõe “informação necessária e reação possível[4] por parte do administrado, em razão de fatos, argumentos e documentos que possam lhe afetar negativamente. Isto é, a oportunidade de efetiva participação na produção do conjunto probatório e de apresentação de argumentos perante o processo e a autoridade com poderes de decisão.

Em outras palavras, cabe à Administração pública garantir a efetividade da participação dos interessados no processo, dando-lhes ensejo para a apresentação de argumentos e provas, bem como analisando e se manifestando a respeito deles, e, portanto, cumprindo com os deveres de boa-fé e motivação.

A ampla defesa, da mesma forma, implica na oportunidade de resistência às pretensões adversárias, na possibilidade de apresentação de defesa prévia e técnica, de interposição de recursos, de intimação, de produção e contestação de provas e de alegações finais.

Para uns dos luminares do Direito Administrativo brasileiro, o Visconde do Uruguai[5]: “a jurisdição administrativa sem garantias, sem forma conveniente de processo, é arbítrio puro e simples da Administração[6].

O renomado processualista italiano Elio Fazzarali, ensinava que: “o processo é modulo de participação e síntese de vontades contrapostas, predestinado à produção do ato final[7].

Para Scarpinella Bueno[8], além de todos os benefícios democráticos gerados pelo respeito ao contraditório, ele também viabiliza a boa e adequada prestação jurisdicional, pois “a ampla discussão quanto à produção do ato administrativo, em sede não judicial, pode facilitar e viabilizar o controle judicial”.

Quanto ao due process of law, Bandeira de Mello[9], escreve que:

Deveras, o propósito nele consubstanciado é o de oferecer a todos os integrantes da sociedade a segurança de que não serão amesquinhados pelos detentores do Poder, nem surpreendidos com medidas e providências interferentes com a liberdade e a propriedade sem cautelas preestabelecidas para defendê-las eficazmente. (Grifos)

(…)

Tal enquadramento da conduta estatal em pautas balizadoras (…) concerne tanto a aspectos materiais, quanto a aspectos formais, ou seja, relativos ao preestabelecimento dos meios eleitos como vias idôneas a serem percorridas para que, por meio delas, e somente assim, possa o Poder Público exprimir suas decisões”.

Para a ministra Cármen Lúcia[10]:

As formas desempenham um papel essencial na convivência civilizada dos homens: elas delimitam espaços de ação e modos de inteligíveis de comportamento para que a surpresa permanente não seja um elemento de tensão constante (…). Fora daí, não há solução para a barbárie e para descrença no Estado. Sem confiança nas instituições jurídicas, não há base para a garantia nas instituições políticas

Carvalho Filho[11] ensina que: “Embora se costume invocá-lo (o devido processo legal) nos processos litigiosos, (…) a verdade é que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não-litigiosos (…)”.

Frederico Marques[12] lembrava que:

Se o poder administrativo, no exercício de suas atividades, vai criar limitações patrimoniais imediatas ao administrado, inadmissível seria se assim atuasse fora das fronteiras do due process of law. Se o contrário fosse permitido, ter-se-ia de concluir que será lícito atingir alguém em sua fazenda ou bens, sem o devido processo legal. (…) Isto posto, evidente se torna que a Administração Pública, ainda que exercendo seus poderes de autotutela, não tem o direito de impor aos administrados gravames e sanções que atinjam, direta ou indiretamente, seu patrimônio, sem ouvi-los adequadamente, preservando-lhes o direito de defesa”.

Nos dias atuais, há multiplicidade de interesses, diversidade de pontos de vista, inúmeras controvérsias a respeito de direitos, no âmbito da atuação administrativa[13]. Assim, “o litígio surge em razão de uma controvérsia, em razão de um conflito de interesses. (…) Haverá litigantes sempre que houver um conflito de interesses, sempre que houver uma controvérsia[14].

Para Nery Jr.[15]:

“Em razão da incidência da garantia constitucional do contraditório, é defeso ao julgador encurtar, diminuir (“verkürzf”) o direito de o litigante exteriorizar a sua manifestação nos autos do processo. Em outras palavras, não se pode economizar, minimizar a participação do litigante no processo, porque isso contraria o comando da norma”.

Importante lembrar, também, do princípio constitucional da moralidade, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé, segundo os quais:

A administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lisura, sendo-lhe proibido qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos[16].

A verdade é que falta prestígio ao processo administrativo em nosso país. O desprestígio vem especialmente da própria Administração pública, mais interessada em atingir as suas metas e compromissos, do que em cumprir todos os requisitos do processo e, assim, garantir cabalmente os direitos dos administrados.

Aliás, consoante o princípio da verdade material, a Administração pública deve tomar decisões com base nos fatos, tais como se apresentam na realidade, não se satisfazendo com a versão oferecida por um ou outro interessado.

Para tanto, tem ela o dever-poder de trazer aos autos todos os dados, informações e documentos a respeito da matéria tratada, sem estar restrita aos aspectos considerados pelos interessados.  Assim, a Administração tem, não só liberdade plena, como o dever de buscar a produção de informações, dados, documentos e evidências.

O Poder Executivo também tem o dever-poder de apurar e investigar. Tal “dever-poder” de averiguar todos os fatos que possam configurar hipótese prevista na legislação, decorre do princípio da supremacia do interesse público e do princípio da legalidade.

DA JURISPRUDÊNCIA

Além de jurisprudência reiterada e pacífica em todos os tribunais pátrios, e. Superior Tribunal de Justiça STJ, no Incidente de Assunção de Competência no Recurso Especial (IAC no REsp) nº 1604412-SC (2016/0125154-1), definiu que “o contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”.

Não menos submetido ao comando constitucional do contraditório está, por intuitivo, o Poder Executivo, pois, como visto, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo (…) são assegurados o contraditório e ampla defesa (…)[17]”.

CONCLUSÃO

Seria compreensível, ainda que lamentável, da parte de integrantes do Poder Executivo, de atuação burocrática e limitados conhecimentos jurídicos, a falta de compreensão do significado e importância de princípios como o do contraditório e do devido processo para a própria sustentação do Estado de direito.

Neste contexto, sobrevém a importância do Poder Judiciário, como última instância do cidadão para a garantia de seus direitos, inclusive contra o próprio Estado-Administração. Quem, senão o Judiciário, para orientar a correta atuação do Poder Executivo? Afinal, trata-se do relacionamento do Estado, por meio do Poder Executivo, com os seus súditos. Ou seja, da relação jurídica entre a Administração e o administrado.

A estatura desse relacionamento e o respeito integral às garantias constitucionais somente poderão ser demarcados pela atuação firme e fiel do Poder Judiciário.

Qualquer espécie de postergação, diminuição ou enfraquecimento desses princípios afronta os direitos de qualquer cidadão ou agente econômico e, portanto, também de todo o conjunto da sociedade.

A história nos revela que o desmoronamento do Estado de direito se inicia, exatamente, pelo desdém a pequenos, porém significativos direitos dos cidadãos e, frente à apatia da sociedade, o pouco-caso se transforma em desprezo.

Não há como relativizar o devido processo e o contraditório. Ou eles existem ou não existem. Ou bem são garantidos, ou não.

Seria o mesmo que dizer ao condenado à pena de reclusão em ação criminal, que seu recurso será analisado, mas somente depois que a vara se organizar em razão de mudanças na estrutura de pessoal e de fluxo de trabalho.

A cada dia que passa, a ineficiência e a negligência do Poder Executivo impõem prejuízos aos administrados e, em última instância, a toda a sociedade.

O verbete “postergar”, de acordo com o dicionário da Língua Portuguesa, admite dois significados, conforme abaixo:

  1. preterir, desprezar.
  2. não fazer caso, menosprezar.

Nesse sentido, quando há flagrante leniência da Administração com a postergação, com a preterição e o pouco caso, resta também patente o desprezo ao devido processo e ao contraditório.

Em se tratando de postulados tão elevados e indispensáveis do direito processual e administrativo, não se pode admitir qualquer espécie de diminuição ou menosprezo, ainda que de forma temporária, tanto mais da Administração pública.


[1] Venire contra factum proprium.

[2] Nemo auditur turpitudinem allegans.

[3] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004.

[4] DINAMARCO. C. R. Fundamentos do processo civil moderno. 6 ed., 2010, São Paulo, Malheiros.

[5] Paulino José Soares de Sousa foi juiz, desembargador, deputado, senador, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, presidente de Província e ministro do STF.

[6] CARVALHO, J. M. de. (org.) Visconde do Uruguai. Coleção Formadores do Brasil, Ed. 34, São Paulo, 2002.

[7] FAZZARALI, E. Instituições de Direito Processual. 1ª ed., Bookseller, São Paulo, 2006.

[8] BUENO, C. S. Manual de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2020.

[9] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 108.

[10] ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro. In Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, n. 3

6, out./dez., 1997, ps. 5 a 28.

[11] CARVALHO FILHO. J. dos S. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed., Atlas, São Paulo, 2020.

[12] MARQUES, J. F. A garantia do due process of law no Direito Tributário, RDP 5/28 apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.

[13] MEDAUAR, O. Direito Administrativo Moderno. 20ª ed., 2016, São Paulo, RT.

[14] GRINOVER, A. P. Garantias do contraditório e ampla defesa. Jornal do Advogado, Seção de São Paulo, n. 175, nov. 1990, p. 9. Apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.

[15] SACHS-DEGENHART, KommGG, comment. II, 3, GG 103, p. 2.20, 4a ed., München: Beck, 2007. Apud NERY. N. J. et all. Constituição Federal Comentada. 7ª ed., 2019, São Paulo, RT, p. 183.

[16] DE MELLO, C. A. B. Op. Cit., p. 109.

[17] Art. 5º, LV, da Constituição Federal.


* JHERING, R. V. O espírito do direito romano: nas diversas fases de seu desenvolvimento, Rio de Janeiro, Alba, 1943.

Trabalho: o que diz a teoria econômica?

Terça-feira| 03 de maio de 2022

Ontem foi dia 1º de maio, dia do trabalhador!! E o que diz a teoria neoclássica a respeito deste fator de produção? Como a teoria econômica tem tratado o fator de produção trabalho?

Estas são perguntas que tentaremos responder nesta semana do trabalhador. Começaremos hoje com a apresentação do entendimento da teoria neoclássica a respeito da função de produção e da função de custo.

A função de produção da teoria neoclássica trabalha com uma função de produção representada por Y=F(K,L), onde Y é o produto obtido a partir da utilização do estoque de capital, K, e do estoque de trabalho, L.

Por hipótese, a produção do bem é crescente nos fatores capital e trabalho, ou seja, o aumento da utilização destes fatores amplia a produção, mas a taxa de crescimento do produto é decrescente à medida que os fatores são utilizados.

A função de produção apresentar diferentes graus de substituição entre capital e trabalho (a taxa marginal e substituição técnica – TMST), cada uma mais adequada a um setor específico. Esta taxa pode ser constante, representando que os fatores são substituíveis à mesma taxa ou podem ser decrescentes, indicando que uma combinação mais equilibrada de capital e trabalho geraria maiores níveis de produção. Há ainda, situações nas quais haverá uma combinação ótima de capital e trabalho que garantirá um produto máximo, entendendo que a utilização de capital e trabalho fora deste ponto sempre irá produzir menores quantidades de bens.

A função de produção como ora construída, permite representar o conceito de produtividade marginal dos fatores de produção, tendo o conceito de “marginal” sido gestado em Jeremy Bethan no século XVIII. A produtividade marginal nada mais é do que o acréscimo ao produto total quando uma unidade a mais de bem é vendida. Logo, a produtividade marginal do trabalho é o acréscimo ao produto quando uma unidade a mais de trabalho é utilizada.

A função de custo, por seu turno, reflete a combinação de valores pagos pela empresa pelos fatores de produção utilizados, sendo a taxa de juros o valor que remunera o capital e o salário real o valor que remunera o trabalho.

Segundo a teoria econômica, ao maximizar seus lucros, em mercados competitivos, o empregador sempre remunerará o trabalhador com um salário real que seja compatível com a sua produtividade marginal.

Trocando em miúdos, segundo a teoria neoclássica, o que o trabalhador recebe deve ser igual ao que ele acrescenta a produção da empresa, de maneira que quedas na produtividade do trabalho implicam na queda do salário real pago.

O 1º de Maio e os desafios do mercado de trabalho

Túlio Antônio Cravo

É primeiro de maio, Dia do Trabalhador em muitos países ao redor do mundo! A data é uma homenagem a greve geral que aconteceu em 1º de maio de 1886, em Chicago, centro industrial dos Estados Unidos. Dentre as reivindicações da greve geral de Chicago estava a redução da jornada de trabalho diária de 13 para 8 horas, desde então, muitas conquistas foram consolidadas e o 1º de maio tornou-se uma data para reflexão sobre o mundo do trabalho.

No Brasil, este primeiro de maio é passado com uma alta taxa de desemprego e queda nos rendimentos dos trabalhadores. A taxa de desemprego para o primeiro trimestre de 2022 foi de 11.1%. Embora tenha havido uma redução de 3,8 pontos percentuais em relação ao mesmo período do ano passado, 11,9 milhões de trabalhadores continuam desempregados e rendimento real médio caiu para R$ 2.548, uma queda de 8.7% no último ano.

É neste contexto difícil que teremos o exercício democrático das eleições em outubro de 2022. Quais seriam então alguns temas que deveriam ser discutidos pelos candidatos para reduzir o desemprego e aumentar a renda? O chamado tripé da política pública de mercado de trabalho composto pela intermediação de mão de obra, seguro-desemprego e qualificação profissional é o ponto de partida para as discussões.

  1. O Sistema Nacional de Emprego (Sine) é um instrumento importante para intermediar a conexão entre empresas e trabalhadores e aumentar a probabilidade de o trabalhador encontrar emprego. A discussão sobre qual a melhor estratégia para melhorar Sine é fundamental para que este seja mais efetivo para auxiliar o trabalhador na busca por trabalho de qualidade e bem remunerado.
  2. A adequação da oferta de educação profissional (ensino técnico e formação inicial e continuada) à demanda do mercado é crucial para a inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho. Além disso, é fundamental para a estratégia do país de continuamente melhorar as habilidades necessárias para aumentar a produtividade dos trabalhadores e sustentar o crescimento dos salários em um mercado de trabalho que cada vez mais exigente. 
  3. O aperfeiçoamento do Seguro-desemprego é muito importante para que o trabalhador tenha a segurança de ter alguma renda no período em que estiver fora do mercado de trabalho, mas que também utilize este período para se preparar melhor para a próxima oportunidade de trabalho.

Contudo, é importante que as discussões sobre os desafios do tripe da política pública de mercado de trabalho sejam discutidas baseadas em evidências sobre o que funciona e o que não funciona. O livro “Employment dynamics and labor market policies in Brazil” publicado recentemente pela Web Advocacy apresenta algumas evidências importantes que podem ser utilizadas na discussão sobre a melhoria da política pública de mercado de trabalho. 

O livro mostra que o Sine aumenta a probabilidade de encontrar um emprego e reduze o número de meses para encontrar um novo emprego. No entanto, esses empregos têm uma estabilidade e salários de reemprego mais baixos. Além disso, uma análise inicial sugere que a melhoria contínua das ferramentas online pode ser uma forma de expandir os serviços do Sine.

Quanto a questão da educação profissional, a publicação da Web Advocacy mostra a importância da orientação destes programas à demanda do mercado de trabalho. Os resultados sugerem que a rotatividade do trabalhador é induzida pelo treinamento orientado pela demanda. Esse tipo de treinamento pode aumentar a produtividade dentro das empresas quando os trabalhadores permanecem na empresa, mas também pode aumentar a produtividade fora da empresa quando os trabalhadores migram para outra empresa.

O funcionamento do seguro-desemprego também pode ser melhorado e o livro mostra como os trabalhadores respondem a mudanças nos critérios de elegibilidade do seguro-desemprego. Entender como os trabalhadores utilizam o seguro-desemprego e como alteram o comportamento quando existem alterações na legislação é importante para o funcionamento mais eficiente do sistema.

Mais do que entender as particularidades de cada política deste tripé, o livro da Web Advocacy é importante pensar como coordenar as ações para que estas políticas sejam mais efetivas em um momento de profunda transformação no mercado de trabalho.

Que este 1º de maio inspire os trabalhadores e eleitores a refletirem sobre o que querem para o futuro do mercado de trabalho no Brasil e que exijam propostas concretas e baseadas em evidências! Nos próximos meses vamos falar de forma específica sobre cada tripé da política pública de mercado de trabalho e indicar opções para melhores políticas públicas para mais e melhores empregos.  

Referência  

Cravo, T; Ribeiro E.P; Quintana, R; Sierra, A (2021) Employment dynamics and labor market policies in Brazil, WebAdvocacy, Brasília, Brasil.

Elon Musk, a operação de aquisição do Twitter e a possível notificação da operação ao CADE

Sexta-feira| 29 de abril de 2022

Não se fala em outra coisa no mundo empresarial que não a aquisição do Twitter pelo bilionário Elon Musk. Este movimento pode significar muita coisa, inclusive nada!!!

Pode significar um novo rearranjo no mercado das big techs, com a alteração da participação de mercado do Meta, da Apple, do Google e do próprio Twitter ou não acontecer nada se a estratégia do Twitter for atuar em nichos de mercados distintos ou coisa que o valha.

Estratégias a parte, o fato é que não se sabe se existem efeitos de natureza concorrencial que sejam relevantes ou que sejam totalmente negativos para a economia mundial e brasileira, em particular. Esta incerteza é totalmente natural para uma operação tão grande e que envolve um mercado tão sensível para as atividades econômicas atuais.

Para saber os potenciais efeitos da aquisição do Twitter pelo Elon Musk nada mais natural que a operação seja notificada às autoridades de defesa da concorrência, inclusive a autoridade brasileira (CADE), ainda que se possa imaginar que os efeitos sobre o território nacional sejam mínimos por serem os mercados relevantes envolvidos internacionais.

As próximas semanas serão decisivas para observamos os movimentos das autoridades de defesa da concorrência mundo afora. Fiquem atentos a WebAdvocacy!!!

Política antitruste “puro sangue”: realidade ou benchmark?

Brasília| 23 de abril de 2022

O livro Chinese Antitrust Exceptionalism: how the rise of China challenges global regulation[1] de Angela Huyue Zhang traz importantes ensinamentos do que não se deve fazer em termos de política de defesa da concorrência.

De acordo com Angela Zhang, a política de defesa da concorrência aplicada na China está muito longe do que se imagina por política antitruste. Em seu relato, a autora demonstra, entre outras coisas, que as empresas estatais (SOEs[2]) estão expostas a ritos concorrenciais muito mais brandos do que as empresas privadas e que desafiar a Corte Suprema de Justiça chinesa não é uma estratégia ótima para as empresas privadas acusadas de ilícitos concorrenciais, haja vista a gravidade das sanções que ficam expostas, indo desde o pagamento de elevadas multas até a imposição de restrições às suas operações no território Chinês.

O caso da China é um exemplo importante e ilustrativo de como a política antitruste pode ser diferente daquilo que aprendemos nos manuais, pois joga luz sobre um dos maiores problemas da aplicação da teoria antitruste, que é a intervenção dos interesses estatais (governo de plantão) sobre o mecanismo de preços, elemento que muitos liberais entendem como precioso para a alocação eficiente no mercado.

Na China, a intervenção tem como objetivo claro a geopolítica, mas a intervenção estatal pode ter outros objetivos e que não necessariamente se coadunem com o objetivo precípuo da política de defesa da concorrência, que é o de ampliar o bem-estar dos consumidores.

O apoio a grandes corporações independentemente da sua nacionalidade ou o apoio a grandes grupos empresariais nacionais podem ser dois bons exemplos de como os objetivos da política antitruste podem variar. A escolha a se adotar depende, fundamentalmente, da ideologia do grupo que governa o país e da vitalidade da autoridade responsável pelo controle de concentrações e de análise de condutas anticompetitivas.

Pensar na política antitruste “puro sangue” e desenvolver métodos para aplicá-la é o objetivo de muitas jurisdições mundo afora. No entanto, não devemos esquecer que estamos diante de uma política e, como tal, totalmente suscetível a “chuvas e trovoadas”. A realidade é que, stricto sensu, esta política não passa de um benchmark e quão distante ela está do ponto ótimo depende de muitos fatores, inclusive do entendimento do que é concorrência.


[1] ZHANG, Angela. Antitrust Exceptionalism: how the rise of China challenges global regulation. Oxford University Press. 2021

[2] State Owned Entreprises.

O que o modelo de Stackelberg tem para ensinar à análise concorrencial

Sábado| 16 de abril de 2022

A Lei de Defesa da Concorrência brasileira, assim como as leis antitruste dos principais países do mundo, se ocupam dos efeitos das operações de fusão e aquisição entre grandes empresas e/ou grandes grupos. Não é por outro motivo que a Lei nº 12.529/2011 apresenta como critério obrigatório para notificação ao CADE os valores para os faturamentos de R$ 750 milhões e R$ 75 milhões para as partes envolvidas.

A razão para tão elevados valores, sobretudo o maior deles, está no entendimento de que há uma correlação próxima de zero entre empresas com faturamento pequeno e poder de mercado e, como tal, ausência de probabilidade abuso de posição dominante por estas empresas.

Obviamente que nem todas as operações que não se subssumem nos critérios acima mencionados são desprovidas de problemas concorrenciais, mas o percentual em que isso pode ocorrer não justifica o custo de análise da autoridade antitruste. A estatística do CADE nos mostra que apenas 2%, em média, das operações submetidas geram problemas de natureza concorrencial.

Apesar das empresas de pequeno porte não estarem envolvidas em grandes operações e, como consequência, não serem objeto de preocupação pelo CADE, estas empresas possuem uma importância ímpar na análise concorrencial, pois, são elas que atuam de forma efetiva nas franjas dos mercados e que contribuem para contestar os mercados, ainda que de forma limitada.

A franja é composta por todas as empresas de pequeno porte que sobrevivem no mercado a partir do resíduo de demanda não apropriado pelas empresas líderes que são, em geral, objeto de fusões e aquisições notificadas às autoridades de defesa da concorrência.

Mas como isso se dá?

O modelo de Stackelberg[1] nos dá a resposta para estas perguntas, pois joga luz a sobre o relacionamento entre estas empresas e o ambiente concorrencial. O modelo básico de Stackelberg, também chamado de modelo líder – seguidor, representa um mercado onde coexistem empresas com participação de mercado muito elevadas e empresas com participação de mercado muito baixas.

A pergunta é: por que empresas grandes e pequenas coexistem? As empresas pequenas não deveriam ser expulsas do mercado?

A resposta para estes questionamentos está na clássica relação entre demanda e oferta e a ampliação e retração de oferta de uma empresa gera efeitos imediatos sobre o preços de mercado, sendo também imediato o efeito sobre todas as funções lucros das empresas.

Sendo assim, como todas as empresas, líderes e seguidoras, tomam as suas estratégias de produção de forma individual e secreta, as decisões das empresas líderes sempre dependem do que elas acham que as demais empresas irão produzir e a quantidade efetivamente produzida pelas seguidoras será o resíduo entre a verdadeira quantidade de mercado e a quantidade esperada pelas empresas líderes, conforme demonstram as três equações:

Portanto, o que o modelo de Stackelberg nos ensina é que a eliminação das empresas seguidoras no mercado não é uma decisão que cabe as empresas líderes. Neste jogo, a informação está mais a favor das seguidoras do que das líderes, pois as primeiras somente produzem com base naquilo que elas efetivamente enxergam no mercado, ao passo que as empresas líderes, para continuarem líderes, têm que fazer conjecturas a respeito daquilo que elas acreditam que o mercado irá fazer.

[1] STACKELBERG, H. Von.  Marktform und Cleichgewicht. Wien und Berlin: Verlag von Julius Springer. 1934. Pp. vi + 138. M. 9.60.

Contratos de exclusividade: como avaliar se há ilicitude.

Fernando B. Meneguin[1]

De maneira geral, os agentes econômicos desenvolvem suas atividades para evitar custos de transação, com vistas à maximização do lucro. Nessa linha, pode ser interessante, como estratégia empresarial, acordo que estabeleça exclusividade entre produtores e distribuidores. No entanto, no caso de a exclusividade gerar obstáculos para a concorrência, essa prática pode ser considerada ilícita.

Ficou bastante conhecido, por divulgação na mídia[1], o caso da empresa iFood, no qual o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) proibiu o iFood, em sede de medida preventiva, de firmar novos contratos com restaurantes contendo acordo de exclusividade. A decisão se deu em face de representação das empresas Rappi e Uber Eats, que argumentaram que a estratégia de negócios do iFood criava barreiras à entrada e à expansão de concorrentes no mercado.

A adoção de cláusulas de exclusividade é uma conduta unilateral, que, segundo a doutrina e a jurisprudência, deve ser avaliada pela regra da razão. Isso significa que seus efeitos negativos, ainda que potenciais, devem ser comprovados para fins de condenação administrativa.

Ainda, condutas unilaterais são estratégias empresariais e podem, portanto, ter efeitos positivos, ou seja, propiciar ganhos de eficiência. É necessário que os efeitos positivos e negativos sejam quantificados e sopesados. Uma conduta poderia ser considerada anticoncorrencial e, assim, condenada administrativamente apenas quando os efeitos negativos superarem os positivos.

Portanto, considerar cláusulas de exclusividade ilícitas apenas com base na parcela de mercado por elas abrangidas, ou seja, com base no grau de fechamento de mercado, pode significar considerá-las ilegais per se, o que contraria a doutrina e a jurisprudência do Cade.

No que concerne à doutrina e à jurisprudência norte-americanas, para despertar preocupação concorrencial, as cláusulas de exclusividade devem representar percentual acima de 30% a 40% do mercado, raramente havendo condenação quando a parcela do mercado abrangida pela exclusividade fica abaixo de 40%[2]. Em consequência, não haveria que se falar em danos à concorrência quando o limite não fosse atingido, ao passo que percentuais maiores devem ser analisados caso a caso, em vista dos potenciais efeitos pró-competitivos dos contratos de exclusividade, para que seja verificado o potencial de exclusão de rivais.

Pela regra da razão, é fundamental aferir o efeito final da conduta sobre o mercado. Para tanto, é necessária uma análise de custo-benefício. No caso de contratos de exclusividade, os benefícios, de maneira geral, aparecem por meio da expansão do mercado e pela apropriação de valor pelos agentes envolvidos e pelos consumidores. Relativamente ao custo, este seria consequência do fechamento do mercado e da diminuição da concorrência.

Hoertel (2008)[3] apresenta uma série de efeitos pró competitivos em decorrência dos contratos de exclusividade, que promovem o aumento de eficiência na alocação de recursos e na redução dos custos de transação:

  • Proteção contra o free-riding (efeito carona) intermarcas.

Os acordos de exclusividade podem promover a proteção aos direitos de propriedade do fabricante evitando condutas oportunistas (proteção contra o free-riding, ou efeito carona, intermarcas) em defesa de investimentos não recuperáveis, como em marcas e tecnologia, e na proteção de ativos específicos. Eliminar o free-riding, permitindo que o agente econômico que realiza o gasto de provisão do ativo se aproprie de seus benefícios, pode provocar o aumento da oferta e do consumo de bens, implicando um incremento do bem-estar agregado.

  • Redução dos custos de monitoramento.

Fabricantes, preocupados com potenciais comportamentos oportunistas de revendedores que negociam produtos concorrentes, devem incorrer em significativos custos no monitoramento desses distribuidores. Contratos de exclusividade geram menos dispêndios com monitoramento e isso se reflete em melhor oferta e melhores preços aos consumidores.

  • Acordos de exclusividade como alternativa à integração vertical.

Na impossibilidade de contratos de exclusividade, uma alternativa seria a integração vertical por meio de fusões entre fabricantes e distribuidores; no entanto, essa alternativa tende a ser menos eficiente e mais custosa quando comparada à integração parcial alcançada pelos contratos de distribuição exclusiva. A integração vertical tenderia a acarretar externalidades negativas aos consumidores, externalidades essas que são mitigadas pelos contratos de exclusividade.

  • Incentivos para que fabricantes auxiliem os distribuidores.

Por meio dos contratos de exclusividade, os fabricantes fornecem aos distribuidores capacitação, serviços e informações instrutivas para facilitar as vendas e atender melhor os consumidores.

  • Maior eficiência no controle de qualidade.

Por meio dos contratos de exclusividade, há comunhão de interesses no sentido de que distribuidores e fabricante assumem responsabilidade direta pela segurança e qualidade dos produtos que colocam no mercado.

  • Redução dos custos da variedade.

A adoção de acordos de exclusividade traz para as revendas a redução de seus custos relacionados à administração da variedade de produtos recebidos de diferentes fabricantes. Evitam-se os custos de negociação que ocorreriam com fabricantes adicionais e, também, o estoque de produtos fora de linha.

Tendo em vista esses potenciais efeitos positivos, para afirmar que a exclusividade é ilícita, ela deve criar dificuldades para a atuação de concorrentes ou desestimular entradas. Nesse sentido, avaliar a parcela do mercado abrangida pela exclusividade, ou seja, o grau de fechamento do mercado decorrente da exclusividade, é apenas uma etapa para se analisar a possível ilicitude das cláusulas de exclusividade.

Resta uma segunda etapa essencial: provar que a parcela de mercado não abrangida pela exclusividade é insuficiente para que concorrentes disputem o mercado e ou para que se viabilizem novas entradas de competidores. Essa segunda etapa demanda o cálculo da escala mínima viável (“EMV”) e sua comparação com a parcela do mercado não abrangida pela concorrência, pois se, apesar da exclusividade, houver mercado para o desenvolvimento de novos concorrentes e/ou entradas, não deve haver a caracterização do fechamento do mercado.

Caso a parcela do mercado não afetada pela exclusividade seja suficiente para viabilizar a operação de concorrentes e/ou entradas, não há que se falar em ilícito concorrencial.

Segundo o Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do Cade, a EMV é definida da seguinte maneira:

Escala Mínima Viável: é o menor nível de vendas anuais que o entrante potencial deve obter para que seu capital seja adequadamente remunerado. Para tanto, analisa-se qual o investimento necessário e o lucro [retorno do investimento] que um entrante teria em um determinado período no mercado em que pretende entrar (sendo necessário especificar o custo do entrante [fixo, variável/marginal], o mark-up do entrante e o volume de vendas esperado do entrante). As informações podem ser apresentadas ou organizadas na forma de fluxos de caixa de projeto de investimento. A análise da entrada pode utilizar estimativas do valor presente líquido, taxa interna de retorno, payback, payback descontado e outros indicadores que mostram a viabilidade econômica e financeira da entrada.

Assim, fazendo um exercício empírico, é possível saber qual é a escala mínima viável da operação de um entrante disruptivo levando em conta os custos de produção em larga escala. Por meio desse cálculo, pode-se inferir se há ou não espaço suficiente no mercado para o estabelecimento de potenciais competidores. A partir daí sim pode-se concluir ou não pela ilicitude das cláusulas de exclusividade.

Ressalte-se que há casos recentes em que o Cade não exercitou essa segunda etapa – o cálculo da escala mínima viável. Quando isso acontece, a análise fica restrita ao grau de fechamento de mercado, o que equivale a uma análise per se. Tal lacuna na análise pode acarretar inferências errôneas sobre a concorrência em determinado setor.


[1] https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/03/11/cade-proibe-ifood-de-realizar-novos-contratos-de-exclusividade-com-restaurantes.ghtml

[2] “(…) since Jafferson Parish, exclusive dealing is rarely condemned on market share foreclosures lower than 30% or 40%” (HOVENKAMP, Herbert 1999, Federal Antitrust Policy: The Law of Competition and Its Practice. Second Edition. West Group. p. 437).

[3] Hoertel, M. C. Análise econômica da adoção de acordos de distribuição exclusiva entre fabricantes e revendedores. III Prêmio SEAE de monografias em defesa da concorrência e regulação econômica. 2008.


[1] Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Consultor Sênior da Charles River Associates e Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

O que o modelo de Stackelberg tem para ensinar a análise concorrencial?

Sábado| 16 de abril de 2022

A Lei de Defesa da Concorrência brasileira, assim como as leis antitruste dos principais países do mundo, se ocupam dos efeitos das operações de fusão e aquisição entre grandes empresas e/ou grandes grupos. Não é por outro motivo que a Lei nº 12.529/2011 apresenta como critério obrigatório para notificação ao CADE os valores para os faturamentos de R$ 750 milhões e R$ 75 milhões para as partes envolvidas.

A razão para tão elevados valores, sobretudo o maior deles, está no entendimento de que há uma correlação próxima de zero entre empresas com faturamento pequeno e poder de mercado e, como tal, ausência de probabilidade abuso de posição dominante por estas empresas.

Obviamente que nem todas as operações que não se subssumem nos critérios acima mencionados são desprovidas de problemas concorrenciais, mas o percentual em que isso pode ocorrer não justifica o custo de análise da autoridade antitruste. A estatística do CADE nos mostra que apenas 2%, em média, das operações submetidas geram problemas de natureza concorrencial.

Apesar das empresas de pequeno porte não estarem envolvidas em grandes operações e, como consequência, não serem objeto de preocupação pelo CADE, estas empresas possuem uma importância ímpar na análise concorrencial, pois, são elas que atuam de forma efetiva nas franjas dos mercados e que contribuem para contestar os mercados, ainda que de forma limitada.

A franja é composta por todas as empresas de pequeno porte que sobrevivem no mercado a partir do resíduo de demanda não apropriado pelas empresas líderes que são, em geral, objeto de fusões e aquisições notificadas às autoridades de defesa da concorrência.

Mas como isso se dá?

O modelo de Stackelberg[1] nos dá a resposta para estas perguntas, pois joga luz a sobre o relacionamento entre estas empresas e o ambiente concorrencial. O modelo básico de Stackelberg, também chamado de modelo líder – seguidor, representa um mercado onde coexistem empresas com participação de mercado muito elevadas e empresas com participação de mercado muito baixas.

A pergunta é: por que empresas grandes e pequenas coexistem? As empresas pequenas não deveriam ser expulsas do mercado?

A resposta para estes questionamentos está na clássica relação entre demanda e oferta e a ampliação e retração de oferta de uma empresa gera efeitos imediatos sobre o preços de mercado, sendo também imediato o efeito sobre todas as funções lucros das empresas.

Sendo assim, a empresa líder toma sua decisão de produção considerando sua maximização de lucros considerando a existência das seguidoras que terão sua produção definida de forma residual. Com isso, a quantidade efetivamente produzida pelas seguidoras será o resíduo entre a verdadeira quantidade de mercado e a quantidade esperada pelas empresas líderes, conforme demonstram as três equações:

Portanto, o que o modelo de Stackelberg nos ensina é que a eliminação das empresas seguidoras no mercado não é uma decisão que cabe as empresas líderes. Neste jogo, a líder tem a vantagem de definir sua produção (e tb os preços de mercado) logo no primeiro estágio. Já as seguidoras têm suas quantidades definidas de forma residual, devendo praticar o preço de mercado.


[1] STACKELBERG, H. Von.  Marktform und Cleichgewicht. Wien und Berlin: Verlag von Julius Springer. 1934. Pp. vi + 138. M. 9.60.