“Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio”[1]

Amanda Flávio de Oliveira & Sandro Leal Alves

Há quatro anos, a ANS revogava a então recentemente publicada Resolução Normativa nº433/2018, que estabelecia, entre outros, parâmetros para a cobrança de franquia e coparticipação. A norma entraria em vigor apenas no fim de dezembro daquele ano, mas foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A então Ministra Presidente, no exercício do plantão do mês de julho, atendeu o pedido de medida cautelar em Ação de Descumprimento Fundamental promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O tema “Mecanismos Financeiros de Regulação”, que engloba coparticipação e franquia, talvez seja um dos mais debatidos na história da saúde suplementar, ao longo das duas décadas de existência da ANS. Desde 2005 ele já foi objeto de duas Consultas Públicas, nos anos de 2006 e 2017, uma Câmara Técnica, no ano de 2012, um Grupo de Trabalho, em 2015, e um Grupo Técnico que deu origem à RN nº 433/18, que se reuniu desde julho de 2016. Todas as discussões foram públicas, com a participação de todos os agentes interessados no tema. Foram produzidos muitos estudos, notas técnicas e até mesmo Análise de Impacto Regulatório (AIR), prévia à publicação da Resolução Normativa n. 433/2018, mencionada. Sublinhe-se que apenas em 2019 a exigência de prévia AIR passou a ser conteúdo de determinação legal às agências, com a publicação das Leis n. 13.848 e 13.874. Mesmo sem obrigatoriedade de assim agir, a Agência do setor achou por bem empreender AIR sobre o tema.

Conhecer a trilha da produção e desfecho da então Resolução n. 433/2018, da ANS, é suficientemente frustrante para todos que se debruçam sobre o tema do aprimoramento regulatório em saúde.

Em primeiro lugar, porque debate não faltou. Tampouco abertura à contribuição dos interessados. Em segundo lugar, porque ele revela a verdade inquietante a todos os que vislumbram no instrumento da AIR um procedimento de racionalização e melhoria de normas regulatórias: de nada adianta fazê-lo, por melhor que ele seja, tecnicamente falando, se o Judiciário suspende os efeitos de seus resultados liminarmente, no caso, com efeitos definitivos, vez que essa decisão gerou como consequência a revogação da norma pela própria agência. Por fim, a decisão do STF colocou mais um obstáculo e ponto de insegurança no longo caminho de definição dos limites do poder normativo das agências: se elas foram criadas para serem braços independentes e técnicos do Poder, há que se definir com segurança se haverá ou não deferência às suas normas que não contenham fragilidade formal que as invalidem.

Do ponto de vista técnico, o assunto segue em aberto, e quem está perdendo são os excluídos do mercado (leia-se, as pessoas com menor poder aquisitivo). É que a falta da regulação, no caso, afugenta esses potenciais consumidores do mercado, dado o fato de que um produto mais acessível deixa de ser oferecido com maior vigor. A insegurança jurídica, em um país obcecado pela regulação, significa, em casos assim, redução de oferta.

Na trilha da história da regulação de coparticipação e franquia, a incompreensão vem ganhando de lavada. Trata-se de dois mecanismos comumente utilizados em outros ramos do seguro no Brasil, e o seguro de automóveis é um exemplo à mão. Transportado para o mercado de saúde, o argumento de que “saúde não é mercadoria” vem preponderando, superficializando o debate e revelando uma confusão jurídica e econômica importante.

É que a norma da ANS não regula saúde. Nenhuma norma da ANS regula saúde. A norma referida, assim como todas as normas administrativas por ela produzidas regulam a prestação do serviço de saúde suplementar, um mercado expressamente autorizado pela Constituição de 1988 e facultado à iniciativa privada. Nesse ponto, tem-se, sim, mercadoria, negócio, empresas, lucro. O exercício dessa atividade econômica, no entanto, não pode se dar de forma irrestritamente livre, nos termos do ordenamento jurídico. E é aí que entra a regulação, a Agência do setor, sua atribuição normativa.

Por outro lado, o plano de saúde funciona nas mesmas bases técnicas e atuariais que o seguro de automóvel, seguro de navio, seguro de plataformas de petróleo, seguro rural, seguro de crédito etc. Há uma mutualidade que se solidariza no risco. Muitos indivíduos contribuem com o pagamento de mensalidades para que aqueles que precisarem utilizar os serviços possam fazê-lo. Há necessidade de garantias financeiras das operadoras, reservas técnicas, ativos garantidores para garantir a solvência da operadora. Os preços são baseados em notas técnicas atuariais segundo critérios científicos para o cálculo de forma a garantir que sejam suficientes para honrar com os compromissos futuros. Os eventos devem ser aleatórios para que o sistema funcione. Caso contrário não seria seguro, mas financiamento.

Ainda na comparação entre o plano de saúde e os demais ramos do seguro, duas diferenças chamam a atenção. Em primeiro lugar, enquanto em todos os seguros é comum, e até mesmo indispensável, que a seguradora tenha liberdade para realizar a sua avaliação e aceitação de riscos, processo conhecido como subscrição, na saúde não há essa liberdade, desde que a Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998) determinou que ninguém pode ser impedido de participar de planos em razão da idade, ou da condição de pessoa portadora de deficiências, como prevê o art. 14. Em segundo lugar, outro instrumento muito utilizado no setor de seguros é a determinação da importância segurada no contrato. Essa limitação regula o risco a que a seguradora está disposta a correr. Na saúde suplementar, a Lei n. 9.656/1998, em seu art. 1º, determina que o Plano Privado de Assistência à Saúde é a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecidos, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde. Nos dois casos acima, os fundamentos do mutualismo, que fornecem a base técnica para o funcionamento do setor de seguros, foram rearranjados para acomodar a preocupação do legislador com a possibilidade de as operadoras de planos de saúde selecionarem os bons riscos (cream-skimming) ou interromperem a prestação do serviço ao longo de um tratamento ou internação, por exemplo.  Evidentemente, essa opção traz consequências para a precificação, realizada com base em critérios técnicos-atuariais, e para o negócio em si.

Nos Estados Unidos, país em que a prática do cost-sharing é mais difundido, as seguradoras voluntariamente reduziram ou eliminaram as coparticipações em diversos procedimentos associados à Covid19 e tratamentos relacionados.[1] Não custa lembrar que é do interesse da operadora manter seus beneficiários saudáveis, evitando complicações de saúde que evoluiriam para um cenário de maiores despesas. Muitas seguradoras utilizaram os mecanismos de incentivos à sua disposição para estimular a vacinação contra a covid19.

No Brasil, a coparticipação é uma tendência no mercado de saúde suplementar e está presente em praticamente 50% dos planos. Sua existência contribui para equilibrar as contas e os reajustes das despesas médicas, pois os custos são divididos entre as operadoras e os beneficiários. Ou seja, na coparticipação a mensalidade é menor, mas o usuário paga um valor à parte em cada procedimento, como consultas e exames. O uso mais consciente e o combate a fraudes são outras importantes vantagens. Mas a oferta de um produto mais acessível revela-se um valor importante pelo seu caráter inclusivo: mais pessoas podem se inserir no mercado consumidor.

A franquia agregada anual, muito comum nos EUA (deductibles), consiste na divisão de risco entre a operadora e o consumidor com base em um valor contratado. Até chegar a este valor, as despesas são de responsabilidade do beneficiário e a partir desse limite, ficam sob responsabilidade da operadora. No mercado americano, o limite máximo anual do dedutível é limitado a US$ 8.700,00. [2] No Brasil, o que inibe esse tipo de plano é o fato de estar previsto, na Resolução CONSU nº 08/1998, que a incidência de coparticipação e franquia não pode configurar um fator restritor severo ao acesso à cobertura, sem, contudo, definir ou conceituar o que seria esse fator restritor severo. A referida Resolução, feita há mais de duas décadas, restringiu-se a conceituar estes mecanismos e afirmar: i) que os mesmos não poderiam representar o custeio integral do procedimento; ii) que a coparticipação só poderia incidir em valor fixo nas hipóteses de internação, sem prever ou estabelecer qualquer limite.

A Resolução da ANS, de curta vigência, previa um limite máximo de 30% para incidência de coparticipação. O objetivo era conceder segurança e objetividade ao tema, estimulando o mercado e esse tipo de produto. Reitere-se, a medida concluiu longo processo de debate e uma AIR.

Se saúde não tem preço, ela tem custo. A oferta de planos de saúde no mercado agrega bem-estar e dignidade às pessoas e é, sim, mercadoria no sentido estrito do termo, ou seja, um produto ou serviço suscetível de ser comprado ou vendido no mercado. A saúde individual não é transacionável, por óbvio. Mas o acesso aos serviços de saúde por meio da saúde suplementar está sujeito à lei da demanda e da oferta. E não é possível revoga-la pois as pessoas desejam acesso aos planos, os médicos precisam ser remunerados por seus serviços e as operadoras precisam buscar lucro e não prejuízo. Ou seja, o conjunto de serviços que integra toda a cadeia produtiva está sujeito às forças de mercado, em um mercado já extremamente regulado. Na pressa das decisões oficiais, sacrifica-se o acesso a esse mercado. Ainda está em tempo. Retomemos, com racionalidade e parcimônia, um tema de interesse de todos que se indignam com a falta de acesso à prestação de saúde de qualidade a pessoas de padrão aquisitivo menor.

REFERÊNCIAS

Robert H. Brook, John E. Ware, William H. Rogers, Emmett B. Keeler, Allyson Ross Davies, Cathy Donald Sherbourne, George A. Goldberg, Kathleen N. Lohr, Patti Camp, and Joseph P. Newhouse. The Effect of Coinsurance on the Health of Adults: Results from the RAND Health Insurance Experiment. Santa Monica, Calif.: RAND Corporation, R-3055-HHS, December 1984.

Amitabh Chandra,A, Flack, E and Obermeyer, Z. (2022). The Health Costs of Cost-sharing. National Bureau of Economic Research Working Paper 28439


[1] https://www.ahip.org/news/articles/health-insurance-providers-respond-to-coronavirus-covid-19

[2] https://www.federalregister.gov/documents/2021/05/05/2021-09102/patient-protection-and-affordable-care-act-hhs-notice-of-benefit-and-payment-parameters-for-2022-and.


[1] As afirmações constam do voto da Relatora na ADPF 532-MC.

ADI 5422: por um dia das mães mais feliz

Vanessa Vilela Berbel

Os casamentos no Brasil estão tendo menor duração média, caindo, de 2010 a 2020, de 17,5 anos para 13,8 anos. Não só a duração ficou menor, mas também a taxa de nupcialidade, principalmente para casais do mesmo sexo. Essa queda possui relação com fatores sócio-culturais – como se observa do aumento de 464% das uniões estáveis[i], mas também com os múltiplos arranjos familiares da atual sociedade brasileira, que escapam aos números dos registros públicos e sentenças judiciais.

Ainda que grande parte das mulheres esteja fora dos dados Estatísticos do Registro Civil do IBGE, as informações contidas na pesquisa podem lançar luzes sobre o perfil das pessoas que se divorciam e os desafios sociais e econômicos que a alta taxa do rompimento dos arranjos familiares pode promover.

O perfil dos casais que se divorciaram em 2019 era composto por homens com idade média de 43 anos e mulheres de 40 anos de idade. Ainda, em 2020, dos 331,2 mil divórcios concedidos no país, aproximadamente 56,5% dos divórcios judiciais ocorreram entre pessoas que tinham filhos menores de idade[ii].

Apesar da boa notícia de que, entre 2014 a 2020, a guarda compartilhada passou de  7,5% para 31,3% dos casos, como reflexo do advento da Lei 13.508/2014, dados do IBGE a respeito das sentenças de divórcio proferidas em primeira instância mostram que, em 2020, dos 140.218 casos julgados, 80.315 tiveram a guarda atribuída apenas às mulheres[iii]. Deve-se anotar, ainda, que guarda compartilhada não é guarda alternada, de modo que, na maioria dos casos, a criança ainda mora quase que na integralidade do tempo com um dos genitores, em regra a mãe, mesmo que conviva com ambos.

Deste modo, se pegarmos o perfil padrão das estatísticas, temos que, após dez anos de casamento, caso ocorra o divórcio, haverá uma mulher de 40 quarenta anos, credora do custo de manutenção da prole que com ela habitará e, do outro lado da equação,  um homem de 43 anos, o pai, a quem competirá seu ressarcimento.

Levada a relação jurídica obrigacional cível para o campo tributário, o quadro se inverte. Agora a mãe, apesar de ter recebido a pensão como forma de ressarcimento de despesas da prole, terá que declarar os valores em seu imposto de renda. Isso mesmo: ela cuida, dispõe do seu tempo – já falamos aqui do obscurantismo econômico do cuidado doméstico, muitas vezes reduz suas horas no mercado de trabalho para se dedicar às atividades domésticas – mesmo em muitos casos esteja no auge de sua carreira, lembre-se: ela está com quarenta anos, e, no final, paga a renda pela pensão.  Não só, o genitor poderá deduzir o valor pago de seu imposto de renda. Injusto? Obviamente, mas, alguns membros da Corte Suprema entendem que essas mulheres podem esperar mais algum tempo para ter um feliz dia das mães.

Isso pois, a ADI 5422, que discute a constitucionalidade do imposto de renda sobre os valores recebidos a título de pensão alimentícia no âmbito do direito de família estava com desfecho demarcado para 11/02/22, mas teve seu julgamento retornado à estaca zero. Pois é, com placar de seis a zero para conhecer em parte da ação direta e, no mérito, julgá-la procedente, com proposta de fixação da seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional a incidência de imposto de renda sobre os alimentos ou pensões alimentícias quando fundados no direito de família”, um pedido de destaque do Ministro Gilmar Mendes, fez com que a recontagem dos votos seja reiniciada.

Então, cara leitora, se você já preencheu seu imposto de renda e colocou os rendimentos da pensão alimentícia como tributáveis, eu lhe desejo, em 2023, um melhor dias das mães.

Referências

IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Estatísticas do Registro Civil 2010-2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9110-estatisticas-do-registro- civil.html?edicao=17071&t=downloads


[i] Vide o informativo Secretaria Nacional da Familia. Fatos e números: casamentos e uniões estáveis no Brasil, Brasil: 2021. https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/observatorio-nacional-da-familia/fatos-e-numeros/FatoseNmerosCasamento.pdf

[ii] O percentual justifica-se também pelo fato de ser vedado o acesso ao divórcio extrajudicial aos casais que possuam filhos menores

[iii] Dados obtidos em Pesquisa Estatísticas do Registro Civil – 2020, IBGE. https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5936#resultado

Stock vs. Campari: a proteção do Know-How segundo o STJ

Eduardo Molan Gaban

Apesar de o termo “know-how” não ser utilizado em textos legais ou em normativas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, a sua tutela é de extrema importância no contexto das normas de proteção à propriedade industrial, uma das facetas de proteção à propriedade intelectual.

Traduzido como “saber fazer alguma coisa”, ou “saber fazer alguma coisa que não é de domínio público”, o know-how é protegido na medida em que se refere aos conhecimentos, tecnologias, dados ou métodos técnicos passíveis de valoração econômica dotados por alguma pessoa específica.

Não é novidade que aquele que detém técnicas e tecnologias do negócio se destaca no mercado. Por isso, a Lei de Propriedade Intelectual (Lei nº 9.279/96) protege as informações e os segredos industriais que não são de conhecimento público ou evidentes para um técnico no assunto, e sanciona a conduta de quem utiliza, sem autorização, o know-how a que teve acesso durante a relação contratual[1].

Na prática, isso quer dizer que está sujeito às penas de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa quem praticar alguma das ações descritas no caput do artigo 195 da LPI. Porém, até que ponto pode-se considerar que houve apropriação indevida de know-how obtido no âmbito da relação contratual?

Esta foi a controvérsia discutida no Recurso Especial nº 1.727.824, no qual figurou como recorrente a Campari Do Brasil LTDA. (“Campari”) e como recorrida a Distillerie Stock Do Brasil LTDA. (“Stock”).

No caso, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e, por unanimidade, rejeitou o pedido de indenização feito pela Stock em razão de suposto uso indevido de seu know-how pela Campari.

Na ação de indenização que deu origem ao recurso, a Stock argumentou que manteve contratos para distribuir no Brasil a bebida fabricada pela Campari, a qual, após 30 anos de relacionamento comercial, decidiu não renovar o acordo, causando-lhe prejuízos. A Stock alegou ainda que a Campari, ao passar a fazer ela mesma a distribuição de seu produto no país, teria se apropriado de informações sobre organização de vendas e cadastro de clientes que integravam o know-how da antiga distribuidora, o que caracterizaria concorrência desleal.

Alegou, assim, que foi vítima de atividade lesiva por parte da Campari, a qual teria se apropriado de sua organização de vendas e de seu cadastro de clientes, impondo condições comerciais injustificáveis, com abuso de direito e abuso de poder econômico. O pedido foi julgado improcedente em primeiro grau, sob o fundamento de que não foi demonstrado nenhum abuso nos contratos, os quais foram devidamente assinados pelas partes.

Após apelação por parte da Stock, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entendeu que a Campari utilizou, de forma não autorizada e sem a devida remuneração, o know-how desenvolvido pela Stock.

Posteriormente, o TJSP determinou também o retorno dos autos à origem para que identificassem os elementos integrantes do know-how, qualificados como secretos e originais, que teriam sido supostamente apropriados pela Campari, a fim de se determinar se estes se incluem ou não em eventual proteção legal ou contratual.

O TJSP, mesmo assim, apenas reafirmou que o know-how supostamente apropriado estaria centrado, simples e genericamente, nos conhecimentos em vendas e na atividade de distribuição exercida pela Stock. Ou seja, a decisão deixou de identificar, pontualmente, qual a técnica de distribuição de produtos que seria original e/ou eventualmente secreta, ou seja, que ultrapassasse dos conhecimentos e informações já conhecidas em função do exercício legítimo do seu poder de controle na qualidade de fornecedor sobre o seu distribuidor exclusivo.

O STJ, por sua vez, decidiu que não foi possível identificar apropriação indevida de segredo industrial diante da ausência de delimitação pelo TJSP dos elementos de know-how da Stock que teriam sido utilizados indevidamente pela Campari.

O Ministro Relator do voto condutor, Ricardo Villas Bôas Cueva, decidiu que o Tribunal de origem não identificou nenhum elemento ou técnica distintiva original ou protegida por sigilo, legal ou contratualmente, a indicar apropriação indevida de know-how, de tal forma que a organização de lista de clientes ou a dinâmica de vendas transferida contratualmente não tem o condão de embasar pedido indenizatório.

Na sua fundamentação, aduziu que “a formação de clientela está normalmente associada às estratégias de marketing utilizadas pelo fabricante, à qualidade do produto e à notoriedade da marca, e não ao esforço e à dedicação do distribuidor”, mencionando um outro precedente da Terceira Turma sobre o mesmo tema (REsp nº 1.605.281/MT).

Em conclusão, o STJ decidiu, unanimemente, que não é devida indenização pela alegada apropriação indevida de know-how por não se verificar fato que escape a essa regra, vez que as informações alegadamente utilizadas estão dispostas em contrato celebrado entre as partes, por meio do qual a Stock se obrigou expressamente a fornecê-las.

Da análise do caso, observa-se que a decisão do STJ foi pautada em três principais pontos: (i) ausência de identificação, pelo Tribunal de origem, dos elementos ou técnicas distintivas originais ou protegidas por sigilo a indicar apropriação indevida de know-how; (ii) disposição das informações supostamente utilizadas indevidamente no contrato celebrado entre as partes, por meio do qual a Stock se obrigou a fornecer; e (iii) formação de clientela associada às estratégias do fabricante, qualidade do produto e notoriedade da marca, não pelo esforço e dedicação do distribuidor.

Conforme doutrina utilizada pelo próprio ministro relator do caso, “O know-how pode ser compreendido como arte empresarial e como conhecimento técnico e dinâmico, mas o aspecto distintivo, para o direito, é a existência de um segredo, de modo que a tutela jurídica do know-how se dá não porque é know-how, mas porque é segredo”[2].

Assim, na prática, o relator, acompanhado pelos demais membros da Terceira Turma do STJ, debruçou-se sobre a existência ou não de violação de segredo de negócio – o qual, no caso específico, não se comprovou existir, uma vez que o contrato firmado entre as partes previa expressamente o compartilhamento das informações supostamente utilizadas indevidamente pela Campari.

Com esse resultado, que encerra quase duas décadas de litígio, a Campari não mais indenizará a Stock no valor de cerca de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais) por contrato firmado na década de 70.


[1] Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (…) XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato (…).

[2] ROSSI, Juliano Scherner. Análise Econômica do Know-How, in: Direito e Economia I, ISBN: 978-85- 68147-73-3. Disponível em: https://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=075a0fee1ce99f7d. Acesso em: 25 de abril de 2022.

A força do conceito de vantagem comparativa para o comércio internacional

Segunda-feira| 25 de abril de 2022

O comércio internacional é algo que interessa ao ser humano desde os mais remotos tempos. A transição do feudalismo para o mercantilismo representa o período de ampliação e importância desta atividade. Foi neste período que o comércio se fez presente e deu origem a Estados Nação que colocaram em prática aquilo que conhecemos por comércio entre nações.

A teoria econômica em matéria de comercial internacional evoluiu sobremaneira a partir de então. Foi neste período que se definiu o conceito de vantagem comparativa elaborado por David Ricardo, em sua obra The Principles of Political Economy and Taxation[1], que, em apertada síntese, significa o benefício natural que um país tem em produzir e exportar um determinado produto em relação às demais nações do mundo.

Os livros textos de economia sempre trazem como exemplo para definir vantagem comparativa o clássico exemplo apresentado por David Ricardo dos vinhos produzidos por Portugal e dos têxteis produzidos e pela Inglaterra, respectivamente.

No exemplo trazido à baila, Portugal deveria exportar vinho para a Inglaterra e importar produtos têxteis do país anglo-saxão. De acordo com David Ricardo, Portugal aferia mais riqueza investindo o seu capital na produção de vinho Portugal do que investindo parte na produção de vinho e de tecidos e, da mesma forma, a Inglaterra aferia mais riqueza investindo na produção de tecidos do que em ambos os produtos.

O conceito trazido por David Ricardo é relevante que a teoria econômica deu origem a importante modelos, dentre os quais, vale mencionar o clássico modelo de Heckscher-Ohlin e o Teorema de Rybczynski.
De acordo com o modelo de Heckscher-Ohlin, os países têm diferentes dotações de fatores de produção (capital e trabalho), de maneira que países com abundância de trabalho em relação a capital exportarão bens intensivos em trabalho e países com abundância de capital em relação a trabalho exportação bens intensivos em capital.
O Teorema de Rybczynski parte do modelo de Heckscher-Ohlin (fatores fixos de produção) e verifica que tudo o mais constante (coeteris paribus), o aumento de um fator em relação aos outros eleva a produção dos bens intensivos neste fator. Esse teorema é muito útil para explicar os efeitos do investimento em capital, da imigração e da emigração nos países.
Estes resultados são muito atuais nos dias de hoje e sempre o serão, pois os fatores de produção, sobretudo o trabalho, sempre se movimentarão voluntaria ou involuntariamente entre as nações.

[1] RICARDO, David. the Principles of Political Economy and Taxation. London: John Murray, 1821. Third edition. First published: 1817

Há razões econômicas para se obrigar os licitantes à contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar?

Vanessa Vilela Berbel

Combater a violência doméstica é tarefa compartilhada por todos e claramente enunciada na Constituição Federal, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; destaca-se, ainda, o §2º, art. 3º, da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que reza caber à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos por ela enunciados.

Mas, infelizmente, se o combate à desigualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres integrassem a matriz curricular do ensino universal, poucos países passariam de ano. Estudo do Fórum Econômico Mundial de 2020 (World Economic Forum/ WEF) revelou que nem eu ou você estará vivo para ver a paridade entre homens e mulheres na saúde, educação, no trabalho e na política, a qual demorará, com sorte, 99,5 anos.

A dimensão “participação econômica e oportunidades”, infelizmente, hoje, não escapa ao trágico diagnóstico, estando o Brasil na posição 89 do ranking (The Global Gender Gap Index rankings by subindex, 20, WEF). Apesar da progressiva queda histórica na diferença entre a taxa de participação masculina e feminina no mercado de trabalho, ela continua substancial, sendo de 22 pontos percentuais em 2015; vários fatores são apontados como causas dessa diferença, dentre eles: discriminação no mercado de trabalho, responsabilização da mulher da maior parte dos trabalhos não remunerados domésticos, dentre outros.

Há muito a se fazer, não se nega; trata-se de resultado histórico que não se logra mudar em curto tempo ou sem a participação maciça dos atores sociais. A questão é: estamos fazendo algo para essa mudança? Parece-nos que sim. Estudo elaborado por FOGUE e RUSSO (IPEA, 2019), aponta a expectativa de elevação da presença feminina no mercado de trabalho para 64,3% em 2030, ou seja, 8,2 pontos percentuais acima da taxa em 1992[1], considerando uma população de idade ativa demarcada entre 17 e 70 anos.

Contudo, apesar de todos os avanços promovidos pelo processo contínuo de cooperação transversal entre governo, sociedade civil e comunidade internacional, há uma classe no universo de mulheres carece de maior atenção: as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Daí serem louváveis todas as iniciativas que foquem neste grupo, dentre elas a disposição contida no artigo 25, § 9º, inciso II, da Lei 14.133, de 1° de abril de 2021, que permite aos editais dos processos licitatórios preverem que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Infelizmente, a família, lugar de acolhimento e suporte, pode, para alguns, representar sofrimento e agressão. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos[2] revelam que das 221.427 denúncias de violência contra pessoas do sexo feminino (entre mulheres e crianças), 75.753 delas referem-se à violência doméstica e familiar contra mulheres.

Os dados reforçam a constatação do relatório “Progress of The World’s Women 2019–2020: families in a changing world”, da ONU Mulheres: “famílias são espaços contraditórios para as mulheres. São lugares de amor, nutrição e solidariedade, mas também local onde as mulheres mais experimentam violência e discriminação”. Não se quer, com essa afirmação, desprestigiar a família; famílias não são apenas importante para o amor e cuidado do indivíduo, mas também representam relação simbiótica com governo e economia. Mercados e Estados que funcionam bem precisam das famílias para produzir trabalho, comprar bens e serviços, pagar impostos e nutrir membros produtivos de sociedade; devem ser, portanto, tratadas com muito zelo pelas legislações e políticas governamentais.

 Recente estudo elaborado por Paulo RA Loureiro (LOUREIRO, 2020) revela que uma mulher que sofre violência doméstica normalmente ganha menos que aquela que não vive em situação de violência; a análise vai além, apura os custos econômicos e financeiros da violência doméstica, justificando a atuação do Estado para o aumento da oferta de emprego e ampliação do acesso ao capital humano.

Segundo levantamento feito por LOUREIRO[3], a violência tem alto custo econômico em países de centro e periferia. Os custos da violência doméstica, em 1995, nos Estados Unidos, chegam a valores atuais de US$ 8,3 bilhões anuais: uma combinação de US$ 5,8 bilhões para cuidados da saúde física e mental e US$ 2,5 bilhões em perda de produtividade. Inglaterra e País de Gales somam o custo de £ 15,7 mil milhões de libras anualmente; por sua vez, Chile e Nicarágua estimam em 6% e 2%, respectivamente, o impacto da violência doméstica sobre o produto interno bruto, dada as perdas de renda das mulheres (LOUREIRO, 2020, p.06).

Além dos custos sociais globais, o estudo revela que a violência doméstica é um dos fatores

predominantes nas perdas salariais individualmente sentidas pelas mulheres. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com aquelas que não sofrem violência doméstica têm uma perda de 30,6 % do salário real. Mulheres agredidas tiveram, na média, renda do trabalho principal de R$ 528, contra R$ 1.056 das que não sofrem agressão (LOUREIRO, 2020).

Logo, pode-se concluir que andou bem o legislador ao prever a possibilidade de se obrigar licitantes a empregar mão de obra feminina vítima de violência doméstica, não sendo desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação; a  mulher, além de eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em âmbito privado, ao sofrê-los também importa em custos econômicos sociais e individuais, cabendo a todos internalizá-los e prevenir suas ocorrências. Esperamos que as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entendam a importância de darem efetividade ao dispositivo legal.


[1] FOGUE, Miguel Nathan e RUSSO, Felipe Mendonça. Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados – IPEA. Decomposição e projeção da taxa de participação do Brasil utilizando o modelo idade-período-coorte, 1992 a 2030. In: Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 25: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/190515_bmt_66_NT_decomposicao_e_projecao.pdf

[2] Somatória dos dados obtidos em Painel de Dados 2021/1 e 2020/2, disponível em: Painel de dados da ONDH — Português (Brasil) (www.gov.br)

[3] LOUREIRO, Paulo RA. A Violência Doméstica Causa Diferença Salarial entre Mulheres?. No prelo.

Adicional de obstetrícia nos planos de saúde: equilíbrio econômico do contrato ou tratamento não igualitário do sexo feminino?

Vanessa Vilela Berbel

Metrópole, o clássico filme do austríaco Fritz Lang, roteirizado em parceria com Thea von Harbou, passa-se em 2026 e tem como protagonista um robô, Maria (Brigitte Helm), que tem como objetivo semear a discórdia entre os trabalhadores em um mundo devastado pelos paradoxos do capitalismo. Bem, estamos em 2021 e, ainda que muito avançada a inteligência das coisas, eu não tive a oportunidade de duvidar se meus interlocutores eram humanos ou máquinas…Metrópole ainda parece ser uma realidade bastante distante.

Enquanto isso, continuamos morrendo e nascendo pelos métodos tradicionais, contando com um apoio ou outro da ciência para superação de algumas barreiras biológicas. Portanto, provavelmente você que lê esse artigo nasceu de uma mulher de carne e osso, a qual deve ter precisado de apoio hospitalar e médicos para que isso ocorresse.

Todavia, para que uma mulher tenha o assessoramento de saúde ao parto no Brasil, exceto se contar com o sistema de saúde público, deverá programar o pagamento antecipado de um adicional do seu plano de saúde. E veja, não pagará pelo serviço de saúde, pagará pelo risco de ficar grávida, visto que há carência ao uso dos serviços.

A Lei 9.656/98 prevê a segmentação dos planos de saúde segundo a amplitude de cobertura, prevendo as seguintes categorias: (i) plano referência, (ii) ambulatorial, (iii) hospitalar sem obstetrícia, (iv) hospitalar com obstetrícia e (v) odontológico.

O plano-referência, previsto no artigo 10 da Lei, consiste no “pacote completo” da assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos realizados no Brasil, centro de terapia intensiva, ou similar, e internação hospitalar; todavia, ao lado desta modalidade, faculta-se a venda das demais modalidades listadas acima, incluindo o atendimento hospitalar com e sem obstetrícia.

Ressalva-se que desde o Projeto de Lei n° 4.425, DE 1994 (Do Senado Federal) PLS 93/93 já se proibia a exclusão de cobertura de despesas com tratamento de determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas, ressalvando a possibilidade de exclusão da cobertura obstétrica. Não se trata, pois, de alteração legislativa recente.

O segmento hospitalar tem função de conferir cobertura de serviços em regime de internação (sendo vedado o limite de tempo), facultando-se a inclusão de cobertura da assistência ao parto (obstetrícia), que poderá ter até 300 dias de carência para partos a termo, ou seja, partos dentro do tempo convencional de gestação. Ou seja, apenas partos de bebês prematuros estão cobertos quando, contratado o adicional de obstetrícia, não esteja completada a carência.  

Ademais, a quem paga o adicional de obstetrícia é facultada a cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto, seja o adicional pago pelo pai ou pela mãe. Mas veja, nada disso lhe será garantido se, antes de pensar em engravidar, os genitores já não tiverem previsto o risco “gravidez” e aderindo ao adicional.

Se de um lado a obstetrícia é tratada como uma opção a quem prospecte ser genitor/genitora, de outro a Resolução Normativa nº 167 da ANS tornou obrigatória, a partir de 2 de abril de 2008, a cobertura de procedimentos para anticoncepção (DIU, vasectomia e ligadura tubária).

Não se nega que existam métodos contraceptivos que permitem a programação familiar, mas, ao que nos parece, a legitimação legal da exclusão da obstetrícia dos planos de saúde se trata de política pública que, muito além de objetivar reduzir os ônus financeiros dos que não almejem a maternidade/paternidade, impõe à mulher o ônus de planejá-la por meio de métodos contraceptivos naturais ou artificiais, ao viabilizar a carência de trezentos dias para a cobertura.

De fato, não podemos programar a doença, por isso o legislador impediu que se extraia a cobertura a doenças e lesões, inclusive as preexistentes; contudo, quanto à gravidez, podemos impor a responsabilidade por sua programação a partir de métodos contraceptivos (naturais ou não) e penalizar, com a exclusão de cobertura, aos que não o utilizam? Ainda, trata-se de pena ou de incentivo ao planejamento familiar responsável?

Conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade [maternidade] responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

A Lei 9656/98 deve dialogar, pois, com a Lei 9263/96, a qual regula o planejamento familiar, direito de todo cidadão e parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde; com base nestas disposições, tem-se que compete ao Estado a garantia de direitos iguais de reprodução ao homem e à mulher, orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade, exigindo-se, como contrapartida a responsabilidade no ato de reprodução, sem, contudo, a exclusão de cobertura e assistência à saúde materna quando as formas de previsão e educação falhem. Os serviços de saúde suplementar necessitam prever métodos que, resguardando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, viabilizem o exercício do direito à maternidade saudável.

BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: L9263 (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1996. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em L9656 (planalto.gov.br)

*Vanessa Vilela Berbel é coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher (Ligue 180) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Doutora (PUC/SP) e mestre (USP) em Filosofia e Teoria geral do Direito, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná e

Não existe almoço de graça (?)

Vanessa Vilela Berbel

“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro”, questiona Clarice Lispector em seu conto “A repartição dos pães”. A não nominada “dona de casa” (nas palavras da autora), resignada, acostumou-se a servir. Doadora de si e do que é seu, a “dona de casa” oferece mesa farta aos convidados pouco desejosos da partilha – provavelmente seus filhos e familiares, que, constrangidos, aceitam a oferta sincera e desinteressada; deleitam-se, sem nenhuma palavra de amor. Apesar de deixar claro ao leitor que a farta mesa foi construída e posta com o labor da “dona de casa” generosa (a mãe), a narradora (provavelmente filha) revela a quem pertenciam os produtos consumidos: “aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade”. À dona de casa não é atribuída qualquer propriedade ou remuneração; reserva-se a ela apenas o constrangimento dos participantes pela sua benevolência.

Há um consenso geral de que o trabalho doméstico é subvalorizado, mal pago, desprotegido e mal regulado; infirmar ou confirmar cientificamente esse senso comum depende da apuração econômica do trabalho doméstico: pode esse labor ser mensurado? qual sua importância para o desenvolvimento econômico?

Há 80 anos James Meade and Richard Stone ditaram os padrões que globalmente formam o Produto Interno Bruto (PIB). Como a maioria dos estatísticos econômicos da época, Meade e Stone se concentraram quase inteiramente na medição do valor dos bens e serviços que foram realmente comprados e vendidos.

Por sua vez, a padronização internacional sobre a compilação de mensurações econômicas, System of National Accounts (SNA,2009), produzida pelas Nações Unidas, a Comissão Europeia, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Fundo Monetário Internacional e  Banco Mundial, expandiu o limite de produção, de modo que as contas deveriam incluir o trabalho de subsistência e o trabalho informal. Recomendou-se, por este método, a consideração de toda produção para consumo próprio, mas a continuidade de exclusão da produção do trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que a agricultura (de subsistência) e produção não mercantil de bens para o consumo das famílias são mensuradas e contabilizadas pelo SNA, permanecendo a exclusão do trabalho doméstico (incluindo o preparo de refeição), cuidado com crianças, idosos e deficientes, e outros serviços relacionados à família. Esta tomada de decisão promove contradições; como alerta WARING (2004): “um balde de água: lave a louça, lave a criança, cozinhe o arroz – não produção. Use a mesma água para pulverizar o milho e lavar o porco – isso é produtivo”. Em termos, o trabalho doméstico não remunerado permanece excluído das contas macroeconômicas, inviabilizando a formulação de políticas, análises e pesquisas.

Como se nota, a par do consenso majoritário, há quem acuse esses padrões de subestimar a mensuração interna anual da produção econômica. Há razões para a acusação? Economistas como Phyllis Deane também nos conferem argumentos para se opor a esta tradição e reivindicar a consideração do trabalho doméstico não remunerado nas contas macroeconômicas. Após analisar famílias das Colônias britânicas do Malawi e na Zâmbia, Deane foi pioneira em perceber que era um erro excluir o trabalho doméstico não remunerado do PIB. Especialmente em países em desenvolvimento, a mensuração do trabalho não remunerado nos agregados macroeconômicos importa para a promoção de igualdade de gênero, sendo ferramenta indispensável para uma mudança social positiva.

Muitos serviços que as famílias produzem para si mesmas não são reconhecidos em receita oficial e medidas de produção, mas constituem um aspecto importante da atividade econômica. Nesta esteira, como recomenda o Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi Report (Stiglitz, Sen and Fitoussi, 2009), são necessários trabalhos sistemáticos nesta área para mensurar como pessoas gastam seu tempo ao longo dos anos, visto que, especialmente nos países em desenvolvimento, a produção de bens e serviços (por exemplo, comida e limpeza) pelas famílias são também termômetros do processo de desenvolvimento.

Muitos dos produtos e serviços produzidos de forma não remunerada por familiares, ao longo do desenvolvimento econômico,  passaram a ser adquiridos no mercado, expressando uma mudança econômica importante, uma “conta satélite” dos agregados macroeconômicos que expande o conceito de produção. A análise desta modificação é importante, visto que a lacuna entre o tempo médio gasto por homens e mulheres para o trabalho não remunerado diminuiu com o desenvolvimento econômico mais por causa do advento de substitutos perfeitos ao trabalho das mulheres na cozinha, na lavanderia, nos cuidados, do que por uma mudança na distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, notadamente os homens.

Segundo a PNAD Contínua, em 2019, 146,7 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade destinam horas para a realização dos afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e produção para o próprio consumo.

Todavia, a destinação de esforços e tempo nestas tarefas é desproporcional em relação aos gêneros, afetando sobretudo as mulheres. Entre o grupo de mulheres que despendem labor não remunerado no âmbito familiares, são ainda mais afetadas aquelas que se encontram na faixa etária de 25 a 49 anos e com maior grau de escolaridade. A taxa de realização de afazeres doméstico é de 93,4% para as mulheres de nível superior, contra 85,7% para os homens do mesmo nível de escolaridade.

Outrossim, se analisarmos com grano salis os afazeres domésticos realizados por homens e mulheres, tem-se que enquanto as tarefas mais desempenhadas pelo gênero masculino consistem em cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados, etc.) e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, às mulheres destina-se prioritariamente as atividades de preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça e cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos. São atividades que requerem competência e habilidades bastantes diversas, inclusive quanto ao desgaste físico.

Esta distribuição desigual é prejudicial para as mulheres, sobrecarregando de forma bastante desproporcional principalmente às que estão em faixa etária em que se dá o auge da produtividade e escalonamento profissional; por consequência, elas têm menos tempo para aprender, relaxar, trabalhar em hobbies, ou se dedicarem a horas extras no trabalho.

E é justamente o destino do tempo e as pesquisas sobre ele, como afirma Marilyn Waring, que podem revelar “qual sexo torna o trabalho servil, chato, de baixo status e invisível não remunerado”. Neste aspecto, importa mensurá-lo e mais, considerá-lo em políticas públicas eficientes para a superação das desigualdades criadas por este desequilíbrio de atribuições. Por exemplo, atualmente se é possível a dedução tributária de custos com empregados domésticos em imposto de renda da pessoa física, mas não se pode fazer o mesmo com a redução de remuneração obtida pelo membro familiar que destina seu labor à esta atividade; ao mesmo tempo, é possível a dedução de pagamento de pensão de dependentes, mas não se pode proceder o mesmo abatimento das horas de trabalho com cuidados com a prole. Incoerências que precisam ser repensadas de forma séria e imediata e que, infelizmente, pesam mais ao gênero feminino.

Referências:

European Communities; International Monetary Fund; Organisation for Economic Co-operation and Development; United Nations and World Bank. System of National, 2008. Disponível: SNA complete.book (un.org)

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínu. PNAD Contínua – 2019: outras formas de trabalho. 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf

STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, 2009. Disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

WARING, Marilyn. 1999. Counting for Nothing: What Men Value and What Women Are Worth. Toronto: University of Toronto Press.

______. Unpaid Workers The Absence of Rights. CANADIAN WOMAN STUDIESILES CAHIERS DE LA FEMME. 2004. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/article/viewFile/6245/5433

Violência de gênero e regulação das mídias digitais

Vanessa Vilela Berbel

Estudo da ONU, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, revelou que, em 2019, 53,6% da população de todo o mundo possuía acesso à internet. O estudo apontava, contudo, desigualdades de gênero no acesso ao mundo digital, estimando-se que a proporção de todas as mulheres do globo que usavam a internet era de 48%, contra 58% de todos os homens, à exceção da América Latina em que há quase paridade de gênero neste quesito.

Ainda em 2019, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet, sendo que, destes, 99,5% valem-se de dispositivos móveis (smartfones). Com um celular na mão e a internet à disposição, não mais se pode controlar as expectativas de receptores e emissores nas trocas comunicativas, como se fazia nas interações face a face.

Antes dos meios de difusão, os emissores eram facilmente identificados. Difamar, humilhar ou injuriar alguém demandava que o (a) agressor(a) o fizesse cara a cara com o(a) agredido(a). Agora, no mundo digital, as faces se transmutam em perfis, muitos deles falsos, mas, ainda assim, determináveis e rasteáveis.

A pandemia do COVID-19 acelerou ainda mais a inclusão digital da população mundial e a redução da desigualdade de gênero ao acesso à internet; computa-se, em 2021, mais de 4,66 bilhões de usuários da Internet em todo o globo, ou seja, 59,5% da população mundial, dos quais 49,6% são mulheres e 50,4% homens.

Destes incluídos no mundo digital, 4,20 bilhões são também usuários de mídia sociais, o que equivale a mais de 53% da população total do mundo, sendo facebook, youtube e whatsapp as três plataformas mais utilizadas.

Calcula-se, em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários das mídias sociais a cada dia, os quais dedicarão de 51 minutos (média do Japão) a 4 horas e 5 minutos (média das Filipinas) diários ao uso das ferramentas digitais.

No Brasil, o usuário médio gasta 3 horas e 42 minutos em mídias sociais digitais, o que equivale a mais de um dia inteiro na semana. Se, em regra, a maioria se vale da ferramenta para conhecer conteúdos e interagir com famílias e amigos, alguns apropriam-se da facilidade para ataques de ódio, pelo que são chamados de “haters”.

Em 2021, no Brasil, são mais de 213.3 milhões de usuários da internet, em sua maioria mulheres (50.9%), com média de idade de 33.7 anos e alfabetizadas. Destes, 150 milhões são também usuários de mídias sociais, o que equivale a 70,3% da população brasileira, dos quais 130 milhões valem-se do Facebook, sendo 53,5% mulheres e 46,5% homens. Essas mulheres, maioria no mercado de consumido dos serviços das mídias sociais necessitam ter o direito à não violência também neste espaço de socialização humana.

Infelizmente, no mundo físico, pesquisa do Banco Mundial apontou que, em 2019, 35% da população feminina mundial sofreu violência psicológica e/ou física, 7% sofreu violência sexual e 200 milhões de mulheres sofreram mutilação genital. Em 2021, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) , uma a cada três mulheres sofreu violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência pelo simples fato de ser mulher.

Uma característica da violência de gênero é que ela não conhece fronteiras sociais ou econômicas e afeta mulheres e meninas de todas as origens socioeconômicas, pelo que as agressões sofridas no mundo físico veem sendo repercutidas no mundo digital; são ataques que objetificam a mulher, seu corpo, sua imagem e ameaçam-lhe a integridade física e psíquica.

Um estudo de 2018 realizado pela União Interparlamentar em 45 países europeus descobriu que mais da metade das mulheres parlamentares e funcionários parlamentares entrevistados (58%) sofreram ataques sexistas nas redes sociais, incluindo repetidos insultos misóginos e incitação ao ódio, fotomontagens de nudez e pornografia. Metade dos entrevistados (47%) sofreram ameaças de morte ou estupro. Na maioria dos casos (76%), os perpetradores eram homens anônimos (União Interparlamentar, 2018).

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Ligue 180) revelam mais de 5.520 denúncias de violência praticadas contra pessoas do sexo feminino e ocorridas no âmbito da internet, em sua maioria contra a integridade psíquica da vítima, tais como ameaças, constrangimentos, torturas psíquicas, calunias, injúrias e difamações. Destas denúncias de violência contra a mulher no âmbito digital, 78,14% foram praticadas por agressores do sexo masculino.

Sabe-se que as interações nas redes sociais são impulsionadas a partir de algoritmos capazes de compreender padrões de comportamentos dos usuários. São os algoritmos imunes à propagação de misoginias e conteúdos de ódio? Segundo Francis Haugen, não.

Haugen, ex-funcionária do Facebook, engenheira da equipe de integridade cívica, em 03 de outubro deste ano (2021) rompeu o anonimato em entrevista ao “Wall Street Journal” e “CBS News” e acusou a rede social de promover conteúdo nocivo e não fazer nada a respeito daqueles que os disseminam.

Na mesma toada, Marianna Springs, repórter da BBC, em matéria intitulada “Recebo xingamentos e ameaças online – por que é tão difícil combater isso” (Estado de Minas, 20/10/2021) relatou que, após receber diariamente mensagens abusivas nas redes sociais carregadas de expressões de ódio em referências a estupros e atos sexuais, decidiu criar um perfil fake de “trollagem” nas cinco redes sociais mais populares do mundo para ver se elas promoviam conteúdos misóginos. Para sua surpresa, a conta falsa recebeu recomendações de conteúdos de ódio contra mulheres, inclusive envolvendo violência sexual, o que demonstra a ausência de uma efetiva autorregulação das plataformas.

Entende-se, a partir destes fatos, a importância da existência de autorregulação e controle interno das mídias sociais para a tomada de iniciativas imediatas à suspensão das agressões (retirada do conteúdo e bloqueio do perfil), a partir da construção de um due dilligence obligations que permita remediar danos decorrentes de publicações indevidas sem ferir a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, permita a rápida apuração e encaminhamento dos conteúdos aos órgãos da rede de enfrentamento à violência para punição efetiva dos agressores.

Contudo, a autorregulação não dispensa o controle externo, a partir de uma metarregulação, ou, em outros termos, uma “autorregulação regulada”, como explica Lucas Amato em seu artigo “Fake News: regulação ou metarregulação?” (2020). Nestes termos, caberá ao Estado cobrar das mídias sociais o desenvolvimento de mecanismos de responsabilização e os parâmetros de sancionamento necessários.

Portanto, compete ao Estado traçar as diretrizes gerais para viabilizar a construção normativa própria das mídias sociais quanto aos procedimentos internos de abertura de canais de reclamação e monitoramento de denúncias, desenvolvimento de procedimentos para a suspensão de contas inautênticas e suspensão das atividades de usuários que descumpram seus regramentos; todavia, ao mesmo tempo, deve instituir regras jurídicas claras quanto ao descumprimento destes deveres de fiscalização interna e vigilância, impondo a responsabilização destes fornecedores em caso de desídia no controle interno das práticas de integridade cívica e do encaminhamento dos casos delitivos às autoridades responsáveis pela rede de enfrentamento à violência.

Fontes:

AMATO. Lucas Fucci. Fake News: regulação ou metarregulação?. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 58, n. 230, p. 29-53 abr./jun., 2021

BRASIL. Ministério das Comunicações. Notícia: Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet — Português (Brasil) (www.gov.br), disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, de 14.04.2021. Acesso em 24.10.2021

Inter-Parliamentary Union, 2018. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/gender-equality-index-2020-report/abbreviations?lang=nl. Acesso em 24.10.2021

WE ARE SOCIAL AND HOOTSUITE. Digital 2021: Global Overview Report. Disponível em: https://wearesocial-net.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/common/reports/digital-2021/digital-2021-global.pdf. Acesso em 24.10.2021

THE WORLD BANK. Gender-Based Violence (Violence Against Women and Girls) (worldbank.org). Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/socialsustainability/brief/violence-against-women-and-girls. Acesso em 24.10.2021

OMS e PNUD. Global, regional and national estimates for intimate partner violence against women and global and regional estimates for non-partner sexual violence against women, 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devastadoramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em 24.10.2021

Decreto nº 10.712/21: mais um passo para o desenvolvimento do setor de Gás Natural

Daniela Santos

Minha coluna de hoje é sobre o recém-publicado Decreto nº 10.712/21 que regulamenta a Lei nº 14.134/2021 (Nova Lei do Gás) – aprovada e sancionada em abril deste ano.

Em primeiro lugar, chama a atenção o curto tempo entre a publicação da Nova Lei e do Decreto, o que confirma o entrosamento e interesse de todos os órgãos envolvidos no destravamento das barreiras existentes para o pleno desenvolvimento do setor de gás natural no Brasil – considerando, sempre, que a Nova Lei do Gás dispõe sobre todas as atividades do setor, exceto a atividade de distribuição.

Pois bem. Há novas definições no Decreto, inclusive algumas que merecem ser apresentadas aqui, a começar pelo conceito de atividades concorrenciais como as “de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural autorizadas nos termos da regulação da ANP e exploradas de acordo com os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa”. Com efeito, não há mais dúvidas em relação à competência da ANP para autorizar a atividade de comercialização de gás natural!

O Decreto volta ao tema da concorrência ao incluir, entre os princípios e objetivos da Política Energética Nacional (inseridos na Lei nº 9.478/97), a promoção da concorrência e da liquidez do mercado de gás natural, a promoção da livre iniciativa para exploração das atividades concorrenciais, a expansão, em bases econômicas, do sistema de transporte e das demais infraestruturas e promoção da eficiência e do acesso não discriminatório às infraestruturas.

Nesta medida, a interpretação das normas do setor de gás deve considerar tais princípios e objetivos, o que facilitará o trabalho do regulador em conjunto com as regras dispostas no art. 33 da Nova Lei do Gás[1].  

Sobre a esperada transparência em todos os elos da cadeia de gás natural, oportuno mencionar que o legislador conceitua como informações concorrencialmente sensíveis aquelas “específicas que versam diretamente sobre o desempenho das atividades-fim das empresas que exercem atividades concorrenciais ou que possam conferir às empresas vantagem competitiva, em especial os dados não públicos sobre custos e planos de expansão, preços e descontos, estratégias competitivas, principais clientes, salários de funcionários, marcas, patentes e pesquisa e desenvolvimento, entre outros”. Parece repetitivo, mas é um conceito que deverá ser muito (bem) utilizado, inclusive por conta da implementação do acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais.

Atendendo a pedidos, as definições incluem os conceitos de biogás e biometano – o qual terá tratamento regulatório equivalente ao gás natural (assim como outros gases intercambiáveis).

O Decreto também disciplina a situação de congestionamento contratual, que envolve o “impedimento contratual ao atendimento de demanda por capacidade de transporte, quando esta não se encontra plenamente utilizada”. Volto ao assunto em breve.

Em relação ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural, o Decreto o define como “acordo voluntário entre representantes da União, dos Estados e do Distrito Federal, que estipula a cooperação federativa para a efetivação das medidas necessárias para a harmonização das regulações estaduais e federais e para desenvolvimento do mercado de gás natural no País, e que contém a formalização de compromissos nas esferas nacional, estadual e distrital”. E tal Pacto decorre do novo objetivo da Política Energética Nacional de harmonização entre as regulações federal e estatuais relativas à indústria de gás natural. No meu entendimento, o tema é o mais desafiador do Novo Mercado de Gás e deverá ser priorizado, observando as especificidades de cada Estado.

Outra definição que chama a atenção no Decreto é a do usuário final de gás natural, ou seja, aquele “destinatário do gás natural situado no fim da cadeia de valor da indústria do gás natural”, não se enquadrando, porém, as pessoas jurídicas que utilizam o gás para “consumo próprio” ou “em outras etapas intermediárias da cadeia, tais como compressão, liquefação, regaseificação e acondicionamento de gás natural”. Tal definição tem desdobramentos na conexão direta entre transportador e usuário final (o que dependerá, segundo o Decreto, da norma estadual) e na atividade de comercialização de gás aos usuários finais.

Especificamente sobre a atividade de transporte de gás natural, considerando que a Nova Lei do Gás substituiu a concessão pela autorização para a outorga da atividade de transporte, restou ao Decreto esclarecer que tal processo deverá ser realizado de forma célere, eficiente e transparente, além de confirmar a competência da ANP para a sua regulação.

Outro ponto que chama atenção no novo Decreto é a definição do gasoduto de transporte com bases técnicas (diâmetro, pressão e extensão). Isto porque, enquanto a Nova Lei do Gás estabeleceu que será considerado como gasoduto de transporte, entre outros, aquele destinado à movimentação do gás natural cujas “características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP”, a nova regulamentação acrescenta que tal definição deverá considerar a promoção da “eficiência global das redes”, podendo ser diferenciados conforme a “finalidade dos gasodutos”.

Em outra passagem, o Decreto amplia ainda mais a definição, ao elencar hipóteses nas quais a ANP poderá deixar de classificar determinado duto como de transporte, apesar de atender aos – futuros – requisitos técnicos. Ou seja, as (futuras) definições técnicas do regulador não serão os únicos basilares para a determinação de gasoduto de transporte.

Sobre o sistema de transporte disposto na Nova Lei do Gás, é esperado o aumento da liquidez do ponto virtual de negociação. O Decreto também reforça o papel do gestor de mercado, especialmente para assegurar a troca rápida de informações entre os transportadores (os quais poderão trocar a titularidade do gás natural sob sua custódia, nos termos da regulação da ANP) e o bom funcionamento dos mercados de gás natural.

Ainda sobre a atividade de transporte, o Decreto reforça o direito de acesso não discriminatório dos carregadores no ponto virtual de negociação, de forma eficiente e transparente, e a eliminação do já mencionado congestionamento contratual nos pontos de entrada e saída do sistema de transporte, de modo a evitar gargalos que criem ou mantenham obstáculos ou dificuldades para implementar os novos princípios e objetivos da Política Energética Nacional – possibilitando, inclusive, a adoção de medidas de cessão compulsória de capacidade de transporte. Avanço importante para o setor.

Sobre a atividade de estocagem subterrânea, o Decreto se reporta bastante à ANP, tanto na articulação com outras agências para a regulação do exercício da atividade, como para a regulação do acesso de terceiros, detalhando as hipóteses de acesso não obrigatório temporário – ainda que isso tenha conferido ao tema uma dose excessiva de subjetividade, especialmente se considerarmos a hipótese de “relevância da instalação de estocagem para o abastecimento nacional de gás natural”. 

Em relação ao acesso não discriminatório e negociado de terceiros aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás e aos terminais do GNL – garantido pela Nova Lei do Gás – o Decreto fala em transparência, confidencialidade (que não afasta o acesso da ANP às informações sobre as tratativas entre as partes), prazos e condições pré-definidos e na possibilidade de a ANP atuar de ofício para “verificar a existência de eventuais condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”.  Espero que a implementação de tais regras somadas à elaboração do Código de Condutas e Práticas de Acesso à Infraestrutura (indicado na Nova Lei do Gás), realmente equacionem o problema que, se não resolvido, poderá resultar em grande prejuízo para a concorrência/competitividade no setor de gás.

Por outro lado, em relação às atividades de distribuição e comercialização de gás natural, o Decreto corrobora a possibilidade de relação societária entre empresas que exerçam atividades concorrenciais e as distribuidoras, mas estabelece uma série de regras parar evitar práticas anticoncorrenciais no mercado. A ANP deverá acompanhar o mercado assegurando transparência em relação à formação dos preços e regular a organização e o funcionamento do mercado atacadista de gás natural.

O Decreto reforçou que a ANP não autoriza a atividade de fornecimento de gás canalizado – cuja competência é dos Estados. Por outro lado, esclareceu que a atividade de comercialização abrange a venda do gás acondicionado sob as formas gasosa, líquida ou sólida, transportado por modais alternativos ao dutoviário, inclusive aos usuários finais – repita-se. O intuito foi diferenciar as atividades e, com isso, assegurar algum avanço na ponta da cadeia de gás natural.

Por fim, nas Disposições Finais, além de esclarecer que “os bens vinculados à atividade de transporte de gás não reverterão à União e não caberá indenização por ativos não depreciados ou amortizados”, o Decreto detalha a articulação – contemplada na Nova Lei do Gás – entre Ministério de Minas e Energia, ANP, Estados e Distrito Federal para a harmonização e aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria do gás natural. O texto fala nos mecanismos que poderão ser adotados pelos Estados interessados e, como indicado acima, sinaliza para a adesão voluntária ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural. Vamos aguardar para ver qual será o primeiro Estado a aderir ao Pacto – e os desdobramentos decorrentes de tal adesão.

Ainda nas disposições finais, não poderia deixar de mencionar a faculdade disposta no Decreto para “a adoção de soluções individuais que visem ao atendimento do disposto na Lei nº 14.134, de 2021, respeitado seu rito decisório, até que seja editada regulação específica pela referida Agência”. A possibilidade – que já foi utilizada no caso do acesso à UPGN Guamaré – é importante para garantir a eficiência do setor, mas é preciso que todas as informações referentes às soluções individuais sejam devidamente fundamentadas e publicadas, de modo a garantir transparência e uniformidade às decisões.   

Em conclusão, afirmo, mais uma vez, que o estímulo à competitividade/ concorrência realmente é o aspecto central do Decreto, assim como da Nova Lei do Gás. Com base nisso, resta contribuir não apenas para a realização da agenda da ANP, de modo a finalizar a regulação federal, mas também as adequações dos Estados no âmbito do mencionado Pacto Nacional, de modo a garantir harmonia e coordenação ao setor. Não é pouco. Mas é inequívoco que estamos cada vez mais próximos do sucesso que todos nós aguardamos para o setor de gás no Brasil.


[1] Art. 33.  Caberá à ANP acompanhar o funcionamento do mercado de gás natural e adotar mecanismos de estímulo à eficiência e à competitividade e de redução da concentração na oferta de gás natural com vistas a prevenir condições de mercado favoráveis à prática de infrações contra a ordem econômica.

§ 1º  Os mecanismos de que trata o caput deste artigo poderão incluir:

I – medidas de desconcentração de oferta e de cessão compulsória de capacidade de transporte, de escoamento da produção e de processamento;

II – programa de venda de gás natural por meio do qual comercializadores que detenham elevada participação no mercado sejam obrigados a vender, por meio de leilões, parte dos volumes de que são titulares com preço mínimo inicial, quantidade e duração a serem definidos pela ANP; e

III – restrições à venda de gás natural entre produtores nas áreas de produção, ressalvadas situações de ordem técnica ou operacional que possam comprometer a produção de petróleo.

§ 2º  A ANP deverá ouvir o órgão competente do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) previamente à aplicação das medidas de que trata o § 1º deste artigo.

A nova Lei do Gás

Daniela Santos

Minha coluna de hoje é sobre a Lei nº 4.476/2020 (Lei do Gás), aprovada e sancionada recentemente (sem vetos), e que suscita grande curiosidade mesmo entre aqueles que não atuam diretamente com o tema.

E tal interesse decorre, em parte, devido as (péssimas) notícias sobre o aumento do gás natural em quase 40% imposto às distribuidoras estaduais – sendo importante esclarecer que o reajuste é da Petrobras e não das distribuidoras locais, que apenas repassam os valores aos seus respectivos consumidores, gerando importante impacto para a indústria nacional (principal usuária do insumo).

Com efeito, a nova Lei, assim como seus futuros Decreto e regulamentações, têm como tarefa imediata resolver gargalos importantes de modo a realmente estimular a entrada de novos agentes e, com isso, a competição no setor. Só assim poderemos ter um contexto mais propício, nos próximos anos, para notícias melhores…

Pois bem. Antes de entrarmos nos dispositivos da nova Lei do Gás, importante não perder de vista as principais medidas do Novo Mercado de Gás:

  • A celebração do Termo de Comprimisso de Cessação, assinado em 2019, entre CADE e Petrobras, que resultou, entre outros, na venda de ativos da petroleira,
  • A resolução CNPE nº 16/2019, que estabeleceu diretrizes voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural,
  • A realização do REATE, e
  • Ajustes SINIEF – questão tributária

Foi a partir desse cenário que a Lei foi aprovada, com destaque para pontos importantes como o estímulo à competição e concorrência, acesso não discriminatório e harmonização das leis estaduais.

Sobre a atividade de transporte de gás natural, é mais do que sabido que a nova Lei tratou com muito cuidado de ajustar o que não funcionou na revogada Lei nº 11.909/09. E quando digo que não funcionou, me baseio no fato de não termos conseguido avançar na expansão da malha de transporte, o que é fundamental para a garantir o suprimento do gás no País.

O destaque é que a Nova Lei substituiu a concessão pela autorização para a outorga da atividade de transporte, e isso transformou a lógica contida nos dispositivos anteriores, sendo um dos pontos mais festejados da nova Lei.

Ademais, importantes critérios de independência foram inseridos na Lei, de modo a garantir a concorrência.

Ao elencar o que se considera como gasoduto de transporte, a nova Lei do Gás caminha para estabilizar os limites da atividade e, consequentemente, resolver antigos problemas referentes à distribuição de gás canalizado – monopólio constitucional dos Estados. Aqui, esperamos que o Decreto e a regulamentação que serão elaborados, sejam ainda mais objetivos, garantindo segurança para todos os elos da cadeia de gás.

A Nova Lei destaca o papel da ANP nos diversos segmentos, o que restou claro na sua agenda regulatória. Especificamente, conferiu ao regulador um papel fundamental tanto na definição da receita máxima para o transporte quanto na aprovação das suas tarifas. Destaco a importância de garantir a publicidade e transparência dos cálculos.

Por falar em transparência, assunto que sempre trato em meus artigos, comemoro sempre que leio estudos que comprovam que não se trata apenas de um discurso bonito, mas de uma absoluta necessidade para o eficiente funcionamento do setor. Com o desinvestimento da Petrobras no setor de gás e aumento do número de agentes – além das novas diretrizes contidas na Lei das Agências Reguladoras – a publicidade e transparência são pilares para os avanços que desejamos. E com isso, também quero dizer que processos aleatoriamente sigilosos e documento excessivamente tarjados não devem ter mais espaço no novo mercado de gás.  

Sobre o almejado sistema de transporte, chamo atenção para os objetivos elencados na nova Lei, quais sejam: (1) atendimento da demanda de transporte, (2) diversificação da fonte de gás natural e (2) segurança de suprimento por dez anos. A criação de um Conselho Gestor de Mercado – para os casos de mais de uma transportadora na mesma área – poderá ajudar, assim como a criação dos Conselhos de Usuários para monitoramento.

Neste sentido, vale mencionar que mercado saudável conta, também, com a efetiva participação de usuários na verificação do que está sendo executado. O desafio será garantir a devida escuta e consideração ao monitoramento.

Por fim, com o balanceamento, a nova Lei do Gás pretende garantir o suprimento do sistema.

Sobre gasoduto de escoamento, UOGN e unidades de liquefação e regaseificação, a grande novidade é o acesso não discriminatório e negociado de terceiros às infraestruturas essenciais. Uma grande alegria para todos que esperavam o destravamento do que restou disciplinado na antiga Lei do Gás. Junto ao acesso, o legislador esclarece que a preferência é do proprietário da instalação e cria o código de condutas e práticas de acesso à infraestrutura, dando, mais uma vez, ênfase à publicidade e a transparência.

A remuneração e o prazo merecem destaque aqui, porque a despeito de serem pontos acordados entre as partes, deverão ter como base critérios objetivos e previamente definidos e divulgados. Novamente, um alívio para todos que aguardam transparência!

Outros dois pontos fundamentais disciplinados na nova Lei são: a distribuição e a comercialização do gás. Mas como há muitos desdobramentos, optei por focar neste artigo apenas a análise da competitividade e da competência.

Sobre competitividade, a nova Lei é muito clara: trata-se do principal objetivo do mercado livre de gás. E isso carrega uma série de princípios que deverão ser observados durante o acompanhamento do setor pela ANP. Mas é importante não perder de vista que o regulador deve escutar os órgãos competentes de defesa da concorrência antes da tomada de decisão, o que, inclusive, está expressa e corretamente disposto na nova Lei do Gás.

Isso parece outro ponto bonito de se escrever, mas pouco prático. Ledo engano. Recentemente, escrevi com o meu colega Felipe Fernandes um artigo, ainda não publicado, sobre uma deliberação regulatória estadual, que presume como infração à ordem econômica o controle, por uma comercializadora, de mais de 20% do volume de gás canalizado vendido naquele estado.

O limite imposto, na prática, confunde posição dominante com infração à ordem econômica o que prejudica a concorrência – objetivo do regulador. Por isso, é importante não perder de vista que somente com o apoio coordenado dos órgãos competentes, será possível garantir a concorrência no setor de gás.    

Finalmente, sobre a competência, precisamos compreender definitivamente que quem pode regular e fiscalizar a atividade de comercialização de gás no País é a União. Aos Estados resta a definição do consumidor livre.

Por isso, a antiga e nova leis dispõem sobre comercialização do gás natural. E é nesse sentido que as novas e antigas leis estaduais deveriam ser ajustadas. Porque a segurança do mercado de comercialização de gás depende de regras uniformes aplicáveis em todo o território nacional. E o investidor está atento aos Estados que organizam bem as suas atribuições e cumprem com as normas federais aplicáveis – como bem destaca Adrianno Lorenzon, coordenador técnico da equipe de gás natural da ABRACE.   

Observo, por fim, que a nova Lei do Gás fala em harmonização das normas e articulação dos entes, especialmente em relação à regulação do consumidor livre (neste ponto, inclusive, vale mencionar que a ANP recentemente aprovou o Manual de Boas Práticas para Harmonização das Normas Federal e Estaduais.). Importante garantir que os Estados estejam realmente preparados para incentivar a comercialização de gás no mercado livre, o que, sem qualquer dúvida, resultará no sucesso do Novo Modelo do Gás.