“Inimiga jurada do arbítrio, a forma é a irmã gêmea da liberdade”.
Rudolf von Jhering*
INTRODUÇÃO
Todo estudante de Direito sabe que qualquer decisão da Administração pública deve ser fundamentada e, antes e depois dela, deve ser oferecida oportunidade de manifestação a todos os interessados, em atenção aos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa.
Eventuais necessidades de maior prazo para análise de procedimentos e processos administrativos, em razão, por exemplo, de reorganização ou reestruturação internas, não podem ser motivo excludente da obrigação da Administração de garantir o respeito aos cânones do direito processual e do próprio Regime Jurídico Administrativo.
Dito de outra forma, constatada a inércia da Administração pública e a sua incapacidade de garantir o devido processo legal e o contraditório, ou seja, receber, analisar e decidir sobre todas as manifestações dos interessados, deve ela manter a situação em seu patamar de normalidade (status quo ante), até que seja dada a devida oportunidade, consideração e resposta às manifestações de interessados.
Afinal, a sociedade não poder ficar refém de eventual incapacidade, desorganização interna e demora na prestação do serviço público e no cumprimento das obrigações da Administração pública e seus agentes.
A demora da Administração, ainda que causada por dificuldades de reestruturação institucional ou quaisquer outras, não pode jamais ser utilizada como justificativa para a inadequada prestação do serviço público ou o atropelo aos princípios do due process e do contraditório. Além desses já citados, também devem ser considerados princípios como o da continuidade do serviço público e o da eficiência administrativa, para citar alguns.
Pouco importa, para fins de garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, se a Administração pública está assoberbada com mudanças estruturais, novos procedimentos, ou o que quer que seja. Os processos em tramitação não podem parar, e os direitos de todos os administrados não podem deixar de ser respeitados e rigorosamente garantidos.
É razoável trazer à baila, também, o princípio da proibição de comportamento contraditório[1], que prevê que as partes se comportem de forma leal nas suas relações; bem como a vedação de alegação da própria torpeza[2], segundo o qual, ninguém deve ser ouvido ao alegar a própria torpeza, inclusive o próprio Estado e seus agentes.
A Administração pública não pode alegar a própria incapacidade como justificativa para o desrespeito a consagrados princípios processuais e administrativos, como os já citados.
Independentemente da implementação de alterações institucionais ou estruturais, ou de um novo rito administrativo processual, ou de qualquer contratempo, os direitos dos administrados não podem deixar de ser rigorosamente observados. Não é porque a burocracia não andou bem, que o devido processo ou o contraditório também deverão tropeçar.
Além da ofensa aos princípios elencados acima, ao negar devida oportunidade de manifestação aos interessados, a Administração também estaria afrontando as mais triviais práticas de boa governança pública.
Um comportamento hermético e dissimulado da Administração pública fere a moralidade administrativa, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé[3], conforme se verá abaixo. Faz pouco caso, também, do princípio da publicidade, que inclui a transparência na Administração Pública.
Não é outra a mens legis do art. 29 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), que prevê que:
“Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão”.
Nesse mesmo sentido, como não poderia deixar de ser, também vai o art. 30 do mesmo diploma:
“Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.
Decisões administrativas podem envolver variadas políticas públicas, que afetam inúmeros agentes econômicos e setores produtivos, até o consumidor final. A todos esses interessados, efetivos ou potenciais, deve ser dada a oportunidade de manifestação sobre determinado ato administrativo. Além disso, que seus comentários e informações sejam devidamente analisados e respondidos, pois, para isso, há o processo administrativo.
DO DIREITO
O art. 5º, LV, da Constituição Federal prescreve que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
O parágrafo único, do art. 2o, da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99), prevê que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios da atuação conforme a lei e o Direito; da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; e da observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados.
O art. 3o, do mesmo diploma, estipula ainda que:
“Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;”.
O art. 29 da Lei 9.784/99, esclarece que as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão “realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias”.
Além disso, de acordo com o art. 38 daquela lei:
“O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.
§ 1o Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão.
§ 2o Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.
DA DOUTRINA
Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, o contraditório pressupõe “informação necessária e reação possível” [4] por parte do administrado, em razão de fatos, argumentos e documentos que possam lhe afetar negativamente. Isto é, a oportunidade de efetiva participação na produção do conjunto probatório e de apresentação de argumentos perante o processo e a autoridade com poderes de decisão.
Em outras palavras, cabe à Administração pública garantir a efetividade da participação dos interessados no processo, dando-lhes ensejo para a apresentação de argumentos e provas, bem como analisando e se manifestando a respeito deles, e, portanto, cumprindo com os deveres de boa-fé e motivação.
A ampla defesa, da mesma forma, implica na oportunidade de resistência às pretensões adversárias, na possibilidade de apresentação de defesa prévia e técnica, de interposição de recursos, de intimação, de produção e contestação de provas e de alegações finais.
Para uns dos luminares do Direito Administrativo brasileiro, o Visconde do Uruguai[5]: “a jurisdição administrativa sem garantias, sem forma conveniente de processo, é arbítrio puro e simples da Administração”[6].
O renomado processualista italiano Elio Fazzarali, ensinava que: “o processo é modulo de participação e síntese de vontades contrapostas, predestinado à produção do ato final”[7].
Para Scarpinella Bueno[8], além de todos os benefícios democráticos gerados pelo respeito ao contraditório, ele também viabiliza a boa e adequada prestação jurisdicional, pois “a ampla discussão quanto à produção do ato administrativo, em sede não judicial, pode facilitar e viabilizar o controle judicial”.
Quanto ao due process of law, Bandeira de Mello[9], escreve que:
“Deveras, o propósito nele consubstanciado é o de oferecer a todos os integrantes da sociedade a segurança de que não serão amesquinhados pelos detentores do Poder, nem surpreendidos com medidas e providências interferentes com a liberdade e a propriedade sem cautelas preestabelecidas para defendê-las eficazmente. (Grifos)
(…)
Tal enquadramento da conduta estatal em pautas balizadoras (…) concerne tanto a aspectos materiais, quanto a aspectos formais, ou seja, relativos ao preestabelecimento dos meios eleitos como vias idôneas a serem percorridas para que, por meio delas, e somente assim, possa o Poder Público exprimir suas decisões”.
Para a ministra Cármen Lúcia[10]:
“As formas desempenham um papel essencial na convivência civilizada dos homens: elas delimitam espaços de ação e modos de inteligíveis de comportamento para que a surpresa permanente não seja um elemento de tensão constante (…). Fora daí, não há solução para a barbárie e para descrença no Estado. Sem confiança nas instituições jurídicas, não há base para a garantia nas instituições políticas”
Carvalho Filho[11] ensina que: “Embora se costume invocá-lo (o devido processo legal) nos processos litigiosos, (…) a verdade é que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não-litigiosos (…)”.
Frederico Marques[12] lembrava que:
“Se o poder administrativo, no exercício de suas atividades, vai criar limitações patrimoniais imediatas ao administrado, inadmissível seria se assim atuasse fora das fronteiras do due process of law. Se o contrário fosse permitido, ter-se-ia de concluir que será lícito atingir alguém em sua fazenda ou bens, sem o devido processo legal. (…) Isto posto, evidente se torna que a Administração Pública, ainda que exercendo seus poderes de autotutela, não tem o direito de impor aos administrados gravames e sanções que atinjam, direta ou indiretamente, seu patrimônio, sem ouvi-los adequadamente, preservando-lhes o direito de defesa”.
Nos dias atuais, há multiplicidade de interesses, diversidade de pontos de vista, inúmeras controvérsias a respeito de direitos, no âmbito da atuação administrativa[13]. Assim, “o litígio surge em razão de uma controvérsia, em razão de um conflito de interesses. (…) Haverá litigantes sempre que houver um conflito de interesses, sempre que houver uma controvérsia”[14].
Para Nery Jr.[15]:
“Em razão da incidência da garantia constitucional do contraditório, é defeso ao julgador encurtar, diminuir (“verkürzf”) o direito de o litigante exteriorizar a sua manifestação nos autos do processo. Em outras palavras, não se pode economizar, minimizar a participação do litigante no processo, porque isso contraria o comando da norma”.
Importante lembrar, também, do princípio constitucional da moralidade, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé, segundo os quais:
“A administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lisura, sendo-lhe proibido qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”[16].
A verdade é que falta prestígio ao processo administrativo em nosso país. O desprestígio vem especialmente da própria Administração pública, mais interessada em atingir as suas metas e compromissos, do que em cumprir todos os requisitos do processo e, assim, garantir cabalmente os direitos dos administrados.
Aliás, consoante o princípio da verdade material, a Administração pública deve tomar decisões com base nos fatos, tais como se apresentam na realidade, não se satisfazendo com a versão oferecida por um ou outro interessado.
Para tanto, tem ela o dever-poder de trazer aos autos todos os dados, informações e documentos a respeito da matéria tratada, sem estar restrita aos aspectos considerados pelos interessados. Assim, a Administração tem, não só liberdade plena, como o dever de buscar a produção de informações, dados, documentos e evidências.
O Poder Executivo também tem o dever-poder de apurar e investigar. Tal “dever-poder” de averiguar todos os fatos que possam configurar hipótese prevista na legislação, decorre do princípio da supremacia do interesse público e do princípio da legalidade.
DA JURISPRUDÊNCIA
Além de jurisprudência reiterada e pacífica em todos os tribunais pátrios, e. Superior Tribunal de Justiça STJ, no Incidente de Assunção de Competência no Recurso Especial (IAC no REsp) nº 1604412-SC (2016/0125154-1), definiu que “o contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”.
Não menos submetido ao comando constitucional do contraditório está, por intuitivo, o Poder Executivo, pois, como visto, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo (…) são assegurados o contraditório e ampla defesa (…)[17]”.
CONCLUSÃO
Seria compreensível, ainda que lamentável, da parte de integrantes do Poder Executivo, de atuação burocrática e limitados conhecimentos jurídicos, a falta de compreensão do significado e importância de princípios como o do contraditório e do devido processo para a própria sustentação do Estado de direito.
Neste contexto, sobrevém a importância do Poder Judiciário, como última instância do cidadão para a garantia de seus direitos, inclusive contra o próprio Estado-Administração. Quem, senão o Judiciário, para orientar a correta atuação do Poder Executivo? Afinal, trata-se do relacionamento do Estado, por meio do Poder Executivo, com os seus súditos. Ou seja, da relação jurídica entre a Administração e o administrado.
A estatura desse relacionamento e o respeito integral às garantias constitucionais somente poderão ser demarcados pela atuação firme e fiel do Poder Judiciário.
Qualquer espécie de postergação, diminuição ou enfraquecimento desses princípios afronta os direitos de qualquer cidadão ou agente econômico e, portanto, também de todo o conjunto da sociedade.
A história nos revela que o desmoronamento do Estado de direito se inicia, exatamente, pelo desdém a pequenos, porém significativos direitos dos cidadãos e, frente à apatia da sociedade, o pouco-caso se transforma em desprezo.
Não há como relativizar o devido processo e o contraditório. Ou eles existem ou não existem. Ou bem são garantidos, ou não.
Seria o mesmo que dizer ao condenado à pena de reclusão em ação criminal, que seu recurso será analisado, mas somente depois que a vara se organizar em razão de mudanças na estrutura de pessoal e de fluxo de trabalho.
A cada dia que passa, a ineficiência e a negligência do Poder Executivo impõem prejuízos aos administrados e, em última instância, a toda a sociedade.
O verbete “postergar”, de acordo com o dicionário da Língua Portuguesa, admite dois significados, conforme abaixo:
- preterir, desprezar.
- não fazer caso, menosprezar.
Nesse sentido, quando há flagrante leniência da Administração com a postergação, com a preterição e o pouco caso, resta também patente o desprezo ao devido processo e ao contraditório.
Em se tratando de postulados tão elevados e indispensáveis do direito processual e administrativo, não se pode admitir qualquer espécie de diminuição ou menosprezo, ainda que de forma temporária, tanto mais da Administração pública.
[1] Venire contra factum proprium.
[2] Nemo auditur turpitudinem allegans.
[3] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004.
[4] DINAMARCO. C. R. Fundamentos do processo civil moderno. 6 ed., 2010, São Paulo, Malheiros.
[5] Paulino José Soares de Sousa foi juiz, desembargador, deputado, senador, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, presidente de Província e ministro do STF.
[6] CARVALHO, J. M. de. (org.) Visconde do Uruguai. Coleção Formadores do Brasil, Ed. 34, São Paulo, 2002.
[7] FAZZARALI, E. Instituições de Direito Processual. 1ª ed., Bookseller, São Paulo, 2006.
[8] BUENO, C. S. Manual de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2020.
[9] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 108.
[10] ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro. In Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, n. 3
6, out./dez., 1997, ps. 5 a 28.
[11] CARVALHO FILHO. J. dos S. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed., Atlas, São Paulo, 2020.
[12] MARQUES, J. F. A garantia do due process of law no Direito Tributário, RDP 5/28 apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.
[13] MEDAUAR, O. Direito Administrativo Moderno. 20ª ed., 2016, São Paulo, RT.
[14] GRINOVER, A. P. Garantias do contraditório e ampla defesa. Jornal do Advogado, Seção de São Paulo, n. 175, nov. 1990, p. 9. Apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.
[15] SACHS-DEGENHART, KommGG, comment. II, 3, GG 103, p. 2.20, 4a ed., München: Beck, 2007. Apud NERY. N. J. et all. Constituição Federal Comentada. 7ª ed., 2019, São Paulo, RT, p. 183.
[16] DE MELLO, C. A. B. Op. Cit., p. 109.
[17] Art. 5º, LV, da Constituição Federal.
* JHERING, R. V. O espírito do direito romano: nas diversas fases de seu desenvolvimento, Rio de Janeiro, Alba, 1943.