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Há razões econômicas para se obrigar os licitantes à contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar?

Vanessa Vilela Berbel

Combater a violência doméstica é tarefa compartilhada por todos e claramente enunciada na Constituição Federal, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; destaca-se, ainda, o §2º, art. 3º, da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que reza caber à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos por ela enunciados.

Mas, infelizmente, se o combate à desigualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres integrassem a matriz curricular do ensino universal, poucos países passariam de ano. Estudo do Fórum Econômico Mundial de 2020 (World Economic Forum/ WEF) revelou que nem eu ou você estará vivo para ver a paridade entre homens e mulheres na saúde, educação, no trabalho e na política, a qual demorará, com sorte, 99,5 anos.

A dimensão “participação econômica e oportunidades”, infelizmente, hoje, não escapa ao trágico diagnóstico, estando o Brasil na posição 89 do ranking (The Global Gender Gap Index rankings by subindex, 20, WEF). Apesar da progressiva queda histórica na diferença entre a taxa de participação masculina e feminina no mercado de trabalho, ela continua substancial, sendo de 22 pontos percentuais em 2015; vários fatores são apontados como causas dessa diferença, dentre eles: discriminação no mercado de trabalho, responsabilização da mulher da maior parte dos trabalhos não remunerados domésticos, dentre outros.

Há muito a se fazer, não se nega; trata-se de resultado histórico que não se logra mudar em curto tempo ou sem a participação maciça dos atores sociais. A questão é: estamos fazendo algo para essa mudança? Parece-nos que sim. Estudo elaborado por FOGUE e RUSSO (IPEA, 2019), aponta a expectativa de elevação da presença feminina no mercado de trabalho para 64,3% em 2030, ou seja, 8,2 pontos percentuais acima da taxa em 1992[1], considerando uma população de idade ativa demarcada entre 17 e 70 anos.

Contudo, apesar de todos os avanços promovidos pelo processo contínuo de cooperação transversal entre governo, sociedade civil e comunidade internacional, há uma classe no universo de mulheres carece de maior atenção: as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Daí serem louváveis todas as iniciativas que foquem neste grupo, dentre elas a disposição contida no artigo 25, § 9º, inciso II, da Lei 14.133, de 1° de abril de 2021, que permite aos editais dos processos licitatórios preverem que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Infelizmente, a família, lugar de acolhimento e suporte, pode, para alguns, representar sofrimento e agressão. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos[2] revelam que das 221.427 denúncias de violência contra pessoas do sexo feminino (entre mulheres e crianças), 75.753 delas referem-se à violência doméstica e familiar contra mulheres.

Os dados reforçam a constatação do relatório “Progress of The World’s Women 2019–2020: families in a changing world”, da ONU Mulheres: “famílias são espaços contraditórios para as mulheres. São lugares de amor, nutrição e solidariedade, mas também local onde as mulheres mais experimentam violência e discriminação”. Não se quer, com essa afirmação, desprestigiar a família; famílias não são apenas importante para o amor e cuidado do indivíduo, mas também representam relação simbiótica com governo e economia. Mercados e Estados que funcionam bem precisam das famílias para produzir trabalho, comprar bens e serviços, pagar impostos e nutrir membros produtivos de sociedade; devem ser, portanto, tratadas com muito zelo pelas legislações e políticas governamentais.

 Recente estudo elaborado por Paulo RA Loureiro (LOUREIRO, 2020) revela que uma mulher que sofre violência doméstica normalmente ganha menos que aquela que não vive em situação de violência; a análise vai além, apura os custos econômicos e financeiros da violência doméstica, justificando a atuação do Estado para o aumento da oferta de emprego e ampliação do acesso ao capital humano.

Segundo levantamento feito por LOUREIRO[3], a violência tem alto custo econômico em países de centro e periferia. Os custos da violência doméstica, em 1995, nos Estados Unidos, chegam a valores atuais de US$ 8,3 bilhões anuais: uma combinação de US$ 5,8 bilhões para cuidados da saúde física e mental e US$ 2,5 bilhões em perda de produtividade. Inglaterra e País de Gales somam o custo de £ 15,7 mil milhões de libras anualmente; por sua vez, Chile e Nicarágua estimam em 6% e 2%, respectivamente, o impacto da violência doméstica sobre o produto interno bruto, dada as perdas de renda das mulheres (LOUREIRO, 2020, p.06).

Além dos custos sociais globais, o estudo revela que a violência doméstica é um dos fatores

predominantes nas perdas salariais individualmente sentidas pelas mulheres. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com aquelas que não sofrem violência doméstica têm uma perda de 30,6 % do salário real. Mulheres agredidas tiveram, na média, renda do trabalho principal de R$ 528, contra R$ 1.056 das que não sofrem agressão (LOUREIRO, 2020).

Logo, pode-se concluir que andou bem o legislador ao prever a possibilidade de se obrigar licitantes a empregar mão de obra feminina vítima de violência doméstica, não sendo desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação; a  mulher, além de eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em âmbito privado, ao sofrê-los também importa em custos econômicos sociais e individuais, cabendo a todos internalizá-los e prevenir suas ocorrências. Esperamos que as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entendam a importância de darem efetividade ao dispositivo legal.


[1] FOGUE, Miguel Nathan e RUSSO, Felipe Mendonça. Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados – IPEA. Decomposição e projeção da taxa de participação do Brasil utilizando o modelo idade-período-coorte, 1992 a 2030. In: Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 25: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/190515_bmt_66_NT_decomposicao_e_projecao.pdf

[2] Somatória dos dados obtidos em Painel de Dados 2021/1 e 2020/2, disponível em: Painel de dados da ONDH — Português (Brasil) (www.gov.br)

[3] LOUREIRO, Paulo RA. A Violência Doméstica Causa Diferença Salarial entre Mulheres?. No prelo.

Adicional de obstetrícia nos planos de saúde: equilíbrio econômico do contrato ou tratamento não igualitário do sexo feminino?

Vanessa Vilela Berbel

Metrópole, o clássico filme do austríaco Fritz Lang, roteirizado em parceria com Thea von Harbou, passa-se em 2026 e tem como protagonista um robô, Maria (Brigitte Helm), que tem como objetivo semear a discórdia entre os trabalhadores em um mundo devastado pelos paradoxos do capitalismo. Bem, estamos em 2021 e, ainda que muito avançada a inteligência das coisas, eu não tive a oportunidade de duvidar se meus interlocutores eram humanos ou máquinas…Metrópole ainda parece ser uma realidade bastante distante.

Enquanto isso, continuamos morrendo e nascendo pelos métodos tradicionais, contando com um apoio ou outro da ciência para superação de algumas barreiras biológicas. Portanto, provavelmente você que lê esse artigo nasceu de uma mulher de carne e osso, a qual deve ter precisado de apoio hospitalar e médicos para que isso ocorresse.

Todavia, para que uma mulher tenha o assessoramento de saúde ao parto no Brasil, exceto se contar com o sistema de saúde público, deverá programar o pagamento antecipado de um adicional do seu plano de saúde. E veja, não pagará pelo serviço de saúde, pagará pelo risco de ficar grávida, visto que há carência ao uso dos serviços.

A Lei 9.656/98 prevê a segmentação dos planos de saúde segundo a amplitude de cobertura, prevendo as seguintes categorias: (i) plano referência, (ii) ambulatorial, (iii) hospitalar sem obstetrícia, (iv) hospitalar com obstetrícia e (v) odontológico.

O plano-referência, previsto no artigo 10 da Lei, consiste no “pacote completo” da assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos realizados no Brasil, centro de terapia intensiva, ou similar, e internação hospitalar; todavia, ao lado desta modalidade, faculta-se a venda das demais modalidades listadas acima, incluindo o atendimento hospitalar com e sem obstetrícia.

Ressalva-se que desde o Projeto de Lei n° 4.425, DE 1994 (Do Senado Federal) PLS 93/93 já se proibia a exclusão de cobertura de despesas com tratamento de determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas, ressalvando a possibilidade de exclusão da cobertura obstétrica. Não se trata, pois, de alteração legislativa recente.

O segmento hospitalar tem função de conferir cobertura de serviços em regime de internação (sendo vedado o limite de tempo), facultando-se a inclusão de cobertura da assistência ao parto (obstetrícia), que poderá ter até 300 dias de carência para partos a termo, ou seja, partos dentro do tempo convencional de gestação. Ou seja, apenas partos de bebês prematuros estão cobertos quando, contratado o adicional de obstetrícia, não esteja completada a carência.  

Ademais, a quem paga o adicional de obstetrícia é facultada a cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto, seja o adicional pago pelo pai ou pela mãe. Mas veja, nada disso lhe será garantido se, antes de pensar em engravidar, os genitores já não tiverem previsto o risco “gravidez” e aderindo ao adicional.

Se de um lado a obstetrícia é tratada como uma opção a quem prospecte ser genitor/genitora, de outro a Resolução Normativa nº 167 da ANS tornou obrigatória, a partir de 2 de abril de 2008, a cobertura de procedimentos para anticoncepção (DIU, vasectomia e ligadura tubária).

Não se nega que existam métodos contraceptivos que permitem a programação familiar, mas, ao que nos parece, a legitimação legal da exclusão da obstetrícia dos planos de saúde se trata de política pública que, muito além de objetivar reduzir os ônus financeiros dos que não almejem a maternidade/paternidade, impõe à mulher o ônus de planejá-la por meio de métodos contraceptivos naturais ou artificiais, ao viabilizar a carência de trezentos dias para a cobertura.

De fato, não podemos programar a doença, por isso o legislador impediu que se extraia a cobertura a doenças e lesões, inclusive as preexistentes; contudo, quanto à gravidez, podemos impor a responsabilidade por sua programação a partir de métodos contraceptivos (naturais ou não) e penalizar, com a exclusão de cobertura, aos que não o utilizam? Ainda, trata-se de pena ou de incentivo ao planejamento familiar responsável?

Conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade [maternidade] responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

A Lei 9656/98 deve dialogar, pois, com a Lei 9263/96, a qual regula o planejamento familiar, direito de todo cidadão e parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde; com base nestas disposições, tem-se que compete ao Estado a garantia de direitos iguais de reprodução ao homem e à mulher, orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade, exigindo-se, como contrapartida a responsabilidade no ato de reprodução, sem, contudo, a exclusão de cobertura e assistência à saúde materna quando as formas de previsão e educação falhem. Os serviços de saúde suplementar necessitam prever métodos que, resguardando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, viabilizem o exercício do direito à maternidade saudável.

BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: L9263 (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1996. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em L9656 (planalto.gov.br)

*Vanessa Vilela Berbel é coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher (Ligue 180) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Doutora (PUC/SP) e mestre (USP) em Filosofia e Teoria geral do Direito, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná e

Não existe almoço de graça (?)

Vanessa Vilela Berbel

“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro”, questiona Clarice Lispector em seu conto “A repartição dos pães”. A não nominada “dona de casa” (nas palavras da autora), resignada, acostumou-se a servir. Doadora de si e do que é seu, a “dona de casa” oferece mesa farta aos convidados pouco desejosos da partilha – provavelmente seus filhos e familiares, que, constrangidos, aceitam a oferta sincera e desinteressada; deleitam-se, sem nenhuma palavra de amor. Apesar de deixar claro ao leitor que a farta mesa foi construída e posta com o labor da “dona de casa” generosa (a mãe), a narradora (provavelmente filha) revela a quem pertenciam os produtos consumidos: “aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade”. À dona de casa não é atribuída qualquer propriedade ou remuneração; reserva-se a ela apenas o constrangimento dos participantes pela sua benevolência.

Há um consenso geral de que o trabalho doméstico é subvalorizado, mal pago, desprotegido e mal regulado; infirmar ou confirmar cientificamente esse senso comum depende da apuração econômica do trabalho doméstico: pode esse labor ser mensurado? qual sua importância para o desenvolvimento econômico?

Há 80 anos James Meade and Richard Stone ditaram os padrões que globalmente formam o Produto Interno Bruto (PIB). Como a maioria dos estatísticos econômicos da época, Meade e Stone se concentraram quase inteiramente na medição do valor dos bens e serviços que foram realmente comprados e vendidos.

Por sua vez, a padronização internacional sobre a compilação de mensurações econômicas, System of National Accounts (SNA,2009), produzida pelas Nações Unidas, a Comissão Europeia, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Fundo Monetário Internacional e  Banco Mundial, expandiu o limite de produção, de modo que as contas deveriam incluir o trabalho de subsistência e o trabalho informal. Recomendou-se, por este método, a consideração de toda produção para consumo próprio, mas a continuidade de exclusão da produção do trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que a agricultura (de subsistência) e produção não mercantil de bens para o consumo das famílias são mensuradas e contabilizadas pelo SNA, permanecendo a exclusão do trabalho doméstico (incluindo o preparo de refeição), cuidado com crianças, idosos e deficientes, e outros serviços relacionados à família. Esta tomada de decisão promove contradições; como alerta WARING (2004): “um balde de água: lave a louça, lave a criança, cozinhe o arroz – não produção. Use a mesma água para pulverizar o milho e lavar o porco – isso é produtivo”. Em termos, o trabalho doméstico não remunerado permanece excluído das contas macroeconômicas, inviabilizando a formulação de políticas, análises e pesquisas.

Como se nota, a par do consenso majoritário, há quem acuse esses padrões de subestimar a mensuração interna anual da produção econômica. Há razões para a acusação? Economistas como Phyllis Deane também nos conferem argumentos para se opor a esta tradição e reivindicar a consideração do trabalho doméstico não remunerado nas contas macroeconômicas. Após analisar famílias das Colônias britânicas do Malawi e na Zâmbia, Deane foi pioneira em perceber que era um erro excluir o trabalho doméstico não remunerado do PIB. Especialmente em países em desenvolvimento, a mensuração do trabalho não remunerado nos agregados macroeconômicos importa para a promoção de igualdade de gênero, sendo ferramenta indispensável para uma mudança social positiva.

Muitos serviços que as famílias produzem para si mesmas não são reconhecidos em receita oficial e medidas de produção, mas constituem um aspecto importante da atividade econômica. Nesta esteira, como recomenda o Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi Report (Stiglitz, Sen and Fitoussi, 2009), são necessários trabalhos sistemáticos nesta área para mensurar como pessoas gastam seu tempo ao longo dos anos, visto que, especialmente nos países em desenvolvimento, a produção de bens e serviços (por exemplo, comida e limpeza) pelas famílias são também termômetros do processo de desenvolvimento.

Muitos dos produtos e serviços produzidos de forma não remunerada por familiares, ao longo do desenvolvimento econômico,  passaram a ser adquiridos no mercado, expressando uma mudança econômica importante, uma “conta satélite” dos agregados macroeconômicos que expande o conceito de produção. A análise desta modificação é importante, visto que a lacuna entre o tempo médio gasto por homens e mulheres para o trabalho não remunerado diminuiu com o desenvolvimento econômico mais por causa do advento de substitutos perfeitos ao trabalho das mulheres na cozinha, na lavanderia, nos cuidados, do que por uma mudança na distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, notadamente os homens.

Segundo a PNAD Contínua, em 2019, 146,7 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade destinam horas para a realização dos afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e produção para o próprio consumo.

Todavia, a destinação de esforços e tempo nestas tarefas é desproporcional em relação aos gêneros, afetando sobretudo as mulheres. Entre o grupo de mulheres que despendem labor não remunerado no âmbito familiares, são ainda mais afetadas aquelas que se encontram na faixa etária de 25 a 49 anos e com maior grau de escolaridade. A taxa de realização de afazeres doméstico é de 93,4% para as mulheres de nível superior, contra 85,7% para os homens do mesmo nível de escolaridade.

Outrossim, se analisarmos com grano salis os afazeres domésticos realizados por homens e mulheres, tem-se que enquanto as tarefas mais desempenhadas pelo gênero masculino consistem em cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados, etc.) e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, às mulheres destina-se prioritariamente as atividades de preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça e cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos. São atividades que requerem competência e habilidades bastantes diversas, inclusive quanto ao desgaste físico.

Esta distribuição desigual é prejudicial para as mulheres, sobrecarregando de forma bastante desproporcional principalmente às que estão em faixa etária em que se dá o auge da produtividade e escalonamento profissional; por consequência, elas têm menos tempo para aprender, relaxar, trabalhar em hobbies, ou se dedicarem a horas extras no trabalho.

E é justamente o destino do tempo e as pesquisas sobre ele, como afirma Marilyn Waring, que podem revelar “qual sexo torna o trabalho servil, chato, de baixo status e invisível não remunerado”. Neste aspecto, importa mensurá-lo e mais, considerá-lo em políticas públicas eficientes para a superação das desigualdades criadas por este desequilíbrio de atribuições. Por exemplo, atualmente se é possível a dedução tributária de custos com empregados domésticos em imposto de renda da pessoa física, mas não se pode fazer o mesmo com a redução de remuneração obtida pelo membro familiar que destina seu labor à esta atividade; ao mesmo tempo, é possível a dedução de pagamento de pensão de dependentes, mas não se pode proceder o mesmo abatimento das horas de trabalho com cuidados com a prole. Incoerências que precisam ser repensadas de forma séria e imediata e que, infelizmente, pesam mais ao gênero feminino.

Referências:

European Communities; International Monetary Fund; Organisation for Economic Co-operation and Development; United Nations and World Bank. System of National, 2008. Disponível: SNA complete.book (un.org)

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínu. PNAD Contínua – 2019: outras formas de trabalho. 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf

STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, 2009. Disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

WARING, Marilyn. 1999. Counting for Nothing: What Men Value and What Women Are Worth. Toronto: University of Toronto Press.

______. Unpaid Workers The Absence of Rights. CANADIAN WOMAN STUDIESILES CAHIERS DE LA FEMME. 2004. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/article/viewFile/6245/5433

Violência de gênero e regulação das mídias digitais

Vanessa Vilela Berbel

Estudo da ONU, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, revelou que, em 2019, 53,6% da população de todo o mundo possuía acesso à internet. O estudo apontava, contudo, desigualdades de gênero no acesso ao mundo digital, estimando-se que a proporção de todas as mulheres do globo que usavam a internet era de 48%, contra 58% de todos os homens, à exceção da América Latina em que há quase paridade de gênero neste quesito.

Ainda em 2019, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet, sendo que, destes, 99,5% valem-se de dispositivos móveis (smartfones). Com um celular na mão e a internet à disposição, não mais se pode controlar as expectativas de receptores e emissores nas trocas comunicativas, como se fazia nas interações face a face.

Antes dos meios de difusão, os emissores eram facilmente identificados. Difamar, humilhar ou injuriar alguém demandava que o (a) agressor(a) o fizesse cara a cara com o(a) agredido(a). Agora, no mundo digital, as faces se transmutam em perfis, muitos deles falsos, mas, ainda assim, determináveis e rasteáveis.

A pandemia do COVID-19 acelerou ainda mais a inclusão digital da população mundial e a redução da desigualdade de gênero ao acesso à internet; computa-se, em 2021, mais de 4,66 bilhões de usuários da Internet em todo o globo, ou seja, 59,5% da população mundial, dos quais 49,6% são mulheres e 50,4% homens.

Destes incluídos no mundo digital, 4,20 bilhões são também usuários de mídia sociais, o que equivale a mais de 53% da população total do mundo, sendo facebook, youtube e whatsapp as três plataformas mais utilizadas.

Calcula-se, em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários das mídias sociais a cada dia, os quais dedicarão de 51 minutos (média do Japão) a 4 horas e 5 minutos (média das Filipinas) diários ao uso das ferramentas digitais.

No Brasil, o usuário médio gasta 3 horas e 42 minutos em mídias sociais digitais, o que equivale a mais de um dia inteiro na semana. Se, em regra, a maioria se vale da ferramenta para conhecer conteúdos e interagir com famílias e amigos, alguns apropriam-se da facilidade para ataques de ódio, pelo que são chamados de “haters”.

Em 2021, no Brasil, são mais de 213.3 milhões de usuários da internet, em sua maioria mulheres (50.9%), com média de idade de 33.7 anos e alfabetizadas. Destes, 150 milhões são também usuários de mídias sociais, o que equivale a 70,3% da população brasileira, dos quais 130 milhões valem-se do Facebook, sendo 53,5% mulheres e 46,5% homens. Essas mulheres, maioria no mercado de consumido dos serviços das mídias sociais necessitam ter o direito à não violência também neste espaço de socialização humana.

Infelizmente, no mundo físico, pesquisa do Banco Mundial apontou que, em 2019, 35% da população feminina mundial sofreu violência psicológica e/ou física, 7% sofreu violência sexual e 200 milhões de mulheres sofreram mutilação genital. Em 2021, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) , uma a cada três mulheres sofreu violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência pelo simples fato de ser mulher.

Uma característica da violência de gênero é que ela não conhece fronteiras sociais ou econômicas e afeta mulheres e meninas de todas as origens socioeconômicas, pelo que as agressões sofridas no mundo físico veem sendo repercutidas no mundo digital; são ataques que objetificam a mulher, seu corpo, sua imagem e ameaçam-lhe a integridade física e psíquica.

Um estudo de 2018 realizado pela União Interparlamentar em 45 países europeus descobriu que mais da metade das mulheres parlamentares e funcionários parlamentares entrevistados (58%) sofreram ataques sexistas nas redes sociais, incluindo repetidos insultos misóginos e incitação ao ódio, fotomontagens de nudez e pornografia. Metade dos entrevistados (47%) sofreram ameaças de morte ou estupro. Na maioria dos casos (76%), os perpetradores eram homens anônimos (União Interparlamentar, 2018).

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Ligue 180) revelam mais de 5.520 denúncias de violência praticadas contra pessoas do sexo feminino e ocorridas no âmbito da internet, em sua maioria contra a integridade psíquica da vítima, tais como ameaças, constrangimentos, torturas psíquicas, calunias, injúrias e difamações. Destas denúncias de violência contra a mulher no âmbito digital, 78,14% foram praticadas por agressores do sexo masculino.

Sabe-se que as interações nas redes sociais são impulsionadas a partir de algoritmos capazes de compreender padrões de comportamentos dos usuários. São os algoritmos imunes à propagação de misoginias e conteúdos de ódio? Segundo Francis Haugen, não.

Haugen, ex-funcionária do Facebook, engenheira da equipe de integridade cívica, em 03 de outubro deste ano (2021) rompeu o anonimato em entrevista ao “Wall Street Journal” e “CBS News” e acusou a rede social de promover conteúdo nocivo e não fazer nada a respeito daqueles que os disseminam.

Na mesma toada, Marianna Springs, repórter da BBC, em matéria intitulada “Recebo xingamentos e ameaças online – por que é tão difícil combater isso” (Estado de Minas, 20/10/2021) relatou que, após receber diariamente mensagens abusivas nas redes sociais carregadas de expressões de ódio em referências a estupros e atos sexuais, decidiu criar um perfil fake de “trollagem” nas cinco redes sociais mais populares do mundo para ver se elas promoviam conteúdos misóginos. Para sua surpresa, a conta falsa recebeu recomendações de conteúdos de ódio contra mulheres, inclusive envolvendo violência sexual, o que demonstra a ausência de uma efetiva autorregulação das plataformas.

Entende-se, a partir destes fatos, a importância da existência de autorregulação e controle interno das mídias sociais para a tomada de iniciativas imediatas à suspensão das agressões (retirada do conteúdo e bloqueio do perfil), a partir da construção de um due dilligence obligations que permita remediar danos decorrentes de publicações indevidas sem ferir a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, permita a rápida apuração e encaminhamento dos conteúdos aos órgãos da rede de enfrentamento à violência para punição efetiva dos agressores.

Contudo, a autorregulação não dispensa o controle externo, a partir de uma metarregulação, ou, em outros termos, uma “autorregulação regulada”, como explica Lucas Amato em seu artigo “Fake News: regulação ou metarregulação?” (2020). Nestes termos, caberá ao Estado cobrar das mídias sociais o desenvolvimento de mecanismos de responsabilização e os parâmetros de sancionamento necessários.

Portanto, compete ao Estado traçar as diretrizes gerais para viabilizar a construção normativa própria das mídias sociais quanto aos procedimentos internos de abertura de canais de reclamação e monitoramento de denúncias, desenvolvimento de procedimentos para a suspensão de contas inautênticas e suspensão das atividades de usuários que descumpram seus regramentos; todavia, ao mesmo tempo, deve instituir regras jurídicas claras quanto ao descumprimento destes deveres de fiscalização interna e vigilância, impondo a responsabilização destes fornecedores em caso de desídia no controle interno das práticas de integridade cívica e do encaminhamento dos casos delitivos às autoridades responsáveis pela rede de enfrentamento à violência.

Fontes:

AMATO. Lucas Fucci. Fake News: regulação ou metarregulação?. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 58, n. 230, p. 29-53 abr./jun., 2021

BRASIL. Ministério das Comunicações. Notícia: Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet — Português (Brasil) (www.gov.br), disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, de 14.04.2021. Acesso em 24.10.2021

Inter-Parliamentary Union, 2018. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/gender-equality-index-2020-report/abbreviations?lang=nl. Acesso em 24.10.2021

WE ARE SOCIAL AND HOOTSUITE. Digital 2021: Global Overview Report. Disponível em: https://wearesocial-net.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/common/reports/digital-2021/digital-2021-global.pdf. Acesso em 24.10.2021

THE WORLD BANK. Gender-Based Violence (Violence Against Women and Girls) (worldbank.org). Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/socialsustainability/brief/violence-against-women-and-girls. Acesso em 24.10.2021

OMS e PNUD. Global, regional and national estimates for intimate partner violence against women and global and regional estimates for non-partner sexual violence against women, 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devastadoramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em 24.10.2021

Decreto nº 10.712/21: mais um passo para o desenvolvimento do setor de Gás Natural

Daniela Santos

Minha coluna de hoje é sobre o recém-publicado Decreto nº 10.712/21 que regulamenta a Lei nº 14.134/2021 (Nova Lei do Gás) – aprovada e sancionada em abril deste ano.

Em primeiro lugar, chama a atenção o curto tempo entre a publicação da Nova Lei e do Decreto, o que confirma o entrosamento e interesse de todos os órgãos envolvidos no destravamento das barreiras existentes para o pleno desenvolvimento do setor de gás natural no Brasil – considerando, sempre, que a Nova Lei do Gás dispõe sobre todas as atividades do setor, exceto a atividade de distribuição.

Pois bem. Há novas definições no Decreto, inclusive algumas que merecem ser apresentadas aqui, a começar pelo conceito de atividades concorrenciais como as “de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural autorizadas nos termos da regulação da ANP e exploradas de acordo com os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa”. Com efeito, não há mais dúvidas em relação à competência da ANP para autorizar a atividade de comercialização de gás natural!

O Decreto volta ao tema da concorrência ao incluir, entre os princípios e objetivos da Política Energética Nacional (inseridos na Lei nº 9.478/97), a promoção da concorrência e da liquidez do mercado de gás natural, a promoção da livre iniciativa para exploração das atividades concorrenciais, a expansão, em bases econômicas, do sistema de transporte e das demais infraestruturas e promoção da eficiência e do acesso não discriminatório às infraestruturas.

Nesta medida, a interpretação das normas do setor de gás deve considerar tais princípios e objetivos, o que facilitará o trabalho do regulador em conjunto com as regras dispostas no art. 33 da Nova Lei do Gás[1].  

Sobre a esperada transparência em todos os elos da cadeia de gás natural, oportuno mencionar que o legislador conceitua como informações concorrencialmente sensíveis aquelas “específicas que versam diretamente sobre o desempenho das atividades-fim das empresas que exercem atividades concorrenciais ou que possam conferir às empresas vantagem competitiva, em especial os dados não públicos sobre custos e planos de expansão, preços e descontos, estratégias competitivas, principais clientes, salários de funcionários, marcas, patentes e pesquisa e desenvolvimento, entre outros”. Parece repetitivo, mas é um conceito que deverá ser muito (bem) utilizado, inclusive por conta da implementação do acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais.

Atendendo a pedidos, as definições incluem os conceitos de biogás e biometano – o qual terá tratamento regulatório equivalente ao gás natural (assim como outros gases intercambiáveis).

O Decreto também disciplina a situação de congestionamento contratual, que envolve o “impedimento contratual ao atendimento de demanda por capacidade de transporte, quando esta não se encontra plenamente utilizada”. Volto ao assunto em breve.

Em relação ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural, o Decreto o define como “acordo voluntário entre representantes da União, dos Estados e do Distrito Federal, que estipula a cooperação federativa para a efetivação das medidas necessárias para a harmonização das regulações estaduais e federais e para desenvolvimento do mercado de gás natural no País, e que contém a formalização de compromissos nas esferas nacional, estadual e distrital”. E tal Pacto decorre do novo objetivo da Política Energética Nacional de harmonização entre as regulações federal e estatuais relativas à indústria de gás natural. No meu entendimento, o tema é o mais desafiador do Novo Mercado de Gás e deverá ser priorizado, observando as especificidades de cada Estado.

Outra definição que chama a atenção no Decreto é a do usuário final de gás natural, ou seja, aquele “destinatário do gás natural situado no fim da cadeia de valor da indústria do gás natural”, não se enquadrando, porém, as pessoas jurídicas que utilizam o gás para “consumo próprio” ou “em outras etapas intermediárias da cadeia, tais como compressão, liquefação, regaseificação e acondicionamento de gás natural”. Tal definição tem desdobramentos na conexão direta entre transportador e usuário final (o que dependerá, segundo o Decreto, da norma estadual) e na atividade de comercialização de gás aos usuários finais.

Especificamente sobre a atividade de transporte de gás natural, considerando que a Nova Lei do Gás substituiu a concessão pela autorização para a outorga da atividade de transporte, restou ao Decreto esclarecer que tal processo deverá ser realizado de forma célere, eficiente e transparente, além de confirmar a competência da ANP para a sua regulação.

Outro ponto que chama atenção no novo Decreto é a definição do gasoduto de transporte com bases técnicas (diâmetro, pressão e extensão). Isto porque, enquanto a Nova Lei do Gás estabeleceu que será considerado como gasoduto de transporte, entre outros, aquele destinado à movimentação do gás natural cujas “características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP”, a nova regulamentação acrescenta que tal definição deverá considerar a promoção da “eficiência global das redes”, podendo ser diferenciados conforme a “finalidade dos gasodutos”.

Em outra passagem, o Decreto amplia ainda mais a definição, ao elencar hipóteses nas quais a ANP poderá deixar de classificar determinado duto como de transporte, apesar de atender aos – futuros – requisitos técnicos. Ou seja, as (futuras) definições técnicas do regulador não serão os únicos basilares para a determinação de gasoduto de transporte.

Sobre o sistema de transporte disposto na Nova Lei do Gás, é esperado o aumento da liquidez do ponto virtual de negociação. O Decreto também reforça o papel do gestor de mercado, especialmente para assegurar a troca rápida de informações entre os transportadores (os quais poderão trocar a titularidade do gás natural sob sua custódia, nos termos da regulação da ANP) e o bom funcionamento dos mercados de gás natural.

Ainda sobre a atividade de transporte, o Decreto reforça o direito de acesso não discriminatório dos carregadores no ponto virtual de negociação, de forma eficiente e transparente, e a eliminação do já mencionado congestionamento contratual nos pontos de entrada e saída do sistema de transporte, de modo a evitar gargalos que criem ou mantenham obstáculos ou dificuldades para implementar os novos princípios e objetivos da Política Energética Nacional – possibilitando, inclusive, a adoção de medidas de cessão compulsória de capacidade de transporte. Avanço importante para o setor.

Sobre a atividade de estocagem subterrânea, o Decreto se reporta bastante à ANP, tanto na articulação com outras agências para a regulação do exercício da atividade, como para a regulação do acesso de terceiros, detalhando as hipóteses de acesso não obrigatório temporário – ainda que isso tenha conferido ao tema uma dose excessiva de subjetividade, especialmente se considerarmos a hipótese de “relevância da instalação de estocagem para o abastecimento nacional de gás natural”. 

Em relação ao acesso não discriminatório e negociado de terceiros aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás e aos terminais do GNL – garantido pela Nova Lei do Gás – o Decreto fala em transparência, confidencialidade (que não afasta o acesso da ANP às informações sobre as tratativas entre as partes), prazos e condições pré-definidos e na possibilidade de a ANP atuar de ofício para “verificar a existência de eventuais condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”.  Espero que a implementação de tais regras somadas à elaboração do Código de Condutas e Práticas de Acesso à Infraestrutura (indicado na Nova Lei do Gás), realmente equacionem o problema que, se não resolvido, poderá resultar em grande prejuízo para a concorrência/competitividade no setor de gás.

Por outro lado, em relação às atividades de distribuição e comercialização de gás natural, o Decreto corrobora a possibilidade de relação societária entre empresas que exerçam atividades concorrenciais e as distribuidoras, mas estabelece uma série de regras parar evitar práticas anticoncorrenciais no mercado. A ANP deverá acompanhar o mercado assegurando transparência em relação à formação dos preços e regular a organização e o funcionamento do mercado atacadista de gás natural.

O Decreto reforçou que a ANP não autoriza a atividade de fornecimento de gás canalizado – cuja competência é dos Estados. Por outro lado, esclareceu que a atividade de comercialização abrange a venda do gás acondicionado sob as formas gasosa, líquida ou sólida, transportado por modais alternativos ao dutoviário, inclusive aos usuários finais – repita-se. O intuito foi diferenciar as atividades e, com isso, assegurar algum avanço na ponta da cadeia de gás natural.

Por fim, nas Disposições Finais, além de esclarecer que “os bens vinculados à atividade de transporte de gás não reverterão à União e não caberá indenização por ativos não depreciados ou amortizados”, o Decreto detalha a articulação – contemplada na Nova Lei do Gás – entre Ministério de Minas e Energia, ANP, Estados e Distrito Federal para a harmonização e aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria do gás natural. O texto fala nos mecanismos que poderão ser adotados pelos Estados interessados e, como indicado acima, sinaliza para a adesão voluntária ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural. Vamos aguardar para ver qual será o primeiro Estado a aderir ao Pacto – e os desdobramentos decorrentes de tal adesão.

Ainda nas disposições finais, não poderia deixar de mencionar a faculdade disposta no Decreto para “a adoção de soluções individuais que visem ao atendimento do disposto na Lei nº 14.134, de 2021, respeitado seu rito decisório, até que seja editada regulação específica pela referida Agência”. A possibilidade – que já foi utilizada no caso do acesso à UPGN Guamaré – é importante para garantir a eficiência do setor, mas é preciso que todas as informações referentes às soluções individuais sejam devidamente fundamentadas e publicadas, de modo a garantir transparência e uniformidade às decisões.   

Em conclusão, afirmo, mais uma vez, que o estímulo à competitividade/ concorrência realmente é o aspecto central do Decreto, assim como da Nova Lei do Gás. Com base nisso, resta contribuir não apenas para a realização da agenda da ANP, de modo a finalizar a regulação federal, mas também as adequações dos Estados no âmbito do mencionado Pacto Nacional, de modo a garantir harmonia e coordenação ao setor. Não é pouco. Mas é inequívoco que estamos cada vez mais próximos do sucesso que todos nós aguardamos para o setor de gás no Brasil.


[1] Art. 33.  Caberá à ANP acompanhar o funcionamento do mercado de gás natural e adotar mecanismos de estímulo à eficiência e à competitividade e de redução da concentração na oferta de gás natural com vistas a prevenir condições de mercado favoráveis à prática de infrações contra a ordem econômica.

§ 1º  Os mecanismos de que trata o caput deste artigo poderão incluir:

I – medidas de desconcentração de oferta e de cessão compulsória de capacidade de transporte, de escoamento da produção e de processamento;

II – programa de venda de gás natural por meio do qual comercializadores que detenham elevada participação no mercado sejam obrigados a vender, por meio de leilões, parte dos volumes de que são titulares com preço mínimo inicial, quantidade e duração a serem definidos pela ANP; e

III – restrições à venda de gás natural entre produtores nas áreas de produção, ressalvadas situações de ordem técnica ou operacional que possam comprometer a produção de petróleo.

§ 2º  A ANP deverá ouvir o órgão competente do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) previamente à aplicação das medidas de que trata o § 1º deste artigo.

A nova Lei do Gás

Daniela Santos

Minha coluna de hoje é sobre a Lei nº 4.476/2020 (Lei do Gás), aprovada e sancionada recentemente (sem vetos), e que suscita grande curiosidade mesmo entre aqueles que não atuam diretamente com o tema.

E tal interesse decorre, em parte, devido as (péssimas) notícias sobre o aumento do gás natural em quase 40% imposto às distribuidoras estaduais – sendo importante esclarecer que o reajuste é da Petrobras e não das distribuidoras locais, que apenas repassam os valores aos seus respectivos consumidores, gerando importante impacto para a indústria nacional (principal usuária do insumo).

Com efeito, a nova Lei, assim como seus futuros Decreto e regulamentações, têm como tarefa imediata resolver gargalos importantes de modo a realmente estimular a entrada de novos agentes e, com isso, a competição no setor. Só assim poderemos ter um contexto mais propício, nos próximos anos, para notícias melhores…

Pois bem. Antes de entrarmos nos dispositivos da nova Lei do Gás, importante não perder de vista as principais medidas do Novo Mercado de Gás:

  • A celebração do Termo de Comprimisso de Cessação, assinado em 2019, entre CADE e Petrobras, que resultou, entre outros, na venda de ativos da petroleira,
  • A resolução CNPE nº 16/2019, que estabeleceu diretrizes voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural,
  • A realização do REATE, e
  • Ajustes SINIEF – questão tributária

Foi a partir desse cenário que a Lei foi aprovada, com destaque para pontos importantes como o estímulo à competição e concorrência, acesso não discriminatório e harmonização das leis estaduais.

Sobre a atividade de transporte de gás natural, é mais do que sabido que a nova Lei tratou com muito cuidado de ajustar o que não funcionou na revogada Lei nº 11.909/09. E quando digo que não funcionou, me baseio no fato de não termos conseguido avançar na expansão da malha de transporte, o que é fundamental para a garantir o suprimento do gás no País.

O destaque é que a Nova Lei substituiu a concessão pela autorização para a outorga da atividade de transporte, e isso transformou a lógica contida nos dispositivos anteriores, sendo um dos pontos mais festejados da nova Lei.

Ademais, importantes critérios de independência foram inseridos na Lei, de modo a garantir a concorrência.

Ao elencar o que se considera como gasoduto de transporte, a nova Lei do Gás caminha para estabilizar os limites da atividade e, consequentemente, resolver antigos problemas referentes à distribuição de gás canalizado – monopólio constitucional dos Estados. Aqui, esperamos que o Decreto e a regulamentação que serão elaborados, sejam ainda mais objetivos, garantindo segurança para todos os elos da cadeia de gás.

A Nova Lei destaca o papel da ANP nos diversos segmentos, o que restou claro na sua agenda regulatória. Especificamente, conferiu ao regulador um papel fundamental tanto na definição da receita máxima para o transporte quanto na aprovação das suas tarifas. Destaco a importância de garantir a publicidade e transparência dos cálculos.

Por falar em transparência, assunto que sempre trato em meus artigos, comemoro sempre que leio estudos que comprovam que não se trata apenas de um discurso bonito, mas de uma absoluta necessidade para o eficiente funcionamento do setor. Com o desinvestimento da Petrobras no setor de gás e aumento do número de agentes – além das novas diretrizes contidas na Lei das Agências Reguladoras – a publicidade e transparência são pilares para os avanços que desejamos. E com isso, também quero dizer que processos aleatoriamente sigilosos e documento excessivamente tarjados não devem ter mais espaço no novo mercado de gás.  

Sobre o almejado sistema de transporte, chamo atenção para os objetivos elencados na nova Lei, quais sejam: (1) atendimento da demanda de transporte, (2) diversificação da fonte de gás natural e (2) segurança de suprimento por dez anos. A criação de um Conselho Gestor de Mercado – para os casos de mais de uma transportadora na mesma área – poderá ajudar, assim como a criação dos Conselhos de Usuários para monitoramento.

Neste sentido, vale mencionar que mercado saudável conta, também, com a efetiva participação de usuários na verificação do que está sendo executado. O desafio será garantir a devida escuta e consideração ao monitoramento.

Por fim, com o balanceamento, a nova Lei do Gás pretende garantir o suprimento do sistema.

Sobre gasoduto de escoamento, UOGN e unidades de liquefação e regaseificação, a grande novidade é o acesso não discriminatório e negociado de terceiros às infraestruturas essenciais. Uma grande alegria para todos que esperavam o destravamento do que restou disciplinado na antiga Lei do Gás. Junto ao acesso, o legislador esclarece que a preferência é do proprietário da instalação e cria o código de condutas e práticas de acesso à infraestrutura, dando, mais uma vez, ênfase à publicidade e a transparência.

A remuneração e o prazo merecem destaque aqui, porque a despeito de serem pontos acordados entre as partes, deverão ter como base critérios objetivos e previamente definidos e divulgados. Novamente, um alívio para todos que aguardam transparência!

Outros dois pontos fundamentais disciplinados na nova Lei são: a distribuição e a comercialização do gás. Mas como há muitos desdobramentos, optei por focar neste artigo apenas a análise da competitividade e da competência.

Sobre competitividade, a nova Lei é muito clara: trata-se do principal objetivo do mercado livre de gás. E isso carrega uma série de princípios que deverão ser observados durante o acompanhamento do setor pela ANP. Mas é importante não perder de vista que o regulador deve escutar os órgãos competentes de defesa da concorrência antes da tomada de decisão, o que, inclusive, está expressa e corretamente disposto na nova Lei do Gás.

Isso parece outro ponto bonito de se escrever, mas pouco prático. Ledo engano. Recentemente, escrevi com o meu colega Felipe Fernandes um artigo, ainda não publicado, sobre uma deliberação regulatória estadual, que presume como infração à ordem econômica o controle, por uma comercializadora, de mais de 20% do volume de gás canalizado vendido naquele estado.

O limite imposto, na prática, confunde posição dominante com infração à ordem econômica o que prejudica a concorrência – objetivo do regulador. Por isso, é importante não perder de vista que somente com o apoio coordenado dos órgãos competentes, será possível garantir a concorrência no setor de gás.    

Finalmente, sobre a competência, precisamos compreender definitivamente que quem pode regular e fiscalizar a atividade de comercialização de gás no País é a União. Aos Estados resta a definição do consumidor livre.

Por isso, a antiga e nova leis dispõem sobre comercialização do gás natural. E é nesse sentido que as novas e antigas leis estaduais deveriam ser ajustadas. Porque a segurança do mercado de comercialização de gás depende de regras uniformes aplicáveis em todo o território nacional. E o investidor está atento aos Estados que organizam bem as suas atribuições e cumprem com as normas federais aplicáveis – como bem destaca Adrianno Lorenzon, coordenador técnico da equipe de gás natural da ABRACE.   

Observo, por fim, que a nova Lei do Gás fala em harmonização das normas e articulação dos entes, especialmente em relação à regulação do consumidor livre (neste ponto, inclusive, vale mencionar que a ANP recentemente aprovou o Manual de Boas Práticas para Harmonização das Normas Federal e Estaduais.). Importante garantir que os Estados estejam realmente preparados para incentivar a comercialização de gás no mercado livre, o que, sem qualquer dúvida, resultará no sucesso do Novo Modelo do Gás.

O sucesso dos Programas de Revitalização do Setor de Petróleo e Gás Natural deve ser um exemplo para os outros setores de energia

Daniela Santos

No final de 2020, fui convidada para participar do REATE 2020, que é o Programa de Revitalização da Atividade de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural (E&P) em Áreas Terrestres. O Programa, segundo o Ministério de Minas e Energia – MME, “é uma Política Nacional de fomento a atividade de exploração e produção de petróleo e gás natural em áreas terrestres no Brasil, de modo a propiciar o desenvolvimento regional e estimular a competitividade nacional.”

Mas não foi o primeiro REATE. No ano de 2018, o Programa já tinha contribuído para o encaminhamento de assuntos importantes para a E&P terrestre nacional, tais como: (i)  implementação do sistema de Oferta Permanente de blocos exploratórios e campos marginais pela ANP; (ii) adequação dos percentuais de royalties de novos contratos aos ambientes de elevado risco exploratório e baixo potencial petrolífero, relativos às bacias maduras e de novas fronteiras; (iii) simplificação de exigências contratuais para jazidas de baixa materialidade, relativos à medição por exemplo e (iv) criação de coordenação de E&P terrestre na ANP para facilitar a comunicação e solução de problemas relativos à regulação. 

Na sua página oficial, o Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP afirma que “além dos progressos acima destacados cabe mencionar as iniciativas da ANP para a retomada dos investimentos em E&P em áreas terrestres, e ainda em campos maduros em águas rasas. Tem-se ainda os projetos de desinvestimento de campos maduros da Petrobras, denominados por Ártico e Topázio, que podem, com sua conclusão, aumentar o número de operadores em terra”.

Ou seja, já em 2018 era inequívoca a contribuição do REATE para o debate de questões complexas e, muitas vezes com variações regionais, como é o caso da E&P em áreas terrestres.  Mas somente com o Programa em 2020 foi possível compreender a grande contribuição do modelo para a transparência, agilidade, aprimoramento, concorrência e competitividade, sinergia e atração de novos agentes para os setores que se pretende desenvolver.

O modelo do Programa é um acontecimento na direção da modernização da comunicação entre administradores e administrados. Porque ao invés de afastar, une. Ao invés de criar obstáculos, resolve. É uma forma de equacionar problemas e obstáculos juntando empresas concessionárias, fornecedoras, diversas autoridades envolvidas, sociedade e academia.

O entusiasmo não é só meu. Todos que acompanham a ferramenta têm expressado contentamento com o modelo e com o seu potencial. Quanto mais agentes atuantes, maiores as chances de resolver os assuntos mais complexos de forma adequada e equilibrada.

Neste ponto, importante não perder de vista que a regulação restringe a livre iniciativa. Ou seja, ela rompe com a regra, mas por uma causa legítima: garantir o afastamento de distorções que resultariam de um mercado totalmente livre. Nesta medida, o modelo do REATE é, fundamentalmente, uma forma legítima e eficaz de redução de riscos de abuso ou de desconformidades que, no final das contas, afetam negativamente os consumidores e usuários finais da atividade.

Ousaria dizer que o modelo do REATE, conjugado com outras ferramentas que deverão ser mais (e melhor) utilizadas pelo regulador após a edição da Lei das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/19) – tais como  publicação de Agendas Regulatórias (mecanismo de planejamento e compromisso regulatório perante os agentes regulados); a Análise de Impacto Regulatório – AIR (mecanismo ex ante de controle dos atos regulatórios) e Avaliação do Resultado Regulatório – ARR (mecanismo ex post de controle dos atos regulatórios) – poderá revolucionar a atual forma de gestão, aperfeiçoando políticas e regulações setoriais.

Se compararmos o formato do REATE com as audiências públicas realizadas pelas agências, mesmo se considerarmos as diferenças operacionais, temos ganhos expressivos no modelo do REATE, tanto na qualidade das interações e agilidade das respostas, quanto no aprimoramento das diretrizes energéticas e regulatórias, e, fundamentalmente, do debate.

E com isso não se defende a extinção das audiências e a sua substituição pelo modelo do REATE. Até porque, tal modelo não se presta a cuidar de todos os assuntos. Tampouco minha intenção é criticar as agências, que atuam de acordo com as normas aplicáveis. O que se propõe é repensar a forma com que as audiências hoje são conduzidas, com base no sucesso da experiência.

A real transparência – ou seja, a circunstância de ser límpido, cristalino, visível, compreensível – das decisões da Administração Pública decorre fundamentalmente do amplo debate. Ademais, não há controle e participação eficientes sem debate. Em alguma medida, as conhecidas consulta e audiência públicas podem ajudar, mas não são mais tão eficazes como deveriam.

Na mesa REATE, realizada no final de 2020 em Mossoró/RS, todos os agentes se sentaram na mesma mesa e foram escutados, houve (importantes) confrontos de interesses. A Empresa de Pesquisa Energética – EPE apresentou pertinentes resultados das suas pesquisas, o que ajudou no embasamento das discussões, assim como a Organização Nacional da Indústria do Petróleo — ONIP trouxe importantes esclarecimentos, especialmente para as universidades. O MME, de forma impecável, liderou os encaminhamentos e esclarecimentos necessários, registrando os próximos passos que deveriam ser tomados.

O trabalho realizado pela ANP durante e depois da MESA REATE 2020, merece destaque. Os competentes representantes da ANP fizeram os esclarecimentos pertinentes, ofereceram soluções imediatas e se comprometeram com uma série de pontos levantados pelos agentes, Estado, associações e academia, para o desenvolvimento do setor. Finalizado o evento, a ação do regulador tornou-se central para os avanços discutidos no REATE: deste importantes progressos para assegurar o acesso à UPGN, até a recente liberação de acesso gratuito aos dados terrestres[1].  

Obviamente, o mecanismo pode e deve ser aperfeiçoado, especialmente na definição da sua periodicidade, na garantia de aumento da participação de diferentes agentes representados pelas suas respectivas associações ou sindicatos e na ampla divulgação de todas as propostas apresentadas pelos interessados, não apenas daqueles temas que foram tratados durante as discussões, entre outros. A princípio, não vejo necessidade de criar procedimentos que engessem o Programa. O importante é que tudo seja acessível e de fácil compreensão para todos.

Assim, diante de tantos benefícios, por que não replicar o modelo ou adaptá-lo para outras áreas como de abastecimento de combustíveis, refino, biocombustíveis, e – por que não – para o setor elétrico?

Por exemplo, trago um tema muito discutido pelo setor de energia elétrica nos últimos anos, que logo de pronto chama atenção pela eventual adequação ao modelo REATE: a geração distribuída de energia elétrica (GD). Como se sabe, segundo a Resolução  ANEEL nº 482/2012, o consumidor brasileiro pode gerar sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis ou cogeração qualificada e, inclusive, fornecer o excedente para a rede de distribuição de sua localidade. A GD é capaz de diversificar a matriz energética e criar o produtor/consumidor de energia elétrica, garantindo mais econômica e segurança, com menos impacto ambiental, entre outros benefícios. É um caminho sem volta rumo ao desenvolvimento.

Neste artigo não tenho a pretensão de detalhar as atuais discussões sobre o assunto (tanto no âmbito regulatório – com a revisão da Resolução ANEEL nº 482/12 – quanto no Projeto de Lei nº 5.829/19), mas não há dúvidas que rever as diretrizes do GD em um modelo semelhante ao REATE, contando com o debate amplo e concomitante entre os interessados, associações, TCU, CADE, ANEEL, sob a liderança do MME, poderia servir para evitar a tomada de decisões equivocadas, que, obviamente, atrasam e impactam negativamente o avanço da GD.     

Parte do setor já entendeu o recado. Tanto é assim que, recentemente, o modelo REATE foi replicado para o Programa de Revitalização da Atividade de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural – PROMAR. Esperamos que outros mercados, inclusive o elétrico, percebam as vantagens e utilizem o modelo para a tomada de decisões. Para o bem das políticas públicas, da regulação, da concorrência e, sobretudo, em benefício dos usuários e consumidores finais de energia!     

Novamente: espero contribuir para o debate e aperfeiçoamento do setor!


[1] Neste sentido, ver Ofícios ANP nº 70/2021 e 491/2021.

Devido processo, contraditório e Administração pública

“Inimiga jurada do arbítrio, a forma é a irmã gêmea da liberdade”.

Rudolf von Jhering*

INTRODUÇÃO

Todo estudante de Direito sabe que qualquer decisão da Administração pública deve ser fundamentada e, antes e depois dela, deve ser oferecida oportunidade de manifestação a todos os interessados, em atenção aos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa.

Eventuais necessidades de maior prazo para análise de procedimentos e processos administrativos, em razão, por exemplo, de reorganização ou reestruturação internas, não podem ser motivo excludente da obrigação da Administração de garantir o respeito aos cânones do direito processual e do próprio Regime Jurídico Administrativo.

Dito de outra forma, constatada a inércia da Administração pública e a sua incapacidade de garantir o devido processo legal e o contraditório, ou seja, receber, analisar e decidir sobre todas as manifestações dos interessados, deve ela manter a situação em seu patamar de normalidade (status quo ante), até que seja dada a devida oportunidade, consideração e resposta às manifestações de interessados.

Afinal, a sociedade não poder ficar refém de eventual incapacidade, desorganização interna e demora na prestação do serviço público e no cumprimento das obrigações da Administração pública e seus agentes.

A demora da Administração, ainda que causada por dificuldades de reestruturação institucional ou quaisquer outras, não pode jamais ser utilizada como justificativa para a inadequada prestação do serviço público ou o atropelo aos princípios do due process e do contraditório. Além desses já citados, também devem ser considerados princípios como o da continuidade do serviço público e o da eficiência administrativa, para citar alguns.

Pouco importa, para fins de garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, se a Administração pública está assoberbada com mudanças estruturais, novos procedimentos, ou o que quer que seja. Os processos em tramitação não podem parar, e os direitos de todos os administrados não podem deixar de ser respeitados e rigorosamente garantidos.

É razoável trazer à baila, também, o princípio da proibição de comportamento contraditório[1], que prevê que as partes se comportem de forma leal nas suas relações; bem como a vedação de alegação da própria torpeza[2], segundo o qual, ninguém deve ser ouvido ao alegar a própria torpeza, inclusive o próprio Estado e seus agentes.

A Administração pública não pode alegar a própria incapacidade como justificativa para o desrespeito a consagrados princípios processuais e administrativos, como os já citados.

Independentemente da implementação de alterações institucionais ou estruturais, ou de um novo rito administrativo processual, ou de qualquer contratempo, os direitos dos administrados não podem deixar de ser rigorosamente observados. Não é porque a burocracia não andou bem, que o devido processo ou o contraditório também deverão tropeçar.

Além da ofensa aos princípios elencados acima, ao negar devida oportunidade de manifestação aos interessados, a Administração também estaria afrontando as mais triviais práticas de boa governança pública. 

Um comportamento hermético e dissimulado da Administração pública fere a moralidade administrativa, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé[3], conforme se verá abaixo. Faz pouco caso, também, do princípio da publicidade, que inclui a transparência na Administração Pública.

Não é outra a mens legis do art. 29 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), que prevê que:

Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão”.

Nesse mesmo sentido, como não poderia deixar de ser, também vai o art. 30 do mesmo diploma:

Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.

Decisões administrativas podem envolver variadas políticas públicas, que afetam inúmeros agentes econômicos e setores produtivos, até o consumidor final. A todos esses interessados, efetivos ou potenciais, deve ser dada a oportunidade de manifestação sobre determinado ato administrativo. Além disso, que seus comentários e informações sejam devidamente analisados e respondidos, pois, para isso, há o processo administrativo.

DO DIREITO

O art. 5º, LV, da Constituição Federal prescreve que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O parágrafo único, do art. 2o, da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99), prevê que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios da atuação conforme a lei e o Direito; da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; e da observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados.

O art. 3o, do mesmo diploma, estipula ainda que:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;”.

O art. 29 da Lei 9.784/99, esclarece que as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão “realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias”.

Além disso, de acordo com o art. 38 daquela lei:

O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.

§ 1o Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão.

§ 2o Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.

DA DOUTRINA

Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, o contraditório pressupõe “informação necessária e reação possível[4] por parte do administrado, em razão de fatos, argumentos e documentos que possam lhe afetar negativamente. Isto é, a oportunidade de efetiva participação na produção do conjunto probatório e de apresentação de argumentos perante o processo e a autoridade com poderes de decisão.

Em outras palavras, cabe à Administração pública garantir a efetividade da participação dos interessados no processo, dando-lhes ensejo para a apresentação de argumentos e provas, bem como analisando e se manifestando a respeito deles, e, portanto, cumprindo com os deveres de boa-fé e motivação.

A ampla defesa, da mesma forma, implica na oportunidade de resistência às pretensões adversárias, na possibilidade de apresentação de defesa prévia e técnica, de interposição de recursos, de intimação, de produção e contestação de provas e de alegações finais.

Para uns dos luminares do Direito Administrativo brasileiro, o Visconde do Uruguai[5]: “a jurisdição administrativa sem garantias, sem forma conveniente de processo, é arbítrio puro e simples da Administração[6].

O renomado processualista italiano Elio Fazzarali, ensinava que: “o processo é modulo de participação e síntese de vontades contrapostas, predestinado à produção do ato final[7].

Para Scarpinella Bueno[8], além de todos os benefícios democráticos gerados pelo respeito ao contraditório, ele também viabiliza a boa e adequada prestação jurisdicional, pois “a ampla discussão quanto à produção do ato administrativo, em sede não judicial, pode facilitar e viabilizar o controle judicial”.

Quanto ao due process of law, Bandeira de Mello[9], escreve que:

Deveras, o propósito nele consubstanciado é o de oferecer a todos os integrantes da sociedade a segurança de que não serão amesquinhados pelos detentores do Poder, nem surpreendidos com medidas e providências interferentes com a liberdade e a propriedade sem cautelas preestabelecidas para defendê-las eficazmente. (Grifos)

(…)

Tal enquadramento da conduta estatal em pautas balizadoras (…) concerne tanto a aspectos materiais, quanto a aspectos formais, ou seja, relativos ao preestabelecimento dos meios eleitos como vias idôneas a serem percorridas para que, por meio delas, e somente assim, possa o Poder Público exprimir suas decisões”.

Para a ministra Cármen Lúcia[10]:

As formas desempenham um papel essencial na convivência civilizada dos homens: elas delimitam espaços de ação e modos de inteligíveis de comportamento para que a surpresa permanente não seja um elemento de tensão constante (…). Fora daí, não há solução para a barbárie e para descrença no Estado. Sem confiança nas instituições jurídicas, não há base para a garantia nas instituições políticas

Carvalho Filho[11] ensina que: “Embora se costume invocá-lo (o devido processo legal) nos processos litigiosos, (…) a verdade é que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não-litigiosos (…)”.

Frederico Marques[12] lembrava que:

Se o poder administrativo, no exercício de suas atividades, vai criar limitações patrimoniais imediatas ao administrado, inadmissível seria se assim atuasse fora das fronteiras do due process of law. Se o contrário fosse permitido, ter-se-ia de concluir que será lícito atingir alguém em sua fazenda ou bens, sem o devido processo legal. (…) Isto posto, evidente se torna que a Administração Pública, ainda que exercendo seus poderes de autotutela, não tem o direito de impor aos administrados gravames e sanções que atinjam, direta ou indiretamente, seu patrimônio, sem ouvi-los adequadamente, preservando-lhes o direito de defesa”.

Nos dias atuais, há multiplicidade de interesses, diversidade de pontos de vista, inúmeras controvérsias a respeito de direitos, no âmbito da atuação administrativa[13]. Assim, “o litígio surge em razão de uma controvérsia, em razão de um conflito de interesses. (…) Haverá litigantes sempre que houver um conflito de interesses, sempre que houver uma controvérsia[14].

Para Nery Jr.[15]:

“Em razão da incidência da garantia constitucional do contraditório, é defeso ao julgador encurtar, diminuir (“verkürzf”) o direito de o litigante exteriorizar a sua manifestação nos autos do processo. Em outras palavras, não se pode economizar, minimizar a participação do litigante no processo, porque isso contraria o comando da norma”.

Importante lembrar, também, do princípio constitucional da moralidade, que compreende os princípios da lealdade e da boa-fé, segundo os quais:

A administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lisura, sendo-lhe proibido qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos[16].

A verdade é que falta prestígio ao processo administrativo em nosso país. O desprestígio vem especialmente da própria Administração pública, mais interessada em atingir as suas metas e compromissos, do que em cumprir todos os requisitos do processo e, assim, garantir cabalmente os direitos dos administrados.

Aliás, consoante o princípio da verdade material, a Administração pública deve tomar decisões com base nos fatos, tais como se apresentam na realidade, não se satisfazendo com a versão oferecida por um ou outro interessado.

Para tanto, tem ela o dever-poder de trazer aos autos todos os dados, informações e documentos a respeito da matéria tratada, sem estar restrita aos aspectos considerados pelos interessados.  Assim, a Administração tem, não só liberdade plena, como o dever de buscar a produção de informações, dados, documentos e evidências.

O Poder Executivo também tem o dever-poder de apurar e investigar. Tal “dever-poder” de averiguar todos os fatos que possam configurar hipótese prevista na legislação, decorre do princípio da supremacia do interesse público e do princípio da legalidade.

DA JURISPRUDÊNCIA

Além de jurisprudência reiterada e pacífica em todos os tribunais pátrios, e. Superior Tribunal de Justiça STJ, no Incidente de Assunção de Competência no Recurso Especial (IAC no REsp) nº 1604412-SC (2016/0125154-1), definiu que “o contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”.

Não menos submetido ao comando constitucional do contraditório está, por intuitivo, o Poder Executivo, pois, como visto, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo (…) são assegurados o contraditório e ampla defesa (…)[17]”.

CONCLUSÃO

Seria compreensível, ainda que lamentável, da parte de integrantes do Poder Executivo, de atuação burocrática e limitados conhecimentos jurídicos, a falta de compreensão do significado e importância de princípios como o do contraditório e do devido processo para a própria sustentação do Estado de direito.

Neste contexto, sobrevém a importância do Poder Judiciário, como última instância do cidadão para a garantia de seus direitos, inclusive contra o próprio Estado-Administração. Quem, senão o Judiciário, para orientar a correta atuação do Poder Executivo? Afinal, trata-se do relacionamento do Estado, por meio do Poder Executivo, com os seus súditos. Ou seja, da relação jurídica entre a Administração e o administrado.

A estatura desse relacionamento e o respeito integral às garantias constitucionais somente poderão ser demarcados pela atuação firme e fiel do Poder Judiciário.

Qualquer espécie de postergação, diminuição ou enfraquecimento desses princípios afronta os direitos de qualquer cidadão ou agente econômico e, portanto, também de todo o conjunto da sociedade.

A história nos revela que o desmoronamento do Estado de direito se inicia, exatamente, pelo desdém a pequenos, porém significativos direitos dos cidadãos e, frente à apatia da sociedade, o pouco-caso se transforma em desprezo.

Não há como relativizar o devido processo e o contraditório. Ou eles existem ou não existem. Ou bem são garantidos, ou não.

Seria o mesmo que dizer ao condenado à pena de reclusão em ação criminal, que seu recurso será analisado, mas somente depois que a vara se organizar em razão de mudanças na estrutura de pessoal e de fluxo de trabalho.

A cada dia que passa, a ineficiência e a negligência do Poder Executivo impõem prejuízos aos administrados e, em última instância, a toda a sociedade.

O verbete “postergar”, de acordo com o dicionário da Língua Portuguesa, admite dois significados, conforme abaixo:

  1. preterir, desprezar.
  2. não fazer caso, menosprezar.

Nesse sentido, quando há flagrante leniência da Administração com a postergação, com a preterição e o pouco caso, resta também patente o desprezo ao devido processo e ao contraditório.

Em se tratando de postulados tão elevados e indispensáveis do direito processual e administrativo, não se pode admitir qualquer espécie de diminuição ou menosprezo, ainda que de forma temporária, tanto mais da Administração pública.


[1] Venire contra factum proprium.

[2] Nemo auditur turpitudinem allegans.

[3] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004.

[4] DINAMARCO. C. R. Fundamentos do processo civil moderno. 6 ed., 2010, São Paulo, Malheiros.

[5] Paulino José Soares de Sousa foi juiz, desembargador, deputado, senador, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, presidente de Província e ministro do STF.

[6] CARVALHO, J. M. de. (org.) Visconde do Uruguai. Coleção Formadores do Brasil, Ed. 34, São Paulo, 2002.

[7] FAZZARALI, E. Instituições de Direito Processual. 1ª ed., Bookseller, São Paulo, 2006.

[8] BUENO, C. S. Manual de Direito Processual Civil, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2020.

[9] DE MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 108.

[10] ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro. In Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, n. 3

6, out./dez., 1997, ps. 5 a 28.

[11] CARVALHO FILHO. J. dos S. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed., Atlas, São Paulo, 2020.

[12] MARQUES, J. F. A garantia do due process of law no Direito Tributário, RDP 5/28 apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.

[13] MEDAUAR, O. Direito Administrativo Moderno. 20ª ed., 2016, São Paulo, RT.

[14] GRINOVER, A. P. Garantias do contraditório e ampla defesa. Jornal do Advogado, Seção de São Paulo, n. 175, nov. 1990, p. 9. Apud MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro, 43ª ed., 2018, São Paulo, Malheiros.

[15] SACHS-DEGENHART, KommGG, comment. II, 3, GG 103, p. 2.20, 4a ed., München: Beck, 2007. Apud NERY. N. J. et all. Constituição Federal Comentada. 7ª ed., 2019, São Paulo, RT, p. 183.

[16] DE MELLO, C. A. B. Op. Cit., p. 109.

[17] Art. 5º, LV, da Constituição Federal.


* JHERING, R. V. O espírito do direito romano: nas diversas fases de seu desenvolvimento, Rio de Janeiro, Alba, 1943.

Trabalho: o que diz a teoria econômica?

Terça-feira| 03 de maio de 2022

Ontem foi dia 1º de maio, dia do trabalhador!! E o que diz a teoria neoclássica a respeito deste fator de produção? Como a teoria econômica tem tratado o fator de produção trabalho?

Estas são perguntas que tentaremos responder nesta semana do trabalhador. Começaremos hoje com a apresentação do entendimento da teoria neoclássica a respeito da função de produção e da função de custo.

A função de produção da teoria neoclássica trabalha com uma função de produção representada por Y=F(K,L), onde Y é o produto obtido a partir da utilização do estoque de capital, K, e do estoque de trabalho, L.

Por hipótese, a produção do bem é crescente nos fatores capital e trabalho, ou seja, o aumento da utilização destes fatores amplia a produção, mas a taxa de crescimento do produto é decrescente à medida que os fatores são utilizados.

A função de produção apresentar diferentes graus de substituição entre capital e trabalho (a taxa marginal e substituição técnica – TMST), cada uma mais adequada a um setor específico. Esta taxa pode ser constante, representando que os fatores são substituíveis à mesma taxa ou podem ser decrescentes, indicando que uma combinação mais equilibrada de capital e trabalho geraria maiores níveis de produção. Há ainda, situações nas quais haverá uma combinação ótima de capital e trabalho que garantirá um produto máximo, entendendo que a utilização de capital e trabalho fora deste ponto sempre irá produzir menores quantidades de bens.

A função de produção como ora construída, permite representar o conceito de produtividade marginal dos fatores de produção, tendo o conceito de “marginal” sido gestado em Jeremy Bethan no século XVIII. A produtividade marginal nada mais é do que o acréscimo ao produto total quando uma unidade a mais de bem é vendida. Logo, a produtividade marginal do trabalho é o acréscimo ao produto quando uma unidade a mais de trabalho é utilizada.

A função de custo, por seu turno, reflete a combinação de valores pagos pela empresa pelos fatores de produção utilizados, sendo a taxa de juros o valor que remunera o capital e o salário real o valor que remunera o trabalho.

Segundo a teoria econômica, ao maximizar seus lucros, em mercados competitivos, o empregador sempre remunerará o trabalhador com um salário real que seja compatível com a sua produtividade marginal.

Trocando em miúdos, segundo a teoria neoclássica, o que o trabalhador recebe deve ser igual ao que ele acrescenta a produção da empresa, de maneira que quedas na produtividade do trabalho implicam na queda do salário real pago.

O 1º de Maio e os desafios do mercado de trabalho

Túlio Antônio Cravo

É primeiro de maio, Dia do Trabalhador em muitos países ao redor do mundo! A data é uma homenagem a greve geral que aconteceu em 1º de maio de 1886, em Chicago, centro industrial dos Estados Unidos. Dentre as reivindicações da greve geral de Chicago estava a redução da jornada de trabalho diária de 13 para 8 horas, desde então, muitas conquistas foram consolidadas e o 1º de maio tornou-se uma data para reflexão sobre o mundo do trabalho.

No Brasil, este primeiro de maio é passado com uma alta taxa de desemprego e queda nos rendimentos dos trabalhadores. A taxa de desemprego para o primeiro trimestre de 2022 foi de 11.1%. Embora tenha havido uma redução de 3,8 pontos percentuais em relação ao mesmo período do ano passado, 11,9 milhões de trabalhadores continuam desempregados e rendimento real médio caiu para R$ 2.548, uma queda de 8.7% no último ano.

É neste contexto difícil que teremos o exercício democrático das eleições em outubro de 2022. Quais seriam então alguns temas que deveriam ser discutidos pelos candidatos para reduzir o desemprego e aumentar a renda? O chamado tripé da política pública de mercado de trabalho composto pela intermediação de mão de obra, seguro-desemprego e qualificação profissional é o ponto de partida para as discussões.

  1. O Sistema Nacional de Emprego (Sine) é um instrumento importante para intermediar a conexão entre empresas e trabalhadores e aumentar a probabilidade de o trabalhador encontrar emprego. A discussão sobre qual a melhor estratégia para melhorar Sine é fundamental para que este seja mais efetivo para auxiliar o trabalhador na busca por trabalho de qualidade e bem remunerado.
  2. A adequação da oferta de educação profissional (ensino técnico e formação inicial e continuada) à demanda do mercado é crucial para a inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho. Além disso, é fundamental para a estratégia do país de continuamente melhorar as habilidades necessárias para aumentar a produtividade dos trabalhadores e sustentar o crescimento dos salários em um mercado de trabalho que cada vez mais exigente. 
  3. O aperfeiçoamento do Seguro-desemprego é muito importante para que o trabalhador tenha a segurança de ter alguma renda no período em que estiver fora do mercado de trabalho, mas que também utilize este período para se preparar melhor para a próxima oportunidade de trabalho.

Contudo, é importante que as discussões sobre os desafios do tripe da política pública de mercado de trabalho sejam discutidas baseadas em evidências sobre o que funciona e o que não funciona. O livro “Employment dynamics and labor market policies in Brazil” publicado recentemente pela Web Advocacy apresenta algumas evidências importantes que podem ser utilizadas na discussão sobre a melhoria da política pública de mercado de trabalho. 

O livro mostra que o Sine aumenta a probabilidade de encontrar um emprego e reduze o número de meses para encontrar um novo emprego. No entanto, esses empregos têm uma estabilidade e salários de reemprego mais baixos. Além disso, uma análise inicial sugere que a melhoria contínua das ferramentas online pode ser uma forma de expandir os serviços do Sine.

Quanto a questão da educação profissional, a publicação da Web Advocacy mostra a importância da orientação destes programas à demanda do mercado de trabalho. Os resultados sugerem que a rotatividade do trabalhador é induzida pelo treinamento orientado pela demanda. Esse tipo de treinamento pode aumentar a produtividade dentro das empresas quando os trabalhadores permanecem na empresa, mas também pode aumentar a produtividade fora da empresa quando os trabalhadores migram para outra empresa.

O funcionamento do seguro-desemprego também pode ser melhorado e o livro mostra como os trabalhadores respondem a mudanças nos critérios de elegibilidade do seguro-desemprego. Entender como os trabalhadores utilizam o seguro-desemprego e como alteram o comportamento quando existem alterações na legislação é importante para o funcionamento mais eficiente do sistema.

Mais do que entender as particularidades de cada política deste tripé, o livro da Web Advocacy é importante pensar como coordenar as ações para que estas políticas sejam mais efetivas em um momento de profunda transformação no mercado de trabalho.

Que este 1º de maio inspire os trabalhadores e eleitores a refletirem sobre o que querem para o futuro do mercado de trabalho no Brasil e que exijam propostas concretas e baseadas em evidências! Nos próximos meses vamos falar de forma específica sobre cada tripé da política pública de mercado de trabalho e indicar opções para melhores políticas públicas para mais e melhores empregos.  

Referência  

Cravo, T; Ribeiro E.P; Quintana, R; Sierra, A (2021) Employment dynamics and labor market policies in Brazil, WebAdvocacy, Brasília, Brasil.