Regulação econômica

Regulação de risco em tempos de incerteza: lições da ciência comportamental

Lúcia Helena Salgado*

A ciência comportamental vem informando a tomada de decisão em políticas regulatórias há mais de uma década. Trazida ao conhecimento do público leigo em 2008, com a publicação do livro de Cass Sustein e Richard Thaler, Nudge[1], os relatos de experimentos ali reunidos revelaram quão potente pode ser a “arquitetura da escolha” para elevar o nível de bem-estar social. Os exemplos hoje já clássicos – como a mudança na disposição de itens saudáveis à frente de ultraprocessados em cantinas escolares, induzindo mudanças de hábitos alimentares, e a mudança do default de não-doador” para “doador” em cadastros, levando a significante aumento do número de doadores de órgãos na Suécia -, demonstraram que pequenas alterações em menus de escolhas podem levar a mudanças importantes de comportamento, com reflexos positivos tanto para a sociedade como para o próprio tomador de decisão.

Ao tempo em que Nudge se revela um best-seller e era traduzido para várias línguas, Obama vencia as eleições presidenciais estadunidenses e tomava posse, convidando para liderar o OIRA[2] – o ente na Casa Branca responsável desde 1980 por avaliar e encaminhar todas as propostas regulatórias do Executivo – seu ex-professor em Yale e autor da obra, Cass Sustein. Richard Thaler[3] por sua vez, no ano seguinte, foi convidado pelo governo bipartidário britânico de Cameron a criar e dirigir uma unidade executiva capaz de rever e propor políticas regulatórias fundamentadas nos ensinamentos da ciência comportamental, o Behaviour Insights Team. A unidade completou 10 anos em 2020, e vem servindo de inspiração para unidades com o mesmo desenho e propósito, na Comissão Europeia, na província de Vitoria, Austrália, no Banco Mundial e na OMS, dentre outras[4]. O núcleo de estudo, revisão e desenho de politicas implantado originalmente no Reino Unido segue um formato bem-sucedido naquela jurisdição, já testado desde o governo de Tony Blair para reformular a intervenção regulatória: é uma força tarefa interdisciplinar, conectada em rede de diálogo e cooperação com órgãos de governo e com a academia, em permanente processo de aperfeiçoamento e revisão de desenho[5].

Em paralelo a essas iniciativas, a OECD[6] abraçou a missão de pesquisar e relatar a aplicação de ciência comportamental[7] nos processos de melhoria regulatória. A abordagem mostrou-se perfeitamente ajustada ao objetivo perseguido desde o inicio do milênio por muitos países, inclusive o Brasil, de aperfeiçoamento da regulação por meio da adoção de análises de impacto tanto ex-ante como ex-post, baseadas em evidências empíricas obtidas com metodologia científica[8]. Nos relatórios que publica regularmente sobre experiências nacionais[9], a organização costuma assinalar que a abordagem de politica regulatória fundamentada em insights comportamentais é apoiada em evidências, ao procurar identificar o que de fato guia as decisões dos cidadãos, deixando de lado premissas de como os cidadãos “deveriam agir” para fundamentar intervenções regulatórias[10].

Insights comportamentais têm iluminado com especial brilho situações a demandar intervenção regulatória em que há riscos a serem ponderados (em contraponto a benefícios). A premissa é que é essencial compreender como as pessoas tomam (de fato) decisões em condições de incerteza e risco, os atalhos mentais utilizados e os erros sistematicamente incorridos, para desenhar regulações que auxiliem os indivíduos a evitar os erros de avaliação. Por que a regulação em condições de risco beneficia-se especialmente de fundamentos da ciência comportamental? Porque erros nessas condições são sinônimos de tragédias, envolvem perdas de vidas, danos irreparáveis à sociedade e a seu ecossistema. Riscos envolvem probabilidade e gravidade de ocorrências. Um evento pode ser de altíssima gravidade mas de probabilidade insignificante; pode ser de gravidade média – danos reparáveis – com probabilidade moderada, pode ser de baixa gravidade mas com alta probabilidade – o que recomendaria medidas preventivas leves, e daí por diante; consideradas em um contínuo, gravidade e probabilidade, as combinações tendem ao infinito, embora possam ser abordados por intervalos. Amos Tversky e Daniel Kahneman, no artigo “Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases[11], marco dos estudos em economia comportamental, concluem que as regras da estatística não fazem parte do repertório inato humano; não obstante, é parte da condição humana a tomada de decisões a todo momento, sendo elas em grande parte referidas a um futuro – imediato ou distante – sobre o qual paira incerteza. Para transitar nesse mundo de incertezas, povoado por riscos, motivados seja por receios seja por esperanças, os indivíduos tomam decisões, fazem escolhas, arriscam ou se protegem, com base em heurísticas – regras práticas de comportamento, que simplificam inconscientemente o processo de tomada de decisão. Os autores identificam especialmente três heurísticas empregadas nas inferências sob incerteza: representatividade, disponibilidade e ancoragem, destacando, nas suas palavras, que:

“Essas heurísticas são altamente econômicas e usualmente efetivas, mas levam a erros sistemáticos e previsíveis. Uma melhor compreensão dessas heurísticas e dos desvios a que levam podem aperfeiçoar julgamentos e previsões em condições de incerteza.” (pp. 1124, tradução livre).

Adiante Thaler denominaria essas regras práticas, que podem levar, por afastamento da racionalidade, a erros sistemáticos de avaliação em tomada de decisão (com consequências econômicas significativamente negativas), de “anomalias”[12]. Pesquisas subsequentes expandiram o rol de erros de avaliação (ou vieses cognitivos) e revelaram importante aplicabilidade para politicas de intervenção regulatória, a ponto de hoje ser obsoleto tratar-se de intervenção regulatória para lidar com um problema sem considerar com o devido cuidado o impacto na percepção dos agentes e sua reação em face tanto do problema como da intervenção.

A pandemia de COVID-19 colocou em evidência a importância da análise de riscos para o desenho regulatório. Quando incluída com método e rigor, a variável risco pode aumentar a efetividade e eficiência da politica pública, à medida em que substitua receios, esperanças e opiniões – que traduzem heurísticas tipicamente humanas – por diretivas simples e claras, balizadas no exame criterioso de dados.

Este momento histórico representado pela pandemia já proporciona a observação de verdadeiros experimentos naturais, como a variância de comportamentos com respeito ao protocolo básico indicado pela OMS, tão logo os estudos levaram ao consenso cientifico em torno da importância de afastamento mínimo, higiene das mãos e uso de máscaras adequadas. Onde o público foi orientado pelas autoridades diretamente, com clareza e objetividade sobre a importância do protocolo, a adesão prevaleceu; onde essa condução não se deu, as heurísticas conduziram as decisões. Na dúvida sobre que conduta adotar? O mais seguro é a heurística de conformidade: seguir o comportamento do seu grupo social, daqueles em quem o sujeito deposita confiança, daqueles com quem se identifica.

Muitos estudos ainda serão publicados sobre os impactos da pandemia nos rumos do planeta; a produção científica vem tomando proporções gigantescas desde 2020, assim como tem crescido a colaboração em pesquisa e compartilhamento de dados, proporcionados pelas novas tecnologias. O desenho de politicas regulatórias tem muito a ganhar nesse processo em que a avaliação de risco fundamentada nos ensinamentos da ciência comportamental venha a se tornar rotineira na condução de processos de tomada de decisão em políticas públicas.

[1] Cutucada ou cutucão, em português informal, foi o título escolhido pelo editor e seu faro comercial para a obra de Sustein e Thaler sobre a arquitetura da escolha: Nudge, Improving Decisions about Money, Health and Happiness, Yale University Press, 2008.

[2] Office of Information and Regulatory Affairs. https://www.whitehouse.gov/omb/information-regulatory-affairs/

[3] Que em 2017 recebeu o Nobel de Economia, o segundo prêmio conferido à linha de pesquisa de economia comportamental, atrás de Daniel Kahneman, que recebeu o Nobel em 2002 em função da importância dos achados em psicologia comportamental para a revisão do princípio individual-metodológico baseado em perfeita racionalidade.

[4] Organização Mundial da Saúde. Uma consulta rápida ao Google oferece os endereços virtuais de cada uma dessas unidades.

[5] Tanto que, uma vez consolidada como instituição, após dez anos passou a operar de forma independente do governo. Confira em www.bi.team

[6] Organization for Economic Co-Operation and Development.

[7] Behaviour Isights tem sido a expressão mais frequente para designar essa nova abordagem.

[8] A respeito vale consultar Marcos Regulatórios no Brasil – Aperfeiçoando a Qualidade Regulatória, Salgado, L.H. e Fiuza E.S.P. (orgs), volume de 2015 da coleção disponível no repositório de conhecimento do IPEA http://repositorio.ipea.gov.br

[9] Acessiveis em www.oecd-library.org

[10] O que equivale a substituir a hipótese do indivíduo (tomador de decisão) racional-maximizador perfeitamente informado pela observação da decisão humana em contexto social e condições de incerteza e informação incompleta.

[11]Science, New Series, Vol. 185, No. 4157. (Sep. 27, 1974), pp. 1124-1131. Stable URL: http://links.jstor.org/sici?sici=0036-8075%2819740927%293%3A185%3A4157%3C1124%3AJ

[12] Richard Thaler, quando editor da American Economic Review, publicou como prefácio, a cada número, um ensaio sobre eventos econômicos em que a tomada de decisão dos agentes demonstrava uma sistemática viloação do princípio racional-mazimizador. Esses ensaios posteriormente foram publicados no livro The Winner’s Curse: Paradoxes and Anomalies of Economic Life, 1991.

* LÚCIA HELENA SALGADO. Professora Associada da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ. 

Desafios atuais do Acesso Não-Discriminatório às Infraestruturas Essenciais

Daniela Santos

Felipe Fernandes

Um dos assuntos historicamente mais discutidos no setor de gás natural é a garantia de acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais – detalhadas no próximo parágrafo. Não é de hoje que o tema volta a protagonizar análises técnicas e pareceres jurídicos, mas é certo afirmar que a partir da nova Lei do Gás e do seu Decreto regulamentador (14.134/21 e 10.712/21, respectivamente) o que ainda gerava insegurança – a despeito da vedação da recusa e/ou discriminação de contratar, prevista na Lei de Defesa da Concorrência (12.529/2011) – foi superado, e isso gerou novas expectativas para o setor.

De forma geral, podemos afirmar que os mencionados dispositivos legais não apenas asseguram o acesso não discriminatório de terceiros interessados aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás natural e aos terminais de GNL, mas igualmente esclarecem que os proprietários das instalações deverão: (i) elaborar, em conjunto com os terceiros interessados, observadas as boas práticas da indústria e as diretrizes da ANP, código de conduta e prática de acesso à infraestrutura, assegurar a publicidade e transparência desses documentos e (ii) receber a remuneração acordada entre as partes, com base em critérios objetivos, previamente definidos e divulgados na forma do código de conduta e prática de acesso à infraestrutura, (iii) restando a ANP a função de dirimir eventuais controvérsias sobre o tema (salvo no caso de instauração de arbitragem).

Ou seja, qualquer alternativa ao acesso não discriminatório, independentemente da regulamentação da ANP, é contrária à lei e à concorrência. E isso decorre da necessidade de se garantir que todos possam usufruir, sem qualquer discriminação e de forma transparente, de uma estrutura única – essencial– para movimentar o gás.

No passado, é sabido que a Petrobras detinha os ativos de infraestrutura essenciais e movimentava, quase que exclusivamente, o seu próprio gás. Portanto, naquele contexto, a necessidade de garantir o acesso não discriminatório era reduzida, em razão da presença de poucos agentes no mercado. Mas o cenário mudou e, após a celebração do Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) entre o CADE e a Petrobras, em 2019 – e os seus desdobramentos – passou a ser fundamental assegurar o acesso às mencionadas infraestruturas para os novos entrantes.

Neste sentido, mesmo antes da edição da nova legislação do gás, o próprio TCC foi enfático ao afirmar na cláusula 2.3 que “a PETROBRAS se compromete a negociar, de boa fé e de forma não discriminatória, o acesso de terceiros aos sistemas de escoamento de gás natural, respeitados, para os casos em que os sistemas possuírem coproprietários, o regramento estabelecido para tais sistemas.”.

Então a pergunta que se coloca é, hoje a garantia de acesso não discriminatório é, de fato, uma realidade?

Para responder é necessário esclarecer que muito já foi feito no sentido de assegurar o acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais. A unidade de processamento de gás natural (UPGN) de Guamaré, à época de propriedade da Petrobras no Rio Grande do Norte, abriu as discussões em 2020 e, hoje, a UPGN está sendo utilizada por terceiros – o que foi muito festejado pelo setor uma vez que decorreu de um trabalho árduo e inédito envolvendo a ANP, o Estado do RN, o MME e a petroleira proprietária do ativo.

Entretanto, no caso da UPGN Guamaré, é importante notar que a Petrobras não divulgou a metodologia de cálculo dos preços referente ao acesso, o que, como se sabe, é fundamental para garantir a transparência e a segurança indicadas na Lei do Gás, e, consequentemente, a competitividade ao mercado. Ademais, sequer foi possível identificar quais etapas foram impostas pela Petrobras, e seu respectivo prazo para concretizar tal negociação, uma vez que tais informações não foram disponibilizadas. Ou seja, ainda há mais espaço para novas reduções do preço do gás praticado ao consumidor final!

Neste sentido, citamos o CADE, que em outras oportunidades já se pronunciou em defesa na adoção de medidas de transparência como forma de impedir práticas discriminatórias[1]:

  1. Em consonância com as preocupações trazidas aos autos pelos Terceiros Interessados, essa racionalidade de tratamento isonômico deve alcançar todos os momentos nos quais poderiam ocorrer discriminações ou estratégias de fechamento de mercado, ou seja, a oferta, a contratação e a operação cotidiana de todas as atividades que impliquem integração vertical de mercados atingidos pela operação.

(…)

  1. Portanto, indo ao encontro da regulação, o Acordo negociado com as Requerentes estabelece a obrigação de observar parâmetros objetivos para a precificação dos serviços prestados aos Concorrentes. Tais parâmetros objetivos serão representados por um conjunto de variáveis que guardarão uma relação fixa e pré-ordenada entre si. Ou seja, as Compromissárias fixarão desde o presente momento as variáveis que influenciarão a precificação de seus serviços e, principalmente, o “peso” de cada uma dessas variáveis nessa precificação, sendo representadas em uma Fórmula.
  2. Uma vez que as variáveis a compor o preço estarão plenamente fixadas, bem como sua influência na formação desse preço, será possível decompor qualquer preço praticado, permitindo a identificação objetiva das particularidades de cada Usuário que justificariam um tratamento diferenciado, bem como a quantificação e qualificação dessas particularidades de forma a se aferir a razoabilidade dessa diferenciação. Assim, qualquer tratamento discriminatório restará inevitavelmente evidenciado. (grifos nossos)

No caso de compra e venda de gás, o tema ainda é mais nebuloso e com pouca discussão aberta. O que se sabe é que, de modo a cumprir as determinações do TCC, a Petrobras enviou, no final do ano passado, cartas para alguns operadores offshore para aprofundar o debate. Sem qualquer dúvida, é fundamental discutir o tema de forma ampla. Até porque, somente assim será possível avançar na direção de um mercado de comercialização de gás aberto e competitivo.

Mas não se pode perder de vista que, em julho de 2022, teremos 3 anos de vigência do TCC, e, a despeito de o CADE já ter sido provocado diversas vezes por representantes da indústria, na prática, ainda estamos vivenciando discussões individualizadas que prejudicam a implementação integral do princípio de acesso não discriminatório na compra e venda do gás. Ou seja, ainda não conseguimos incluir a ampla divulgação da metodologia de cálculo do preço do serviço de forma a contribuir para a maior competitividade no mercado e menor preço ao consumidor.

Certamente não estamos com isso defendendo a divulgação de informações comerciais das empresas e tampouco aquelas que, segundo a lei, devem ter tratamento confidencial. Na verdade, defendemos a ampla divulgação prévia da forma de cálculo do preço do serviço – além de todo o detalhamento necessário – que será utilizado pelo proprietário do ativo a qualquer parte interessada no acesso à infraestrutura.

Dito de forma ainda mais direta: resolver “caso a caso” o preço e as condições não é acesso não discriminatório, é simplesmente, no melhor caso, simples acesso. Não discriminar, neste caso, significa garantir que todos tenham o conhecimento das variáveis aplicáveis para calcular os valores que serão cobrados pelo serviço. Senão, como saber se não está sendo praticado um acesso discriminatório, por que não isonômico?

Em uma hipotética negociação entre vendedor e comprador de gás (atualmente há muito movimento neste sentido no mercado nacional), o fato de não se conhecer previamente a metodologia de preço aplicável a todos os interessados no acesso à infraestrutura de escoamento existente, por exemplo, já inibe ou torna insegura a expansão de negócios. Porque a aplicação de valores sem aderência a uma lógica previamente conhecida é um risco que, muitas vezes, afasta a liberdade e incentivos de contratação, ou mesmo cria soluções transitórias sem a segurança esperada. Logicamente, isso é uma forma de limitar o acesso, o que é contrário ao TCC, à concorrência, à Lei e ao Decreto do gás.

E tal situação foi recentemente exemplificada durante o evento da Gas Week de 2022 pela Vice-Presidente da Equinor, Claudia Brun, ao afirmar que, para que o gás da empresa chegasse ao mercado, foi necessário “muita negociação” e “resiliência” para garantir “uma solução transitória de acesso à estrutura de escoamento e processamento de gás na Bacia de Campos”.

Não há dúvidas sobre os avanços alcançados, mas tampouco há dúvidas sobre a necessidade de garantirmos mais segurança e menos “soluções transitórias” para o acesso às infraestruturas essenciais e isso, repita-se, somente poderá ser alcançado com transparência e publicidade das regras aplicáveis e remuneração acordada entre as partes, com base em critérios objetivos, previamente definidos e divulgados.

E mais: neste caso, considerando outro compromisso estabelecido na cláusula 2.5 do TCC – qual seja, de que a Petrobras não poderá comprar volumes adicionais de gás de outros produtores – é certo admitir que, em um cenário de produção crescente de gás, será primordial assegurar o acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais por terceiros. Esse cenário já é uma realidade com a celebração de contratos de compra e venda para fornecimento de gás a partir de janeiro 2022 entre as distribuidoras estaduais e produtores offshore.

Para evitar prejuízos para o desenvolvimento do Novo Mercado de Gás (NMG), é fundamental o posicionamento ativo do CADE em relação ao efetivo cumprimento do TCC. Nesse sentido, vale lembrar que se trata de problema de ordem concorrencial, que se não for devidamente enfrentado pela autoridade antitruste, inviabilizará a efetiva competição de novos comercializadores junto à Petrobras. Exemplo disso foi a situação vivenciada no final do ano de 2021, quando as distribuidoras de gás se depararam com a ausência de opções de suprimento além da estatal, a qual impôs condições consideradas abusivas, como aumento da ordem de 50% a 300% do preço de gás, cláusulas restritivas e prazos de longa duração, por exemplo – o que, por certo, gerou prejuízos aos consumidores, o fechamento de mercado e a judicialização do assunto, visando atenuar o efeito danoso de tal aumento por meio de liminares…

Além do CADE,  apesar da atuação destacada da ANP a respeito do tema e da possibilidade de o regulador lidar com questionamentos durante a transição – reforçada na apresentação do Superintendente da ANP, Hélio Bisaggio, na Gás Week de 2022 – considerando as conhecidas dificuldades dos agentes de divulgar informações que comprovam os problemas de acesso, não há dúvidas de que a recém-divulgada agenda regulatória da ANP (2022-2023) precisa priorizar os novos dispositivos referentes ao acesso de terceiros, sendo fundamental que a previsão de conclusão para janeiro de 2024 seja antecipada, de forma a assegurar a segurança jurídica do tema. Ademais, seria de grande valia que a ANP passasse a ser mais acionada na sua função de dirimir eventuais controvérsias sobre o tema, conforme assegura a Lei do Gás.

[1] Voto Relator: Conselheiro Gilvandro Araújo, Ato de Concentração nº 08700.005719/2014-65 (Rumo & ALL).