Existe um nível ótimo para a integração vertical na saúde?
Sandro Leal Alves
A integração vertical, ou verticalização como é mais conhecida no mercado de saúde, se refere ao processo que que há a unificação produtiva de partes da cadeia que antes eram separadas. Quando uma operadora de plano de assistência à saúde adquire um hospital, ou vice-versa, há uma integração vertical pois o plano de saúde e o hospital passam a operar sob uma gestão única. O mesmo ocorre dentro do hospital quando este é responsável, por exemplo, pelo funcionamento dos serviços de gastroenterologia.[1]
Esse processo de integração visa um melhor alinhamento de incentivos entre os agentes econômicos, reduzindo custos de transação e ineficiências decorrentes de uma gestão com objetivos eventualmente conflitantes e separados. Essa não é, portanto, uma peculiaridade da saúde. Ao contrário, a economia industrial é cheia de exemplos em que a verticalização resulta em economias para as partes e maior eficiência econômica. Já o ecossistema da saúde, com crescente uso de informações e transações digitais, atualmente é muito mais próximo ao funcionamento de redes integradas do que a tradicional visão de etapas subsequentes das cadeias produtivas industriais.
A visão mais tradicional da análise antitruste se baseia no argumento de que há um nível de concentração que para além do qual, os custos econômicos superam os benefícios. Diversos índices de concentração (HHI, C4, etc.) ajudam a identificar os mercados relevantes que merecem um maior grau de preocupação das autoridades da concorrência. Não é objetivo desse artigo adentrar este campo já muito desenvolvido na literatura. [2]
Mas e na integração vertical? E, mais ainda, na área da saúde, haveria um indicador capaz de sinalizar ou antecipar algum potencial dano à concorrência? Sabemos que os tradicionais índices de concentração são muito úteis para movimentos horizontais, mas estes não se aplicam diretamente aos movimentos verticais. [3]
A literatura disponível ao conhecimento deste autor não indica um consenso se os efeitos predominantes de uma integração entre empresas que atuam em mercados complementares são ganhos de eficiência ou anticompetitivos. Sabemos que os ganhos de eficiência podem vir de redução dos custos de transação, melhora na capacidade de monitoramento dos elos da cadeia produtiva e melhor coordenação do cuidado. Já em relação aos efeitos anticompetitivos, o fechamento de mercado para a entrada de concorrentes talvez seja o mais danoso.[4]
No Brasil, e em especial na saúde privada suplementar, o movimento de concentração vertical foi acelerado após investimentos de instituições financeiras estrangeiras em toda cadeia de saúde suplementar, que só foram possíveis após a Lei n. 9.656/98 para a recepção de capital estrangeiro em operadoras assim como pela Lei n. 13.097/15, que ampliou esta possibilidade às empresas de assistência à saúde como clínicas, laboratórios e hospitais. [5]
A própria concorrência, a regulação da ANS com requerimentos de entrada e capital, dentre outros, e a escalada dos custos assistenciais impuseram aos agentes econômicos a necessidade de reformatar seus modelos de negócio abrindo espaço para as fusões, aquisições e integrações verticais. Não podemos esquecer que o modelo de remuneração Fee-For-Service (FFS), que paga de acordo com o volume de procedimentos ofertados, contribuiu para uma taxa de crescimento de custos acima do sustentável, nem sempre privilegiando a melhoria da assistência aos pacientes. O mesmo efeito pode ser atribuído ao histórico processo de incorporação de tecnologias na saúde suplementar, sem avaliações técnicas de custo-efetividade como os bons manuais de Avaliação de Tecnologias em Saúde recomendam. Isso tudo, aliada à fragmentação do cuidado assistencial e à excessiva judicialização, contribui para a inovação dos modelos de negócios.
Na saúde suplementar, a obtenção de economias de escala é fundamental para dar maior segurabilidade aos riscos e custos assistenciais crescentes. A integração vertical, seja ela real ou virtual, confere às operadoras a possibilidade de gestão desses riscos com estratégias de coordenação de cuidados assistenciais e de saúde populacional, sem falar na necessidade crescente de integração de dados para melhorar a assistência prestada e desenhar soluções mais focalizadas para grupos de riscos específicos.
A integração com coordenação também pode permitir um melhor resultado assistencial ao melhorar a comunicação entre os agentes, padronizar procedimentos e reduzir redundâncias. No fim do dia, o consumidor estará mais bem atendido. Esse seria o desenho ótimo de uma integração vertical, cabendo às autoridades o monitoramento desse movimento com vistas a preservar os benefícios econômicos que a integração pode trazer. Na ausência de falhas de mercado e infrações à legislação de defesa da concorrência, o mercado encontra o caminho para levar o melhor resultado assistencial aos consumidores de planos.
Nesse sentido, a verticalização é um processo, e não um fim em si mesma, que ajuda a lidar com o desafio do financiamento. Isto porque as despesas assistenciais, representadas na saúde suplementar pela VCMH (variação dos custos médico-hospitalares) crescem em velocidade superior ao crescimento das rendas, salários, inflação ao consumidor e diversos outros indicadores econômicos.
Sob o ponto de vista da defesa da concorrência, a análise das eficiências dinâmicas que geralmente procuram observar efeitos da operação sobre preços e quantidades deve olhar cada vez mais para indicadores de qualidade assistencial, não desprezando evidentemente os tradicionais indicadores de solvência, muito importantes em um mercado que lida com riscos futuros, eventos incertos e com a poupança popular.
Para finalizar, pouco importa se a verticalização é real, mediante a aquisição de ativos, ou virtual, mediante acordos e contratos. O que realmente interessa é o resultado na última linha do balanço assistencial, ou seja, a entrega de valor em saúde para as pessoas.
[1] Song, L., Soroush, S., Saghafian, M., Newhouse.J., Landrum, M., Hsu, J. The Impact of Vertical Integration on Physician Behavior and Healthcare Delivery: Evidence from Gastroenterology Practices Faculty Research Working Paper Series. September 2020
[2] Uma boa discussão sobre a relação entre índices de concentração, mercados relevantes geográficos e preços na saúde suplementar pode ser encontrada em Lima, T (2021). Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar. Documento de Trabalho 04. Departamento de Estudos Econômicos do CADE.
[3] Alguns economistas utilizam o índice de Gans ou HHI vertical (VHHI) para mensurar a verticalização. O VHHI é dado pelo somatório do produto da participação da firma a jusante com o máximo entre essa mesma participação e a da firma a montante. Sendo si a participação da firma a jusante e σi a participação da firma a montante, tem-se que: VHHI = . Cabe o registro de que a definição dos mercados relevantes e, principalmente, na dimensão do produto, condição necessária para cálculo do referido indicador, é tarefa de enorme complexidade devido às múltiplas funções exercidas pelo hospital em seus diversos serviços assistenciais.
[4] Gaynor M (2014) Competition policy in health care markets: Navigating the enforcement and policy maze. Health A↵airs 33(6):1088–1093.
[5] Não nos esqueçamos que a verticalização é um processo antigo. As medicinas de grupo, por exemplo, já nasceram verticalizadas, assim como as filantrópicas e as próprias Unimeds. Faz parte do DNA organizacional dessas entidades a operação conjunta do plano e da assistência.