Polyanna Vilanova

O mercado de distribuição de produtos de investimento no Brasil segundo a Superintendência Geral do CADE e a nova oportunidade de análise do setor pelo Tribunal após 6 anos do AC Itaú/XP

Polyanna Vilanova e Henrique Muniz

O mercado de distribuição de produtos de investimento no Brasil vem sofrendo constantes alterações nos últimos anos e, como se sabe, a análise de definição de mercado relevante do Conselho Administrativo de Defesa da Econômica (CADE) precisa estar sempre em linha com as mudanças do mercado, não sendo plausível que, alterando-se a dinâmica competitiva, o entendimento do órgão antitruste não acompanhe as consequências dessa transformação.

Nesse sentido, é necessário avaliar a evolução histórica desse setor com o surgimento das plataformas abertas como a XP Investimentos S.A. (“XP”) e com a tendência de crescente desintermediação bancária de varejo na distribuição de produtos financeiros, bem como os fundamentos da definição de mercado relevante adotada pelo Tribunal Administrativo do CADE na operação entre Itaú e XP em 2018, caso paradigmático na jurisprudência da autarquia.

Muito embora o entendimento firmado pelo Tribunal do CADE seja referenciado em todas as operações analisadas pelo CADE após o AC Itaú/XP, a partir da análise das principais decisões sobre o mercado, verifica-se a ausência de discussão mais profunda sobre a definição do mercado relevante, assim como diversos questionamentos em aberto, tais como, sobre as mudanças no “grau de abertura” atual de bancos e corretoras e a necessidade de segmentação do mercado entre plataformas abertas e fechadas.

Agora, passados mais de 6 anos do último julgamento sobre esse mercado, o Tribunal poderá, mediante possível (e necessária) avocação de inquérito administrativo, avaliar a atual dinâmica competitiva do mercado e dar respostas aos diversos questionamentos concorrenciais que pairam sobre o setor, conforme será demonstrado a seguir. 

A evolução histórica do mercado financeiro/de investimentos no Brasil

Historicamente, a estrutura do mercado financeiro brasileiro era composta por poucos bancos comerciais que ofertavam produtos desenvolvidos internamente, atuando por meio de um modelo verticalizado e cativo. Contudo, ocorreram mudanças estruturais nesse mercado, principalmente na última década, que alteraram a dinâmica competitiva do mercado e o entendimento do CADE na definição dos mercados relevantes do setor financeiro/de investimentos.

Inicialmente, até o julgamento do Ato de Concentração (AC) nº 08700.010790/2015-41 (Bradesco/HSBC), o CADE definia os mercados relevantes de produtos e serviços financeiros de maneira integrada, com exceção de alguns poucos serviços, como seguros.

A título ilustrativo, no mercado de produtos de investimento, como CDB (Certificados de Depósito Bancário), fundos de investimentos e previdência privada, o CADE considerava que a “produção” e a comercialização de tais produtos compunham um só mercado. Isso porque os ofertantes desses produtos – instituições financeiras do sistema bancário – atuavam de forma integrada. Em outras palavras, essas instituições emitiam seus títulos (CDB, LCA, LCI, por exemplo), geriam seus próprios fundos de investimentos e planos de previdência e os comercializavam exclusivamente em suas respectivas redes de atendimento. Dessa forma, a oferta desses produtos era completamente integrada e cativa de cada instituição.

Essa foi a estrutura vigente no mercado financeiro brasileiro há décadas, com instituições de “arquitetura fechada”, que ofertavam apenas produtos desenvolvidos internamente.

Contudo, o surgimento de “plataformas abertas” de investimento, que distribuem uma gama diversificada de produtos financeiros de terceiros, alteraram a dinâmica da estrutura da oferta de serviços e produtos financeiros no Brasil (assim como ocorreu e ocorre em todo o mundo). Diante desse contexto, definições de mercado relevante usualmente adotadas em análises envolvendo o setor foram revisitadas pelo órgão antitruste.

No Ato de Concentração nº 08700.001642/2017-05 (Itaú/Citibank), foram indicados elementos que já apontavam as mudanças no setor. Nesse caso, o CADE decidiu pela separação dos mercados de gestão/administração de recursos de terceiros do mercado de distribuição de produtos de investimentos, bem como dos mercados de previdência privada e de distribuição de previdência privada.

Além disso, reconheceu que a distribuição de produtos de investimento poderia ser feita por meio de “i. plataformas fechadas, nas quais o distribuidor comercializa apenas cotas de fundos administrados por seu grupo econômico; ou ii. plataformas abertas, nas quais o distribuidor também comercializa cotas de fundos administrados por terceiros[1]”.

Já no âmbito da análise do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP), o Tribunal Administrativo do CADE (“Tribunal do CADE” ou “Tribunal”), em decisão paradigmática que é tomada como parâmetro em todas as análises do CADE nesse mercado, se aprofundou na definição desse mercado relevante e distinguiu com mais clareza as plataformas abertas das plataformas fechadas[2]. Segundo essa classificação, plataformas fechadas seriam aquelas nas quais apenas produtos de investimentos/financeiros administrados pelo grupo econômico do próprio distribuidor seriam comercializados; por outro lado, plataformas abertas comercializariam produtos de investimentos/financeiros administrados tanto pelo grupo econômico do distribuidor, quanto por terceiros.

Nesse sentido, as plataformas abertas permitem a interação entre diversos ofertantes de produtos financeiros (bancos de pequeno e médio porte, gestores independentes, empresas emissoras de títulos privados etc.) e os consumidores/investidores, que procuram produtos financeiros como opção de investimento. Esse modelo é essencialmente distinto da maneira tradicional de atuação do sistema bancário, marcado pela “arquitetura fechada” dos bancos tradicionais, de forma verticalizada e produtos cativos.

Segundo o voto do conselheiro Relator Paulo Burnier[3], esse novo modelo de distribuição de produtos e serviços financeiros tem efeitos pró-competitivos, uma vez que: (i) possibilita a competição entre diversos ofertantes em uma mesma plataforma (concorrência na plataforma); (ii) promove a concorrência entre as plataformas que estão surgindo e os bancos tradicionais; e (iii) reduz barreiras à entrada para novos ofertantes de produtos de investimento, que não precisam estruturar amplas e custosas redes de atendimento a clientes. Há ganhos, portanto, tanto do lado dos ofertantes, que conseguem reduzir os custos de distribuição de seus produtos, quanto do lado dos investidores, com um incremento significativo da competição no mercado.

Essa mudança no modelo tradicional deu-se, em parte, pelo surgimento da XP, reconhecida como pioneira (first mover) desse novo mercado, ao lançar a primeira e, ainda hoje, a principal plataforma aberta de distribuição de produtos financeiros no Brasil.

Esse movimento de migração dos investidores de varejo dos bancos tradicionais para plataformas abertas passou a ser denominado de “desbancarização”, contudo o mercado de plataformas abertas de distribuição de produtos de investimento é ainda incipiente, mas com significativo potencial no Brasil, tendo em vista a crescente desintermediação bancária de varejo na distribuição de produtos financeiros nos últimos anos.

Segundo estudo da Oliver Wyman publicado em 2019, “The Brazilian investment landscape: a new era for Brazilian investors[4], os bancos concentravam, ao final de 2016, cerca de 95% de todos os ativos de investimento do segmento de varejo no Brasil. Por outro lado, nos Estados Unidos, os canais independentes, como a plataforma aberta da XP, concentravam 87% dos investimentos, uma situação quase inversa. Entre 2016 e 2018, esse percentual, no mercado brasileiro, cresceu de 5% pata 7% e se espera que esse número continue a crescer nos próximos anos à medida que investidores continuam buscando consultoria independente, variedade de produtos e arquitetura aberta.

O estudo apontou que, embora alguns bancos brasileiros tenham aberto seu conjunto de produtos para fabricantes independentes, a oferta tem ficado historicamente aquém da demanda. Quando comparada aos mercados internacionais, a distribuição de investimentos no Brasil ainda é dominada por bancos, enquanto muitos dos mercados internacionais fizeram uma transição para outros canais de distribuição.

Tal dado nos leva a crer que o movimento do fluxo de investimentos saindo dos bancos de varejo para gestores independentes, como se observou e se tem observado em outros mercados pelo mundo, ainda gerará grandes transformações na dinâmica competitiva e uma tendência crescente de notificação de operações ou de investigações de condutas envolvendo o setor, ressaltando a importância da solidificação da jurisprudência do CADE nesse mercado a fim de garantir previsibilidade de segurança ao jurisdicionado.

As análises para definição do mercado relevante nos precedentes do CADE

Durante as discussões realizadas no âmbito do AC Itaú/XP, o foco da análise consistiu no novo modelo de prestação de serviços financeiros, em especial, na distribuição de produtos de investimento, por meio de plataformas abertas, capitaneado pela XP, em contraposição ao modelo tradicional de oferta de produtos e serviços pelos bancos tradicionais de arquitetura fechada.

Nesse sentido, o CADE enfrentou a discussão sobre incluir, ou não, bancos comerciais tradicionais no mercado relevante de distribuição de produtos de investimento. Sob o ponto de vista da demanda, concluiu-se que as empresas que operam no modelo de plataformas abertas exercem pressão competitiva sob os bancos comerciais, pela capacidade de ofertar produtos de diversos fornecedores para o consumidor final, antes limitado aos canais bancários tradicionais, acirrando a competição no mercado. Ou seja, bancos, corretoras e plataformas abertas ou fechadas, ofertam portfólio de produtos semelhantes para um mesmo público consumidor. [5]

Por outro lado, considerou-se que, sob o ponto de vista da oferta, a diferença entre bancos comerciais tradicionais e plataformas abertas é significativa: enquanto essas competem entre si pelos fornecedores dos produtos e serviços disponibilizados na plataforma, aquelas comercializam aquilo que é produzido internamente. Ou seja, para os gestores e emissores de produtos independentes, apenas as plataformas abertas constituem opção para a colocação e distribuição de seus produtos aos consumidores. Nesse sentido, os bancos comerciais competem com as plataformas abertas apenas pelos consumidores de um lado: a ponta demandante de serviços e produtos de investimentos, não competindo pela demanda dos ofertantes – emissores, gestores e demais agentes que desenvolvem produtos e serviços de investimentos. [6]

Nesse contexto, o Tribunal do CADE decidiu que, para a análise dos efeitos horizontais sob consumidores, bancos e plataformas abertas que atuam no mercado concorrem entre si. Contudo, para a análise de eventual poder de compra e efeitos verticais, deve-se considerar apenas as plataformas abertas, excluindo as empresas que atuam na oferta de produtos do próprio grupo econômico de maneira cativa.

Já no Ato de Concentração nº 08700.003000/2019-02 (Sulamerica/Órama), o Parecer SG nº 208/2019[7] reconheceu a distinção entre bancos tradicionais e plataformas abertas na definição de mercado relevante na dimensão produto estabelecida no caso Itaú/XP, contudo sugeriu que a definição fosse mantida em aberto nessas dimensões, visto que nos cenários abrangente ou restrito não se vislumbravam preocupações de ordem concorrencial em virtude das baixas participações de mercado das empresas. Dessa forma, a Superintendência-Geral do CADE (SG/CADE) definiu como mercado relevante na dimensão produto o mercado nacional de distribuição de produtos de investimento (sem segmentação).

O não aprofundamento da análise para segmentação se tornou prática recorrente em outras operações analisadas – sobretudo sob rito sumário e sem julgamento pelo Tribunal do CADE – pelo órgão de defesa da concorrência após esse entendimento firmado pela SG/CADE, seja pelos mesmos fundamentos levantados no AC Sulamerica/Órama, seja pela ausência de pacificação da questão da segmentação na jurisprudência do CADE com a consequente utilização dos cenários apresentados pelos requerentes a partir de dados sobre o mercado nacional de distribuição de produtos de investimento nas categorias de renda fixa, renda variável e operações híbridas de acordo com os rankings públicos disponibilizados pela Anbima.[8]

Entretanto, no Ato de Concentração nº 08700.001320/2022-15 (BTG/Elite Corretora), a SG/CADE chamou a atenção para as importantes modificações no mercado nos últimos anos após a operação Itaú/XP, que tratou, de forma inaugural, da segmentação entre plataformas abertas e fechadas e evidenciou o movimento de desbancarização presente no mercado. Na operação entre BTG e Elite, estabeleceu-se que a segmentação anteriormente utilizada no mercado relevante já não encontrava respaldo na nova realidade do setor trazida a partir dos chamados Agentes Autônomos de Investimento (AAIs), que criou pressão competitiva no modelo de private banking, modificando a segmentação anterior, que classificava o perfil das empresas ofertantes entre plataformas fechadas e abertas.

Em razão da mudança no modelo de negócio dos bancos e das plataformas abertas, a mera segregação já não seria capaz de descrever com exatidão o modus operandi atual de diversos participantes deste mercado, não havendo clareza sobre o “grau de abertura” das então plataformas fechadas de distribuição nem tampouco sobre a pressão competitiva que estas exercem com relação às plataformas abertas. Por esse motivo, a SG/CADE, reconhecendo a inexistência de jurisprudência pacificada no CADE a esse respeito, entendeu pela desnecessidade de aprofundar a análise para essa segmentação.[9]

Essa mudança estrutural do mercado ficou evidenciada na análise do Ato de Concentração nº 08700.001018/2022-67 (XP/Modal), em que as requerentes alegaram não ser necessária a segmentação do mercado, uma vez que distribuíam, sem distinção, produtos próprios e de terceiros, bem como sustentando que as empresas que atuam no modelo aberto não só competiriam entre si, como também estariam essencialmente competindo com players das plataformas fechadas. As requerentes exemplificaram, ainda, o caso de agentes tradicionalmente caracterizados como de arquitetura fechada (bancos), que passaram a comercializar uma série de produtos financeiros de terceiros.

Em contrapartida, a Acqua Vero Agente Autônomo de Investimentos Ltda. (“Acqua Vero”) juntou pedido de habilitação como terceira interessada, alegando, dentre outros, a necessidade de segmentação no mercado relevante de distribuição de produtos de investimentos entre arquitetura aberta e fechada, uma vez que “as plataformas fechadas não competiriam com as abertas no segundo lado (ofertantes que desenvolvem produtos/serviços de investimentos), pois, para os gestores e emissores de produtos independentes, apenas as abertas constituem opção para a colocação e distribuição de seus produtos aos consumidores[10]”. Alegaram, ainda, que haveria interesse das requerentes em diluir a concentração resultante da operação, adicionando-se as plataformas fechadas no denominador do cálculo e impedindo sequer a visualização de cenários, já que as requerentes teriam se negado a apresentar dados segmentados durante a instrução. Além disso, o poder de mercado da XP poderia ser decorrente da sua ampla rede de AAIs, o que geraria o potencial de impedir acesso a seus concorrentes ao canal de distribuição.

Contudo, a SG/CADE considerou o mercado como um todo sem segmentação para fins de análise de sobreposição horizontal (sob a ótica da demanda dos clientes/investidores). Para fins de integração vertical entre gestores de fundos de investimento e distribuidores de produtos de investimento (sob a ótica da oferta de produtos de investimento para os clientes/investidores), após teste de mercado para análise das atuais diferenças entre plataformas abertas e fechadas, foi mantida a segmentação do mercado em plataformas abertas e fechadas, seguindo o entendimento firmado no AC Itaú/XP, uma vez que os resultados do teste de mercado não forneceram conclusões robustas o suficiente para alterar o entendimento firmado anteriormente.[11]

No caso do Inquérito Administrativo nº 08700.006476/2022-92 (“IA XP”), instaurado em face da XP para investigar suposta prática de infrações à ordem econômica (condutas unilaterais) que potencialmente dificultaria o ingresso ou o desenvolvimento de empresas concorrentes no mercado de distribuição de produtos de investimentos, foi retomado o entendimento firmado no AC BTG/Elite Corretora no que se refere à definição do mercado relevante.

A SG/CADE reafirmou a evolução do mercado no sentido de um maior grau de abertura das instituições até então classificadas como fechadas, havendo uma aproximação entre modelos de negócios de bancos e corretoras: as instituições antes classificadas como plataformas fechadas passaram a disponibilizar, também, produtos de terceiros a seus clientes investidores; e as instituições antes classificadas como plataformas abertas passaram a disponibilizar, também, produtos próprios a seus clientes investidores. Foram destacados elementos comuns às distribuidoras de produtos de investimento, incluindo aquelas que, há pouco tempo, eram classificadas como de arquitetura fechada, tais como: a diversificação de produtos financeiros oferecidos, a redução de tarifas, o incremento da jornada digital e a oferta de consultoria para explicação individualizada sobre investimentos.[12]

Com isso, a SG/CADE entendeu que não seria necessário o aprofundamento na análise e na delimitação do mercado relevante para o deslinde da investigação. Isso porque, mesmo que se admitisse por hipótese que XP e instituições bancárias ora caracterizadas como “fechadas” não estariam num mesmo mercado relevante, não se poderia descartar a importância das mudanças do modelo de negócio das últimas nos anos recentes, tampouco a pressão competitiva que exerceriam sobre a XP, inclusive com capacidade de mitigar eventuais abusos de uma suposta posição dominante desta. Além disso, uma definição absolutamente precisa do mercado relevante e o consequente cálculo da participação de mercado da Representada seria dispensável para a formação do juízo de valor no caso concreto.

Em face do despacho de arquivamento, as empresas habilitadas como terceiras interessadas, Acqua Vero e EQI – Agentes Autônomos de Investimentos S/S (“EQI”), apresentaram recursos administrativos. No que se refere à questão da segmentação do mercado, ressalte-se o recurso da EQI[13], em que se frisou a necessidade de se delimitar especificamente o mercado relevante para a aferição da existência de posição dominante da XP e a consequente avaliação da potencialidade de fechamento de mercado das práticas investigadas, visto que a SG/CADE teria se baseado na premissa, adotada no AC XP/Modal, de que a evolução do mercado com a aproximação entre os modelos de negócio de bancos e corretoras acarretou o aumento da pressão competitiva entre esses agentes do mercado de distribuição de produtos de investimentos. Alegou, ainda, que, na própria operação que serviu de precedente para a SG/CADE, a premissa não foi confirmada com segurança em virtude da escassa instrução realizada com apenas um teste de mercado, diferentemente da operação Itaú/XP em que o Tribunal do CADE se manifestou no sentido de a diferença entre plataformas fechadas e aberta é decisiva.

A oportunidade de análise do mercado pelo Tribunal e a possível pacificação da jurisprudência sobre a definição do mercado relevante

Atualmente, o recurso encontra-se pendente de análise pelo Superintendente-Geral do CADE[14] e poderá ser objeto de avocação pelo Tribunal caso seja determinado o arquivamento do inquérito administrativo[15].

Ressalte-se que a última análise realizada pelo Tribunal acerca do mercado de distribuição de produtos de investimentos se deu em 2018, no julgamento do AC Itaú/XP. De lá para cá, (i) o mercado cresceu, como se vê, por exemplo, com o aumento do número de AAIs, do número de investidores e dos valores em produtos de investimento distribuídos; (ii) o modelo de negócio dos agentes do mercado e a dinâmica competitiva foram alteradas, o que se verifica, por exemplo, a partir das diversas operações notificadas ao CADE entre bancos e corretoras.

Diante disso, alguns questionamentos surgem a partir da leitura das decisões da SG/CADE e das manifestações dos agentes de mercado do setor nos casos acima relatados: a mera segregação entre plataformas abertas e fechadas ainda é capaz de descrever com exatidão o modus operandi atual de diversos participantes do mercado? Existe(m) outra(s) proxy(s) mais adequada(s) para o cálculo do martketshare dos agentes desse mercado, excluindo-se os rankings públicos da Anbima utilizados nos precedentes do CADE? A premissa de que a aproximação entre os modelos de negócio de bancos e corretoras acarretou o aumento da pressão competitiva entre esses agentes foi suficientemente confirmada pelo CADE?

Com uma possível avocação no caso IA XP, o Tribunal do CADE poderá analisar novamente o mercado de distribuição de produtos de investimento após 6 anos do julgamento da operação Itaú/XP, só que agora no contexto do controle de condutas. No caso em concreto, o Tribunal poderá avaliar, dentre outros, se a instrução realizada pela SG/CADE foi suficiente para aferir o suposto aumento da pressão competitiva entre os agentes do mercado de distribuição de produtos de investimentos com a alegada aproximação dos modelos de negócios de bancos e corretoras nos últimos anos após a operação Itaú/XP. Por outro lado, o Tribunal poderá oferecer as respostas dos questionamentos exemplificados acima, como também pacificar o entendimento do CADE sobre a definição de mercado relevante – de acordo com a atual dinâmica competitiva do mercado – a fim de dar previsibilidade às decisões da autarquia nesse mercado e segurança ao jurisdicionado.


[1] Vide Parecer SG/CADE nº 16/2017 (SEI 0361338) no Ato de Concentração nº 08700.001642/2017-05 (Itaú/Citibank).

[2] Além disso, o mercado de distribuição de produtos de investimento ficou restrito ao público-alvo de varejo, no qual se incluem tanto pessoas físicas quanto private banking, distinguindo-se do segmento de serviços e produtos voltados a clientes institucionais, formado por outras instituições financeiras, seguradoras, gestores de recursos e fundo de pensão, que costumam utilizar canais próprios não disponíveis ao segmento de varejo.

[3] Vide Voto do Conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[4] Disponível em: https://www.oliverwyman.com/our-expertise/insights/2019/dec/the-brazilian-investment-landscape-a-new-era-for-brazilian-investors.html. Acesso em abr. 2024.

[5] Vide § 62 do voto do conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[6] Vide § 64 do Voto do Conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[7] SEI 0633587.

[8] Nesse mesmo sentido, tem-se os seguintes Atos de Concentração: AC nº 08700.001492/2024-51 (Safra/Guide); AC nº 08700.000639/2024-95 (Banco Master/Grupo Voiter); AC nº 08700.007301/2023-83 (BTG/Órama); AC nº 08700.002835/2023-13 (UBS Group/Credit Suisse); AC nº 08700.001998/2023-89 (XP/Grupo SVN); AC nº 08700.001372/2023-72 (BTG/Prisma); AC nº 08700.010053/2022-77 (Safra/Alfa); AC nº 08700.007209/2022-32 (Kartra/BV DTVM); AC nº 08700.002691/2022-14 (BTG/Absolute); AC nº 08700.002189/2022-11 (Galapagos/BS2 DTVM); AC nº 08700.001813/2022-55 (XP/Habitat); AC nº 08700.000371/2022-20 (BTG/Planner); AC nº 08700.007288/2021-09 (XP/Bluetrade); AC nº 08700.006035/2021-18 (XP/Faros); AC nº 08700.004365/2021-61 (XP/Singulare); AC nº 08700.004051/2021-68 (BRB/Genial); AC nº 08700.003781/2021-41 (Jive/XP); AC nº 08700.003458/2021-78 (BTG/Empiricus); AC nº 08700.002631/2021-11 (Safra/CA Indosuez); AC nº 08700.005876/2020-19 (BTG/Necton); AC nº 08700.004098/2019-15 (BTG/Ourinvest).

[9] Vide Parecer SG nº 113/2022 (SEI 1038449) no Ato de Concentração nº 08700.001320/2022-15 (BTG/Elite Corretora).

[10] SEI 1050410.

[11] Vide Parecer SG nº 14/2022 (SEI 1085907) no Ato de Concentração nº 08700.001018/2022-67 (XP/Modal).

[12] Vide Nota Técnica de Arquivamento nº 3/2024 (SEI 1362291) no Inquérito Administrativo nº 08700.006476/2022-92.

[13] Vide Recurso Administrativo da EQI (SEI 1366858).

[14] Conforme art. 144 do Regimento Interno do CADE: “Do despacho que ordenar o arquivamento do inquérito administrativo caberá recurso de qualquer interessado, no prazo de 5 (cinco) dias úteis a contar da ciência da decisão, ao Superintendente-Geral, que decidirá em última instância.”

[15] Conforme art. 144 do Regimento Interno do CADE: “No prazo de 15 (quinze) dias, após decisão final da Superintendência-Geral pelo arquivamento do procedimento preparatório ou do inquérito administrativo, o

Tribunal poderá, mediante provocação de um Conselheiro e em decisão fundamentada, avocar o inquérito administrativo ou procedimento preparatório de inquérito administrativo arquivado pela Superintendência-Geral.


  • Polyanna Vilanova é ex-conselheira do CADE e sócia no Vilanova Advocacia.
  • Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

O standard probatório para condenação de cartéis: a aplicabilidade do stare decisis ao direito administrativo brasileiro e a esperança de um aumento da previsibilidade dos julgamentos do Cade

Polyanna Vilanova & Henrique Muniz

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) é o único órgão do Poder Executivo com competência para condenar agentes econômicos pela prática de cartel, isto é, consiste na única e última instância de todo o Poder Executivo competente para determinar o pagamento de multas e outras penas em virtude da prática desse tipo de ilícito. Não obstante, ainda que as decisões do Conselho possam ser objeto de ação anulatória judicial, identifica-se uma crescente deferência do Poder Judiciário às decisões do Cade, haja vista a expertise técnica deste último e a necessidade de equilíbrio entre os poderes constituídos.

Tendo em conta a importância da atuação do Cade e a capacidade de produção de efeitos das suas decisões na sociedade, é possível se afirmar que a autarquia antitruste se preocupa com a unificação da sua jurisprudência quanto ao padrão de prova necessário para a condenação de cartéis? Identifica-se certa previsibilidade nas decisões sobre o tema?

Essa discussão possui extrema relevância, visto que, em casos de cartel, a comprovação do acordo colusivo entre concorrentes é etapa essencial para a configuração do ilícito investigado, uma vez que não há extenso debate sobre a ilicitude da prática em razão do entendimento majoritário no direito antitruste de que cartéis são ilícitos per se[1].

Logo, a valoração do conjunto probatório disponível nos autos (o valor conferido pelo julgador a cada tipo de prova no caso concreto) e o standard probatório (padrão de prova apto a ensejar a condenação em razão da referida infração à ordem econômica) não são aspectos triviais da análise do Cade em processos administrativos envolvendo cartéis.

Isso porque o sistema brasileiro adota o livre convencimento motivado, também denominado de “persuasão racional”, “segundo o qual o julgador deve apreciar as provas para formar seu convencimento sobre a veracidade dos fatos, atendo-se àquelas que julgar mais convincentes[2]”, ainda que limitado pelo dever de motivação clara e racional de seu convencimento[3].

Dessa forma, o padrão probatório se relaciona intimamente ao sistema de valoração das provas e à subjetividade (ainda que motivada) dos julgadores, o que se soma às oscilações decorrentes da natural alteração na composição dos órgãos colegiados encarregados de proferir decisões, como é o caso do Tribunal Administrativo do Cade.

Muito embora a jurisprudência do Cade seja uníssona, independentemente das diversas composições do seu Tribunal, quanto à necessidade de um conjunto probatório “suficientemente forte e robusto” para condenação de cartéis, conforme extensa análise de casos do Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência[4], as controvérsias surgem quando se está diante de um acervo probatório formado apenas por provas indiretas ou unilaterais, resultando em diferentes posicionamentos quanto às hipóteses em que as provas indiciárias e circunstanciais são capazes, ainda que de forma indireta, de constituir um conjunto suficientemente robusto para gerar o convencimento por parte da autoridade julgadora no sentido da configuração do ilícito.

A discussão acerca da possibilidade de utilização de provas indiretas para condenações no âmbito do Cade é relativamente recente e remonta à década passada[5].

O precedente considerado pela doutrina como leading case no uso de conjunto probatório exclusivo de provas indiretas para formação de convicção de condenação é a decisão do Processo Administrativo nº 08012.001273/2010-24, em que o colegiado à época condenou, por unanimidade, o cartel dos aquecedores no ano de 2015.

De lá para cá, são recorrentes as discussões acerca do padrão probatório e provas indiretas nos julgamentos do Cade em virtude da ausência de previsão legal de atribuição de um valor determinado a uma prova, haja vista a adoção do sistema do livre convencimento motivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, os julgamentos desses casos recorrentemente dividem opiniões, impossibilitando a identificação de um posicionamento uniformizado capaz de gerar previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse cenário, a possibilidade de se identificar valorações semelhantes a provas parecidas em casos diferentes ganha extrema relevância para garantir a segurança jurídica aos investigados por supostas práticas anticompetitivas. Isto é, a adoção justificada de critérios já utilizados em outros julgados, tal como ocorre no sistema Common Law de vinculação pelos precedentes, se faz necessária para conferir consistência jurisprudencial à autarquia antitruste e para gerar certa previsibilidade para o julgamento de um conjunto probatório.

A incorporação de institutos de origem anglo-saxã permeados pelo sistema de Common Law ao direito administrativo brasileiro foi estabelecida no ordenamento jurídico nacional. Inclusive, tais institutos já teriam aplicabilidade, em razão do disposto no artigo 927, I a V, do CPC. Contudo, tal aplicabilidade fica evidente com a previsão do artigo 30 da Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, tendo como objetivo realizar o trespasse da stare decisis às decisões administrativas.

A atual composição do Tribunal Administrativo do Cade parece estar atenta a esse debate e à necessidade de gerar previsibilidade e segurança jurídica, bem como de preservar a isonomia no tratamento dos administrados (treat like cases alike), conferindo observância às decisões proferidas (backward-looking) e constituindo os futuros precedentes (fooward-looking), principalmente no que se refere ao padrão probatório de condenações de cartéis.

Na sessão ordinária de julgamento (“SOJ”) do Cade realizada no dia 08.03.2023, ocorreu um extenso debate acerca da valoração das provas indiretas e unilaterais, bem como da importância de o Conselho reafirmar e unificar sua jurisprudência sobre o standard probatório necessário para condenação por prática de cartel durante o julgamento do Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78, instaurado para apurar suposta prática de cartel no mercado nacional de sistemas térmicos automotivos (módulos de arrefecimento do motor – Engine Cooling Modules – “ECM”, radiadores, condensadores; sistemas de aquecimento, ventilação e ar-condicionado – Heating, Ventilation and Air conditioning – “HVAC”).

No caso do cartel de sistemas térmicos automotivos em comento, a constatação da ocorrência do ilícito derivou da assunção de culpa e das informações e dos documentos extraídos de acordos administrativos (Acordos de Leniência – “ALs” – e Termos de Compromisso de Cessação de Conduta – “TCCs”) celebrados entre o Cade e parte das empresas e pessoas físicas representadas, contra as quais a investigação foi suspensa. O julgamento prosseguiu em face de duas empresas e pessoas físicas não administradoras ligadas a tais empresas.

Em sua Nota Técnica[6], a Superintendência Geral do Cade (“SG/Cade”) recomendou que as empresas representadas fossem condenadas tendo em vista que constariam “nos autos 22 evidências de sua participação na conduta”, que constituiriam provas diretas do conluio. O Parecer[7] do Ministério Público Federal junto ao Cade (“MPF/Cade”) também defendeu a condenação por entender que o conjunto probatório seria suficiente à demonstração da adesão das empresas ao acordo anticompetitivo. Já a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (“PFE/Cade”) apresentou divergência em relação à sugestão de condenação pela SG/Cade e pelo MPF/Cade, recomendando o arquivamento em relação às representadas por entender que o conjunto probatório reunido nos autos seria insuficiente para demonstrar a participação das empresas no conluio.

Diante das divergências apresentadas, o Presidente Alexandre Cordeiro suscitou a necessidade de aprofundamento da análise do conjunto probatório sob a ótica de uma revisão comparativa da jurisprudência do Tribunal do Cade acerca do padrão probatório para condenação de cartéis.

Durante seu voto em sessão, o Presidente ponderou que “é imperativa a observância dos limites à utilização de tais provas (indiretas), uma vez que podem ser ambíguas e, portanto, não levar à inequívoca certeza da participação do representado no ilícito”. Complementou, ainda, que “é imprescindível que sejam apresentadas provas suficientemente fortes e robustas e isso consta, inclusive, no nosso Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência. Justamente, provas robustas da existência do cartel e, não menos importante, que tais provas impliquem, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados[8]”.

Além disso, fez considerações sobre a importância do respeito ao princípio do in dubio pro reo e sustentou que os “Acordos de Leniência e Compromissos de Cessação firmados por participantes das infrações investigadas constituem importante fonte de informação sobre a existência, participação e duração de cartéis. Ocorre que os relatos de tais acordos necessitam de documentos que os amparem, não sendo, por si só, uma sentença condenatória, sob pena de ensejar condenações sem lastro e um suporte condenatório adequado[9]”.

Por fim, após análise detalhada de precedentes das cortes superiores, do Tribunal do Cade e dos guias produzidos pela autarquia, bem como dos autos, o Presidente conclui pelo arquivamento devido à ausência de suporte probatório suficiente para condenação por qualquer tipo de prática anticoncorrencial.

É válido destacar, também, o posicionamento do Conselheiro Luiz Hoffmann, que asseverou em seu voto que “é indispensável que as provas indiretas sejam analisadas de forma sistemática, considerando o conjunto probatório como um todo, assim como sustenta o Guia de Combate à Cartéis já mencionado e também as publicações que a própria OCDE tem nesse sentido”. O Conselheiro acompanhou o voto-vista do Presidente ao concluir que “além de as provas indiretas derivarem de apenas uma única fonte, elas não possuem conteúdo anticompetitivo visível para todos[10]”.

Já o Conselheiro Gustavo Lima teceu breves comentários acerca da necessidade de existência de um padrão de qualidade na análise de provas para condenação de um cartel. Além disso, destacou que, a partir do longo aprendizado adquirido a partir da experiência do Poder Judiciário com relação ao instituto da colaboração premiada, faz-se imprescindível a existência de corroboração dos relatos dos Lenientes, independentemente de se tratar de provas indiretas ou diretas.

Do seu voto em sessão, extrai-se importante declaração sobre a importância da segurança jurídica e da previsibilidade dos julgamentos do Cade. Vejamos:

“Onde o Cade deve colocar o seu ‘sarrafo’ em termos de standard probatório? Porque nós somos única e última instância de todo o Poder Executivo e as nossas decisões somente podem ser reformadas pelo Poder Judiciário e ainda assim o Judiciário o faz com muito comedimento. Mas somos a única instância do Poder Executivo que declara se houve ou não um cartel em determinado caso. Por isso, temos que ter a máxima responsabilidade em fazer tal afirmação. Nós temos que ter um padrão de qualidade de prova que quando o Cade afirma que houve um cartel se saiba que um determinado padrão de qualidade foi atingido (…) Então, ao afirmarmos que uma empresa participou ou não de um cartel, tem que haver uma segurança para o mercado, para o Poder Judiciário e para a sociedade, de que determinados requisitos mínimos geraram o convencimento[11].”

Sob outra perspectiva, o Conselheiro Victor Fernandes mencionou o importante debate acerca da força probatória de provas indiretas de comunicação, consoante entendimento da OCDE[12], a fim de explicar que a natureza direta ou indireta da prova possui repercussões para a oponibilidade da defesa das empresas investigadas, visto que, de um lado, a prova direta geraria o ônus de comprovação de inocorrência do fato, e, de outro, a prova indireta geraria o ônus de explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para o fato.

No que tange ao caso em comento, o Conselheiro defendeu que a defesa das empresas representadas trouxe explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para os fatos relatados nas provas indiretas (i. e. a relação comercial com a empresa concorrente e a ausência de comercialização do produto à época do cartel), que, por sua vez, não teriam o condão de comprovar a participação da empresa no conluio.

Dessa forma, o Plenário do Cade, por maioria, determinou o arquivamento do processo administrativo em face das empresas representadas, nos termos do voto do Presidente do Cade, ficando vencidos o Conselheiro Relator Sérgio Ravagnani e o Conselheiro Luis Braido.

Muito embora o caso do cartel de sistemas térmicos automotivos tenha sido, ao que nos parece, o julgamento mais emblemático do ano de 2023 em relação à temática do padrão de prova necessário para condenações de cartéis e à garantia de previsibilidade e segurança jurídica ao administrado, outro caso interessante também pode ser destacado.

No caso do cartel internacional de cabos subterrâneos e submarinos[13], o Tribunal do Cade reconheceu a necessidade de adotar o mesmo padrão probatório no processo administrativo originário e no processo “filhote”, de forma a garantir a isonomia entre todos os representados relacionados ao cartel. Dessa forma, determinou o arquivamento do processo filhote em relação a algumas pessoas físicas, visto que, no processo originário, considerou-se que evidências análogas, isto é, simples menções das iniciais do investigado em atas de reuniões, não seriam suficientes para indicar a participação das pessoas jurídicas que eles representavam em um cartel, esses indícios poderiam sugerir, no máximo, a ocorrência de condutas menos gravosas, como troca de informações sensíveis, que já estariam prescritas.

Nesse sentido, a partir dos posicionamentos dos Conselheiros da atual formação do Tribunal e dos precedentes firmados pelo colegiado em 2023, observa-se uma verdadeira preocupação com a uniformização da jurisprudência do Cade acerca do standard probatório para condenação de cartéis, principalmente na análise de conjuntos probatórios formados por provas indiretas, a fim de garantir segurança jurídica e previsibilidade às decisões da autarquia antitruste.

Por outro lado, com o término do mandato de 4 dos 6 Conselheiros do Cade ainda no ano de 2023, a comunidade antitruste fica na expectativa se a futura formação estará atenta à discussão e aplicará “valorações semelhantes a provas parecidas em diferentes casos” futuros de acordo com a jurisprudência do Conselho, bem como se os elementos classificados no “Guia de Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade” para suficiência do conjunto probatório serão respeitados, o que representaria um importante passo para a solidificação do stare decisis nas decisões administrativas da autarquia antitruste brasileira.


[1] DA SILVEIRA, Paulo Burnier; LACERDA, João Felipe Aranha. Valoração e padrão de prova em processos administrativos de cartel. Revista do Ibrac: São Paulo, 2018, vol. 24, n. 1- 2018, p. 70.

[2] Op. cit., p. 74.

[3] Cf. art. 79, inciso I, da Lei de Defesa da Concorrência e dos incisos I e II c/c § 1º, do art. 50, da Lei nº 9.784/99 (“Lei do Processo Administrativo Federal”).

[4] CADE. Guia de recomendações probatórias para propostas de acordos de leniência com o Cade. 2021. Disponível em:  https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-recomendacoes-probatorias-para-proposta-de-acordo-de-leniencia-com-o-Cade.pdf.

[5] Vide Processo Administrativo nº 08012.004039/2001-68 (cartel do pão), julgado em 22.05.2013.

[6] Nota Técnica SG/Cade nº 114/2021 (SEI 0989284).

[7] Parecer MPF/Cade nº 3/2022 (SEI 1071736).

[8] Vide 1h06min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfNEoL4Y4AM . Acesso em 1 ago. 2023.

[9] Vide 1h09min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[10] Vide 1h38min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento. 

[11] Vide 1h45min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[12] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Prosecuting Cartels without Direct Evidence, 2006, p. 10 (“communication evidence is evidence that cartel operators met or otherwise communicated, but does not describe the substance of their communications”).

[13] Processo Administrativo nº 08700.008576/2012-81. Julgado em 08.02.2023.


Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

Regulação e concorrência: o setor de telecomunicações

Polyanna Vilanova & Ana Flávia Nápoli

Nas últimas décadas, o setor de telecomunicações passou por inúmeras transformações tecnológicas, chegando no ano de 2010 como um dos pilares da economia global. Contudo, se pela perspectiva da praticidade e acesso à informação, o setor de telecomunicações gerou grandes ganhos à sociedade, sob o aspecto concorrencial e regulatório, o caminho foi árduo e repleto de desafios.

Fato: cada vez mais a sociedade tem se conectado por meio de aparelhos celulares. Uma pesquisa realizada pela Comscore em 2021 indicou que, dispositivos móveis somam 91% do tempo de acesso à internet no Brasil [1], ficando atrás somente da Indonésia. Em 2016, 5 anos antes, esse número era de apenas 60%[2]. Essa crescente demanda por conectividade impulsionada pela proliferação desses dispositivos móveis e a popularização da internet demonstram a dinamicidade desse setor: a necessidade da criação constante de novos produtos e serviços (e novas infraestruturas para esses produtos) para se adequar às necessidades dos consumidores.

No entanto, se por um lado essa dinamicidade traz tantas inovações à sociedade, por outro, é justamente ela que implica na tendência de concentração desse mercado, e o principal ponto dessa problemática é que os investimentos para a prestação de novos serviços no setor de telecomunicação (ou até mesmo os próprios custos de operação nesse mercado) são altos. Em 2021, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) estimou que o investimento para as operadoras de telefonia operarem a tecnologia 5G no Brasil giraria em torno de R$ 169 bilhões[3]. A partir desses valores, é possível concluir que são poucas as empresas no Brasil capazes de atuar nesse mercado – e é justamente isso que faz com que os agentes existentes possuam vantagens no mercado[4], tornando necessário o olhar mais atento tanto por parte da Anatel quanto e pelo Cade.

Os desafios enfrentados pelo setor se dão pelas elevadas barreiras à entrada, grandes economias de escala e escopo, limitação da disponibilidade de insumo essencial, inovações tecnológicas e constantes mudanças[5]. Além disso, tendo em vista o ritmo acelerado dessas mudanças tecnológicas que frequentemente superam a capacidade da agência, torna-se necessário que a Anatel constantemente revisite o seu arcabouço regulatório à luz dessas transformações no intuito de dar respostas rápidas e eficazes aos agentes do setor.

Em meio a esse dinamismo característico, há o desafio de haver uma regulação atual, adequada e capaz de estimular a entrada de novos agentes nesses mercados. Isso porque, apesar da regulação ser necessária ela também pode ter efeitos negativos no mercado, especialmente quando as regras são excessivamente restritivas e impedem a entrada de novas empresas ou a oferta de novos serviços. Isso pode afetar a concorrência e, consequentemente, elevar os preços e reduzir a qualidade dos serviços. 

Se faz necessário, portanto, ponderar qual seria o melhor desenho para as novas tecnologias e modelos de negócios existentes, de que forma deve se dar a atuação do Cade e da Anatel para que seja alcançado o objetivo final de ampliar o oferecimento de serviços de qualidade a custos mais baixos e ao mesmo tempo estimular a competição.

Desse modo, o equilíbrio entre a regulação e a concorrência são elementos-chave para o bom funcionamento do setor de telecomunicações e devem caminhar lado a lado. Isso porque, em que pese a regulação seja necessária para garantir que as empresas cumpram com normas, obrigações e regulamentos específicos, protegendo os interesses dos consumidores, por outro lado, a concorrência é fundamental para promover um ambiente competitivo saudável e estimular a inovação. Assim, as funções das instituições são complementares e fundamentais para o setor.  

Ao longo das últimas décadas, o Cade e a Anatel têm mantido uma política de cooperação e troca de conhecimentos, essencial para a identificação e resolução de problemas relacionados à concorrência e a regulamentação do mercado de telecomunicações, de modo a dirimir as assimetrias informacionais com a abertura do diálogo entre a agência e as empresas do setor.

Inclusive, em 10 de abril de 2023, com a colaboração da Anatel, o Cade lançou a 18ª edição da série “Cadernos do Cade” que analisa os mercados de telecomunicações no Brasil, com foco nos segmentos de telefonia fixa e móvel, banda larga fixa e infraestrutura. O Caderno apresenta o contexto em que o mercado atualmente se insere a nível nacional e global abordando diversas estatísticas do setor e casos que passaram pelo Cade, sejam estes atos de concentração ou investigações de condutas anticompetitivas.

O Caderno elenca alguns casos em que o Cade analisou o mercado de forma mais aprofundada, e um caso que merece destaque é a aprovação da compra da Oi Móvel pela Tim, Claro e Vivo[6]. Em fevereiro de 2022, o Cade aprovou a compra dos ativos de telefonia móvel do Grupo Oi pelas operadoras Tim, Claro e Telefônica Brasil. Visando preservar as condições de concorrência no mercado, a autorização do negócio foi condicionada à celebração de Acordo em Controle de Concentrações para mitigar possíveis riscos concorrenciais, pois ficou demonstrado que a saída do Grupo Oi do mercado de Serviço Móvel Pessoal (SMP) resultaria na redução de quatro para três o número de empresas que atuam nacionalmente no segmento, o que gera elevada concentração de mercado na oferta de telefonia móvel no país. Em vista disso, o Cade ponderou qual seria a melhor estratégia a seguir em relação a aprovação ou reprovação da operação, pois ao mesmo tempo, a possível insolvência da Oi geraria impactos sobre serviços de telefonia fixa, banda larga e comunicação de dados e outros serviços essenciais que dependem da infraestrutura da empresa. Assim, foi concluído pela autoridade que as condicionantes estabelecidas para a aprovação seriam suficientes para reduzir significativamente as barreiras à entrada, aumentar a expansão de concorrentes, mitigando, assim, as preocupações concorrenciais identificadas.

Da análise dos casos que passaram pelo Cade, é possível observar que no setor de telecomunicação, a existência de efetiva competição varia conforme a definição de mercado relevante, sob a ótica do produto e geográfica. Isso porque a depender do serviço ofertado e das regiões, a dinâmica competitiva é diferente. Essa variação em relação a definição de mercado relevante por parte da autoridade antitruste é também um dos reflexos das constantes mudanças que o setor sofre devido ao surgimento de novos modelos de negócios.

Ao longo dos anos, empresas que foram muito importantes para o setor, hoje perderam espaço. Tecnologias que antes eram supervalorizadas pelos usuários, foram substituídas, como a rede de fios metálicos em comparação com a fibra ótica, a telefonia fixa sendo substituída pela telefonia móvel, o acesso discado à internet, que em um momento foi a principal tecnologia de banda larga, e a evolução da tecnologia de telefonia móvel.

O próprio edital do 5G é um exemplo concreto da reorganização do setor[7], em que houve a possibilidade de regionalização da oferta desse espectro, permitindo a entrada de novos agentes nesse mercado, com a atração de novos investimentos, a possibilidade de crescimento de pequenas e médias empresas e o fortalecimento da competitividade do setor de telecomunicações brasileiro no cenário internacional. Com o advento de tal tecnologia, está ocorrendo a migração gradual dos consumidores para pacotes de dados em detrimento dos serviços de voz devido aos novos aplicativos de comunicação que surgiram.

Apesar da evolução, existem temas que são recorrentes desde os primeiros processos analisados pelo Cade e que possivelmente se manterão no radar da autoridade no futuro, como a convergência tecnológica, que seria a tentativa de colocar no mesmo mercado relevante diferentes produtos, tecnologias e também o acesso à infraestrutura e integrações verticais, pois nos mercados de telecomunicações há uma grande preocupação em relação a possibilidade de exclusão ou de criação de dificuldades aos concorrentes por parte do detentor da infraestrutura.

Sobre o primeiro tema, convergência tecnológica, recentemente discutiu-se se os serviços over-the-top (OTTs) poderiam ser colocados no mesmo mercado dos serviços de telecomunicação. A conclusão da Superintendência-Geral do Cade foi da impossibilidade de tal inclusão, pois embora desenvolvam atividades similares, os serviços prestados pelas plataformas não estão submetidos ao mesmo tratamento que os serviços de telecomunicações.

Já em relação ao segundo tema, acesso à infraestrutura, houve processos recentes envolvendo acordos de compartilhamento de infraestrutura (acordos de RAN Sharing) por duas ou mais operadoras com o intuito de reaproveitar infraestrutura e reduzir custos. Essa prática é comum principalmente nos casos de cobertura de regiões menos povoadas, em que se faz necessário viabilizar a entrada de novos concorrentes através do compartilhamento da infraestrutura pré-existente.

A tendência é que o setor de telecomunicações continue se expandindo, mas para isso é essencial que o Cade e a Anatel estejam atentos e acompanhem – como assim já fazem, as mudanças e transformações para a proposição de um novo paradigma de agenda regulatória, adaptado a tais inovações.

Contudo, a atuação da agência reguladora e da autoridade da concorrência deve ser cautelosa para não desincentivar o setor e causar um grande prejuízo aos consumidores que dependem de tais serviços. O atual contexto não necessita de regras endurecidas e obrigações que burocratizem ainda mais o setor. Em verdade, é necessário um ambiente cada vez mais flexível e principiológico que seja capaz de estimular novos modelos de investimento em infraestrutura e propor a melhoria constante na qualidade dos serviços prestados. 

É fundamental, portanto, a adoção de medidas para promover a entrada de novas empresas no mercado, a redução de barreiras regulatórias excessivas e a promoção de concorrência saudável entre as empresas. Com essas medidas, será possível garantir um mercado de telecomunicações mais equilibrado, com serviços de qualidade, preços justos e uma maior oferta de serviços para a população.

Polyanna Vilanova – Sócia do Vilanova Advocacia. Graduada em Direito e Ciência Política, possui LLM em Direito Empresarial pela FGV, especialização em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV, é Mestre em Direito Público pelo IDP e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. É árbitra do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA.

Ana Flávia Napoli – Advogada do Vilanova Advocacia. Graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).


[1] Fonte: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/comscore-mobile-representa-91-da-conectividade-brasileira/

[2] Fonte: https://www.comscore.com/por/Insights/Press-Releases/2017/3/comScore-Releases-New-Report-Mobiles-Hierarchy-of-Needs

[3] Fonte: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/outubro/leilao-do-5g-deve-movimentar-r-169-bilhoes-em-investimentos#:~:text=Conectividade%205G%20%E2%80%93%20Com%20a%20compra,ao%20longo%20de%2020%20anos.

[4] Davi Paiva Ferraz, Ranna Dourado Barbosa Costa, Mariana Gomes Magalhães y Heriberto Wagner Amanajás Pena (2017): “Análise da concentração de mercado do setor de telecomunicações brasileiro”, Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, Brasil, (septiembre 2017). En línea: http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/17/mercado-telecomunicacoes-brasil.html http://hdl.handle.net/20.500.11763/br17mercado-telecomunicacoes-brasil

[5] Vide, como exemplo, o que foi destacado pelo Conselheiro Relator no ato concentração no 08700.002013/2019-56.

[6] Ato de Concentração n. 08700.000726/2021-08

[7] Anatel fala sobre tecnologia 5G na Câmara dos Deputados. 2019a. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-fala-sobretecnologia-5g-na-camara-dos-deputados . Acesso em 18.04.2023.

Competition and Inflation, OECD Competition Policy Roundtable Background Note – O que a OCDE tem a dizer sobre a relação entre o Antitruste e a Inflação?

Polyanna Vilanova & Rubens Cantanhede

Em nossa última coluna sobre o assunto [1], indicamos, com base na literatura econômica, que, de fato, há convergência, ao menos nos Estados Unidos, entre as discussões de direito antitruste e controle de inflação. Nesse sentido, as recentes declarações de Joe Biden sobre o combate à inflação estar entre os objetivos de sua política concorrencial não deixam dúvidas acerca de seu intuito, bem como apontam que tal confluência, ao menos nos termos sugeridos por alguns de seus detratores, talvez não fosse infundada.

Contudo, a conexão entre o binômio inflação e concorrência não se circunscreveu aos Estados Unidos, sendo agora também debatido em âmbito supranacional. Assim, em 30 de novembro de 2022, o Comitê de Concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) realizou mesa redonda para discutir concorrência e inflação, do que decorreu um relatório geral da entidade sobre o tema, artigos acadêmicos e contribuições das delegações. Aqui nos concentraremos em referido Relatório.

Logo no início de seu Relatório, intitulado “Competition and Inflation, OECD Competition Policy Roundtable Background Note” [2], a OCDE reconhece que, em que pese já ter recomendado há mais de 50 (cinquenta) anos a estruturação de um vigoroso enforcement competitivo como parte das medidas para combate à inflação, com o fim dos ciclos de alta inflação nos países desenvolvidos e sob novo prisma, referida  sugestão teria ficado obsoleta, ao menos em relação aos integrantes da OCDE, em períodos mais recentes (p.05).

Contudo, frisa a entidade em seu Relatório, sob o impacto dos altos índices de inflação em 2022, consequência direta do conflito armado entre Rússia e Ucrânia e seus inúmeros desdobramentos econômicos, referida discussão foi retomada, ao mesmo tempo em que emergia o debate mais estrutural sobre se e em que medida as altas taxas de inflação são evidências de possíveis problemas competitivos sistemáticos em vários países (p. 05).

Assim sendo, o Relatório da OCDE buscou endereçar referido impasse por meio de 3 (três) grandes questionamentos: primeiro, qual papel o nível competitivo possui em determinar os níveis de inflação; segundo, sobre o que um cenário inflacionário representa para a política concorrencial e para as autoridades antitruste e, por fim, se tal cenário inflacionário pode gerar riscos e adversidades ao processo competitivo (p.05).

Para explicar os efeitos da concorrência na inflação, a OCDE parte de um exemplo (hipotético) extremo [3] no qual uma economia possui apenas um mercado que produz apenas um bem, situação em que a inflação poderia ser mensurada apenas observando as variações de preços do bem em referência. Em tal cenário, o nível de competição afeta o preço na proporção em que as alterações que provoca na curva de oferta e demanda são repassadas ao consumidor hipotético via valor do objeto. Caso o mercado se constitua em um monopólio que resulte em aumento expressivo do bem, tal aumento seria detectado como uma alta de inflação no próximo período. Contudo, se após um tempo o preço continuar estável, ainda que elevado, e não haja mudança na estrutura competitiva do mercado, o índice de inflação para o próximo período seria zero. De agora em diante, no cenário construído, a inflação seria mensurada de acordo com o quanto de aumento de preços o monopolista repassaria aos consumidores.

Não obstante a aridez e grau alto de abstração do exemplo adotado pela OCDE, dele decorre algumas conclusões que consideramos pertinentes ao direito antitruste. Isto posto, é possível identificar 2 (duas) formas pelas quais os níveis de concorrência podem impactar a inflação. Primeiro, tendo em vista que reduções na concorrência em toda a economia podem ao longo do tempo levar a aumentos subsequentes de preços, do que decorreria processo inflacionário; segundo, quando a competição afetar o funcionamento dos mercados, disso advém aumentos ou diminuições dos níveis de inflação observados (p. 09).

É importante notar, ainda nos termos da argumentação da OCDE, que nem sempre o processo inflacionário é derivado de baixa competitividade. De todo modo, assegurar um ambiente competitivo saudável é importante para o controle da inflação, sendo a política concorrencial mais bem equipada para tratar problemas inflacionários no longo prazo (p. 10).

Em virtude disso, o Relatório dedica um tópico inteiro em relação a preocupações oriundas do arrefecimento da pressão competitiva em diversos países desenvolvidos (e normalmente integrantes da OCDE). Estudos apontam que a margem de lucro das empresas dos Estados Unidos subiram de 21%, em 1980, para 61%, em 2020 [4]. Fenômeno similar estaria ocorrendo também no continente europeu, com aumento de lucratividade das empresas obtido às custas de maiores preços repassados aos consumidores [5].

Mesmo que a redução do nível de concorrência não esclareça sozinho o aumento da inflação observado em países desenvolvidos, há provavelmente relevantes interfaces entre ambos os lados do binômio a serem estudados de modo mais detido. Nesse sentido, elenca a OCDE algumas evidências que sugeririam que o atual aumento da concentração empresarial é fator catalisador a amplificar a gravidade dos processos inflacionários [6].

Ainda com a OCDE, uma das principais maneiras pelas quais baixos níveis competitivos podem implicar em maiores índices de inflação é a constatação de que em mercados concentrados os custos de choque de preços são mais facilmente repassados aos consumidores (p. 12). Ademais, a inflação também pode impactar negativamente a concorrência ao supostamente facilitar condutas colusivas ao oferecer o disfarce perfeito para que as empresas, implicadas no cartel, alinhem e aumentem os preços juntas [7].

Referida situação é ainda agravada – escamotear a existência de condutas colusivas –em virtude de processos inflacionários prejudicarem o funcionamento da demanda no mercado ao distorcer a habilidade dos consumidores de terem acesso a informações precisas sobre os preços praticados pelos players no mercado. Dado as constantes mudanças de preço, associada à redução da pressão competitiva dos fornecedores, cria-se, portanto, o cenário e a tempestade perfeitos para a atuação duradoura de cartéis (p.18-20).

Outrossim, têm-se que, diante do cenário supracitado e recomendado regresso a parte do toolkit de 1971, a OCDE aconselha em seu Relatório que as autoridades concorrenciais reforcem suas atuações em face de possíveis práticas restritivas, bem como que adotem medidas mais robustas contra cartelistas ou em face de supostas condutas unilaterais e práticas restritivas envolvendo patentes e licenciamento de patentes. Além disso, sugere que se realize análises regulares da dinâmica de preços em mercados concentrados a fim de referida autoridade poder atuar mais apropriadamente contra aumentos excessivos que fujam da racionalidade econômica. Ainda, defende o aumento do orçamento a disposição da autoridade concorrencial e a adoção de medidas de longo-prazo, incluindo novas legislações antitruste contra diversas formas de conduta anticompetitiva (p. 22; p. 24-25).

Por fim, a despeito das suas prescrições, o Relatório conclui que as autoridades concorrenciais idealmente não devem ser direcionadas ao combate à inflação no curto prazo, seja porque elas possuem pouca expertise técnica no assunto, seja em decorrência de geralmente não ser algo ínsito às suas respectivas competências legais ou infralegais. Por conseguinte, opina a OCDE que a atuação da autoridade concorrencial deve, em consonância com a literatura econômica mais atual e malgrado a tentação a intervirem em debate tão essencial, circunscrever-se à busca por benefícios de controle da inflação no longo prazo (p. 32).

Em conclusão, o Relatório conclui que as recomendações da OCDE do toolkit de 1971 e, portanto, elaborado há mais de 50 (cinquenta) anos, permanece essencialmente válido: o antitruste é vital para um ambiente de baixa inflação e o seu enforcement deve ser priorizado, ainda que não às expensas das políticas fiscal e monetária, estas, sim, mais adequadas ao controle de inflação no curto prazo. Contudo, e pela atualidade do Relatório, verifica-se que o debate a respeito do binômio inflação/concorrência ainda não foi (e nem poderia sê-lo) internalizado por acadêmicos e instituições brasileiras. Mas perguntamos: deve sê-lo? E, se sim, em qual medida e mediante quais instrumentais e métricas o Brasil ou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) poderia oportunamente fazê-lo?

Referências bibliográficas:

[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2022/10/24/antitruste-e-inflacao-no-brasil-por-vezes-assuntos-diversos-mas-convergentes/ .

[2] OECD. Competition And Inflation OECD Competition Policy Roundtable Background Note. 2022. Disponível, em inglês e na integra, em:  https://www.oecd.org/competition/competition-and-inflation.htm .

[3] No original: “As an extreme example, consider an economy with just one market which produces a single good. In this world, inflation could be measured simply as the change in prices of this good. Competition would affect the price if its intensity changed or if it affected how changes to supply or demand were passed through to prices. If the market became a monopoly which resulted in a higher price for the good, then this would be seen as inflation in the next period. The period after, prices would not change as there is no change in competition, and thus inflation would return to zero. From now on, inflation will depend on how the monopolist passes on changes in supply and demand to customers (p. 09)”.

[4] DE LOECKER, Jan; EECKHOUT, Jan; UNGER, Gabriel. The rise of market power and the macroeconomic implications. The Quarterly Journal of Economics, v. 135, n. 2, p. 561-644, 2020.

[5] KOLTAY, Gabor; LORINCZ, Szabolcs; VALLETTI, Tommaso M. Concentration and competition: Evidence from Europe and implications for policy. 2022.

[6] BRÄUNING, Falk; FILLAT, Jose L.; JOAQUIM, Gustavo. Cost-price relationships in a concentrated economy. Available at SSRN 4142715, 2022.

[7] Disponível em: https://thehill.com/business/3564912-inflation-is-providing-cover-for-price-fixing-economists/


Polyanna Vilanova é graduada em Direito e Ciência Política, possui LLM em Direito Empresarial pela FGV, especialização em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV, é Mestre em Direito Público pelo IDP e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. É árbitra do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Foi Conselheira do Cade e é sócia fundadora do Vilanova Advocacia.

Rubens Cantanhede é graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É, também, membro do Grupo de Estudo Constituição, Empresa e Mercado da UnB (GECEM/UnB). Foi estagiário no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e é advogado do Vilanova Advocacia.