Pedro Zanotta

A CLT não está mais em vigor no Brasil

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

A nossa principal lei trabalhista vigora há mais de 80 anos. Surgida durante a ditadura do Estado Novo, no governo Vargas, trata-se de um conjunto de normas totalmente divorciado na realidade vigente no País e no mundo, em pleno Século 21.

Sem dúvida, a importante reforma, feita em 2017, que alterou significativamente muitas das normas da CLT, não foi suficiente para a modernização completa deste diploma, que é necessária em tempos nos quais o cenário e as relações em muito se diferenciam daqueles existentes à época de sua promulgação.  Assim, uma nova legislação se impõe, e enquanto não acontece, vamos convivendo com uma colcha de retalhos, à qual se somam as mudanças que são feitas pela jurisprudência.

Luiz Antonio Abagge e Outros, em recente artigo publicado no Valor Econômico[1], destaca que “… a Justiça do Trabalho tem vivido, nos últimos tempos, uma verdadeira crise institucional, já que, de um lado, o seu tradicional objeto, a relação de trabalho subordinada, ensejadora do vínculo empregatício, a cada dia tem perdido força na sociedade moderna e, de outro, a sua competência para processar e julgar relações de trabalho em sentido amplo tem sido questionada pela cúpula do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF).”

Isso se deve, sem dúvida, ao fato de a CLT ainda estar em vigor no Brasil, fazendo com que a Justiça do Trabalho tenha que se submeter a ela, fique engessada e não se atualize às novas visões que devem moderar as relações de trabalho no Brasil.

A CLT, não só como norma jurídica, mas também como norma técnica, reflete principalmente o cenário da época em que foi editada, não sendo admissível que, atualmente, se torne um complicador, impondo custos e procedimentos injustificáveis às empresas. Neste cenário, é possível a afirmação de que foi ela derrogada, por absoluto conflito com a realidade.

No que diz respeito à administração das relações do trabalho, sua obsolescência é ainda mais flagrante. Traz ela inúmeros dispositivos que transferem ao Estado uma série de responsabilidades e atos. Ora, a prática diária, reforçada por acordos e convenções coletivas, pela ação de sindicatos, por inúmeras decisões judiciais, leva à inafastável certeza de que patrões e empregados devem resolver, sem intermediários, as suas relações de trabalho, baseados na confiança e na responsabilidade.

Mantidas as normas atuais da CLT, que ainda estão vigentes, as relações trabalhistas andam para trás. Não pode ser ela um obstáculo à adoção de práticas modernas, racionais e transparentes, com foco num sistema livre e negocial, e não mais em um sistema estatutário. Repetimos que a reforma de 2017 já foi um grande avanço, mas há mais ainda a ser feito.

Impõe-se criar uma legislação trabalhista completa e moderna, que reflita as necessidades da sociedade atual. Lei, sem consonância com a realidade, tanto jurídica como social, não é mais lei. A CLT não acompanhou as alterações ocorridas nas relações entre capital e trabalho no Brasil.

Note-se que, já em 1988, o saudoso Ministro Almir Pazzianotto, que foi Ministro do Trabalho e Ministro do Tribunal Superior do Trabalho – TST, dizia que “… a nossa velha e querida CLT, concebida no crepúsculo da década de 30 e aprovada em 1943, parou no tempo”.

Vamos aproveitar o momento de mudanças pelo qual passa o País, para revogar e modernizar essa legislação retrógrada e policialesca, que serve tão somente para gerar conflitos e atravancar a justiça. A empresa moderna não é mais o campo de batalha onde se desenrola uma guerra entre duas classes, mas o território produtivo onde se deve multiplicar a confiança e o respeito mútuos.

Na prática, a CLT não está mais em vigor. Urge, então, revogá-la.


[1] Abagge, Luiz A., et al. Novas relações estão no escopo da Justiça do Trabalho. Publicado 15.10.2024. Disponível em:

https://valor.globo.com/legislacao/coluna/novas-relacoes-estao-no-escopo-da-justica-do-trabalho.ghtml. Acesso em 17.10.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Conduta Unilateral – Influência e Promoção de Conduta Comercial Uniforme

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em Direito da Concorrência, as primeiras palavras que vêm à mente são cartel e ato de concentração, dado o destaque que a autoridade de defesa da concorrência dá na apuração, análise e solução destas questões. No entanto, há outras questões relevantes que também são analisadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), dentre elas as chamadas condutas unilaterais.

Unilaterais porque não traduzem um acordo de mercado, um conluio envolvendo concorrentes, são individuais, mas possuem grande capacidade de gerar, ainda que potencialmente, efeitos deletérios ao ambiente competitivo. O artigo 36, da Lei de Defesa da Concorrência[1] (“LDC”), traz em seu texto uma lista não exaustiva destas condutas, cabendo, nesta oportunidade, o destaque para a influência e promoção de conduta uniforme.

O artigo 36, incisos I e IV e §3º, inciso II, da LDC, assim dispõe:

“Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 

IV – exercer de forma abusiva posição dominante. 

§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 

II – promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;”

De acordo com o sítio eletrônico do CADE, a “influência de conduta uniforme pode ser caraterizada como a realização de medidas com o objetivo de uniformizar a atuação de concorrentes em um dado mercado”[2]. Um exemplo desta conduta, com este objetivo, é o estabelecimento de tabelas de preço para uma determinada categoria, com intuito de uniformizar os preços dos agentes que atuam no mercado. Esta prática, muitas vezes, é realizada por associações, conselhos e sindicatos e a sua apuração e análise tem ganhado destaque.

“59. Neste sentido, entende-se que a influência para a adoção de conduta comercial uniforme pode se consubstanciar em uma diretriz, sugestão, recomendação ou, até mesmo, numa imposição para que outros agentes econômicos de um mesmo mercado adotem uma conduta comercial de acordo com a recomendação emanada.

60. Em outras palavras, a intenção de quem tece tais recomendações é a de influenciar a decisão de seus pares ou associados/filiados de maneira que não tomem decisões por si sós, mas que sigam um parâmetro estabelecido.

61. Apenas com vistas a elucidar o tema, constituem exemplos de práticas anticompetitivas adotadas sob a forma de recomendações a concorrentes: tabelas de preços; orientações sobre concessões de descontos; orientações de reajuste de preços; adoção de preços únicos feitas unilateralmente e impositivamente por órgãos classistas ou representativos de setores econômicos, como associações, sindicatos, federações e confederações.

62. Sob esse prisma, o Cade tem condenado como influência à adoção de prática comercial uniforme as recomendações a concorrentes veiculadas pelas associações empresariais e profissionais sob a forma de tabelas de preços mínimos não derivados de negociações bilaterais legítimas, proibição da concessão de descontos ou de contratação e de outras práticas restritivas da livre concorrência.” (Inquérito Administrativo nº 08700.004116/2023-37. Representante: Unimed Goiânia Cooperativa de Trabalho Médico. Representado: Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás – AHPACEG. Nota Técnica nº 129/2023/CGAA6/SGA2/SG/CADE, data 12.09.2023)

Os sindicatos, associações e conselhos de classe desempenham um papel fundamental em nossa sociedade, na medida em que são filiações que reúnem indivíduos e empresas que detêm interesses semelhantes, com o intuito de representá-los institucional, política e socialmente. Suas atividades são amplamente conhecidas, já que podem beneficiar seus membros e contribuir para o aumento da eficiência de mercado.

No entanto, não obstante os aspectos benéficos e pró-concorrenciais de sua atuação, por sua própria natureza, estão sempre expostos ao risco de serem responsabilizados por práticas anticoncorrenciais. Suas atividades são protegidas por direitos fundamentais previstos em nossa Constituição[3], como o direito à liberdade de expressão e à livre associação, mas que encontram limites nos princípios constitucionais[4] da proteção ao consumidor, da livre inciativa e da livre concorrência.

Neste sentido, a jurisprudência uníssona do CADE entende que sindicatos e associações de classe que atuem de modo a coordenar o mercado, uniformizando práticas, ainda que sem efeitos, podem causar prejuízos, potenciais ou efetivos, à ordem econômica e aos consumidores, estando sujeitos, desta forma, à persecução e atuação por parte da autoridade concorrencial, nos termos do artigo 31, da LDC. Os conselhos de profissões reguladas, de natureza de direito público, também são passíveis de controle pela lei antitruste.

“40. As associações e conselhos profissionais, usualmente, argumentam que sua atuação foge ao conceito de conduta comercial ou de atividade econômica, motivo pelo qual a Lei 8.884/94 não seria aplicável a elas.

41. A alegação não merece prosperar. Como acertadamente apontou a SDE, é pacífico no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a submissão das entidades representativas, inclusive Conselhos Profissionais, associações e sindicatos à legislação antitruste.

42. O entendimento encontra amparo no art. 15 da Lei 8.884/94 (art. 31 da Lei 12.529/2011), que dispõe expressamente: “Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituída de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”.

43. Assim, qualquer um que pratica ato restritivo à concorrência está sujeito à legislação antitruste, ainda que sua atividade não tenha fins lucrativos e, independentemente de se tratar de pessoa natural ou pessoa jurídica de direito público ou privado.

44. O fato de a atuação das representadas estar amparada pela liberdade de associação, direito fundamental expressamente assegurado na Constituição Federal, não afasta a conclusão. O referido direito, obviamente, não é absoluto, e deve ser interpretado à luz dos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática, daí a necessidade de compatibilizá-lo com os princípios constitucionais da ordem econômica, notadamente a livre concorrência e a livre iniciativa.

45. Ademais, como acertadamente destacou a SDE, os médicos, ao disponibilizarem um serviço no mercado e assumirem os riscos de sua atividade, exercem de maneira inconteste atividade econômica, caracterizando-se como verdadeiros concorrentes. Dessa forma, a atuação das representadas, ao estipular e negociar coletivamente os preços dos honorários médicos, pode afetar a concorrência no mercado de serviços médico-hospitalares. Daí por que não há dúvidas de sua submissão à Lei 8.884/94.

46. Diante das considerações, acima é forçoso reconhecer a competência da autoridade antitruste para analisar as condutas praticadas pelas representadas. Com isso, não se quer dizer que eventuais peculiaridades das atividades exercidas por profissionais liberais sujeitas à regulação de conselhos profissionais criados por lei devam ser totalmente desconsideradas na análise. Ocorre que tais características não se prestam para afastar a incidência da lei antitruste, mas sim para assegurar que a aplicação desta ocorra de forma coerente, como se verá mais à frente.” (PA 08012.001591/2004-47. Representante: SDE ex officio. Representados: Associação de Médicos de Hospitais Privados de Distrito Federal e outros. Voto Conselheira-Relatora Ana Frazão. Data 05.09.2015).

Neste contexto, no último dia 11[5], o Tribunal do CADE realizou ampla discussão acerca de metodologias de análise de tabelamento de preços, condenando, ao final, o Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado de Goiás (CRECI-GO)[6] por influência à conduta comercial uniforme nos serviços de corretagem em Goiás. Isto porque, as investigações realizadas pela Autarquia identificaram, no sítio eletrônico do CRECI-GO, documentos de caráter anticompetitivo[7], relacionados à imposição de tabelamentos mínimos de preço[8]. Não se tratava de mera recomendação ou sugestão, mas de imposição.

De acordo com o relator do caso, Conselheiro Diogo Thomson[9], o conjunto de documentos apurados levava os corretores de imóveis do estado de Goiás a crer que deveriam seguir os valores mínimos definidos na tabela de preços e que, em caso de descumprimento, sofreriam sanções. Além disso, o relator considerou, diante da potencialidade lesiva da adoção de tabelas somada às nuances do caso concreto, a citar, grande capacidade do CRECI-GO de influenciar seus credenciados e realidade contrária a obrigatoriedade de seguir tabela, que a conduta causou danos à concorrência, votando em prol da condenação da entidade, seguida por unanimidade pelos demais Conselheiros[10]

Ressaltou, durante o julgamento, que o CADE, no Ofício nº 2547/2018/CADE– que sistematiza alguns riscos aventados em seus julgados no tocante a tabelas –, abordou que a inserção destas em ambientes concorrenciais (i) mitiga a liberdade contratual, (ii) pode reduzir a competitividade entre concorrentes, tendo em vista que pode provocar elevação artificial vinculante no preço final do produto, em prejuízo ao consumidor, seja ele da cadeia de produção ou final, (iii) reduzir incentivos à inovação por levar a um arrefecimento concorrencial e consequentemente diminuir a pressão por diferenciação e melhoria contínua, e (iv) levar à queda da qualidade do produto ou serviço em razão da acomodação dos concorrentes. Neste sentido, há uma atuação incisiva do CADE na condenação de entidades representativas das categorias que congregam profissionais liberais que realizam tabelamento de preços. Além disso, também há relevantes julgados de condenações relacionadas à adoção de condutas comerciais uniformes em diferentes órgãos de classe.

Adicionou, ainda, que a seu ver, as tabelas, como conduta anticompetitiva de influência à adoção de conduta comercial uniforme, devem ser analisadas como ilícito por objeto:

 “93. Diante das nuances elencadas, entendo que as tabelas como conduta anticompetitiva de influência à adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes (art. 36, incisos I e IV c/c §3º, inciso II, da Lei nº 12.529/2011) devem ser analisadas como ilícitos por objeto, considerando dois níveis de presunção de ilicitude:

 I – Uma presunção absoluta de ilicitude aplicável à adoção de tabelas para o consumidor final, como nos casos mencionados de autoescolas, diante de sua nítida similitude com carteis hardcore; e

II – Uma presunção relativa de ilicitude para os demais casos, abarcando discussões não apenas da ausência de autoria e materialidade, mas também questões como: (i) se a adoção da tabela é obrigatória ou facultativa; (ii) se estabelece preços mínimos ou máximos; (iii) se influencia o comportamento dos filiados; (iv) se é usada como forma de compensação e/ou (v) se está vinculada a alguma imunidade antitruste decorrente de regulação pública com fundamento em legislação específica”.

Ademais, resumiu os pontos analisados em seu voto, de modo a possibilitar o desenvolvimento de um algoritmo hermenêutico que contribua para uniformizar um padrão de análise desta conduta. São eles:

“I – Determinação enquanto ilícito por objeto: tendo em vista o elemento objetivo da infração referente à aplicação de uma tabela de preços, esta deve ser considerada a priori como uma forma de restrição à concorrência, sendo entendida, portanto, como uma forma de ilícito por objeto, ensejando a análise de presunções distintas de ilicitude;

II – Análise de possíveis “imunidades antitruste” e distorções de utilização: anteriormente a quaisquer outros exercícios de análise, deve ser considerado se a tabela é ou não disciplinada por legislação específica, configurando uma espécie de imunidade antitruste. Sendo este o caso, não cabe análise posterior. Ainda assim, é central avaliar se a utilização efetiva da tabela cumpre precisamente a finalidade estabelecida pela norma, caso contrário (cenários de distorção da utilização vis-à-vis a legislação), volta-se à análise de sua presunção de ilicitude sob a espécie de ilícito por objeto;

III – Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção absoluta: em caso de tabelas voltadas ao consumidor final, deve ser aplicada presunção absoluta de ilicitude, configurando de antemão a natureza anticoncorrencial da conduta, dado que o repasse de preços se dá diretamente ao consumidor;

IV – Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção relativa: em quaisquer outros cenários, cabe a aplicação de presunção relativa de ilicitude focada na avaliação do contexto em que se insere a tabela, isto é, a análise das condições econômicas e jurídicas nas quais esta está circunscrita. Neste caso, o uso/aplicação da tabela pode ou não resultar anticompetitivo;

V – Análise efetiva das condições econômicas e jurídicas: na sequência, deve ser avaliada a relação de mercado e as particularidades econômicas e jurídicas que determinam a aplicação da tabela. Neste ponto se dá a análise das relações entre os agentes no mercado, elemento que pode ser sintetizado na relação entre o poder de mercado/posição dominante dos agentes envolvidos. O Gráfico 3 sintetiza de modo esquemático essas relações, que são exploradas de modo aprofundado a seguir.

VI – Avaliação de elementos adjacentes/específicas ao conjunto probatório: por fim, são considerados elementos particulares, como mecanismos de coerção, ameaça e boicote, relações específicas entre os elos do mercado ou entre diferentes entidades/agentes/profissionais, acordos de negociação coletiva etc. Trata-se de análise das particularidades de cada caso para além da dinâmica de mercado em si

Destacou, ainda, o relevante papel do CRECI-GO, na medida em que tem a competência de decidir acerca das inscrições de profissionais e empresas, manter registros profissionais, emitir carteiras e certificados, impor sanções disciplinares conforme a legislação vigente, dentre outras, ou seja, a entidade detém uma grande capacidade de influência sobre os seus credenciados, “consubstanciado assim o poder de influência à adoção de conduta comercial uniforme no mercado relevante”. Desta forma, e em razão deste fato, ressaltou jurisprudência da Autarquia no sentido de que a caracterização da conduta não está vinculada ao caráter impositivo da tabela.

“49. Observa-se que as entidades representativas têm sido punidas mesmo quando não há evidências de coação contra associados para adotar os valores definidos na tabela. Nesses casos, a existência de condições estruturais favoráveis à prática anticoncorrencial e de um relevante poder de influência das associações tem sido considerada suficiente para a caracterização da infração à ordem econômica.” (PA 08012.004020/2004-64. Representante: Ministério Público da Bahia. Representado: Conselho Regional de Medicina da Bahia – CMEB. Voto Conselheira Relatora Ana Frazão. Data 15.10.2014. SEI 0001396. Pág. 98.-207)[11]

E, por fim, esclarece que embora “seja possível que, em determinadas situações, se leve em consideração a natureza e a característica não sugestiva de algum tipo de tabela na análise da licitude/ilicitude da conduta não basta para isso a mera nomenclatura da mesma como sugestiva. A facultatividade eventual da tabela tem que advir de um contexto, que envolve o de poder de mercado/posição dominante de quem emite, o marco legal, a ausência de possibilidade de coerção/retaliação, a existência de poder compensatório ou de fatores de competição mitigantes, etc.

Dentro deste cenário, depreende-se que, na última sessão de julgamento, novos estândares de análise da conduta foram estabelecidas pela autoridade antitruste, visando à padronização da análise e a uniformização da jurisprudência, que guiarão a apuração dos demais casos envolvendo a sugestão/fixação de tabelas de honorários. Há diversos casos sob análise do CADE[12], no que concerne ao tabelamento, e esses padrões estabelecidos na última sessão de julgamento, dão as nuances, não apenas de como tais casos serão decididos, mas trazem diretrizes que deverão ser observadas pelas associações, sindicatos e conselhos, de modo a se enquadrarem à legislação concorrencial, evitando os prejuízos ao mercado e às sanções decorrentes de seu descumprimento.



Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Simplificação da linguagem como medida de maior acesso à justiça

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em acesso à justiça, qual a primeira coisa que nos vem à mente? Sem dúvida, ver resguardados os nossos direitos, por intermédio do Poder Judiciário, seja arcando com os custos ou de forma gratuita? Ter a disponibilização de um advogado para nosso auxílio pelo Estado, de forma gratuita? Ter um órgão que, independentemente de outras esferas, analisa o nosso pleito de forma imparcial?

Sem dúvida que, ter garantidos todos estes pontos, significa verdadeiro acesso à justiça. No entanto, quando presente em uma audiência ou, ainda, diante de uma decisão proferida pelo judiciário ou órgãos administrativos especializados, a dificuldade na compreensão do que ali está sendo discutido ou decidido, te faz, de fato, sentir que essa acessibilidade existe? Ou ainda, quando auxiliado por um advogado, a linguagem por ele utilizada é, no todo, clara e acessível?

Vivemos em um país no qual o idioma oficial é o português. No entanto, a utilização de um palavreado técnico e excessivamente rebuscado pelos operadores do direito, popularmente conhecido como “juridiquês”, que inclui, inclusive, diversos termos em latim, prejudica o acesso à justiça, na medida em que é de difícil compreensão por aqueles que não atuam na área jurídica. Há de se dizer que determinados textos chegam a ser incompreensíveis, o que nos faz recordar da primeira vez que abrimos um livro de direito na faculdade, na qual entramos preparados e instruídos para as lições que seriam aprendidas, mas, ainda assim, nada do que ali estava escrito parecia fazer o menor sentido.

Neste cenário, diversos desses termos são utilizados, dificultando sobremaneira a interpretação e compreensão dos textos jurídicos, tais como a petição inicial é chamada de exordial; a denúncia virou exordial increpatória; a apresentação de um recurso, diz-se interposição; a repetição de uma situação jurídica, bis in idem; para apenas argumentar, utiliza-se ad argumentandum tantum; para normas que se aplicam a situações passadas, diz-se ter efeito ex tunc; para INSS[1], autarquia ancilar; a partir do início, diz-se  ab initio; para com todos, em relação a todos, de caráter geral, erga omnes, dentre outros. Assim, pergunta-se, qual a utilidade desta linguagem que restringe o acesso à justiça e cuja compreensão fica restrita apenas aos operadores do direito? Como afirmar, diante desta situação que o acesso à justiça é não só reconhecido, mas, de fato, disponibilizado à todos os cidadãos?

O Professor José Barcelos de Souza, em seu artigo “Linguagem jurídica[2], traz dois exemplos que ilustram esta dificuldade, encontrada pelas pessoas leigas de compreender a linguagem rebuscada:

“Vou citar dois casos curiosos. Um ocorrido nos Estados Unidos, que li no interessante livro The art of cross-examinatoin (A arte de inquirir testemunhas).

Querendo perguntar à testemunha onde ela morava, o advogado lhe indagou: Where do you reside? A testemunha não entendia, e o advogado repetia, elevava a voz, escandia as sílabas, caprichava no “reside”, e nada. Então o oficial de justiça soprou-lhe aos ouvidos: “Pergunte assim, Where do you live?”. Não deu outra. A testemunha respondeu prontamente: moro na rua tal, número tal.

O outro fato – a mim contado por testemunha ocular da história – aconteceu aqui mesmo em Minas Gerais, protagonizado por bom advogado, que se tornou depois desembargador.

Desejando que a testemunha informasse se o tiro foi dado durante a luta da vítima com o réu, o advogado perguntou assim: “O tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?”. A testemunha engolia em seco, mostrava-se inibida, ficou vermelha, mas não respondia. Indagada se entendera a pergunta, e instada (opa!) a responder, explicou: “Não foi antes nem depois; foi entre a refrega e o umbigo”. Uma gargalhada geral ecoou no salão.

O pior foi que a sessão teve de ser encerrada antes de terminar o julgamento. Porque, tudo já acalmado, quando menos se esperava, quando parecia que tudo corria normalmente, alguém iniciava uma risadinha, que acabava contagiando todo o auditório.”

Necessário se faz que o conhecimento do dia a dia dos processos, assim como das respectivas decisões, seja levado para além destes profissionais especializados, tornando a comunicação com a sociedade mais abrangente. Neste sentido, diversas medidas têm sido adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de que seja adotada uma linguagem mais simples, direta e compreensível na produção das decisões judiciais e na comunicação geral do Judiciário, e dos advogados, tornando a justiça, então, mais acessível à toda população.

Uma destas medidas, foi o lançamento, pelo CNJ e STF, em dezembro de 2023, com base nos princípios constitucionais e nos instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes), do Pacto Nacional pela Linguagem Simples do Judiciário.

De acordo com o Presidente do CNJ e STF, Ministro Luís Roberto Barroso, “[C] com muita frequência, não somos compreendidos. Boa parte das críticas ao Judiciário decorre da incompreensão sobre o que estamos decidindo. A linguagem codificada, a linguagem hermética e inacessível, acaba sendo um instrumento de poder, um instrumento de exclusão das pessoas que não possuem aquele conhecimento e, portanto, não podem participar do debate” e completou “[E] e quase tudo que decidimos pode ser explicado em uma linguagem simples, que as pessoas consigam entender. Ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderem”[3].

Ainda de acordo com Barroso, a linguagem simples na Justiça está relacionada ao fortalecimento da democracia, já que promove a igualdade de acesso à informação e à participação de todos os indivíduos no sistema jurídico, devendo ser um compromisso a ser assumido por todos os magistrados[4]. Ressalte-se que, considerando que a linguagem simples pressupõe a acessibilidade, a Pacto dispõe também sobre outras formas de aprimoramento da inclusão, como o uso, sempre que possível, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), da audiodescrição, dentre outras medidas.

De acordo com o Pacto, a atuação dos tribunais é articulada por meio de cinco eixos[5] [6] [7], abaixo especificados. De modo a estimular a utilização da linguagem simples pelos tribunais, o CNJ instituiu o Selo da Linguagem Simples, que será concedido anualmente, sempre em outubro, mês em que se comemora o Dia Internacional da Linguagem Simples (no dia 13).

  • Primeiro: diz respeito ao uso da linguagem simples e direta nos documentos judiciais, deixando de lado expressões técnicas desnecessárias, assim como à criação de manuais e guias com objetivo de orientar a população sobre o significado de expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos;
  • Segundo: incentiva a utilização de versões resumidas de votos nas sessões de julgamento, maior brevidade de pronunciamento em eventos do Judiciário e a criação de protocolos para eventos, que evitem formalidades excessivas;
  • Terceiro: formação (inicial e continuada) dos magistrados (as) e servidores (as) no sentido de utilizar a linguagem simples, assim como promoção de campanhas de amplo alcance visando a conscientização aceca da importância do acesso à justiça;
  • Quarto: incentivo no desenvolvimento de plataformas com interfaces intuitivas e informações claras, assim como a utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e informações do Judiciário.
  • Quinto: promoção de articulação interinstitucional e social por meio de diversas ações, como criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à Justiça com comunicação simples e clara; compartilhamento de boas práticas e recursos de linguagem simples; criação de programas de treinamento conjunto de servidores para a promoção de comunicação acessível e direta; e estabelecimento de parcerias com universidades, veículos de comunicação ou influenciadores digitais para cooperação técnica e desenvolvimento de protocolos de simplificação da linguagem.

No mesmo sentido que o CNJ e o STF, e antes mesmo do lançamento do Pacto, medidas de acessibilidade foram adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], tais como, (i) em 2020, sessões do STJ passaram a ser transmitidas pelo Youtube, com tradução simultânea dos julgamentos para Libras e, atualmente, há a possibilidade de habilitação de legendas; (ii) em 2021, criação do balcão virtual, aperfeiçoado em 2023 com a adoção de recursos de linguagem acessível à pessoas com deficiência; (iii) em 2022, criação do Glossário STJ, que explica, de forma rápida e simples, o significado de expressões jurídicas utilizadas nos textos do noticiário. De acordo com o titular da Secretaria Judiciária do STJ, Augusto Gentil, no que concerne ao balcão virtual “a iniciativa representa dignidade para os usuários com deficiência, que passam a poder usufruir do serviço público e buscar informações sobre o próprio processo com independência e autonomia“. No mesmo sentido, entendemos que compreender aquilo que está ocorrendo no processo, ou, ainda, o que está sendo dito ou escrito, também é uma maneira de garantir a dignidade à população como um todo.

Desta maneira, a linguagem simples deverá estar em todos os documentos, comunicados e decisões proferidas pelo judiciário. Estas medidas, ao nosso ver, devem servir de norte para a simplificação da linguagem utilizada, também, em outras esferas, como a administrativa, na qual há autarquias especializadas, cujo uso da linguagem técnica, por vezes, afasta a compreensão por pessoas leigas, assim como por todos os operadores do direito.

As medidas para simplificação da linguagem, são fatores de empoderamento e inclusão social, reduzem as desigualdades, garantem igualdade de oportunidades, já que eliminam políticas e costumes que confrontam com estes objetivos. Além disso, o entendimento da tramitação do processo, gera a crença e a aproximação da população em relação ao Judiciário, fortalecendo a instituição. No mais, ainda, a compreensão das decisões, tanto judiciais, quanto administrativas, garante sua maior efetividade, na medida em que entendendo aquilo que foi decidido e a sua extensão, mais fácil será para a pessoa cumprir o comando nela emanado, ou discordar dele. Como cumprir ou obedecer, ou ainda, questionar aquilo que não se compreende?

Há de se considerar, que cada ciência possui sua própria terminologia, de modo a dar aos seus enunciados maior precisão e certeza. No entanto, este propósito pode também ser alcançado, com maior amplitude, optando-se por palavras de mais fácil compreensão, zelando, sempre, pelos seus significados, e mantendo-se, desta forma, seu caráter de instrumento de comunicação.

Bibliografia:

CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Disponível em:

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf. Acesso 02.08.2024.

CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em:

https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica. Acesso em 02.08.2024.

STF. Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade. Acesso em 02.08.2024.

STJ. Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em:

 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx. Acesso 02.08.2024.


[1] Instituto Nacional do Seguro Social.

[2] SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica . Acesso em 02.08.2024.

[3] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[4] “Todos os tribunais envolvidos assumem o compromisso de, sem negligenciar a boa técnica jurídica, estimular as juízas e os juízes e setores técnicos a: a. eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; b. adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; c. explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira; d. utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; e. fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; f. reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.” – In Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 4. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[5] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[6] CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

[7] CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 5 a 8. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[8] In Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx . Acesso 02.08.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


A Independência Relativa de Instâncias

Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O princípio da relativa independência de instâncias determina que as esferas civil, penal e administrativa são independentes, isto é, uma decisão proferida em uma dessas instâncias não tem caráter vinculante, podendo, desta forma, existir a absolvição em uma delas e a condenação na outra. Diz-se relativa independência, pois toda regra comporta exceção, sendo elas o caráter vinculante (i) da absolvição penal, que nega a existência do fato ou autoria; (ii) da condenação de agente público na esfera penal, e (iii) da absolvição penal por ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito[1].

Neste contexto, no julgamento do REsp 2.081.262-RS (2022/0252631-6)[2], realizado em novembro de 2023, os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entenderam pela possibilidade de condenação, pela prática da conduta de cartel, no âmbito do Processo Administrativo que tramita perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ainda que tenha ocorrido a absolvição dos acusados nas esferas penal e civil.

Foram analisados e julgados, pelos Ministros, os recursos interpostos pelo CADE e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em face de acórdão proferido, por unanimidade, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (4ª T – TRF4), no julgamento de apelações e reexame necessário[3], que decidiu pela anulação de decisão proferida pelo CADE. Referida decisão, proferida pela autarquia, condenou, nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, diversos postos de gasolina e pessoas físicas a eles relacionadas, por formação de cartel[4], sob o fundamento de que os fatos objeto do referido processo administrativo foram analisados tanto no âmbito penal, quanto no civil, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), sendo tais fatos e o conjunto probatório que os fundamentou, considerados insuficientes para a condenação dos acusados pela prática de cartel na revenda de combustíveis no Município de Caxias do Sul/RS, nas duas esferas.

No voto proferido pela Ministra Relatora Regina Helena Costa[5], ela esclarece que “[À] à vista do princípio da relativa independência entre as instâncias de responsabilização consagrado nos arts. 66 do Código de Processo Penal, 935 do Código Civil de 2002 e 125 da Lei n. 8.112/1990, ressalvada a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta, ou, ainda, quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática, as conclusões levadas a efeito em âmbito criminal não reverberam sobre as atribuições da autarquia antitruste, viabilizando-se, por isso, a submissão de idêntico acervo probatório ao crivo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para exame dos pressupostos indispensáveis à apuração de condutas anticoncorrenciais”.

Adiciona que o artigo 16[6], da Lei nº 7.347/1995, excepciona[7] parcialmente o regramento “pro et contra” disposto no artigo 502[8], do Código de Processo Civil, instituindo o regime jurídico da “res judicata secundum eventum probationis”, que delibera acerca da “ausência de formação de coisa julgada quando, não obstante apreciado o mérito da ação civil pública, a sentença de improcedência é fundada em insuficiência probatória, hipótese na qual exigida apresentação de prova nova tão somente como requisito de ulterior demanda coletiva aviada por outros legitimados, regra não extensível à análise do mesmo contexto fático pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica[9].

Neste sentido, ainda de acordo com o voto da Ministra, a independência relativa das sanções administrativas baseadas na legislação de defesa da concorrência e as “demais órbitas de responsabilidade” autorizam que o mesmo conjunto probatório, tido por insuficiente para condenação em outras esferas, seja reputado apto a fundamentar a aplicação das penalidades decorrentes da prática de condutas anticoncorrenciais, ressalvada a hipótese prevista no artigo 66, do Código de Processo Penal[10]. Tal entendimento decorre, segundo a julgadora, dos objetivos de cada plano de proteção à concorrência – a Lei Antitruste visa coibir condutas anticompetitivas e punir, por meio de sanções, os responsáveis; o âmbito civil tem como escopo a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas e fixação de ordens com intuito de conformar a atuação dos agentes econômicos à legislação, sem prejuízo do acionamento da jurisdição penal com relação às pessoas físicas – dentro de um sistema próprio composto por três esferas independentes entre si.

Neste contexto, o voto da Ministra Relatora, que foi acompanhado à unanimidade pelos demais julgadores, deu parcial provimento ao recurso interposto pelo CADE, para afastar a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, como reconhecida pelas instâncias inferiores.

É importante destacar que, conforme ressaltado pela Ministra, no âmbito do processo administrativo, embora tenha sido utilizado o mesmo conjunto probatório, considerado insuficiente pelas esferas civil e penal anteriormente, outras provas foram produzidas, tais como oitiva de testemunhas e a coleta de informações junto à agência reguladora do setor petrolífero, sobre os preços de combustíveis no mercado local, o que afastaria eventual entendimento de que a decisão proferida pelo CADE foi baseada apenas em provas emprestadas.

Neste ponto, e apenas para provocar uma reflexão sobre o tema, entende-se que a questão posta, quanto à esfera cível, faz todo sentido, diante das características dos direitos tutelados. No entanto, no âmbito penal, esfera legitimada e detentora da expertise necessária para a apuração do crime de cartel, a análise de provas e a conclusão pela sua insuficiência, quanto à prática de cartel, não podem ser desconsideradas pelo CADE, ainda que as esferas sejam independentes entre si, sob pena de grave insegurança jurídica, pois, repise-se, tanto a esfera penal quanto a administrativa possuem a expertise para analisar a configuração ou não desta prática ilícita e (e não ‘ou’) concorrencial. Por essa razão, imprescindível que o conjunto probatório emprestado da esfera penal, diante da conclusão, nesta esfera, no que concerne à existência da prática da conduta de cartel, seja subsidiado com novas provas, de modo a complementar e tornar suficiente o que antes não era.

Não pode o CADE ignorar a decisão penal, pelo menos para sopesar com as demais provas que porventura possa invocar, sob pena de termos decisões conflitantes na avaliação dos mesmos elementos probatórios.


[1] Inteligência dos artigos:

Código de Processo Penal, Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Código Civil, Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Lei 8.112/1990, Art. 125.  As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Lei 12.529/2011, Art. 35.  A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (correspondente à Lei 8884/94, artigo 19). 

Lei 12.529/2011, Art. 47.  Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação (correspondente à Lei 8884/94, artigo 29). 

Lei 13.869/2019, Art. 8º. Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[2] Acórdão disponível no link: Julgamento Eletrônico (stj.jus.br).

[3] Ação anulatória de decisão proferida pelo CADE, movida por Paulo Ricardo Tonolli e Auto Posto Tonolli Ltda, tendo em vista a condenação de ambos pela prática de cartel, no âmbito do CADE, bem como da correlata penalidade de revogação da autorização para exercer atividade de posto de combustíveis, aplicada pela ANP. Em primeira instância, os pedidos foram julgados procedentes, tendo sido reconhecida a inviabilidade de o CADE reconhecer a existência de cartel, quando os mesmos fatos estavam acobertados pelo manto da coisa julgada decorrente da Ação Civil Pública 010.1.07.001043-59 e da Ação Penal 010.207.000.52097, momento em que fora afastada a existência de conduta ilícita. A decisão de 1º grau foi mantida pelo TRF4.

[4] Processo administrativo nº 08012.010215/2007-96, que teve por objeto apurar a existência coordenação de mercado ajustada entre revendedores de combustíveis líquidos (gasolina álcool e diesel) com atuação no Município de Caxias do Sul – RS —nos anos 2004, 2005 e 2006.

[5] A decisão da Ministra Relatora foi acompanhada pela unanimidade dos demais Ministros presentes na sessão de julgamento.

[6] Lei 7.347/1995, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

[7] A exceção parcial à regra ocorre no âmbito das ações coletivas, conforme artigo 18 da Lei 4.717/1965 e artigo 16 da Lei 7.347/1985, tendo em vista a preocupação legislativa com os interesses difusos e coletivos tutelados nas demandas desta natureza, que exige robusta e exauriente produção de provas.

[8] CPC, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

[9] A coisa julgada pro et contra, forma-se independentemente do resultado do processo, do teor da decisão judicial proferida. Não é relevante se o resultado é de procedência ou de improcedência do pedido, se houve ou não o esgotamento de provas, a decisão definitiva sempre será apta a produzir a coisa julgada. Essa é a regra geral do nosso Código de Processo Civil.

A coisa julgada secundum eventum probationis, forma-se no caso de esgotamento das provas. No caso de os pedidos formulados na demanda serem julgados procedentes (com esgotamento de provas), ou improcedentes (com provas suficientes), a decisão judicial só produzirá a coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar os pedidos improcedentes por insuficiência de provas, não haverá a coisa julgada.

[10] Vide nota de rodapé 1.

Deveríamos repensar na definição de humano?

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em nossa sociedade as pessoas e objetos são conhecidos por seus nomes, características e adjetivos a eles relacionados. Cada coisa, expressão ou palavra tem o seu ou os seus significados, e tendemos a conviver com muitos deles sem, ao menos, refletir sobre eles ou questioná-los.

Dentro deste contexto, após algumas pesquisas corriqueiras, chamou-nos a atenção um dos significados dado à palavra “humano”. De acordo com o Dicionário Online de Português[1], “humano” significa “[Q] que é piedoso, indulgente, compreensivo; bondoso, caridoso: mostrou-se humano diante das dificuldades alheias”. Como sinônimo de “humano”, o dicionário traz, ainda, as palavras generoso, benevolente e benigno e como antônimos as palavras desumano, bárbaro, cruel, desalmado, desapiedado, inumano, atroz, duro e brutal. Já o conhecido Dicionário Michaelis traz como um dos significados de “humano” “[Q] que denota compaixão (…)”[2].

Ler as definições descritas acima, assim como outras semelhantes trazidas por dicionários importantes[3], nos fez refletir não apenas sobre os episódios recorrentes, que ocupam as páginas dos jornais e meios de comunicação do mundo inteiro, mas também sobre aqueles que tanto se falou e que nada mais se tem a dizer, ou porque normalizados ou porque desgastadas estão todas as tentativas de solucioná-los. Ressalte-se que não se está aqui a questionar qualquer religião, gênero, raça, orientação sexual, nada disso, mas, sim, a convidar os leitores a uma reflexão sobre os conceitos aceitos pela sociedade sem qualquer questionamento.

Os jornais e os meios de comunicação reportam, repostam, comentam, reiteradamente, notícias retratando violência e guerras. A violência reiterada e desmedida contra pessoas idosas, pretos, mulheres, crianças, comunidade LGBTQIAPN+, violência esta que não tem classe social. Veicula-se, também, a violência decorrente da corrupção, que tira da criança e dos menos privilegiados o prato de comida ou o acesso à educação. Fala-se, sem trégua, das atrocidades trazidas pelas guerras, que destroem famílias e mutilam pessoas.

Não é novidade de que nestas guerras, tem-se o abuso de crianças e mulheres, o desrespeito pela vida e pelos direitos humanos, o uso de força brutal, com invasões e bombardeios de cidades e vilarejos inteiros, tirando da população, vítima de governos desumanos, o mínimo necessário à sobrevivência e à dignidade que lhe sobrou. Há quem aplauda todas essas condutas, há quem apoie cegamente a postura desses governantes, em nome de um território, de dinheiro, de poder, ou, ainda, pelas mais impensáveis razões. É o humano matando o humano, apoiando a matança, a corrupção, os preconceitos, a violência.

Em uma sociedade marcada pela presença de pessoas ávidas por dinheiro e poder, e pelo machismo estrutural, pelo racismo e outros preconceitos, que são conceitos e problemas frutos de condutas humanas, sem que tenhamos uma resposta social suficientemente rápida para os devidos enfrentamentos, temos a ideia de que a impunidade, ao final, é o que prevalece.

O “humano”, então, que é definido como um ser do qual se denota compaixão, piedade, indulgência, compreensão, bondade, caridade, reveste-se justamente dos antônimos desta definição, pois veste facilmente a roupagem do bárbaro, do cruel, do desalmado, do desapiedado, do inumano, do atrozdurobrutal, porque já não se importa mais com aquele que, ao seu ver, não teria o direito de pensar ou agir diferente. Porque, ao seu ver, a partir do momento em que o seu semelhante não pensa como ele, não possui a mesma opinião ou não segue a mesma religião ou, ainda, por não ter a mesma cor da pele ou orientação sexual, sua vida e existência deixam de ter valor, dando, então, margem aos mais absurdos e cruéis abusos, baseados em justificativas absolutamente infundadas e descabidas.

Levando-se em consideração este cenário, visto e vivenciado reiteradamente por todo o mundo, cumpre-nos questionar se, de fato, estariam corretas essas definições de “humano”, absorvidas culturalmente. É certo que todo humano pode ser bom, benigno, benevolente, mas que nem todo humano, de fato, o é, e o mesmo pode ser afirmado com relação a todos os outros sinônimos acima destacados. Neste caso, não seria, então, mais prudente afirmarmos serem, essas definições e sinônimos, adjetivos que podem ser atribuídos aos humanos, e não características a eles inerentes?

A vida muda, é dinâmica, assim como a sociedade, e as leis acompanham essas mudanças, de modo a suprir as necessidades sociais. Talvez fosse o caso de revisarmos esses antigos conceitos, aceitos como verdadeiros, mas que, atualmente, não mais refletem a realidade na qual vivemos. Infelizmente!


[1] https://www.dicio.com.br/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[2] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[3] Dicionário Oxford: human – kind behaviour, considered to be natural to humans (humano – comportamento gentil, considerado natural para os humanos – tradução livre. (https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/us/definition/english/human_1?q=human Acesso em 07.12.2023).

Dicionário Real Academia Española: humano – comprensivo, sensible a los infortunios ajenos (humano – compreensivo, sensível aos infortúnios alheios – tradução livre). Sinônimos: humanitario, solidário, caritativo, compassivo, bienhechor, filantrópico, altruista (humanitário, solidário, caridoso, compassivo, benfeitor, filantrópico, altruísta – tradução livre). Antônimo: cruel. (https://dle.rae.es/humano?m=form&m=form&wq=humano Acesso em 07.12.2023).


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Blackout no CADE

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

De acordo com o Regimento Interno do CADE (RICADE)[1], o Tribunal do CADE é composto por um Presidente e 6 (seis) Conselheiros, nomeados pelo Presidente da República, depois de sabatinados e aprovados pelo Senado Federal. O mandato do Presidente e dos Conselheiros é de 4 (quatro) anos.

Compete ao Plenário do Tribunal[2], dentre outras atribuições, decidir (i) sobre a existência de infrações à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; (ii) decidir os processos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, instaurados pela Superintendência-Geral; (iii) aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, bem como determinar à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento; (iv) apreciar e julgar processos administrativos de atos de concentração econômica, na forma da Lei.

As decisões do Tribunal são tomadas por maioria, com a presença mínima de 4 (quatro) membros para a instalação da sessão de julgamento, sendo o quórum de deliberação mínimo de 3 (três) membros[3]. Se, no caso de encerramento de mandato dos Conselheiros, a composição do Tribunal ficar reduzida a número inferior, os prazos previstos na Lei de Defesa da Concorrência (LDC)[4] serão automaticamente suspensos e, nos casos em que o processo estiver no Tribunal, será suspensa a tramitação dos processos, continuando-se a contagem do prazo imediatamente após a recomposição do quórum[5].

E é justamente este o cenário atual do CADE. Isto porque, no mês de outubro, findaram os mandatos de 3 (três) Conselheiros, Sérgio Ravagnani, Lenisa Prado e Luiz Hoffmann. No início do mês de novembro, encerrou-se o mandato do Conselheiro Luís Braido. A questão preocupante, até o momento, é que não houve pelo Presidente da República a indicação de nenhum nome ao Senado, travando as atividades do Tribunal, o que irá gerar um verdadeiro blackout.

Sem que haja um quórum mínimo, atrasa-se não apenas a análise e julgamento de processos administrativos que aguardam resolução no Tribunal, mas, também, a aprovação definitiva de quaisquer operações que devam ser submetidas ao CADE[6]. Isso porque a ausência de quórum mínimo, além de suspender deliberações do Tribunal, traz discussão sobre a suspensão dos prazos de avocação. Com relação às operações, até mesmo aquelas consideradas de menor complexibilidade, ainda que sem qualquer preocupação concorrencial, aprovadas sem restrições pela Superintendência-Geral (SG), ficarão travadas, na medida em que qualquer Conselheiro pode avocá-la ou terceiros interessados podem questioná-la, de modo a rever o trabalho da SG no Tribunal. E esses prazos estão suspensos.

De acordo com dados levantados pelo Valor Econômico[7], a SG conseguiu encerrar a análise de 79 (setenta e nove) atos de concentração até o dia 16 de outubro, praticamente zerando o estoque. Essa era a data limite para a análise e publicação de pareceres da SG sobre os casos e, ainda, ter os 15 (quinze) dias, previstos pelo RICADE, para terceiros e/ou Conselheiros questionarem a análise e, eventualmente, levarem os casos ao Tribunal. Todas as demais análises realizadas a partir desta data, não poderão ser concluídas em razão da falta de quórum[8].

Importante destacar que, sem que haja a aprovação pelo CADE, em decisão definitiva, as operações não podem ser consumadas, sob pena de configuração de gun jumping, o que enseja possível declaração de nulidade da operação, imposição de multa pecuniária em valores que variam entre R$ 60.000,00 e R$ 60.000.000,00 – a depender da condição econômica dos envolvidos, dolo, má-fé e do potencial anticompetitivo da operação, entre outros – e a possibilidade de abertura de processo administrativo contra as partes envolvidas. Desta forma, deverão ser preservadas, até a decisão final da operação, as condições de concorrência entre as empresas envolvidas[9]

Esta não é a primeira vez que a Autarquia vivencia esta situação preocupante, que implica na paralisação de parte de suas atividades, e na qual questões políticas interferem e causam sérios impactos e prejuízos em nossa economia, que necessita de negócios e investimentos, com decisões céleres, como é a tradição do CADE.

Durante o período no qual o Tribunal permanece sem quórum, os Conselheiros voltam seus olhos para os trabalhos administrativos, analisando casos outrora recepcionados, envolvendo investigação de condutas (cartéis, condutas unilaterais etc.) e a preparação de atos de concentração para que, assim que possível, sejam julgados pelo Tribunal.

O fato de esta situação ter acontecido reiteradas vezes, nos faz refletir acerca da efetividade da estrutura do Tribunal, algumas vezes levantadas para discussão como, por exemplo, do número de Conselheiros ou, ainda, se não seria oportuno a existência de Conselheiros substitutos, evitando-se, desta maneira, a repetição deste blackout. No entanto, até o momento, referidos assuntos não passam de discussões no Legislativo e no Executivo, sem ainda resultados práticos efetivos.

A Lei 12.529/2011 tentou impedir que isso acontecesse, dispondo sobre os prazos de mandato de maneira não uniforme, sendo de 2, 3 e 4 anos, dependendo do caso. No entanto, os atrasos nas indicações, ao longo do tempo, provocaram a situação que nos encontramos hoje.

A nós, administrados, resta apenas aguardar e torcer para que as indicações, a serem realizadas pela Presidência da República, e a sabatina e aprovação, pelo Senado Federal, sejam tratadas como um tema prioritário, como deve ser. Ou teremos que pensar em pedir socorro ao Judiciário, para impedir que prejuízos à economia e às empresas sejam ampliados.


[1] Artigo 12, RICADE.

[2] Art. 9º, Lei 12.529/2011: Art. 9º Compete ao Plenário do Tribunal, dentre outras atribuições previstas nesta Lei:

I – zelar pela observância desta Lei e seu regulamento e do regimento interno;

II – decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei;

III – decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral;

IV – ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar;

V – aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, bem como determinar à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento;

VI – apreciar, em grau de recurso, as medidas preventivas adotadas pelo Conselheiro-Relator ou pela Superintendência-Geral;

VII – intimar os interessados de suas decisões;

VIII – requisitar dos órgãos e entidades da administração pública federal e requerer às autoridades dos Estados, Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta Lei;

IX – contratar a realização de exames, vistorias e estudos, aprovando, em cada caso, os respectivos honorários profissionais e demais despesas de processo, que deverão ser pagas pela empresa, se vier a ser punida nos termos desta Lei;

X – apreciar processos administrativos de atos de concentração econômica, na forma desta Lei, fixando, quando entender conveniente e oportuno, acordos em controle de atos de concentração;

XI – determinar à Superintendência-Geral que adote as medidas administrativas necessárias à execução e fiel cumprimento de suas decisões;

XII – requisitar serviços e pessoal de quaisquer órgãos e entidades do Poder Público Federal;

XIII – requerer à Procuradoria Federal junto ao Cade a adoção de providências administrativas e judiciais;

XIV – instruir o público sobre as formas de infração da ordem econômica;

XV – elaborar e aprovar regimento interno do Cade, dispondo sobre seu funcionamento, forma das deliberações, normas de procedimento e organização de seus serviços internos; Vide Decreto nº 9.011, de 2017

XVI – propor a estrutura do quadro de pessoal do Cade, observado o disposto no inciso II do caput do art. 37 da Constituição Federal ;

XVII – elaborar proposta orçamentária nos termos desta Lei;

XVIII – requisitar informações de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades e entidades públicas ou privadas, respeitando e mantendo o sigilo legal quando for o caso, bem como determinar as diligências que se fizerem necessárias ao exercício das suas funções; e

XIX – decidir pelo cumprimento das decisões, compromissos e acordos.

[3] Artigo 9°, §1º, Lei 12.529/2011.

[4] Lei 12.529/2011.

[5] Artigo 12, §5º, RICADE.

[6] Conforme artigos 88 e 90, Lei 12.529/2011 e Portaria Interministerial 994/2012.

[7] Valor Econômico. Olivon, Beatriz. Cade está em vias de perder o quórum mínimo para julgamentos. Enquanto não repuser vagas abertas, órgão vai se limitar a dar andamento administrativo e adiantar processos. Publicado em 03.11.2023. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/11/03/cade-esta-em-vias-de-perder-o-quorum-minimo-para-julgamentos.ghtml . Acesso em 08.11.2023.

[8] Mandato do Conselheiro Luís Braido encerrou em 04.11.2023.

[9] Artigo 88, § 3º e §4º, LDC.


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Combate à violência de gênero – Aplicação da tese da ‘Legítima Defesa da Honra’[1]

Pedro S. C Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em 2022, de acordo com o Monitor da Violência do site g1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base nos dados oficiais dos estados e do Distrito Federal, 1,4 mil mulheres foram mortas apenas pelo fato de serem mulheres, crime caracterizado como feminicídio[1]. Esse grave cenário se dá em razão de estarem enraizados, no cerne de nossa sociedade, conceitos e valores machistas, dos quais há tempos[2] tentamos nos desvencilhar.

Dentro deste contexto, no dia 01° de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF)[3] afastou, definitivamente, o uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Referida decisão é um marco importante no combate à violência de gênero que assola nossa sociedade e que mata mais mulheres do que o câncer e os acidentes de trânsito[4][5].

Para explicar melhor, a tese da legítima defesa da honra defende a ideia de que é legitima a absolvição do réu/homem que, comprovadamente, pratica feminicídio em defesa de sua honra. Esta tese decorre da herança do patriarcado que carregamos, no sentido de que o homem, chefe da casa, é o detentor/possuidor de sua esposa e, portanto, com ela pode agir da forma como bem entende, de modo corretivo e violento.

Esses valores e comportamentos foram, por muito tempo, aceitos pela sociedade e até mesmo chancelados pelo direito. Neste sentido, a decisão proferida pelo STF destaca os principais pontos de nossa legislação que culminaram no surgimento da tese, já que a honra masculina já foi um bem jurídico protegido pelo nosso ordenamento.

Neste sentido, a decisão esclarece que à época do Brasil colônia, desde o ano de 1605, os portugueses adotaram as Ordenações Filipinas, que tutelavam o “poder do homem sobre o corpo e a vida da mulher” no Livro V, Título XXXVIII (“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella”). Explica a Min. Carmen Lúcia, em seu voto, que o assassinato da mulher era um meio de afastar do marido a pecha da traição, já que o adultério colocava à prova a masculinidade do marido traído. Citando Sandra Ornellas, explica, ainda, que essa legislação, aliada aos valores culturais dos colonizadores, relacionavam a honra masculina ao comportamento feminino; a preocupação com os laços consanguíneos, com a patrilinearidade, que passavam de geração para geração, não só a herança, como também a honra da família.

Já os Códigos Criminal do Império e do Regime Republicano, posteriores às Ordenações Filipinas, embora não autorizassem expressamente o direito de o homem matar a sua esposa, passaram a considerar, apenas formalmente, o homem como sujeito potencial da prática do crime de adultério. Para tanto, deveria haver prova de que mantinha uma relação estável com sua amante, na medida em que eram normalizadas e aceitas pela sociedade as relações extraconjugais do homem. No entanto, no que concerne à mulher, bastava a presunção do adultério, destacando evidente diferenciação entre os requisitos para configuração do crime, dada a discriminação em relação ao gênero do agente.

Com a promulgação do Código Penal de 1940, esta diferenciação quanto à tipificação do crime, com base no gênero do agente, deixou de existir, não se exigindo mais a comprovação de relacionamento permanente com relação ao adultério masculino. No corpo do novo Código, no entanto, permaneceram diversas expressões discriminatórias (“mulher virgem”, “mulher honesta” etc.). Isto quer dizer, nada mudou culturalmente, pois a cobrança social e política apenas da mulher continuou, sendo ela considerada como propriedade do homem e sua exclusividade sexual[6].

Essa cobrança podia ser verificada, ademais, na legislação civil. O Código Civil de 1916 determinava serem relativamente incapazes as mulheres casadas; dispunha acerca da submissão da mulher ao homem na sociedade conjugal; preconizava ser o marido o chefe da sociedade conjugal e ter a mulher o dever de velar pela direção material e moral da família; determinava atos que a mulher não poderia praticar sem a autorização do marido.

Depreende-se, desta forma, que havia uma contaminação sistêmica do direito brasileiro, que culmina na ideia de submissão dos direitos das mulheres aos interesses do homem e que relaciona a honra masculina ao dever da mulher. Carmen Lúcia, explica, ainda, citando Margarita Danielle Ramos, o dever de a mulher, com sua castidade e fidelidade, sustentar a legitimidade do sangue, fator de honorabilidade de seu pai e marido, sendo a infidelidade perigosa por duas razões: desonra do pai e marido, e o risco de trazer para o seio familiar filhos ilegítimos.

Essa contaminação sistêmica ficou ilustrada no caso emblemático envolvendo o assassinato da socialite Ângela Diniz[7], crime passional com grande repercussão e mobilização da opinião pública. Ângela foi morta a tiros por seu marido, o empresário Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street, no dia 30 de dezembro de 1976, em Búzios, no Rio de Janeiro que, em um primeiro julgamento, foi condenado a dois anos de prisão, com o direito de cumprir a pena em liberdade.

Em sua tese de defesa, seu advogado alegou ter ele matado por amor e agido em legítima defesa de sua honra. Essa argumentação causou forte controvérsia, protestos populares e a organização de um movimento feminista “quem ama não mata”, que impulsionaram pedido de revisão pelo promotor e levaram Doca a um segundo julgamento, no qual foi condenado a 15 anos de prisão em regime fechado (ele depois obteve liberdade condicional).

Esse caso ganhou forte repercussão em razão de envolver pessoas da alta sociedade brasileira, o que levou a imprensa a veicular todos os seus passos, desde a descoberta do crime, enterro de Ângela, missa de sétimo dia, investigações e, posteriormente, todos os passos de Doca. Interessante notar que, em pesquisa realizada pela Rádio Novelo, disponibilizada em seu podcast Praia dos Ossos, verifica-se que, durante a investigação realizada, muitas foram as tentativas de justificar a conduta de Doca e de imputar a culpa pelo acontecido à vítima, em razão de Ângela ter um comportamento considerado muito à frente de sua época. O podcast relata, inclusive, reportagem na qual Doca foi mencionado como vítima.

Os desdobramentos decorrentes do assassinato de Ângela, retratam não só inúmeras tentativas de se culpar a vítima pela agressão ou, ainda, pelo seu próprio assassinato, cenário que só é encontrado em casos de feminicídio, jamais quando o corpo encontrado é masculino. Retrata também que a comoção popular[8], que causou a reviravolta no caso e a condenação de Doca, deu-se porque a imprensa esteve presente retratando os detalhes do crime, por envolver atores da alta sociedade, o que foi considerado um escândalo à época. No entanto, pergunta-se, quantos outros crimes não ocorreram nessa mesma época, nos quais o homem saiu pela porta da frente da delegacia ou do tribunal, sob o argumento de que sua honra valia mais do que a vida de sua namorada, companheira, esposa e até mesmo filha?

Voltando à análise da decisão proferida pelo STF, esta esclarece, ainda, que apenas com a promulgação da Constituição de 1988, essa diferenciação e submissão da mulher deu espaço ao tratamento idêntico a todo e qualquer cidadão, independentemente do gênero. Desta forma, homens e mulheres passam a ter os mesmos deveres e obrigações na sociedade e o Estado passou a ter o dever de instituir mecanismos para coibir a violência de gênero, doméstica, com intuito de construir uma sociedade justa e livre de preconceitos e discriminações.

Neste cenário, o Brasil assinou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Dec. n° 1.973/1996) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (Dec. n° 4.377/2002). Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, regulamentando os direitos assegurados constitucionalmente e ratificados pelo Brasil por tratados de direitos humanos, com intuito de coibir as múltiplas formas de violência contra a mulher.

Como é possível depreender da leitura desse resumido contexto histórico apresentado na decisão do STF, a submissão da mulher perante o homem e de seu papel na sociedade, a ideia de ser a mulher propriedade do homem, seja de seu pai ou marido, ou de ser seu dever social a manutenção da honra do homem, ficaram impregnados na cultura de nossa sociedade. A cultura, por sua vez, é o conjunto dos valores, atos, ações, que são aceitos pela sociedade, que influenciam em todos os aspectos que a norteiam, como o direito, as reações e as relações sociais, e que são passados de geração para geração.

A sociedade, no entanto, sofre transformações, exigindo modificações no direito que deve acompanhar essas mudanças, tornando efetiva a sua tutela. No entanto, os valores que envolvem a sociedade, a cultura, necessitam de muito mais tempo para se transformar, o que pode ser verificado com a necessidade da assinatura de tratados, edições de leis e adoção de medidas visando ao combate da violência de gênero, que surge quando o homem, acostumado a ser chefe e dono, não atura o fato de não mais ocupar esse papel, reagindo com violência e, por vezes, matando.

E é nesse contexto que a tese da legítima defesa da honra surgiu, e criou suas raízes, absolvendo centenas de assassinos, com base na alegação de que sua honra, seu brio e seu orgulho valem mais do que a vida de uma mulher. Note que a referida tese é aceita há anos, enquanto vigente não só a Constituição Federal de 1988, que traz como princípios basilares a defesa da proteção à vida, da igualdade, da proteção dos direitos humanos, mas também todos os tratados assinados pelo Brasil e a Lei Maria da Penha.

A utilização desta tese como defesa perante os tribunais brasileiros, demonstra a tolerância da sociedade com relação à violência contra a mulher, já que a aceita mesmo sem ela apresentar qualquer amparo legal. E, diz-se isso porque, conforme esclarecido pelo Min. Dias Toffoli em seu voto, a legítima defesa da honra não é tecnicamente legítima defesa, já que seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência.

De acordo com o artigo 23 do Código Penal, a legítima defesa é uma das causas excludentes de ilicitude. Já o artigo 25 do Código Penal esclarece que, entende-se por legítima defesa, “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Adiciona Toffoli que por agressão injusta, entende-se aquela que ameaça ou lesa um bem jurídico; que há em nossa legislação a proibição do excesso, no sentido de que a defesa deve consistir no uso de meios proporcionais à agressão, isto é, suficientes para repeli-la; e que, com o objetivo de evitar que a autoridade judiciária absolvesse o agente movido por ciúme ou outras paixões e emoções, o legislador inseriu no Código Penal a regra do artigo 28, que dispõe que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal.

Desta forma, Toffoli conclui que a honra é um atributo pessoal, íntimo e subjetivo, cuja tutela se encontra delineada na Constituição, isto quer dizer, aquele que se vê lesado em sua honra tem meios jurídicos para buscar sua compensação. Neste contexto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas, sim, a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa.

E adiciona, que a legítima defesa da honra “normaliza e reforça uma compreensão de desvalor da vida da mulher, tomando-a como ser secundário cuja vida pode ser suprimida em prol da afirmação de uma suposta honra masculina”, o que está em descompasso com os objetivos fundamentais da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Trata-se de uma tese violadora dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres e, citando Silvia Pimentel, reforça que lançar mão dessa tese significa não o julgamento do crime em si, mas do comportamento da mulher, com base um uma dupla moral sexual, cabendo, assim, ao Estado não ser conivente e não estimular a violência doméstica e o feminicídio.

Neste sentido, a cláusula tutelar de plenitude de defesa do Tribunal do Juri[9], não pode constituir em um instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas, como o feminicídio ou qualquer outra forma de violência contra a mulher, já que no Direito brasileiro o bem considerado como mais valioso é justamente a vida. Assim, decidiu-se por obstar à defesa de um acusado, à acusação, à autoridade policial e ao juízo a utilização, direta ou indireta, da tese da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Assim, à unanimidade, a tese da legítima defesa foi julgada inconstitucional, e conferidos aos artigos 23, II 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65, do Código de Processo Penal, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.

Como visto, a decisão proferida pelo STF é um importante marco no combate a violência de gênero e reforça as mudanças sofridas no âmbito de nossa sociedade, mas também demonstra o quanto a luta é árdua para afastar do cerne de nossa cultura os traços do machismo decorrentes do patriarcado, que marcou nossa legislação e ainda corrompe o pensamento de muitos brasileiros.

Preocupa o fato de a tese ter sido afastada apenas após passados mais de 34 anos da promulgação da Constituição, que reconheceu a igualdade, e este fato reforça a questão acerca da dificuldade de se mudar a cultura de um povo e, portanto, dos valores que o envolvem. No entanto, ao mesmo tempo, conforta, na medida em que a partir de agora nenhum homem poderá dar à sua honra, ao menos em nossos tribunais, mais valor do que a vida de uma pessoa, até porque, quem assim pensa, sequer honra tem a ser defendida.

Esse é um dos diversos e importantes passos dados pela sociedade e pelas Instituições brasileiras em busca da igualdade plena entre homens e mulheres. Chegará o dia em que olharemos para esses fatos e sentiremos a distância das atrocidades vividas pelas mulheres neste país, pois, sim e, de fato, todos serão verdadeiramente iguais em direitos e obrigações diante não só da lei, mas da sociedade como um todo.


[1] Fonte: RESENDE, Rodrigo. STF decide proibir uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/08/01/stf-decide-proibir-uso-da-tese-de-legitima-defesa-da-honra-em-casos-de-feminicidio#:~:text=contra%20a%20mulher-,STF%20decide%20proibir%20uso%20da%20tese%20de%20leg%C3%ADtima%20defesa%20da,Weverton%20(PDT%2DMA). Acesso: 30.08.23.

[2] Os primeiros núcleos em defesa dos ideais feministas surgiram no Brasil no século XIX. Já no século XX, houve uma diversificação dos feminismos no Brasil, que iam desde uma tendência mais conservadora (feminismo “bem-comportado”) até o feminismo mais incisivo. No entanto, foi em 1960 que o movimento ganhou força, reafirmando a necessidade da luta contra “opressões sistemáticas”. Fonte: Feminismo no Brasil. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/feminismo.htm#:~:text=Entre%20as%20d%C3%A9cadas%20de%201930,pelo%20governo%20de%20Get%C3%BAlio%20Vargas. Acesso em 12.09.2023.

[3] Decisão proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, registrada sob nº ADPF 779, requerente Partido Democrático Trabalhista.

[4] Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Precisamos falar sobre Violência Contra as Mulheres. Disponível em: https://www.defensoria.rs.def.br/upload/arquivos/202303/08151229-precisamos-falar-sobre-violencia-contra-a-mulher.pdf . Acesso 30.08.23.

[5] De acordo com dados que constam na decisão, 40% de todos os assassinatos de mulheres registrados no Caribe e na América Latina, ocorrem no Brasil; no Estado de São Paulo, a cada 60 (sessenta) horas, uma mulher é vítima de feminicídio; de acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, entre 2014 e 2018, a cada 4 (quatro) minutos, uma mulher foi agredida por um homem no Brasil; 1 (um) feminicídio a cada 7 (sete) horas no Brasil.

[6] O adultério deixou de ser crime no Brasil apenas em 2005, com a edição da Lei 11.106/2005.

[7] Fonte: Assassinato de Ângela Diniz. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/assassinato-de-angela-diniz/noticia/assassinato-de-angela-diniz.ghtml . Acesso em 12.09.2023.

[8] Importante esclarecer, neste ponto, que houve comoção apenas de uma parte da população, já que muitos foram os apoiadores de Doca, dentre eles muitas mulheres, que não estavam de acordo com o modo de vida escolhido por Ângela. As pessoas chegaram, inclusive, a fazer camisetas com a foto de Doca para apoiá-lo.

[9] Os crimes contra a vida são julgados no Brasil pelo Tribunal do Juri. A plenitude da defesa é princípio essencial à instituição do Tribunal do Juri e está disposta, na Constituição Federal, no rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXVIII, a). Por meio deste princípio, restou assegurado aos réus a apresentação de argumentos jurídicos e não jurídicos (morais, políticos, sociológicos etc.) para a formação do convencimento dos jurados.


[1] Mais informações: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690


Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.