Luis Henrique B. Braido

Recuperação Judicial e Falência

Luis Henrique B. Braido[i]

O processo de falência empresarial foi profundamente reformulado pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que substituiu o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Essa legislação regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, excluindo as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as instituições financeiras, as cooperativas de crédito, os consórcios, as entidades de previdência complementar, as operadoras de planos de assistência à saúde, as companhias seguradoras e as sociedades de capitalização. O texto recebeu alguns aprimoramentos por meio da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Atualmente, discute-se no Senado o Projeto de Lei nº 3/2024, já aprovado na Câmara de Deputados, o qual amplia o poder de ação de credores em caso de falência. Neste artigo, descreverei os principais aspectos da legislação vigente, com ênfase na questão de alinhamento de incentivos; discutirei alguns dos impactos econômicos derivados da mudança da Lei em 2005; e comentarei a proposta legislativa em discussão no Senado.

Inicialmente, convém esclarecer que a recuperação judicial visa superar a crise do devedor e permitir a manutenção da produção, do emprego e dos interesses dos credores, de modo a preservar a empresa e sua atividade econômica (art. 47, Lei nº 11.101/2005). A falência, por sua vez, promove o afastamento do devedor de suas atividades e busca liquidar a empresa inviável de modo a realocar eficientemente seus recursos na economia (art. 75, Lei nº 11.101/2005, modificado pela Lei nº 14.112/2020).

O processo de recuperação judicial se inicia por pedido do devedor, acompanhado de um plano de recuperação a ser analisado pelo juízo local, sendo facultado aos credores propor plano alternativo. O deferimento do processo de recuperação judicial ou a decretação da falência suspendem as execuções ajuizadas contra o devedor e proíbem a apreensão de seus bens, relativamente às obrigações sujeitas à recuperação judicial.

O devedor pode também negociar com seus credores um plano de recuperação extrajudicial, a ser homologado pelo juízo local. Tal plano não pode contemplar o pagamento antecipado de dívidas nem o tratamento desfavorável aos credores não participantes. Os créditos tributários não estão sujeitos ao processo extrajudicial. A inclusão de créditos trabalhistas e por acidentes de trabalho requer negociação coletiva com sindicatos. A sentença de homologação desse plano constitui título executivo judicial.

Os arts. 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005 promovem uma classificação de créditos para orientar o pagamento dos valores devidos em caso de falência. Por ordem de prioridade, tem-se: (i) os créditos extraconcursais previstos no art. 84; (ii) os créditos trabalhistas, limitados a 150 salários mínimos, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho; (iii) os créditos gravados com direito real, até o limite do valor do bem gravado; (iv) os créditos tributários; (v) os créditos quirografários e demais créditos, incluindo os saldos remanescentes dos créditos trabalhistas e gravados com direito real; (vi) as multas contratuais e penas pecuniárias; (vii) os créditos subordinados e aqueles contraídos com sócios e administradores sem vínculo empregatício; e (viii) os juros vencidos após a decretação da falência.

Dessa forma, os créditos gravados com direito real possuem considerável grau de prioridade, estando à frente dos créditos tributários, até o limite do bem gravado, e atrás dos créditos extraconcursais, trabalhistas (com limite de valor) e decorrentes de acidente de trabalho. A ordem de recebimentos em caso de falência determina os incentivos dos credores na fase de recuperação judicial. A depender da situação econômico-financeira do devedor, da composição de seus débitos e do valor dos ativos passíveis de liquidação, os credores terão maior ou menor interesse em recuperar a empresa, com eventual divergência entre eles.

O passo seguinte de um processo de recuperação judicial ou de falência é a verificação de créditos, realizada pelo administrador judicial, um profissional especializado e idôneo nomeado pelo juízo responsável. Esse trabalho deverá ser supervisionado pelo Comitê de Credores constituído por um representante indicado por cada uma das seguintes classes de credores: (i) trabalhistas; (ii) com direitos reais de garantia ou privilégios especiais; (iii) quirografários e com privilégios gerais; (iv) microempresas e empresas de pequeno porte.

Esse Comitê se reúne em Assembleia de Credores, convocada pelo juízo responsável e presidida pelo administrador judicial, cujas decisões devem ser ratificadas por representantes de mais da metade do valor dos créditos presentes.

Deve-se registrar que a composição do Comitê de Credores não reflete exatamente as categorias de classificação dos créditos em caso de falência. Ressalte-se, em particular, a não inclusão de representante da classe de créditos tributários e a inclusão de representante de microempresas e empresas de pequeno porte, independentemente da classificação de seus créditos.

Impactos Econômicos

Ao instituir o processo de recuperação judicial com o objetivo de manter a produção, o emprego e os interesses dos credores, a legislação brasileira busca sopesar os interesses de diferentes partes interessadas (stakeholders). A preservação de empresas eficientes e a manutenção de suas atividades econômicas são certamente benéficas aos consumidores, aos trabalhadores e aos sócios e acionistas. Adicionalmente, esse objetivo pode ser também do interesse dos credores, especialmente dos detentores de créditos com menor prioridade na falência, uma vez que parte relevante do valor de uma firma se deve a sua estrutura organizacional e a investimentos afundados, sem valor comercial significativo em caso de desfazimento da empresa. Em caso de falência, o máximo que os credores podem recuperar é o valor de alienação dos ativos do devedor, geralmente muito inferior ao valor de mercado da empresa recuperada.

A literatura econômica sobre inadimplência demonstra ser socialmente desejável haver balanceamento das garantias aos credores e aos devedores. Garantias aos credores estimulam a concessão de crédito e, assim, afetam positivamente a expansão da produção. Entretanto, na impossibilidade de se segurar contra todos os possíveis eventos adversos, a previsão de punições excessivas ao devedor levaria os investidores a reduzir sua exposição a empreendimentos arriscados, diminuindo a demanda por crédito e o crescimento econômico.

Nesse sentido, convém destacar que, nos processos de recuperação judicial e de falência, os sócios e os acionistas podem perder todo o valor investido e só fazem jus a algum direito sobre a empresa após os demais créditos terem sido honrados. Nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas, os sócios e os acionistas gozam de responsabilidade limitada e, portanto, não comprometem seus bens pessoais, exceto em caso de desconsideração da personalidade jurídica por abuso, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme previsto no art. 50 do Código Civil[ii]. Esse foi o equilíbrio encontrado na ampla maioria das economias capitalistas para sopesar garantias a credores e devedores.

Do ponto de vista financeiro, a boa estruturação dos processos de recuperação judicial e de falência, com etapas bem definidas e atenção aos interesses dos credores, tende a ampliar os incentivos à oferta de crédito corporativo, com consequente expansão do volume emprestado e redução dos spreads. De fato, no período que seguiu a aprovação da Lei nº 11.101/2005, verificou-se uma considerável expansão de crédito corporativo de longo prazo e redução de spreads. Entretanto, outros aprimoramentos legais contemporâneos podem ter tido relevância nessa expansão do crédito de longo prazo, a exemplo das modificações nas regras para créditos imobiliários e agropecuários promovidas, respectivamente, pelas Leis nº 10.931/2004 e 11.076/2004. Adicionalmente, esse período também contou com significativos estímulos públicos ao crédito de longo prazo, incluindo crédito subsidiado por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tornando difícil atribuir os efeitos documentados apenas às novas legislações.

Projeto de Lei

Em janeiro deste ano, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de projeto de lei, elaborado pelo Ministério da Fazenda, com alterações no instituto da falência empresarial. A proposta tramitou na Câmara de Deputados como Projeto de Lei nº 3/2024 e, atualmente, encontra-se em discussão no Senado.

A exposição de motivos apresentada pelo Ministério da Fazenda discorre sobre a necessidade de se imprimir maior celeridade e eficiência ao processo de falência. A mesma justificativa aparece no parecer da deputada federal relatora do projeto. Em breve síntese, o texto aprovado na Câmara de Deputados modifica as regras de remuneração do administrador judicial, estabelecendo teto global de dez mil salários-mínimos para a totalidade das remunerações na recuperação judicial ou na falência, além de limites percentuais máximos por faixas de valores devidos aos credores na recuperação judicial ou efetivamente pagos a eles na falência.

Adicionalmente, na falência, o projeto de lei confere à Assembleia de Credores a prerrogativa de, a qualquer tempo, substituir o administrador judicial por um gestor fiduciário, a fim de otimizar a alienação dos ativos, ou de simplesmente retirá-lo, deixando a indicação de substituto ao juízo responsável.

O texto também proíbe o administrador judicial na fase de recuperação de atuar como administrador judicial ou gestor fiduciário na fase de falência; impede que este atue em mais de um processo na mesma jurisdição, com valor superior a cem mil salários-mínimos, em até dois anos do término de seu mandato; e veda sua atuação simultânea em mais de quatro recuperações judiciais e quatro falências.

Essas mudanças, a meu ver, aprimoram a legislação brasileira, conferindo mais segurança aos credores, especialmente nos casos de falência. Deve-se esperar, entretanto, forte reação corporativa a elas, especialmente em relação às restrições de atuação e de remuneração dos administradores judiciais e à prerrogativa da Assembleia de Credores de substituí-lo, na falência, por um gestor fiduciário.

No contexto da discussão de possíveis aprimoramentos à legislação de falência, convém apontar para aspectos concorrenciais associados à alienação de ativos. Em seu art. 75, a lei preconiza a “liquidação célere de empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia”. Essa preocupação com a eficiência alocativa de recursos se coaduna com os ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência e repressão ao abuso do poder econômico. Isso é importante porque, em mercados concentrados, o maior concorrente tende a ser aquele com maior valoração para os bens alienados, pois a incorporação ajudará a consolidar seu poder dominante. Entretanto, essa troca nem sempre é a melhor realocação dos recursos na economia, posto que o exercício de poder dominante costuma gerar ineficiência alocativa e reduzir o bem-estar social.

Naturalmente, a alienação de ativos, quando significativa, precisará passar pelo controle de concentrações exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Porém, considerando a importância da celeridade do processo, seria interessante incorporar preocupações concorrenciais nas diretrizes gerais para a alienação de ativos.

Essa é uma preocupação abstrata, mas que possui correspondência concreta. Deve-se recordar, por exemplo, que duas das três principais companhias aéreas com atuação em voos domésticos se encontram em recuperação judicial. Não me parece ser do interesse da sociedade brasileira que, caso necessário, elas venham a alienar seus ativos para a empresa líder de mercado sem antes considerar e priorizar compradores alternativos, tais como companhias regionais ou entrantes no mercado brasileiro.


[i] Agradeço os comentários de Flávio Moraes e Paulo Riscado Jr.

[ii] Esse entendimento sobre a responsabilidade limitada tem sido flexibilizado, especialmente em processos trabalhistas, previdenciários e ambientais.


Luis Henrique B. Braido. Possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo (1995), mestrado em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV/EPGE, 1998) e pela Universidade de Chicago (2000), e doutorado em Economia pela Universidade de Chicago (2002). Atualmente, é professor associado da FGV/EPGE e foi Conselheiro do CADE.


Reforma Tributária

Luis Henrique B. Braido

Aceitei, com grande satisfação, o convite da WebAdvocacy para ocupar este espaço periodicamente. Em linhas gerais, pretendo escrever sobre Law & Economics e Organização Industrial, além de apresentar meu ponto de vista sobre algumas das políticas públicas em debate, com especial atenção para as reformas econômicas, as regulações setoriais e a política antitruste.

Atualmente, uma das principais discussões legislativas no país trata da regulamentação da reforma dos tributos sobre o consumo. Penso ser interessante utilizar este primeiro artigo para explorar alguns aspectos menos discutidos dessa mudança. Adotarei a seguinte estrutura. Inicialmente, descreverei os principais pontos da reforma, constantes na Emenda Constitucional 132, promulgada em 20 de dezembro de 2023, e no Projeto de Lei Complementar 68/2024, recentemente aprovado pela Câmara Federal e submetido à apreciação do Senado. Após esta breve descrição, apresentarei algumas preocupações quanto às escolhas feitas e analisarei os prováveis impactos dessas mudanças sobre o sistema produtivo e sobre nossa estrutura de competição.

A Emenda Constitucional 132/2023 prevê a adoção de um tributo sobre valor agregado de caráter dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A CBS destina-se a financiar os gastos da União e será cobrada em substituição ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). O IBS, por sua vez, destina-se ao financiamento dos entes subnacionais (i.e., o Distrito Federal, os Estados e os municípios), sendo cobrado em substituição ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre Serviços (ISS). A unificação desses impostos se dará gradualmente, com longo período de transição durante o qual todos os tributos conviverão.

A Emenda Constitucional também estabelece a existência de alíquotas de referência para a CBS e o IBS, além de três regimes diferenciados, com reduções de alíquotas de 30%, 60% e 100% (isenção). A alíquota de referência para o IBS será, inicialmente, idêntica para todos os entes subnacionais, os quais serão autônomos para aprovar mudanças de valor por meio de legislação específica. Os bens e serviços incluídos em cada um dos diferentes regimes mencionados serão regulamentados por legislação complementar, a exemplo do que faz o PLP 68/2024, ora em discussão. A composição de produtos em cada classe de alíquota será, portanto, idêntica para todos os entes da federação. Há previsão de avaliação quinquenal de custo-benefício dos regimes diferenciados.

Os regimes especiais e simplificados para microempresas e empresas de pequeno porte (Simples Nacional) serão mantidos. Lei complementar disporá sobre regimes específicos de tributação para diversas atividades econômicas, tais como: combustíveis e lubrificantes; serviços financeiros; operações com bens imóveis; planos de assistência à saúde; sociedades cooperativas; serviços de hotelaria; parques de diversão; agências de viagens; bares e restaurantes; sociedades anônimas do futebol; aviação regional; transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviário; e repartições consulares.

A EC 132/2023 estipula, ainda, que legislação complementar estabeleça mecanismos para a preservação do diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus e às áreas de livre comércio existentes em 2023, a saber: Tabatinga, no Amazonas; Guajará-Mirim, Boa Vista e Bonfim, em Rondônia; Macapá e Santana, no Amapá; e Brasiléia, Epitacolândia e Cruzeiro do Sul, no Acre.

Para esse fim, o Projeto de Lei Complementar 68/2024 reduz a zero, a partir de 2027, a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os produtos que não foram efetivamente industrializados na Zona Franca de Manaus no ano de 2023. Para os demais produtos, incidirá IPI quando fabricados fora das áreas incentivadas.

Adicionalmente, o Projeto de Lei isenta da cobrança de CBS e de IBS as aquisições de bens intermediários utilizados no processo produtivo da indústria incentivada; regula a concessão de créditos presumidos sobre essas operações; autoriza a apropriação e utilização de créditos relativos a operações antecedentes; e concede crédito presumido na venda de seus produtos em território nacional. Tais créditos poderão ser utilizados apenas para compensação de CBS e de IBS, sendo vedada a compensação de outros tributos ou o ressarcimento.

Imposto Seletivo

Outro aspecto tratado no PLP 68/2024 é a regulamentação do Imposto Seletivo (IS) com incidência sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, conforme previsto no art. 153, VIII, da Constituição Federal de 1988. Esse tributo se assemelha à tributação defendida pelo economista inglês Arthur Pigou, no século XIX, sobre produtos geradores de externalidade negativa (no caso concreto, à saúde e ao meio ambiente). Tal tributo teria a finalidade de igualar o custo privado ao custo social de tais produtos e, assim, melhorar a eficiência alocativa diante dessa falha de mercado.

O Imposto Seletivo será cumulativo, não podendo ser compensado pelos demais elos da cadeia produtiva. Sua arrecadação será dividida entre a União e os entes subnacionais. O texto aprovado na Câmara Federal e, atualmente, em discussão no Senado prevê sua incidência sobre alguns tipos de veículos, embarcações e aeronaves; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas; e bens minerais extraídos.

Origem versus Destino

Diferentemente do atual modelo do ICMS e do ISS, restou estabelecido na EC 132/2023 que o IBS será calculado a partir da soma das alíquotas do Estado e do Município no qual ocorrer o consumo do produto (destino), ao invés daquelas vigentes no local de sua produção (origem). Desta forma, ao escolherem suas alíquotas de IBS, os entes subnacionais definirão os impostos incidentes sobre seus próprios consumidores e não mais, como é hoje, sobre os cidadãos de todo o país. Este aspecto da reforma tem o potencial de aproximar os eleitores dos legisladores responsáveis pela definição das alíquotas de IBS.

Além disso, a cobrança no destino elimina a chamada “guerra fiscal”, caracterizada pelo poder de se conceder isenções ou reduções seletivas de ICMS ou de ISS com o intuito de atrair firmas de outras localidades do país. Isso porque as alíquotas de CBS e de IBS independerão do local de produção do bem.

Método de Cobrança

O recolhimento de tributos sobre valor agregado ocorrerá em cada fase do processo produtivo, com compensação integral dos tributos já recolhidos nas fases anteriores, conforme estabelecido na EC 132/2023. Esse sistema de compensação evita a criação artificial de ganhos de consolidação de cadeias produtivas interestaduais. A tributação final ao consumidor será a mesma, seguindo a alíquota vigente no local de destino, independentemente do caminho percorrido pelo produto nas suas diversas fases de produção.

Uma “novidade” no sistema tributário brasileiro é o fato de as alíquotas da CBS e do IBS incidirem sobre o preço efetivamente recolhido pelo revendedor, sem esses impostos. Esse preceito tributário é denominado “método por fora”. Atualmente, no Brasil, vigora o “método por dentro” no qual o tributo incide sobre o preço final do produto pago pelo consumidor, com os impostos. Ou seja, no sistema atual, há cobrança de imposto sobre o próprio imposto.

Um exemplo pode ajudar a compreensão dessa questão. Consideremos um produto sobre o qual incida apenas ICMS – ignorar, nesse momento, a existência de outros impostos simplifica a explicação. No sistema atual, se o preço ao revendedor for 100 reais e a alíquota de ICMS for 20%, o preço final do produto será 125 reais, sendo 100 reais destinados ao revendedor e 25 reais destinados ao fisco (25 reais equivalem a 20% de 125 reais). No novo sistema, o imposto incidirá sobre o preço ao revendedor (100 reais) e não mais sobre o preço final (125 reais). Dessa forma, para arrecadar os mesmos 25 reais, precisaríamos de uma alíquota de 25% ao invés de 20%. Essa explicação é importante para se avaliar corretamente as discussões sobre os possíveis valores das alíquotas de referência.

A cobrança de imposto sobre o próprio imposto (“método por dentro”) é usada também para o ISS, o PIS e o COFINS. Trata-se de impostos sobre o faturamento total o qual já embute os próprios impostos. A multiplicidade de impostos incidindo sobre o preço final ou, equivalentemente, sobre o faturamento total gerou uma calorosa controvérsia tributária: A base de cálculo de um imposto deveria incorporar os demais impostos? Após longa discussão no judiciário, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a base de cálculo do PIS e do COFINS não deveria incluir o ICMS recolhido. O conteúdo prático dessa decisão foi incorporado na Lei 14.592/2023.

Assim, segundo a interpretação que predominou no Brasil, apesar de haver incidência de um imposto sobre ele mesmo (“método por dentro”), não deveria haver incidência cumulativa das contribuições federais sobre o imposto estadual. Entretanto, a partir dessa decisão, nascem diversas outras questões tributárias. Por analogia, não deveríamos excluir o PIS e o COFINS da base de cálculo do ICMS? O ISS também não deveria ser excluído da base de cálculo do PIS e do COFINS e vice-versa? E por que não excluir o PIS da base de cálculo do COFINS e vice-versa? Algumas dessas questões encontram-se, de fato, em disputa no sistema judiciário.

Felizmente, ao adotar o “método por fora”, o novo modelo tributário se desprende, definitivamente, dessas controvérsias. Não haverá mais cobrança de um tributo sobre ele mesmo, tampouco de um sobre outro. Para tanto, haverá ajuste no nível das alíquotas.

Múltiplas Alíquotas

Conforme já mencionado, a Emenda Constitucional que institui a reforma dos tributos sobre consumo previu a existência de três regimes diferenciados (com descontos sobre as alíquotas de referência), além de regimes específicos para diversas atividades econômicas. Nesse aspecto, o texto final se distanciou da concepção original da reforma, a qual comtemplava a adoção de alíquota única para todos os bens e serviços. Quais seriam os prós e contras de cada opção?

Do ponto de vista teórico, a melhor forma de se tributar o consumo – no sentido de gerar a menor distorção alocativa possível para um dado nível de arrecadação – seria através da fixação de alíquotas mais altas para produtos cujo equilíbrio de mercado fosse menos sensível a preço, por apresentarem demanda ou oferta menos elásticas. Isso porque, ao se impor um tributo sobre o consumo, cria-se uma diferença entre o preço pago pelo consumidor e aquele recebido pelo produtor, desestimulando a produção e o consumo. Quanto mais sensível um desses lados do mercado for à distorção tributária, maior o custo social do imposto, refletido na queda da produção, do consumo e, consequentemente, do bem-estar social. Devemos esse resultado teórico ao matemático e economista inglês Frank Ramsey, nascido no início do século XX e que, apesar de sua vida breve, deixou contribuições disruptivas nos campos de tributação e de crescimento econômico, além de trabalhos relevantes em matemática e filosofia.

Do ponto de vista prático, entretanto, alguns profissionais argumentam ser difícil mensurar tais elasticidades, além do fato de o debate parlamentar sobre alíquotas ser mais influenciado por lobbies setoriais do que por argumentos de eficiência alocativa.

Por um lado, o se permitir alíquotas diferenciadas e regimes específicos, abriu-se espaço para que alguns privilégios setoriais existentes no atual sistema sejam mantidos ou até ampliados. Isso, invariavelmente, recairá sobre a produção e o consumo dos setores não agraciados com os descontos. O sistema com uma só alíquota para todos os produtos resolveria esse problema. Entretanto, o custo social (“peso morto”) gerado por tal sistema unificado seria maior relativamente ao caso ideal, no qual as alíquotas fossem definidas de acordo com a teoria de Ramsey.

Difícil saber se o sistema desenhado constitui uma boa solução de compromisso. A consolidação de alíquotas proposta simplificará a estrutura atual, reduzindo o espaço para disputas judiciais. Incomoda-me, entretanto, o grande número de setores com regimes específicos; a existência de setores completamente isentos; e o fato de o debate sobre os descontos de alíquotas estar baseado, quase que exclusivamente, em argumentos redistributivos, ignorando-se os aspectos de eficiência alocativa.

Pessoalmente, penso que a tributação de rendimentos e a alocação do gasto público sejam formas mais adequadas de se promover redistribuição de renda. Além disso, no âmbito da reforma, já existe a previsão de devolução personalizada de tributos aos membros de grupos sociais vulneráveis, por meio da adoção de programa de “cash back”. A execução desse programa demandará cuidados para se evitar fraudes, tais como a compra com isenção, utilizando a identidade de indivíduos beneficiados pelo programa, para posterior repasse a famílias não beneficiadas. Resolvidas essas questões de ordem prática, a restituição a consumidores selecionados me parece ser uma forma mais direta de se promover redistribuição. Descontos e isenções universais, contemplando todos os consumidores, retiram o foco da política redistributiva e reduzem seu impacto sobre os mais necessitados.

Impactos Econômicos

A reforma tributária em discussão possui pelo menos dois pilares com importantes impactos econômicos. Primeiramente, a simplificação do sistema – com a adoção de menor número de alíquotas, de maior uniformidade de regras e de maior amplitude na compensação de tributos recolhidos em diferentes fases do processo produtivo – facilitará o cumprimento das obrigações tributárias, fortalecerá o ambiente de negócios e, possivelmente, reduzirá a evasão fiscal e a informalidade.

Em segundo lugar, a cobrança no local de consumo do produto (destino), ao invés de seu local de produção (origem), padronizará a tributação de bens produzidos em diferentes localidades, favorecendo significativamente a livre concorrência no mercado de destino.

Adicionalmente, esse aspecto da reforma eliminará relevantes ineficiências geradas pelo conflito tributário entre regiões do país. Do ponto de vista industrial, a localização ideal para se produzir algo deveria minimizar os custos de produção, incluindo o transporte dos insumos e a distribuição do produto final. Uma vez verificada a disponibilidade local de serviços essenciais, tais como energia elétrica e telecomunicação, a decisão de onde instalar uma planta produtiva deveria depender dos custos de se atrair mão de obra qualificada, da localização de fornecedores e de consumidores, bem como do acesso a diferentes modais de transporte. Desviar-se dessa lógica por razões de natureza tributária produz ineficiência técnica e alocativa, aumentando os custos de produção e, consequentemente, os preços aos consumidores. A reforma ataca esse problema de forma direta, apesar de contemplar um período de transição longo e de manter os incentivos à produção industrial de determinados produtos em áreas específicas da região Norte, geralmente distantes de fornecedores e de consumidores.

Por fim, convém destacar que o término dos conflitos regionais para atrair empresas (“guerra fiscal”) não eliminará a saudável competição tributária entre os entes subnacionais. A decisão sobre as tarifas de IBS possui impacto direto no bem-estar da população local, além de constituir importante vetor de atração de novos habitantes. O novo sistema tributário permite a convivência de regiões com maiores ou menores níveis de impostos e de provisão de serviços públicos, com efeitos exclusivos aos habitantes locais.