Investimentos em risco: o ciclo vicioso da política fiscal brasileira – contingenciar em vez de reformar
Katia Rocha
Recentemente, o governo federal publicou Decreto que bloqueia R$ 31,3 Bilhões no Orçamento de 2025 para atender às regras estabelecidas pelo novo arcabouço fiscal. O corte impacta diversos Ministérios e ameaça diversos programas, como o Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e outros investimentos públicos. O contingenciamento pode ainda ser insuficiente em vista da reversão do Decreto que majorava o IOF com estimativa de arrecadação da receita adicional de R$ 20,5 bilhões.
Mais uma vez, sacrifica-se o espaço orçamentário de investimentos em nome da urgência fiscal. Evita-se o enfrentamento direto das causas estruturais do desequilíbrio e recorre-se a soluções paliativas de contingenciamentos diversos.
O contingenciamento tornou-se o instrumento recorrente e informal da política fiscal brasileira. Diante da rigidez de gastos obrigatórios e da resistência política a reformas estruturais, o governo corta, invariavelmente, despesas discricionárias — as únicas sob seu controle imediato, impactando, em especial, investimentos em infraestrutura. Um erro recorrente, uma vez que o ajuste deveria se concentrar em preservar os investimentos, essenciais para estimular o crescimento de médio e longo prazo e para uma consolidação fiscal bem-sucedida e sustentável, em especial, nas economias em desenvolvimento como o Brasil.
É consenso que a infraestrutura deficiente, seja em capital físico ou qualidade de serviços, representa um dos principais entraves a produtividade e ao desenvolvimento no Brasil. Para que os países em desenvolvimento alcancem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e impulsionem o crescimento econômico, estima-se que seriam necessários investimentos em infraestrutura equivalentes a 4,5% do PIB ao ano[1]. No Brasil, entretanto, os investimentos em infraestrutura, somando as fontes públicas e privadas, mal superam 2% do PIB aa, gerando uma lacuna anual de cerca de 2,5% PIB aa[2].
Vale lembrar que instrumentos como concessões e parcerias público-privadas também permanecem limitados na ausência de uma âncora fiscal crível e de uma governança eficiente do gasto, com sucessivos contingenciamentos. Trata-se de um ciclo vicioso (ao contrário de virtuoso) que compromete a capacidade de planejamento e entrega de infraestrutura de qualidade, desestimulando, inclusive, a participação do setor privado (efeito crowding in).
Essa conduta fiscal mina a credibilidade da política fiscal e enfraquece o planejamento de longo prazo. Contingenciar em vez de reformar, prática reativa e pouco transparente, vai na contramão das principais recomendações internacionais para o Brasil.
Segundo o FMI, em seu relatório mais recente de 2024 sobre o Brasil (Article IV Consultation – IMF Country Report), é necessário um “esforço fiscal sustentado e ambicioso, que abra espaço para investimentos prioritários”.
A OCDE, no Economic Survey Brazil 2023, vai na mesma direção: alerta que o país precisa de reformas estruturais de forma a “garantir a sustentabilidade fiscal enquanto cria espaço para investimentos sociais e em infraestrutura”.
Ambas as instituições reforçam a urgência de reformas estruturais (tributária consumo, tributária renda, administrativa, revisão de subsídios e gastos tributários, eficiência dos gastos públicos, integração entre planejamento e execução orçamentária, abertura comercial e integração global) para romper com o padrão de contingenciamento.
As recomendações enfatizam a revisão de subsídios ineficientes, e a adoção de um orçamento de médio prazo que aumente a previsibilidade fiscal. Destacam ainda a importância da definição de marcos anuais e de um cronograma para o plano de infraestrutura de longo prazo, a fim de facilitar o monitoramento, o controle e a responsabilização, além da necessidade de reduzir a rigidez e a indexação excessiva do orçamento. Finalmente, recomendam a necessidade de maior eficiência alocativa dos gastos públicos — priorizando o “gastar bem” em vez do “gastar muito” como bem lembra o FMI em seu livro ‘Well Spent: How Strong Infrastructure Governance Can End Waste in Public Investment’. Estima-se que a governança aumente a eficiência do investimento público entre 32% e 42% nas economias emergentes. Ou seja, cresce-se mais gastando-se menos.
As recomendações acima se alinham às análises recentes da Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal (Maio 2025):
- Revisão de gastos obrigatórios e subsídios ineficientes, reavaliar vinculações e indexações automáticas que comprimem o orçamento discricionário, reduzir subsídios regressivos e com baixa efetividade;
- Aprimoramento da governança do gasto, fortalecer mecanismos de avaliação de políticas públicas (spending review), priorizar o “gastar bem” em vez do “gastar mais”;
- Implementação de orçamento de médio prazo, estabelecer metas e projeções fiscais plurianuais vinculadas ao planejamento de longo prazo; e
- Transparência e previsibilidade, evitar mudanças frequentes nas regras fiscais e ampliar a clareza nas projeções e nos riscos fiscais explícitos e implícitos.
Contingenciar pode ser necessário, mas jamais pode ser a regra de condução da política fiscal. O Brasil precisa sair do ciclo vicioso em que não se ajusta por escolha, mas contingencia por exaustão. Sem reformas, seguiremos sacrificando o futuro para estancar o presente. E nenhum país em desenvolvimento cresce cortando investimentos, essencial para o desenvolvimento econômico e social.
[1] Ver Rozenberg,Julie; Fay,Marianne. Beyond the Gap: How Countries Can Afford the Infrastructure They Need while Protecting the Planet. World Bank Group.
[2] Ver Livro Azul da Infraestrutura – ABDIB 2024.
Katia Rocha. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. É colunista da WebAdvocacy (página).
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