Katia Rocha

Evidências para uma Agenda Econômica Positiva e os Malefícios das Intervenções nas Agências Reguladoras

Katia Rocha

Há cerca de 5 anos foi publicada a Lei 13.848/19, que instituiu o novo Marco Legal das Agências Reguladoras no Brasil, com a atualização de regras de gestão, organização, processo decisório e controle social, trazendo diversos aperfeiçoamentos em direção à uma maior segurança jurídica, transparência e governança das instituições. As diretrizes avançaram no sentido de reforçar a autonomia institucional e financeira das autarquias, com previsão dos mecanismos de independência técnica e institucional necessária. Uma agenda estrutural positiva e relevante para todos: sociedade, agentes públicos e investidores privados.

No entanto, na arena política ainda presenciamos a persistência de certa dicotomia no tocante à independência técnica das agências, em diversas frentes. Para citar apenas alguns exemplos recentes, a Emenda 54/2023 que previa criação de “conselhos” que retiravam poder e autonomia das agências reguladoras, as tentativas de “retrocessos e mudanças” acerca do Marco Legal de Saneamento, o PDL 94/2022 cuja finalidade era “impossibilitar homologações” da Aneel no tocante a reajustes tarifários, o PDL 365/2022 revogando todo trabalho técnico da Aneel sobre “sinal locacional”, e mais, recentemente, a controvérsia sobre o Ofício 368/2024 do MME sobre “intervenção na Aneel”.

Nesse sentido, é pertinente argumentar e destacar os dados, estimativas e recomendações de políticas públicas de diversos think tanks (FMI, OCDE. etc) em prol do desenvolvimento de um robusto arcabouço regulatório e de governança. Há inúmeras evidências a favor da agenda de Pilar Regulatório e Governança para tratar a política regulatória, gestão e governo como um todo, com foco nas melhores práticas internacionais, abrangendo o fortalecimento das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira de forma a perseguir maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos.

Como principal referência deste artigo, destaco o recente relatório anual do FMI da economia Brasileira (Brazil: 2024 Article IV Consultation) publicado mês passado, que dentre diversas sugestões de políticas e reformas estruturais, apresenta em seu Anexo 2, um modelo econométrico que estima os determinantes do fluxo de Investimento Externo Direto (IED) para os emergentes e para o Brasil.

O modelo do tipo painel efeito fixo (push x pull), agrega dados de 28 economias emergentes entre 1990-2023, e conclui que as características estruturais do país, dentre as quais faz-se menção à qualidade regulatória e governança institucional, desempenharam papel significativo e relevante na atração de IED para os emergentes, incluindo Brasil, sendo, atualmente, seu principal driver (Figura 1 abaixo).

O relatório corrobora que as características institucionais dos países (como abertura comercial e conta de capital, qualidade regulatória e governança) potencializaram maior fluxo de IED, com efeitos superiores às variáveis comuns globais, como aversão ao risco global, liquidez internacional, ou variáveis de fundamentos cíclicas, como diferenciais de crescimento e inflação. Fato é que o Pilar Regulatório e as características institucionais de Governança aumentaram a preferência de estrangeiros por investimentos no Brasil, principalmente após a crise financeira global de 2008[1]. O fluxo de IED no Brasil passou de uma média de 1.3% do PIB antes de 2009, para cerca de 2.7% do PIB entre 2010-2023, com os setores de energia, incluindo as renováveis, recebendo fluxos substanciais, vindos, principalmente, da Europa e América do Norte. Como proporção de market share o Brasil recebeu uma média de cerca de 40% dos fluxos anuais de IED para a América Latina e cerca de 9% considerando todas as economias em desenvolvimento.

O relatório também relaciona a agenda regulatória positiva aos dividendos de crescimento e à sustentabilidade fiscal. Avançar nas reformas estruturais relacionadas à abertura comercial, regulação e governança tem potencial de aumentar o crescimento do país em cerca de 1% do PIB ao ano[2], conforme a ilustra a Figura abaixo.

Essa dinâmica virtuosa não é nova. Diversos estudos[3], há tempos, demonstram a relação positiva entre as características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda per capita. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção) está associada a um maior desenvolvimento econômico e social.

Dessa forma, o Pilar Regulatório é cada vez mais visto como complementar de fato às políticas macroeconômicas e fiscais. Uma agenda institucional positiva dialoga e promove os objetivos de sustentabilidade fiscal, ao potencializar uma diminuição nos indicadores do endividamento público, proporcionando um menor risco país e, por conseguinte, menores juros.

O empenho para melhorar o ambiente de negócio, diminuir o custo país e aumentar a produtividade é extenso e contínuo. Os embates persistentes às entidades reguladoras vão na contramão de toda agenda positiva de Estado, e acabam por prejudicar os esforços já empregados seja com o novo arcabouço fiscal, seja com a reforma tributária de consumo (VAT) e sua regulamentação, ou ainda, para com as futuras reformas estruturais, como a reforma tributária de renda, administrativa, previdenciária, etc.

Sigo acreditando que dados, evidências e comparação por pares são extremamente úteis em manter as conquistas obtidas, e, seguir caminhando em direção à agenda positiva para o desenvolvimento econômico e social do país.  


[1] Resultado semelhante considerando o arcabouço regulatório como driver do volume de investimentos privados em infraestrutura (PPI) (Capex e outorgas) e o números de projetos de PPI para 18 economias emergentes entre 2000-2018 é apresentado no Texto de Discussão Ipea 2584 (2022).

[2] Estimativas semelhantes ao relatório OECD Economic Surveys: Brazil (2023)

[3]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Hidrogênio Verde: Estimativa da Produção Brasileira em 2030 e a Chamada Estratégica PDI 023/2024 da Aneel

Nelson Siffert e Katia Rocha

O hidrogênio, elemento químico mais abundante no universo, cuja produção mundial é da ordem de 95 Mt/ano, há mais um século tem sido produzido em larga escala, fazendo uso de combustíveis fósseis (gás natural e carvão), com base no processo SMR (Steam-Methane Reforming), com emissões de cerca 8 tCO2/tH2.  A indústria do hidrogênio de baixo carbono, por outro lado, onde a mesma molécula é produzida com níveis de emissões diretas próximas de zero, pode ser considerada uma indústria nascente, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.  Agentes públicos e privados, neste contexto, balizam suas expectativas, reduzem as incertezas e direcionam suas ações, tomando como referência marcos (milestones) de médio e longo prazo, que expressam expectativas de crescimento do mercado.

O ano de 2030 pode ser tomado como um importante marco temporal de médio prazo, sobre o qual é preciso construir uma visão que venha a ser compartilhada, considerada crível, pelos agentes públicos e privados, sobre metas e objetivos relacionados à produção e demanda de hidrogênio de baixo carbono. Enfim, é preciso que cadeia de valor se movimente de forma coordenada, visando objetivo comuns, com sincronismos de tempos e movimentos.

Desse modo, à luz da experiência internacional, qual cenário, em termos de volume de produção de hidrogênio de baixo carbono, o Brasil poderá alcançar em 2030? Quais etapas são necessárias superar?

As projeções da Agência Internacional de Energia (IEA) apontam que até 2030 é esperado que o mercado mundial do hidrogênio venha crescer 57%, em relação ao atual patamar de produção (95 Mt/ano), atingindo 150 Mt/ano. Deste total, 70 Mt é estimado que seja hidrogênio de baixo carbono, sendo 51 Mt com base na rota eletrolítica e 19 Mt com base no gás natural com captura de carbono (CCUS).

Os anúncios e intenções de investimento nesta indústria se multiplicam diariamente em todo o mundo, somando mais de 490 GW de capacidade de eletrolisadores Mas, como ressalta o IEA, apenas 4% deste montante tem se transformado em decisão final de investimento (FID). Este descompasso, entre os anúncios e intenções de investimentos, é observável nos principais mercado mundiais, bem como no Brasil.

A expansão do mercado dependerá nos próximos anos, em grande medida, da velocidade com que venha ocorrer: i) a precificação das emissões de carbono em setores específicos; ii) ganhos de escala na produção dos eletrolisadores, reduzindo o valor do Capex; iii) elevação dos indicadores de eficiência tecnológica ao longo da cadeia de valor; e iv) redução no preço das energias renováveis, especialmente, a eólica e solar fotovoltáica. A atuação destes vetores tem potencial para eliminar o gap de preços hoje existente entre o hidrogênio de baixo carbono, cujo custo nivelado de produção (LCOH) chega a superar US$ 4,5/kg de H2, contra US$ 1,5/kg de H2 de origem fóssil, a depender do preço do gás natural. A diferença de preços a depender da tecnologia empregada na produção de hidrogênio é o principal obstáculo à expansão da indústria.

Uma planta de produção de hidrogênio de 100 MW de capacidade, com geração própria de energia, em níveis próximos à demanda de energia do eletrolisador, representa um investimento da ordem de US$ 400 milhões. O volume de produção estimado alcança 15.000 t/ano, com demanda de energia de 850.000 MWh/ano, absorvendo toda a geração de energia de um parque renovável híbrido de 300 MW de capacidade.

Para os provedores de funding para um investimento desta ordem (100 MW), sejam eles acionistas ou credores, é preciso que os riscos estejam mitigados, incluindo o regulatório e financeiro. Um dos principais pilares é obter um contrato de longo prazo de compra e venda de hidrogênio de baixo carbono, em preços iguais ao maiores que o LCOH, onde a contraparte do offtaker apresente baixo risco de crédito. Não se verifica no mercado condições atrativas, tanto pela ponta compradora como vendedora, condições para que tais contratos venham ser celebrados visando grandes volumes de produção.

Neste contexto, estratégias gradualistas são aquelas em que projetos demonstração ou piloto, em menor escala, mas ainda assim em escala comercial, antecedem os projetos em larga escala, permitindo que seja observada, com menor grau de risco, a performance técnica, operacional, econômico-financeira e comercial. Uma vez demonstrada a sustentabilidade do modelo de negócios, estruturas de financiamento com base na modalidade de project finance são capazes de promover a escalabilidade tão desejada.

O uso do hidrogênio de baixo carbono, em projetos de menor escala, no mercado interno, a partir de relações bilaterais entre offtakers industriais e provedores de energia renovável, propiciam que aprendizados e novos conhecimentos sejam incorporados. 

A Chamada Estratégica PDI 023/2024 da Aneel para hidrogênio de baixo carbono deve ser observada com atenção. Mais de 60 empresas de transmissão, geração e distribuição demonstraram interesse em participar, estando aberta a possiblidade de se apoiar projetos-piloto em hidrogênio de baixo carbono com recursos não-exigíveis.

Sob a ótica da Aneel, procura-se avaliar os possíveis impactos que a expansão desta atividade poderá ter sobre o setor elétrico brasileiro. Para os empreendedores que atuam no setor elétrico brasileiro, a Chamada da Aneel é uma oportunidade excepcional no contexto brasileiro, à medida que contribui para reduzir o custo de capital dos projetos, ampliando as possibilidades para se viabilizar (match) o mercado entre produtores e offtakers de hidrogênio de baixo carbono. Certamente, modelos de negócios inovadores serão descortinados à medida que uma safra, de pelo menos uma dezena de projetos-piloto, iniciarem sua implantação física no próximo ano, distribuídos regionalmente, com diferentes arranjos técnico-operacionais, financeiros e comerciais.

O aprendizado a ser proporcionado por esta política pública em curso, somando-se a outras iniciativas na área da certificação, regulação e funding, como vem sendo sinalizado pelo PNH2 com os respectivos marcos temporais estabelecidos no seu plano de trabalho 2023-2025: i) até 2025, disseminar plantas piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do país; ii) até 2030 consolidar o Brasil como o mais competitivo produtor de hidrogênio de baixo carbono do mundo; e iii) até 2035 consolidar hubs de hidrogênio de baixo carbono no Brasil; serão determinantes para a decolagem da indústria do hidrogênio de baixo carbono no Brasil.

Sendo assim, o mercado interno deve ser priorizando antes de se voltar para o mercado externo. Não há atalhos para se chegar a projetos de larga escala. É preciso gradualismo e consistência. O espaço fiscal não permite experimentalismos. As estimativas para a produção brasileira de hidrogênio de baixo carbono em 2030 – da ordem de 200 kt/ano a 800 kt/ano – a depender da maturação das condições de contorno (redução do LCOH, precificação do carbono, redução do Capex) é equivalente, em seu limite superior, às estimativas do IEA (2023) e Hydrogen Council (2022).  Se vamos nos situar, em 2030, próximos do piso ou do teto desta banda, é uma questão em aberto.  

A Chamada Estratégica da Aneel, a despeito das limitações que apresenta, possui o condão de pôr em movimento a indústria de hidrogênio de baixo carbono no Brasil. Não é um jogo jogado, mas está em aberto. Não temos tempo a perder. Mais de 40 países já lançaram suas Estratégias Nacionais para o Hidrogênio. A janela de oportunidade para se estabelecer como um player relevante na cadeia de valor do hidrogênio renovável se fecha nos próximos anos, à medida que o Inflation Reduction Act – IRA  nos EUA e os Leilões de Hidrogênio na Europa avançam. Temos que nos focar em atingir marcos críveis e factíveis para a produção de hidrogênio renovável até 2030, no médio prazo, mas sem supor que haja atalhos nesta jornada.


* Diretor ICT – Resel. E-mail: nelson.siffert@ictresel.org.br

** Pesquisadora do IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br

Opções Reais e o Novo Modelo de Compartilhamento de Riscos da ANTT

Reflexões sobre o Leilão Vazio da BR 381/MG

Katia Rocha

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes anunciaram, recentemente, a perspectiva de realização de 13 novos leilões de concessões rodoviárias para 2024, perfazendo um total de R$ 110 bilhões em investimentos, valor em linha ao previsto no Novo PAC para novas concessões e concessões existentes, com capital privado.

A iniciativa tem o desafio de aumentar os investimentos no setor, conhecido por ensejar uma considerável lacuna de investimentos da ordem de 1,8% PIB ano, praticamente a metade da lacuna total de infraestrutura do país.

Faz parte de uma agenda maior para integração das estradas do país num sistema de transporte multimodal abrangente (que inclui os eixos ferroviários, hidroviários, portuários) de forma a melhorar a infraestrutura logística e aumentar a nossa produtividade e competitividade global.

A ANTT administra atualmente 24 concessões de rodovias, totalizando aproximadamente 13.000 km. Corresponde a apenas 13% da malha rodoviária federal total. Desse total, praticamente um terço apresenta, há tempos, problemas relacionados a obras paradas, processos de devolução ou relicitação[1].

É fato que o setor de transportes, enseja, em diversos países, um grande número de incidências em renegociações de contratos. Entre as melhores práticas internacionais para mitigação desse problema, a necessidade de uma matriz de alocação de riscos previsível e eficiente é fundamental, sendo, inclusive, parte das recomendações estruturais para Governança da Infraestrutura da OCDE.

Outras iniciativas contemplam: i) avanços na qualidade regulatória e no ambiente institucional; ii) melhor estruturação e modelagem dos projetos; iii) leilões de maior outorga ou híbridos em contraposição aos de menor tarifa; iv) indicadores de performance e regulação por incentivos; v) incentivos a concorrência e leilões competitivos; vi) arcabouço regulatório previsto em lei; vii) efetividade de governança, segurança jurídica, controle e responsabilidade; e viii) concessões de menor porte/trechos[2].

 No Brasil, inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco tem sido reportado como determinante de diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.  

Como forma de tratar essa questão, a ANTT aprovou, ao final de 2023, o relatório final de encerramento da Audiência Pública nº 013/2022, cujo objetivo foi destinado a aprimoramentos regulatórios no que tange ao novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT, a ser aplicada nos Contratos da 5ª Etapa de Concessão de Rodovias Federais.

Diversas estruturas de compartilhamento de riscos entre Poder Concedente e concessionária foram endereçadas na proposta. Relacionam-se às receitas e aos custos da concessão e abrangem o risco de demanda (tráfego), risco geológico, licenciamento ambiental, desapropriação e desocupação, custo de insumos e risco cambial. A possibilidade de compartilhamento foi vinculada à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária.

Regra geral, o racional tratou de diminuir as incertezas dos fluxos de caixa da concessão, com estabelecimentos de determinados intervalos ou bandas em torno das receitas requeridas esperadas (função da demanda pelo tráfego) ou regras para variações nos custos projetados em decorrência de riscos geológicos, desapropriações etc; no decorrer da vida útil do contrato.

Realizações dentro do intervalo dessa banda (em torno de 15% da receita esperada) são alocados exclusivamente à concessionária, e, fora deste intervalo, ou nos demais casos de riscos que afetam os custos do investimento, seriam alocados ou compartilhados com o Poder Concedente, em determinado montante, a depender do tipo específico e momento de ocorrência (como exemplo a alocação dos riscos geológicos ao Poder Concedente nos primeiros 2 anos da concessão, entre outros).

Dessa forma, o aprimoramento regulatório introduziu uma espécie de seguro (hedge) no contrato de concessão, no que tange às variáveis críticas incertas. Abordou, igualmente, a questão de incentivos e alinhamento do contrato, no sentido que o acesso ao seguro é condicional à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos pela concessionária (90% do Capex).

O conceito de estruturas de compartilhamento de risco para viabilizar decisões de investimento tem relação direta com os preceitos da Teoria das Opções Reais[3]. São modelos baseados no apreçamento de derivativos financeiros[4], aplicados a investimentos em ativos reais, como as concessões. Descrevem o comportamento do agente (investidor) na sua decisão de investimento e participação no certame, sob condições de incerteza. Ajudam o formulador de política pública no sentido de desenhar os incentivos adequados para maximizar e alinhar os objetivos pretendidos.

Tais modelos estabelecem uma relação (não-linear) entre a decisão de investimento (participação no certame e exercício da opção mediante desembolso do Capex/strike price) e as diversas incertezas embutidas nos fluxos de caixa da concessão (tráfego, risco geológico, desapropriação, etc).

Identifica critérios ótimos de decisão como a “cunha de investimento” (relação entre as receitas e os custos do investimento) a partir da qual deve-se prosseguir com o investimento. Nesses modelos, regras baseadas nas métricas de Valor Presente Líquido (VPL) ligeiramente positivos são inadequadas e insuficientes. É comum em diversos casos práticos, a “cunha de investimento” ser da ordem de 2, 3 ou mais para que o investimento se viabilize[5].

Uma concessão com custos de investimentos e obras estimados em R$ 10 Bilhões – a exemplo da BR 381/MG – pode muito bem requerer montantes de receitas bem superiores a esse valor para tornar a concessão atrativa e viável, a depender das incertezas existentes. De fato, mesmo com previsão de receitas tarifárias, da ordem de R$ 22 Bilhões[6] – “cunha de investimento” de 2,2 – o leilão da BR 381/MG em novembro de 2023 foi frustrado e não encontrou interessados. Foi dessa forma adiado e sujeito a reavaliações.

É possível que uma “cunha de investimento” maior fosse necessária. Há que se calcular. Os modelos existentes de opções reais são excelentes candidatos para se estabelecer este valor, sendo igualmente úteis para a análise de eventuais desenhos complementares de compartilhamento de riscos, e, para a própria análise de impacto regulatório (AIR).

Quanto maior a incerteza, seja nas receitas (demanda por tráfego), quanto nos custos de investimentos (risco geológico, desapropriação, etc) maior a “cunha de investimento” exigida[7]. Dessa forma, alocações de riscos que diminuam as incertezas (volatilidade) dos fluxos de caixa da concessão, seja através do estabelecimento de bandas de receita (ou tráfego), ou de estruturas de riscos que afetam os custos do investimento (compartilhamento de riscos geológicos etc), diminuem efetivamente essa “cunha”, e aumentam a atratividade da concessão.

Importante ressaltar que enquanto tais estruturas de compartilhamento de risco possibilitam maior atratividade (melhor relação de risco x retorno) para a concessão, possibilitando, inclusive, potencial de maiores deságios tarifários, implicam, igualmente, num aumento da distribuição do custo percebido pelo Poder Concedente, em igual montante ao seguro oferecido. Essa questão é levantada no Acórdão TCU 1142/2023, e será objeto de coluna posterior.

Em termos gerais, o desafio do formulador de políticas públicas consiste, portanto, em viabilizar concessões não atrativas ao menor custo possível desse seguro, tendo em conta todas externalidades positivas geradas pelo investimento, seja em termos do bem estar do usuário final, mas também, em termos de aumentos na produtividade, competitividade e desenvolvimento econômico.

Concluindo, o aperfeiçoamento regulatório apresentado pela ANTT é mais que meritório e endereça recomendações estruturais já debatidas na academia e nas melhores práticas internacionais, com efeitos positivos sobre o programa de novos leilões de concessões e sobre toda a agenda da infraestrutura logística do país, com vistas a aumentar a nossa produtividade, competitividade, crescimento econômico e social.


[1] Cabe menção aos contratos da terceira etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016

[2] Enquanto a média de trechos concedidos em leilões nos últimos 5 anos no Brasil foi de 410 km com 1 a 2 grupos participantes nos certames, na Colômbia essa média foi de 220 km com participação de 3 a 4 grupos nos certames. Ver detalhes em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi

[3] Ver Trigeorgis (1996).

[4] Ver Black e Scholes (1973) e Merton (1973).

[5] Ver Dixit and Pindyck (1994).

[6] Ver Acordão TCU 1142/2023.

[7] A lógica é similar ao efeito da volatilidade em uma opção (grega vega).


Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

Qualidade Regulatória e Crescimento – Os Riscos das Emendas sobre Prorrogação de Subsídios no PL das Eólicas Offshores

Katia Rocha 

Estamos observando, já faz algum tempo, diversas iniciativas na contramão de uma agenda positiva que deveria estimular segurança no atendimento à demanda, modicidade tarifária, competição e governança no setor elétrico.

Recentemente, o tema sobre prorrogação de subsídios para fontes incentivadas “ressuscitou” através de Emendas propostas pela Câmara de Deputados no PL das Eólicas Offshores. A questão trata do fim dos descontos na tarifa de uso para essas fontes, além de outras pautas. As emendas desconfiguram o projeto de iniciativa do Senado e incluem os já usuais “jabutis” que em nada dialogam com a “agenda verde” perseguida pelo Estado.

Segundo a ferramenta Subsidiômetro disponível na Aneel, apenas em 2023, os subsídios para fontes incentivadas corresponderam a R$ 9 Bilhões na conta do consumidor, praticamente um terço da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE. Esse montante equivale a mais que o dobro do subsídio direcionado à tarifa social de energia elétrica (R$ 4 Bilhões). 

A nova estimativa – caso o PL seja aprovado com essas emendas no Senado – eleva as tarifas de energia elétrica em R$ 39 bilhões por ano. Um valor expressivo sobre a já elevada tarifa de energia elétrica dos consumidores residenciais no Brasil, superior, inclusive, à média mundial. Uma contradição em vista da competitividade de nossa matriz elétrica renovável a baixo custo.

Oportuno lembrar que a Lei 14.120 / 2021 já havia disposto, faz dois anos, sobre o fim desses mesmos subsídios às fontes incentivadas. A iniciativa foi precedida de inúmeros debates que reuniram uma gama representativa de agentes – formulador de políticas públicas, entes privados, academia e sociedade como preconiza as melhores práticas institucionais. Cabe relembrar que a racionalização dos encargos e subsídios, e a avaliação criteriosa das políticas de subsídios, observando suas necessidades e por tempo determinado (Acordão TCU 2877/2019), faz parte da agenda de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado (PL 414 / 2021), sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Observamos, portanto, seis anos de esforços que compreendem consultas públicas, análises de impacto, debates envolvendo academia, em vão, uma vez que se modificam políticas setoriais, recentemente aprovadas, sem razoável coerência ou embasamento técnico. No sentido amplo de formulação de política pública, que vai além do regulador, o fato evidencia a baixa governança institucional e qualidade regulatória do país.

A Economia, no entanto, não perdoa e a Figura 1 ilustra bem esse ponto. Os dados corroboram a relação positiva entre qualidade regulatória[1] e a respectiva renda per capta para um conjunto de 160 países de baixa, média e alta renda em 2022.

Figura 1. Desenvolvimento Econômico e Social x Qualidade Regulatória

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Essa dinâmica não é nova. Diversos estudos[2], há tempos, demonstram a relação positiva entre características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção, entre outros) está associada a maior desenvolvimento econômico e social.

Em seu relatório Economic Surveys: Brazil 2020, a OCDE estima (via modelos de crescimento de longo prazo) que um choque positivo que aproxime os indicadores institucionais do Brasil à média dos países membros, teria potencial de aumentar em 5,9% seu PIB per capta. Juntamente com outras medidas, seria possível elevar a taxa de crescimento potencial em 0,9% ao ano em termos reais. Um aumento considerável.

Observando a evolução dos indicadores de qualidade regulatória da Figura 2, percebe-se que a posição atual do Brasil é baixa, inclusive na comparação com os pares latinos (Colômbia, México, Peru e Uruguai), se descolando destes a partir de 2012.

Figura 2. Evolução da Qualidade Regulatória: Brasil x LAC x OCDE

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Importante destacar que a estabilidade e consistência da qualidade regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional é um forte condicionante para atração do capital privado para investimentos, especialmente no setor de infraestrutura, com benefícios que envolvem desenvolvimento, produtividade, acesso à saúde e educação, criação de empregos e redução da pobreza e desigualdade.

Estimativas apontam que uma melhora no ranking de qualidade regulatória para o mesmo nível ocupado pelos pares emergentes latinos (posição 60) teria potencial de aumentar o fluxo de investimento privado em 0,8% do PIB ao ano[3].

Não à toa, na perspectiva da OCDE, a qualidade regulatória, no sentido amplo, é um pilar complementar às política macroeconômica e fiscal, para realização de objetivos institucionais, relacionados às boas práticas, e ao desenvolvimento econômico e social. Depreende-se que tão importante quanto o cumprimento da regra fiscal ou aprovação da reforma tributária, estão a estabilidade, consistência e memória regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional. Ter claro essa relação é de fundamental importância para o formulador de políticas públicas.


[1] Utilizou-se, no exemplo, o indicador de qualidade regulatória do WGI – Banco Mundial como proxy das características institucionais.

[2]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).

[3] Ver Rocha (2020), Rocha (2021)


Katia Rocha. Pesquisadora do Ipea. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto institucional do Ipea.


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Risco Regulatório, Governança e o PDL 365 sobre a TUST

Katia Rocha

A agenda para transição energética Brasileira, ao contrário dos países desenvolvidos, já parte de uma posição de destaque.  

A matriz elétrica Brasileira, uma referência mundial, apresenta participação de 85% de fontes renováveis, enquanto o mundo sequer alcança os 30%. Aparece em quarto lugar de capacidade instalada em renováveis, atrás apenas de China, Estados Unidos e Índia segundo dados da EPE

No entanto, a tarifa de energia elétrica, de cerca USD 0,163 kWh em 2023, não acompanha esse cenário virtuoso. Está acima da média mundial e de diversos países desenvolvidos e pares emergentes como ilustra a Figura 1. Um paradoxo.

Figura 1 – Tarifas de Energia Elétrica Residencial (kWh, U.S. Dollar)

Fonte: https://www.globalpetrolprices.com/electricity_prices/

Diversos são os motivos que podem explicar esse paradoxo. Um deles consiste nos encargos setoriais e subsídios de diversas políticas públicas implementadas ao longo dos anos, que, se somados aos impostos alcança, praticamente um terço da conta. Para se ter uma ideia, de acordo com dados da Aneel, o montante total de subsídios para 2023 é estimado em R$ 35 bilhões, sendo cerca de 29% para fontes incentivadas, 27% para conta CCC dos sistemas isolados, 18% para GD e 13% para tarifa social.

A racionalização dos encargos e subsídios, e a avaliação criteriosa das respectivas eficiências (Acordão TCU 2877/2019), faz parte da agenda de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado, sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Nesse sentido, o aperfeiçoamento metodológico das tarifas de uso do sistema de transmissão (TUST) pela ANEEL, a partir de 2023, com gradual intensificação do sinal locacional, é mais que meritória. Visa atribuir maiores encargos para os agentes que mais oneram o sistema de transmissão. Trata-se de uma correção da distorção verificada nos últimos anos, já documentada pela EPE, de modo a possibilitar uma sinalização de uso eficiente do sistema, como estabelecido na própria lei que instituiu a agência.

Um aprimoramento regulatório, objeto de extenso debate ao longo de 5 anos e 3 relatórios de análise de impacto. Caminha em direção a uma sinalização eficiente de preços, que evita subsídios cruzados e favorece a otimização da expansão do sistema de transmissão e da operação do sistema ao menor custo.

Na prática, os consumidores do Norte e Nordeste, que hoje pagam os valores mais altos de energia no país, mesmo estando próximos aos geradores de fontes incentivadas, poderiam ter uma redução na tarifa de energia elétrica.

No entanto, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 365/2022, que susta as resoluções da ANEEL sobre sinal locacional, foi recentemente aprovado na Comissão de Serviços de Infraestrutura, e, segue tramitando com sucesso em direção a Comissão de Constituição e Justiça e ao Plenário. A controvérsia opõe os geradores de renováveis (eólicas e solares) do Nordeste à ANEEL, MME além de associações e representantes dos consumidores de energia.

Não é de hoje que experimentamos essa dicotomia. Cada vez mais o Executivo perde seu protagonismo na definição de políticas públicas. Oportuno lembrar as tentativas recentes da Emenda 54/2023 que previa criação de “conselhos” que retirava poder e autonomia das agências reguladoras, e, do PDL 94/2022 cuja finalidade era “impossibilitar homologações” da ANELL no tocante ao reajuste tarifário anual da ENEL Ceará. Apropriado relembrar o reconhecimento da ANEEL em maturidade, transparência, qualidade regulatória e competências técnicas no relatório por pares (peer review) da OCDE.

Iniciativas como o PDL 365 impactam nosso risco regulatório, seja inicialmente do setor elétrico, mas com efeitos deletérios em todos os demais setores regulados da economia e ao país como um todo[1]. Afetam negativamente os indicadores de Governança (qualidade regulatória) e diminuem o volume de investimentos privados no setor de infraestrutura[2]. Reduzem nossa competitividade e produtividade, seja via um aumento no custo de capital requerido pelos investidores ou através postergações e cancelamentos de programas de investimentos[3].

Importante ressaltar que essas iniciativas vão na contramão de toda uma agenda do Estado Brasileiro – Lei das Agências Reguladoras, Lei das Estatais, entre outras – em direção à consolidação de um arcabouço regulatório propício aos investimentos em infraestrutura com maior segurança jurídica e perseguindo maior eficiência e qualidade na prestação de serviços.

O próprio lançamento do Novo PAC, que sinaliza grande parceria público/privada, a agenda de redução do Custo Brasil e o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG) tem como eixo principal as estruturas de Governança, que abrangem aperfeiçoamentos nas estruturas regulatórias e legais, com estabilidade, previsibilidade, transparência, análises de impactos, e incentivos a competição e concorrência.

Iniciativas como a do PDL 365, nocivas à agenda de Governança, também ajudam a explicar o paradoxo colocado no início desse artigo. A agenda positiva, que fortalece e respalda as estruturas de Governança, potencializa o impacto em direção ao crescimento e desenvolvimento social de forma consistente e no longo prazo.


[1] Ver Carrasco, Gustavo e Pinho (2014) e Bragança, Pessoa e Rocha (2014)

[2] Ver Rocha (2020), Rocha (2021)

[3] Ver FMI (2020).


Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do IPEA.


KATIA ROCHA. é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Remuneração de Capital no Setor de Distribuição de Energia Elétrica

Prorrogação das Concessões e Investigação de Excedentes Econômicos

Katia Rocha

Recentemente, o Ministério de Minas e Energia lançou a Consulta Pública 152 (CP) sobre diretrizes para prorrogação (e/ou licitação) das concessões de distribuição de energia elétrica com vencimentos entre 2025 a 2031. Correspondem a vinte concessões que juntas atendem 62% do mercado de distribuição do país.

A CP acontece em um momento crítico para o setor, com desafios estruturais diversos no contexto de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado (possibilidade do consumidor regulado poder escolher seu fornecedor), sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Atualmente, encontram-se em análise no Legislativo o PL 414 de 2021 e PL 1917 de 2015, com possibilidades do Governo apresentar um novo projeto para modernização do setor elétrico ainda esse ano. Será necessário endereçar os diversos temas elencados no último GT Modernização do Setor Elétrico , como a racionalização de encargos e subsídios, descontos de fontes incentivadas, expansão da confiabilidade do sistema, garantia do suprimento que onera sobremaneira o consumidor regulado, sinais econômicos inadequados que distorcem decisões de migração para o mercado livre, inserção de novas tecnologias, separação de lastro/energia e fio/energia, sustentabilidade dos serviços de distribuição, mecanismos de formação de preço, entre outros.

A abertura gradativa de mercado, com cronograma previsto para 2024, 2026 e 2028 a depender no nível de consumo e tensão, aliada às possibilidades de serviços ofertados a partir do surgimento de novas tecnologias de geração e armazenamento, como os REDs[1], impactam diretamente os serviços e equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras. Com efeito, temos toda uma transição do sistema elétrico, predominantemente centralizado-unidirecional, para um sistema híbrido-bidirecional, com aumentos significativos na complexidade do setor, e adaptações necessárias no planejamento e arcabouço regulatório, como destacado no próprio Plano Nacional de Energia – 2050.

A Nota Técnica nº 14/2023/SAER/SE que apresenta as diretrizes da CP, caminha na direção da prorrogação das concessões que atendam a requisitos mínimos de qualidade na prestação do serviço (indicadores de frequência e duração média das interrupções), e na boa gestão econômico-financeira da concessão (índice de endividamento amparado na geração de caixa operacional). Mantém o modelo de regulação por incentivos, que impulsiona às distribuidoras na busca constante por maior eficiência na operação e investimentos, com ganhos de qualidade recompensados, como recomendado pelo Utility for the Future[2].

A opção pela prorrogação apresenta alguns condicionantes. O mais debatido no âmbito da CP trata sobre investigação acerca de eventual excedente econômico, objeto deste artigo. O racional recai na possibilidade de a prorrogação ensejar ganhos potenciais excedentes aos concessionários, ao contrário das licitações, onde tal ganho seria devidamente extraído via leilões competitivos. Sugere incorporação dos ganhos excedentes na modicidade tarifária ou em contrapartidas sociais.

Observou-se, nas contribuições à CP, argumentos contrários a essa lógica, uma vez que, o modelo regulatório vigente, nos moldes de regulação por incentivo (Price Cap), já capturaria os eventuais excedentes econômicos no próprio processo de revisão periódica, com o reposicionamento tarifário e estabelecimento do Fator X (eficiência/produtividade).

No entanto, a proposta da CP nos motiva a analisar a evolução temporal da rentabilidade desse segmento no Brasil, bem como sua comparação com os mercados globais. Tal procedimento é essencial para qualquer atividade econômica, em especial, para o segmento regulado de distribuição de energia, setor estratégico que passará por profundas mudanças estruturais nos próximos anos.

Essa análise justifica-se, não apenas no sentido de mensurar potencias ganhos excedentes, mas como instrumento de avaliação do alinhamento da taxa regulatória de remuneração do capital com a remuneração real obtida pelo setor. Tal inferência se ampara no próprio contexto de modernização do setor elétrico, onde o processo de abertura de mercado e as novas tecnologias digitais e descentralizadas terminam por conduzir o segmento da distribuição a um novo desenho regulatório[3], com a necessária separação entre fio-energia (unbundling) e diversos aperfeiçoamentos na atividade do comercializador varejista, com necessidade crescente de investimentos, que dependem de adequada remuneração de capital.

A Remuneração do Capital Investido e o spread de Valor Agregado (ROIC – WACC)

O custo de capital de uma empresa regulada equivale à taxa de retorno adequada ao risco do setor em que se insere a empresa e respectivos serviços, de forma a promover a atratividade requerida aos investidores, assegurando a necessária qualidade e expansão do serviço. Essa taxa é responsável por remunerar todo o capital da empresa, incluindo o capital próprio (acionistas) e o capital de terceiros (credores)[4].

A ANEEL, em suas competências sobre regulação de tarifas, é o ente responsável pela definição e estimação da taxa regulatória de remuneração de capital no decorrer dos processos de revisão tarifária periódica. Para tal, utiliza modelos fundamentados de custo médio ponderado capital – WACC e de precificação de risco e retorno – CAPM.

Uma forma de se avaliar a rentabilidade econômica de uma empresa, ou seu lucro econômico excedente, consiste na comparação do seu custo de capital com a métrica de Retorno sobre Capital Investido – ROIC.

O ROIC é um indicador, calculado a partir de dados contábeis, muito utilizado em avaliação de empresas. Investiga a eficiência na alocação do capital em investimentos rentáveis. Representa métrica padrão, do tipo quanto maior, melhor, e relaciona o resultado operacional após impostos (numerador) à média anual do capital investido (denominador). Caracteriza, portanto, o lucro operacional sobre todo o capital da empresa, independentemente de sua estrutura de financiamento, facilitando eventuais comparações[5].

A comparação do ROIC de uma empresa com seu custo de capital (WACC nominal após impostos) revela se o capital investido está sendo empregado de maneira eficaz. Caso o ROIC seja, sistematicamente, superior ao custo de capital, a empresa está adicionando valor econômico. Caso contrário, não há remuneração adequada do capital e sim destruição de valor. A regra de bolso, adotada pelo mercado, considera desvios (spreads) superiores a 2% para concluir na direção de valor econômico adicionado.

Supondo que a taxa de remuneração regulatória estipulada pelo regulador (ajustada para taxa nominal) é boa proxy do custo de capital das distribuidoras, podemos investigar a rentabilidade do segmento e a respectiva aderência regulatória.

A Tabela 1 apresenta esse exercício para um universo não exaustivo de empresas concessionárias, disponível na base de dados Bloomberg. Para efeitos de comparação, os spreads de valor agregado para diferentes mercados globais são apresentados na Tabela 2.

Os resultados para Brasil sinalizam evidente desalinhamento do indicador médio de ROIC no período – média de 11.29%, com o custo de capital regulatório – média de 13.37% em termos nominais[6]. Um spread negativo de cerca de 2%, que se traduz nummodelo de negócio sem remuneração adequada, e tampouco estímulos para maiores e melhores investimentos[7].

Na comparação com mercados emergentes e globais, o setor apresenta certo grau de consolidação, com spreads de valor agregado próximo a zero (usual em setores maduros e regulados cuja remuneração se alinha ao custo de capital). É visível os impactos na Europa em 2022 decorrente dos altos preços de energia e gás, e em menor grau nos Estados Unidos. A tendência de spreads positivos acima de 2% para empresas americanas pode decorrer da grande liquidez global após a crise de 2008, de regimes regulatórios distintos (cost-plus), entre outras questões especificas ao país. 

Finalizo sublinhando a importância de estudos sobre rentabilidade econômica de setores regulados, em especial, do segmento distribuição, elo final de remuneração de toda cadeia. Tais avaliações são fundamentais no contexto de análise de impactos regulatórios, formulação de políticas públicas, que inclui revisão de subsídios ineficientes ou encargos crescentes, e liberalização de mercado. Ressalto que a liberação de mercado é a realidade em todos os países membros da OCDE, inclusive com separação vertical – legal, operacional e contábil, entre o setor de distribuição e de varejo. A agenda de modernização do setor elétrico tem de avançar.

Tabela 1: A Remuneração do Capital Investido no Setor de Distribuição Elétrica (ROIC)

Fonte: Bloomberg, * Despacho ANEEL Nº 829/2023 Memória de Cálculo, ** Estimado implicitamente via taxas referencias de swaps DI x PRE e DI x IPCA para quatro anos na B3.

Tabela 2 – Spread de valor Agregado (ROIC – WACC): Brasil x Mercado Global

Fonte: Bloomberg e Damodaran Online Data – EVA: https://pages.stern.nyu.edu/~adamodar/New_Home_Page/dataarchived.html

Referências

Brealey, R.A., Myers, S.C. and Allen, F. (2011) Principles of Corporate Finance. 10th Edition, McGraw-Hill/Irwin, New York

Damodaran (2012). Investment Valuation: Tools and Techniques for Determining the Value of Any Asset. Willey Finance Book.

Dutra, J. (2023a). #Unbundling, a separação de fio e energia. IBRE.

Dutra, J. (2023b). Open Energy e a abertura do mercado de eletricidade. IBRE

Dutra, J. (2023c). Como desenvolver resiliência financeira nos mercados de eletricidade. IBRE.

GESEL (2021). Reflexões sobre impactos da Geração Distribuída no Mercado de Energia Elétrica do Brasil. TDSE 105 GESEL.

GESEL (2023a). Excedentes Econômicos e Sustentabilidade Econômico-Financeiro das Distribuidoras. Contribuição a CP 152/2023. GESEL.

GESEL (2023b). Experiências na União Europeia em relação às concessões de distribuição no setor elétrico”. TDSE 115 GESEL.

GESEL (2023c). Prorrogação das Concessões: Análise de indicadores de qualidade de atendimento das Distribuidoras de energia elétrica. TDSE 117 GESEL.

Utility for the Future. An MIT Energy Initiative response to an industry in transition. Massachusetts Institute of Technology. 2016.


[1] Os Recursos Energéticos Distribuídos – RED contemplam tecnologias como geração distribuída – GD, armazenamento de energia, veículos elétricos e estruturas de recarga, eficiência energética e gerenciamento pelo lado da demanda, permitindo papel mais ativo do consumidor tanto na geração, quanto na gestão do consumo da sua própria energia (fluxos bidirecionais), entre outros.

[2] O estudo do MIT avalia os impactos das novas tecnologias e modelos de negócio que estão moldando a evolução e transformação da indústria de eletricidade, com recomendações de regulação e planejamento.

[3] Ver Gesel (2021, 2023a, 2023b, 2023c) e Dutra (2023a, 2023b, 2023c).

[4] Brealey, R.A., Myers, S.C. and Allen, F. (2011) Principles of Corporate Finance. 10th Edition, McGraw-Hill/Irwin, New York.

[5] Ver Damodaran (2012).

[6] Ajustou-se o WACC regulatório real estipulado pela ANEEL para termos nominais via IPCA futuro implícito através das taxas referenciais de swaps DIXPRE e DIXIPCA na B3 para 4 anos à frente.

[7] Ressalto as devidas cautelas em eventuais comparações, seja entre empresas ou países, uma vez que a amostra apresenta elevado grau de dispersão e heterogeneidade, com agregações de países de diversos regimes regulatórios, composição da matriz elétrica e crises globais no período. Recomenda-se a análise da tendência, que possibilita suavizar fatores conjunturais – crises globais, fatores de liquidez e risco global – focando nos fatores estruturais de mercado – regulação, renda, desenho de mercado, matriz elétrica, etc.

* KATIA ROCHA. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

Estratégias para Desenvolvimento do Mercado de Hidrogênio Verde

A Experiência do Leilão H2Global

Katia Rocha & Nelson Siffert

O desenvolvimento do mercado de hidrogênio de baixo carbono tornou-se um objetivo estratégico de governos e empresas em todo o mundo. Essa agenda ganhou momento a partir de políticas para a retomada econômica no pós-pandemia, visando acelerar a Transição Energética, buscando alcançar as metas estabelecidas no Acordo de Paris, ou, no Green Deal Europeu, com a respectiva neutralidade climática em 2050.

No contexto de Transição Energética e descarbonização da economia, o hidrogênio de baixo carbono posiciona-se como um dos protagonistas em termos de vetor energético. Possui vantagens devido à alta densidade energética, versatilidade de uso, ser um combustível carbon-free e a possibilidade de atuar no de armazenamento de energia renovável.

Diversos países estão estimulando o desenvolvimento da economia de hidrogênio conforme o crescente anúncio de políticas públicas, roadmaps, e projetos demonstrativos em toda cadeia de valor do hidrogênio, com número de projetos escalando com velocidade[1].

No Brasil, o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE instituiu em 2022 o Programa Nacional de Hidrogênio – PNH2 com finalidade de desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil através dos pilares de políticas públicas, tecnologia e mercado. Apresentou no mesmo ano o Programa Trienal (2023-2035) do PNH2, que estabelece atividades e metas para fortalecimento e desenvolvimento da cadeia de valor de hidrogênio de baixo carbono, sendo objeto de consulta pública em 2023.

As iniciativas trazem como princípios a valorização do potencial nacional de recursos energéticos, o reconhecimento da diversidade de fontes energéticas e rotas tecnológicas, a descarbonização da economia, a valorização e incentivo ao desenvolvimento tecnológico nacional; a cooperação internacional, e o interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas.

Nesse artigo, destacamos o eixo relativo aos mecanismos de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do mercado do hidrogênio verde com base na promoção de processos competitivos. Para tal, apresentamos a experiência do Leilão H2Global, enquanto política pública que faz uso de leilões de compra e venda de derivados do hidrogênio verde, para sugerir estratégias voltadas para o desenvolvimento do mercado de hidrogênio verde no Brasil.

Certamente, a construção de paralelos desta ordem, entre a experiência internacional e o contexto local, implica em reconhecer que são distintos tanto os arranjos institucionais como os atores envolvidos. Todavia, entende-se que é possível indicar possíveis desenhos de políticas públicas que fazem uso de mecanismos competitivos para promoção da equalização de preços visando o desenvolvimento do mercado de hidrogênio.

O leilão H2Global de compra de derivados de hidrogênio verde (H2V), é uma iniciativa do governo Alemão, que estabelece contratos de longo prazo de fornecimento de derivados de H2V – amônia verde, metanol verde e combustível de aviação sustentável (SAF), com data prevista do certame para meados 2023, e entregas iniciais entre 2024 e 2026, mantendo regularidade até o final do contrato em 2033.

O Leilão apresenta um conjunto de critérios que, muito provavelmente, irão balizar a nascente indústria do hidrogênio verde, com possibilidades de sinalizar para todos os players, de diferentes geografias, com interesse na indústria do hidrogênio verde, os preços de mercado, obtidos por meio de processos competitivos com critérios transparentes disponíveis para todos agentes que atuam ou pretendem atuar neste mercado. Espera-se, assim, que sejam revelados os preços dos derivados de hidrogênio verde, estabelecendo indicadores de preços de mercado, possibilitando os primeiros passos para estabelecer uma curva de preços, a semelhança do que já ocorre nos mercados futuros de commodities.

Podem participar como ofertantes somente países fora da União Europeia, buscando-se dar suporte ao nascente mercado internacional de energias renováveis. Dispõe de volume financeiro de € 900 milhões, podendo alcançar cifras ao redor de € 4 bilhões. Iniciativas recentes, como a do Governo Holandês, vão na mesma direção.

Representa um significativo passo inicial para o setor de hidrogênio verde em todo mundo. Em especial, para países competitivos em energias renováveis, como o Brasil, onde 83% da matriz de energia elétrica é proveniente de fontes renováveis[2]. É uma oportunidade para empreendedores inserirem-se na cadeia global de fornecimento do hidrogênio verde. Viabiliza novas e amplas possibilidades de investimentos e geração de empregos a partir do adensamento da indústria de energias renováveis.

No desenho do leilão proposto, a subsidiária HintCo – Hydrogen Intermediary Network Company (trader/facility) atua como um offtaker, se dispondo a estabelecer contratos de longo prazo (10 anos) de compra de derivados verdes (Hydrogen Power Agreement – HPA) e contratos de venda no curto prazo (Hydrogen Supply Agreement – HSA), equalizando a eventual diferença de preços entre ambos, via mecanismo de leilão duplo.

O mecanismo do leilão duplo, peça central da modelagem desenvolvida, sugere a adoção de processos competitivos para equalização de preços, tanto nos contratos de compra de longo prazo de derivados do H2V, como nos contratos de venda no mercado de curto prazo. O orçamento total para equalização disponibiliza EUR 300 milhões para cada lote de derivado (amônia, metanol e querosene SAF, verdes), disponibilizados em tranches anuais, à medida que o contrato de compra e venda realiza as entregas dos produtos em portos da Alemanha, Bélgica ou Holanda.

As regras colocadas no leilão, referentes ao suprimento de energia consumida no processo de produção de hidrogênio e respectivos derivados colocam os empreendedores do mercado brasileiro de energia renováveis com vantagens competitivas[3]. As três possibilidades de suprimento apresentadas – grid, contrato bilateral do tipo Power Purchase Agreement – PPA no mercado livre, e conexão própria do eletrolisador com o parque gerador – são passíveis de certificação pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE.  

A CCEE desenvolveu, recentemente, procedimentos de Certificação de Hidrogênio com objetivo de comprovar a origem e rastreabilidade dos atributos ambientais da energia consumida. Apresenta-se apta para certificar que a energia consumida na produção dos derivados verdes, atendendo a critérios quanto: i) a origem da sua geração; ii) princípio da adicionalidade; iii) correlação temporal; e iv) correlação geográfica.

O consórcio vencedor, com base no recebível gerado pelo contrato de longo prazo (HPA de 10 anos), tem condições de viabilizar a estruturação do funding necessário à implantação do projeto por meio de Sociedades de Propósito Específico[4].

A eventual diferença de preços entre os HPA´s e os HSA´s representa o subsídio (equalização) destinado a tornar os produtos que fazem uso do hidrogênio verde mais competitivos, face aqueles que fazem uso de combustíveis fósseis.

É reconhecido que a indústria nascente do hidrogênio verde apresenta um custo nivelado de produção (LCOH) maior que os da molécula cinza (gás natural). No entanto, é esperado o aumento da sua competitividade nos próximos anos em função de diversos fatores como eficiência tecnológica, escala de produção, redução do preço da energia renovável, menores custos de equipamentos de eletrólise e do efeito da taxação do carbono[5]. Quanto maior o valor dos créditos de carbono ou mesmo a taxação sobre emissões, menor tende a ser o diferencial de preços entre os derivados verde e cinza[6].

Dessa forma, a equalização de preços proposta deve ser entendida como um apoio temporário de política pública, visando promover o desenvolvimento da indústria de hidrogênio verde favorecendo a transição energética.

Recomendações das políticas públicas apontam para a necessidade de se garantir a demanda através de contratos de longo prazo, estabelecidos via uma facility, que no caso do Leilão H2Global é representado pela HintCo, cuja função é atuar como trader, administrando contratos de compra e venda, sem dispor da operação ou propriedade de ativos operacionais.

Os contratos de longo prazo estabelecidos pela HintCo possibilitam a estruturação do funding necessário à implantação dos projetos, em especial, na modalidade project finance, aumentando a atratividade dos investimentos privados na cadeia produtiva do hidrogênio verde. Novos modelos de negócios passam a ser viabilizados.

Igualmente importante é o mecanismo de Leilão Duplo para equalização de preços (subsídio), entre a molécula verde e cinza, construído em bases competitivas (leilão), buscando-se a eficiência no uso dos recursos públicos. Tal estratégia é entendida como um apoio temporário de política pública, dado a expectativa de aumento de competitividade da molécula verde nos próximos anos em comparação à cinza. Política semelhante já foi adotada para incentivos em geração solar PV e eólica[7]. Desta forma, o sistema de leilões teria potencial de alavancar toda a cadeia de valor da indústria de hidrogênio verde. Atingir a paridade de custos com formas intensivas de carbono é fundamental para as perspectivas futuras dessa indústria.

Finalmente, a coordenação institucional, demostrada pela célere manifestação da CCEE no quesito certificação, ilustra que, não basta, apenas, possuir vantagens competitivas e comparativas em geração renovável. Faz-se igualmente necessário o desenvolvimento de arranjos institucionais específicos, setoriais, de natureza pública e privada, de modo a mostrar-se competitivo, visando o desenvolvimento potencial de toda indústria de hidrogênio verde no Brasil.

Referências

  1. Gesel (2022). Observatório de Hidrogênio. 4O Trimestre de 2022. UFRJ.
  2. Global Hydrogen Review (2021). International Renewable Energy Agency.
  3. Global Hydrogen Review (2022). International Renewable Energy Agency.
  4. IRENA (2019). Renewable energy auctions: Status and trends beyond price, International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.
  5. MME (2021). Programa Nacional de Hidrogênio. Propostas de Diretrizes.
  6. MME (2022). Programa Nacional de Hidrogênio. Plano de Trabalho Trienal. 2023-2025.
  7. Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia) Los1_16_ENG Terms and Conditions for the Bidding Phase 28 Nov. 2022. https://exficon.de/tad/current-tenders/

[1] No Brasil os principais projetos em plantas de hidrogênio verde concentram-se no Ceará – Porto de Pecém (Energix Energy, Fortescue Future Industries, Qair Brasil, EDP Brasil), Bahia (Unigel), Pernambuco (White Martins, Qair Brasil), Rio Grande do Sul (Neoenergia), Rio de Janeiro – Porto do Açu (Shell Brasil). Ver Gesel (2022).

[2] O potencial Brasileiro para desenvolver uma economia de hidrogênio pode ser analisado pelo “Painel de Dados de Potencial Técnico de Produção de Hidrogênio” desenvolvido pela EPE, com visualização geográfica de diversas rotas tecnológicas e empresas envolvidas.

[3] Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia).

[4] Na hipótese, exemplificadora, de quatro vencedores para o lote de amônia verde, simulações preliminares apontam cada consórcio com USD 130 Milhões de Equity (alavancagem 40/60), USD 330 Milhões de Capex (geração própria integrada), produção de 35 mil.t/ano de amônia verde (95 t/dia), 42 MW de capacidade de eletrólise, geração solar fotovoltaica PV com 180 MW, com geração anual de energia de 400 GWh/ano.

[5] Enquanto o custo nivelado da produção de hidrogênio (LCOH) a partir de gás natural sem captura (CCUS) varia entre US$ 0,5 a US$ 1,7 /Kg, ou cerca de US$ 1 a US$ 2 /Kg com captura (CCUS), o hidrogênio verde gerado a partir de energia renovável custa cerca de US$ 3 a US$ 8/kg. Estimativas apontam para LCOH similares a partir de 2030. Ver Global Hydrogen Review (2022).

[6] Estimativas da Global Hydrogen Review (2021) apontam para EUR 100 – 120/ t.CO2 em 2030.

[7] Ver IRENA (2019).


KATIA ROCHA. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

NELSON SIFFERT. Diretor ICT – Resel. Email: nfsfooo@gmail.com

Investimentos em Rodovias e o Novo Modelo Proposto de Compartilhamento de Risco de Demanda da ANTT

Katia Rocha

Em 2022, os investimentos privados em infraestrutura – concessões e PPPs, nas Economias Emergentes, continuaram sua recuperação, tanto em volume quanto em número de projetos, para níveis pré-pandemia segundo dados recentes disponibilizados pelo Banco Mundial[1]. O volume total de capital investido, que inclui Capex e outorgas, totalizou USD 91.7 Bilhões, distribuídos em 263 projetos conforme ilustra a Figura 1.

Em termos absolutos, China (33%), Brasil (19%), India (13%), Indonésia (5%) e Vietnam (5%) receberam os maiores volumes, representando 75% dos recursos globais privados alocados em infraestrutura econômica em emergentes de baixa e média renda. Na desagregação setorial, o setor de transportes voltou a liderar a recuperação, com 68% do volume total.

Figura 1 – Investimentos Privados em Infraestrutura: Emergentes x Brasil

No Brasil, o volume de investimentos totalizou USD 17.6 Bilhões (0,9% do PIB de 2022), distribuídos entre 51 projetos, alcançando os níveis pré-pandemia de 2019, como ilustra a Figura 2. O setor transporte continuou se destacando, mobilizando investimentos da ordem de USD 10 Bilhões (59% do volume total alocado no Brasil), com a seguinte distribuição dentro do segmento: portos (4%), aeroportos (8%), ferrovias (18%), mobilidade urbana (33%), e rodovias (37%).

Figura 2 – Investimentos Privados em Infraestrutura: Setorial Brasil

Esse panorama introdutório ilustra o contínuo apetite dos stakeholders pelos investimentos em infraestrutura no Brasil e emergentes de modo geral. Particularmente, no segmento de rodovias, um dos setores com maior lacuna de investimentos no Brasil[2], estima-se a necessidade de investimentos da ordem de R$ 30 Bilhões/ano até 2050[3].

Dada a necessidade considerável de investimento de longo prazo, o Brasil precisa melhorar a eficiência do investimento público e, ao mesmo tempo, mobilizar o capital privado em escala e ritmo, tendo, portanto, de gerar as condições necessárias para atrair, substancialmente, o investimento privado nesse segmento.

O setor de rodovias, assim como grande parte dos setores de infraestrutura do tipo Greenfield, envolvem incertezas diversas, tanto no desenvolvimento dos projetos, no custo de construção, na projeção da demanda; no perfil temporal das receitas – dissociadas das despesas, na dificuldade de conversão dos ativos para usos alternativos, entre outros específicos do setor (ambiental, desapropriação, etc). Representa um setor conhecido por ensejar grande número de incidências em renegociações de contratos de concessões em países emergentes[4].

Ocorrências de renegociações são esperadas e de certa forma necessárias para o bom funcionamento das concessões, dada a natureza incompleta dos contratos e da inviabilidade da previsão ex-ante de todas as contingências contratuais que podem afetar o acordo no longo prazo.

No entanto, uma alta incidência de renegociações levanta questionamentos sobre a credibilidade do modelo e do respectivo programa de concessão, impactando, até mesmo, o efeito competitivo do leilão, onde o concessionário selecionado passa a ser o “especialista em renegociação”, ao invés do operador mais eficiente. Isso incentiva comportamentos oportunistas, com impactos fiscais potenciais nas despesas do Governo e na percepção dos agentes econômicos e sociais, resultando em atrasos ou reduções nas obrigações de investimentos, aumentos na tarifa, diminuição dos benefícios do programa e do bem-estar dos usuários finais.

De forma geral, melhores características institucionais, presença de arcabouço regulatório expresso em lei, melhores indicadores de qualidade regulatória, controle de corrupção e do aparato legal do país, diminuem a incidência de renegociações. Por outro lado, maior obrigação de investimentos no contrato – regulação por meios, em oposição à regulação por incentivos, maior parcela de risco alocada ao operador, indefinição da matriz de alocação de risco do projeto, estimativas não realistas para demanda, desenhos de leilões de menor tarifa em detrimento aos de maior outorga, choques macroeconômicos – recessão e desvalorização cambial, aumentam a incidência de renegociação[5].

O Novo Modelo Proposto de Compartilhamento de Risco de Demanda da ANTT

Atualmente, cerca de 13 mil km da malha rodoviária federal são administrados por meio de concessões no âmbito da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT)[6]. Desse total, quase 5 mil km apresentam problemas com obras paralisadas há anos, em processo de devolução ou relicitação, em especial, as realizadas na segunda etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016.

Com a evolução natural do Procrofe, nas suas diversas etapas desde a década de 90, a matriz de risco do contrato foi avançando nas definições e alocações de risco, evidenciando, gradativamente, maior maturidade regulatória. No entanto, é consenso que inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco, tem gerado, consistentemente, diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.

Como forma de tratar essa questão, a ANTT lançou, ao final de 2022, a audiência pública 013/2022 sobre novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT[7].

Diversos aprimoramentos de alocações para matriz de risco são endereçados na proposta, sendo o principal, objeto deste artigo, o compartilhamento de risco de demanda. Estabeleceu-se uma determinada banda em torno de uma variação simétrica de 15% nas receitas projetadas do projeto inicial. Variações de receitas dentro da banda são alocadas à concessionária e fora desta, ao Poder Concedente através de ajustes posteriores. O acesso à essa forma de proteção (hedge) para o risco de receita foi condicionado à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária – 90% do Capex.

O desenho proposto possibilita que a concessionária seja recompensada por variações de receitas, numa eventual realização abaixo de 15% da projetada no estudo de viabilidade econômico (risco negativo – downside), e, de forma análoga, ceda ao Poder Concedente o montante que exceder a 15% desta projeção (risco positivo – upside).

O compartilhamento de receitas, a partir de uma banda, representa um hedge, a semelhança de um derivativo financeiro do tipo caps and floors[8], acionado a partir de um gatilho determinado, no presente caso, a partir da conclusão de investimentos superiores a 90% do Capex.

A ideia básica consiste em aumentar a atratividade do projeto, modificando sua estrutura de risco/retorno. A depender do comportamento da receita (demanda) – variável incerta, a concessão pode apresentar uma estrutura de risco/retorno mais atrativa, com maior valor esperado (VPL) e menor risco (variância, Value at Risk, etc), possibilitando, inclusive, maior desconto tarifário no momento do certame.

A depender da dinâmica da receita (demanda) e sua volatilidade pode-se estimar a probabilidade e magnitude que esta ultrapassa a banda estabelecida – tanto acima quanto abaixo, o que impacta e condiciona a atratividade da concessão e potenciais descontos tarifários. É possível, inclusive, que a atratividade se mantenha (mesmo VPL), ou até diminua (menor VPL), com modificações apenas na sua estrutura de risco (distribuição do VPL), o que não implica, necessariamente, em descontos tarifários na média. Há que se calcular.

Cabe apontar que o teto da banda, impede o concessionário de se apropriar de eventuais vantagens (upside) no caso de realizações favoráveis de demandas (risco positivo), e, dessa forma, conceder maiores descontos aos usuários.

Igualmente importante avaliar os impactos na flexibilização do percentual de gatilho proposto de Capex (90%) para acesso ao hedge de receita proposto. Um valor menor de gatilho pode aumentar a atratividade da concessão, potencializando maiores descontos tarifários.

Em uma ótica de análise de impacto regulatório (AIR), é possível estimar como flexibilizações no regramento modificam a atratividade da concessão e possibilitam maior potencial de desconto tarifário. Em especial, pode-se estimar o trade-off para o Poder Concedente entre menores tarifas imediatas ou eventuais desembolsos no futuro no caso do risco negativo (downside).

Nesse sentido, critérios de flexibilização podem ser analisados em eventuais AIRs. Seja no percentual do gatilho do Capex, na modalidade de garantia de receita mínima, que elimina para concessionária apenas o risco negativo (downside), preservando o risco positivo (upside), ou ainda, desenhos de leilões de menor valor presente de receita – LPVR[9].

Sob a ótica de potencializar investimentos em setores essenciais como os de infraestrutura, ou num contexto onde as concessões mais atrativas já foram licitadas, o melhor desenho para viabilizar novos projetos pode não ser, necessariamente, o de menor ônus ao Poder Concedente.

Concluindo, o novo modelo de compartilhamento de risco de demanda, apresentado pela ANTT, endereça recomendações estruturais presentes na literatura, sobre a necessidade de uma matriz de risco previsível e eficiente, de forma a diminuir a incidência de renegociações recorrentes em concessões de infraestrutura, especialmente, no setor de transporte. Melhora a atratividade da concessão, com ajustes nas estruturas de risco/retorno, potencializando maiores descontos tarifários, maior competição e investimentos. Possibilita estruturas de financiamentos mais favoráveis, incluindo modalidades do tipo project finance, com potencial de atrair maior gama de perfil de investidores para o segmento. A iniciativa é meritória e enseja grandes aprimoramentos regulatórios, na comparação às etapas anteriores do Procrofe.

Referências

  1. Engel, E., Fischer, R.  and Galetovic, A. (2001). Least‐Present‐Value‐of‐Revenue Auctions and Highway Franchising. Journal of Political Economy , Vol. 109, No. 5
  2. Global Infrastructure Hub. (2022). Renegotiation Data. Disponível em: https://managingppp.gihub.org/data/renegotiation-data/. Acesso em: 26 de maio de 2023.
  3. Guasch, J. L. (2004). Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions: Doing it Right. World Bank. Washington, D.C.: The World Bank
  4. Guasch, J. L., Laffont, J. J., & Straub, S. (2008). Renegotiation of concession contracts in Latin America: Evidence from the water and transport sectors. International Journal of Industrial Organization, 26(2), 421-442.
  5. Hull, J.C. Options, Futures, and Other Derivatives. Pearson/Prentice Hall, 2009 
  6. Raiser, M.; Clarke, R.; Procee, P.; Briceno-Garmendia, C.; Kikoni, E.; J. Kizito; Vinuela, L. (2017). Back to Planning: How to Close Brazil’s Infrastructure Gap in Times of Austerity. World Bank Group. 2017.

[1] Private Participation in Infrastructure (PPI) Database. Disponível em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi. Compreende os setores de eletricidade, gás natural, resíduos sólidos, água e saneamento, portos, ferrovias, rodovias, aeroportos e ICT.

[2] Estimações em Raiser et al (2017) apontam este setor com 50% da lacuna de investimentos no Brasil.

[3] Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura 2021-2050.

[4] Guasch, Laffont e Straub (2008) e Global Infrastructure Hub. (2022).

[5] Guash (2004).

[6] Ver em: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/informacoes-gerais

[7] Ver em: https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?CodigoAudiencia=518

[8] Ver Hull (2009).

[9] Engle et al (2001).

Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

Agenda para Investimentos em Infraestrutura e o PL de Debêntures de Infraestrutura

Katia Rocha

Há consenso que a infraestrutura Brasileira, insuficiente em termos de estoque e qualidade, representa uma das principais barreiras à produtividade e ao crescimento econômico e social do país1. A despeito de diversos programas nacionais ao longo do tempo, o Brasil falhou em aumentar sua taxa de investimento em infraestrutura, nem tampouco melhorar a qualidade da mesma, resultando em uma lacuna significativa de infraestrutura seja medida em termos do estoque de capital físico, seja pela percepção qualitativa do serviço.

Na última década, o volume médio de recursos investidos no setor alcançou 1.80% PIB ano[1], situando-se bem abaixo da meta estimada de 4% PIB ano, para um crescimento sustentável[2].

O investimento público respondeu por apenas 0.7% PIB ao ano[3]. Tal valor situa-se abaixo da média de diversos pares emergentes (Peru 2.8%, Chile 2.2%, Colômbia 2%, Uruguai 1.8%, México 1.1%)[4], o que, claramente, justifica a relevância do atual debate sobre a preservação do investimento público num ambiente de ajuste fiscal[5].

A boa notícia refere-se a participação dos investimentos privados, que, de certa forma, supriu uma parcela considerável dessa lacuna, com volumes da ordem de 1.1% do PIB ano em média. Segundo dados do Banco Mundial[6], o Brasil figura, há tempos, entre os três primeiros lugares, seja em volume de recursos alocados em CAPEX ou em números de projetos, ao lado da China e Índia. Dessa forma, a participação privada se estabelece como forte aliada e uma importante fonte de recursos de longo prazo para o setor de infraestrutura nas próximas décadas.

O desafio requer ação simultânea e agenda baseada em quatro frentes: equilíbrio macroeconômico, arcabouço regulatório, planejamento institucional e políticas de financiamento.

A primeira frente sobre equilíbrio macroeconômico é condição básica para efetividade de qualquer programa de governo, em especial, no setor de infraestrutura, onde o usuário final, em última instância, financia os serviços via tarifas indexadas a inflação. Em um ambiente de inflação elevada, a reboque de uma pandemia global, é relevante endereçar prontamente essa questão, sem, no entanto, comprometer a segurança jurídica dos contratos, nem onerar usuários, via serviços mais caros ou ineficientes no futuro.

A segunda frente sobre arcabouço regulatório abrange o fortalecimento constante das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira. Busca-se alcançar maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos e nas melhores práticas internacionais. Evidências recentes sugerem maior protagonismo do arcabouço e maturidade regulatória como pré-requisito para a alocação de capital privado no setor de infraestrutura nas economias emergentes, movimento evidenciado, principalmente, após a crise financeira global de 2008[7]. Como implicação, o pilar Regulatório é, atualmente, visto como “complementar”, de fato, às políticas macroeconômicas e fiscais.

A terceira frente sobre aprimoramentos no planejamento institucional reforça o papel das Parcerias Público Privadas (PPPs) no desenvolvimento estratégico de longo prazo e plano nacional de infraestrutura, incentivando maior integração dos projetos com as prioridades de políticas públicas do governo. Nesse segmento, estruturas nos moldes do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), na qualificação, estruturação, e execução dos projetos com participação de ministérios setoriais, agências reguladoras e órgãos de controle são fundamentais.

Finalmente, a quarta frente relaciona-se a estruturas de financiamentos dos projetos, e abrange questões sobre desenvolvimento e ampliação do mercado de títulos coorporativos, em especial, das debêntures de infraestrutura, aumento da base de investidores, incluindo tópicos sobre emissões internacionais, incentivos fiscais e estímulos a investidores institucionais e estrangeiros, desenvolvimento da infraestrutura como uma classe de ativos financeiros, financiamento via modelos project finance, aperfeiçoamentos do sistema de garantias nas fases pré-operacionais e mecanismos de proteção a credores quanto à repactuação de contratos de concessão e transferência de controle.

Todas as quatro frentes, acima descritas, são determinantes para alavancar investimentos no setor, perseguindo eficiência e qualidade. A seguir, ilustramos como a iniciativa em curso – o PL de debêntures de infraestrutura – pode reforçar essa agenda.

O PL Debêntures de Infraestrutura e o Mercado de Dívida Coorporativa

O fortalecimento do mercado de títulos corporativos não financeiros, também conhecido como mercado de dívida coorporativa, é fundamental para toda a Economia. Permite a alocação eficiente de capital para financiamento de empresas, facilita o financiamento de toda uma cadeia de projetos de longo prazo, incluindo os de infraestrutura. Melhora a disciplina e saúde dos balanços das empresas, possibilita precificação eficiente do risco de crédito, diversificação de investidores institucionais e pessoas físicas, promove inclusão das Pequenas e Médias Empresas e estimula a inovação de instrumentos financeiros, ampliando a eficiência e estabilidade de todo sistema financeiro nacional.

A crise financeira global de 2008 destacou a necessidade de reduzir o domínio do sistema bancário no financiamento do setor corporativo, desenvolvendo o mercado de títulos corporativos, visto como elemento estabilizador em períodos de crise. Desde então esse mercado teve expressivo crescimento mundial.

No Brasil, o mercado brasileiro de dívida coorporativa é composto de instrumentos como debêntures (incentivadas e não incentivadas), certificados de recebíveis imobiliários (CRI), certificados de recebíveis do agronegócio (CRA) e notas promissórias. Configura-se como importante fonte de recursos para as companhias brasileiras[8], tendo expandido de 6% do PIB em 2010 para 9% do PIB em 2022, segundo dados do International Settlements (BIS).

A Tabela abaixo apresenta o panorama global desse mercado para alguns países em 2022 a partir de dados do BIS[9], onde podemos inferir espaços para crescimento.

Mercado Global Dívida Coorporativa – Emissão Local e Internacional

Fonte: Elaboração Própria a partir de dados do Bank for International Settlements

Pela tabela, observamos que a proporção dos títulos coorporativos não financeiros no Brasil de 9% do PIB (USD 149 Bilhões) situa-se abaixo da média de 13% da OCDE e de 12% dos países emergentes, o que sugere haver espaço para crescimentos nesse segmento[10]. Quanto às emissões internacionais, o volume de emitido pelo Brasil é de apenas 2% do PIB, bem abaixo da média de 8% do PIB da OCDE ou dos países emergentes, sugerindo maior espaço para colocação internacional.

Nesse sentido, o Projeto de Lei das Debêntures de Infraestrutura (PL 2.646/2020), aprovado em 2021 na Câmara de Deputados, mas ainda em tramitação no Senado, pode ser de alta valia para alcançarmos os patamares globais. Propõe a criação de nova categoria de títulos de captação de recursos financeiros, as chamadas debêntures de infraestrutura, ampliando as possibilidades de financiamento para projetos de infraestrutura no Brasil.

Pode ser visto como complementar a Lei de Debêntures Incentivadas (Lei nº 12.431, de 2011), que ampliou e estabeleceu o mercado de capital como importante fonte de recursos de longo prazo. Enquanto a iniciativa de debêntures incentivadas buscou atrair pessoas físicas com incentivos fiscais como isenção de tributação no imposto de renda, as debêntures de infraestrutura têm por objetivo a atração de investidores institucionais e estrangeiros por mecanismos de incentivos tributários, indexação cambial entre outros.

As debêntures incentivadas foram, e continuam sendo, essenciais no financiamento de projetos de longo prazo no setor de infraestrutura e no próprio desenvolvimento do mercado de capital Brasileiro. O volume desse mercado aumentou, sensivelmente, a partir da nova dinâmica do papel de financiamento do BNDES após 2016, alcançando estoque atual de R$ 211 bilhões[11]. Tal montante corresponde a cerca de 27% do mercado total de dívida corporativa (USD 149 Bilhões) e a 2% do mercado de renda fixa no Brasil (USD 2.3 Trilhões). No entanto, a participação de investidores institucionais nas debêntures incentivadas segue baixa – menos de 4% do total da distribuição desde 2012 – incluindo seguradoras, entidades de previdência privada e investidores estrangeiros. Em 2022, a participação dos institucionais e estrangeiros foi praticamente nula – 0.4% do total distribuído[12].

Nesse sentido, o PL de debêntures de infraestrutura se justifica ao buscar incentivar a participação desses institucionais. A classe de ativos do segmento infraestrutura possui características desejáveis a esses investidores. A sua baixa correlação com ativos tradicionais gera oportunidades de diversificação. A estabilidade temporal dos fluxos de caixa pode fornecer hedge e funding à longa duração do passivo dos fundos de pensões ou seguradoras, em especial, do segmento de vida. Retornos justos e atrativos a longo prazo proveniente de receitas de tarifas, sujeitas a revisão e reajustes periódicos, fornece proteção contra inflação e ciclo econômico ao longo do tempo.

A iniciativa fortalece, portanto, a agenda de financiamento e desenvolvimento da infraestrutura como classe de ativos financeiros, e se apresenta como uma importante fonte potencial de recursos de longo prazo para o setor no Brasil.

Referências

1. Calderón C., Servén L., 2010, ‘Infrastructure in Latin America’, World Bank Policy Research Working Paper No 5317.

2. Calderón, C., Servén L., 2004, ‘The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution’, World Bank Policy Research Working Paper No 3400.

3. CVM (2018).  O mercado de dívida corporativa no Brasil: Uma análise dos desafios e propostas para seu desenvolvimento. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/menu/acesso_informacao/serieshistoricas/estudos/anexos/estudo_cvm_mercado_de_divida_corporativa_no_Brasil.pdf

4. Estache, A.; Foster, V.; Wodon, Q. (2002): Accounting for Poverty in Infrastructure Reform: Learning from Latin America’s Experience. WBI Development Studies, Washington, DC: The World Bank

5. Fay, M.; Andres, L.A.; Fox, C.;  Narloch , U.; Straub,S.; Slawson, M. (2017). Rethinking Infrastructure in Latin America and the Caribbean Spending Better to Achieve More

6. Frischtak, C.; Mourão, J. (2017). Uma Estimativa do Estoque de Capital de Infraestrutura no Brasil. Desafios da Nação – artigos de apoio volume 1. IPEA, 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/180413_desafios_da_nacao_artigos_vol1_cap02.pdf

7. Global Infrastructure Outlook. (2022). Forecasting infrastructure investment needs and gaps. Disponível em: https://outlook.gihub.org/

8. Infralatam – Public Investment in Economic Infrastructure: Evolution by Country and Sector. Disponível em: http://infralatam.info/en/home/

9. Raiser, M.; Clarke, R.; Procee, P.; Briceno-Garmendia, C.; Kikoni, E.; J. Kizito; Vinuela, L. (2017). Back to Planning: How to Close Brazil’s Infrastructure Gap in Times of Austerity. World Bank Group. 2017.

10. Rocha, K. (2020). Investimentos Privados em Infraestrutura nas Economias Emergentes: a importância do ambiente regulatório na atração de investimentos. Texto para Discussão 2584. IPEA. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10217/1/td_2584.pdf.

11. Serebrisky, Tomás, Ancor Suárez-Alemán, Diego Margot, and Maria Cecilia Ramirez. (2015). Financing Infrastructure in Latin America and the Caribbean: How, How Much and by Whom? IDB (Inter-American Development Bank), Washington, D.C. https:// publications.iadb.org/bitstream/handle/11319/7315/Infrastructure%20Financing.%20Definitivo.pdf?sequence=1.

12. SPE (2022). Boletim de Debêntures Incentivadas. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-de-debentures-incentivadas


Disclaimer

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

* Pesquisadora do IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br

1 As relações entre infraestrutura e crescimento são bem documentadas na literatura econômica e incluem impactos no desenvolvimento, criação de empregos, acesso ao mercado, saúde e educação e redução da pobreza e desigualdade. Maiores detalhes em: Calderόn e Servén 2004, 2010; Estache, Foster e Wodon (2002).

[1] Referimos ao total de investimentos, público e privado, nos setores de energia elétrica, gás natural, transportes (rodovias, aeroportos, portos e ferrovias), água e esgoto. Dados provenientes do banco de dados Infralatam e PPI Banco Mundial

[2] Raiser et al (2017), Serebrisky et al (2015), Fay et al (2017), Frischtak e Mourão (2017)

[3] Dados disponíveis em InfraLatam http://infralatam.info/en/home/ relativo a media entre 2008 e 2019.

[4] Dados disponíveis em InfraLatam http://infralatam.info/en/home/.

[5] Ver Ardanaz et al. (2021).

[6] A base de dados Private Participation in Infrastructure – PPI monitora os volumes financeiros de CAPEX e números de projetos com controlador privado em diversos setores de infraestrutura em 124 economias emergentes de baixa e média renda, desde a década de 90. Disponível em https://ppi.worldbank.org/en/ppi

[7] Rocha, K. (2020). Investimentos Privados em Infraestrutura nas Economias Emergentes: a importância do ambiente regulatório na atração de investimentos. Texto para Discussão 2584. IPEA. Disponível em: td_2584.pdf (ipea.gov.br).

[8] Maiores detalhes podem ser encontrados em CVM (2018).

[9] Dados compilados para setembro de 2022 pelo Bank for International Settlements – BIS. Incluem títulos de dívida total (TDS) e os títulos da dívida local (DDS) reportados pelas autoridades nacionais, e títulos da dívida internacional (IDS) definidos e compilados pelo BIS a partir de fontes de dados comerciais. Disponível em https://stats.bis.org/statx/srs/table/c1?p=20223&c=

[10] Inferências devem tem em mente o efeito deslocamento (crowding out), no qual o mercado de títulos públicos (financiamento do governo) impõe limites a aumentos no mercado de dívida coorporativa

[11] Estoque de dezembro de 2022 segundo SPE (2022).

[12] Dados disponíveis em https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-de-debentures-incentivadas


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial
(2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.