Editorial

A velha covardia do novo ensino médio

Editorial

Ontem o Ministro da Educação baixou a Portaria MEC n. 627, de 04 de abril de 2023[1], suspendendo por 60 dias o cronograma de implementação do novo ensino médio previsto no art. 4º[2] da Portaria nº 521, de 13 de julho de 2021[3].

A reforma do ensino médio foi aprovada pela Lei nº 13.415/2017[4] e entrou em vigor para todas as escolas públicas e privadas a partir de 2022. Em apertada síntese, o novo ensino médio está dividido em duas partes: uma comum a todos os estudantes, direcionada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC); e outra em que os estudantes escolhem um itinerário formativo[5] de seu interesse.

O modelo do novo ensino médio apresenta elementos que parecem estar em linha com o desejo de ampliação da educação de qualidade, principalmente porque majora a carga horária estudada, a BNCC é comum para todos os estudantes e também, oferece opções de aprofundamento nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, entre outras.

Mas parece que não é bem assim!!! As críticas ao novo ensino médio são muitas e vão desde a ausência de treinamento adequado dos professores, passando pela ausência de infraestrutura das escolas públicas até o ponto mais crucial que é a ampliação do diferencial de ensino dos estudantes de escolas públicas em relação aos estudantes de escolas particulares.

A realidade, que não é nova no Brasil, é que a falta de treinamento e especialização dos professores e a ausência de estrutura de ensino adequada nas escolas públicas já faz com que, regra geral, o aluno aprenda menos e, consequentemente, que esteja menos preparado para competir nos vestibulares de universidades públicas que os alunos de escolas privadas.

Isto por si só já é um motivo muito mais que suficiente para se questionar todo e qualquer ensino no Brasil, ainda mais quando o programa de implementação do novo ensino médio prevê uma reformulação do ENEM já para o ano 2024, em que exame será composto por duas partes: uma parte comum para todos e uma parte relativa ao itinerário que os alunos escolheram.

Ora, se os alunos de escolas públicas já têm dificuldades para concorrem na parte comum (português, matemática etc), o que dizer da parte referente aos itinerários formativos, em que a desigualdade na qualidade e quantidade da oferta de ensino é abissal entre as redes pública e privadas?

Programar ensino médio permitindo que o capital seja o potencializador da ampliação de desigualdades no ensino é ampliar o fosso que existe entre os indivíduos mais e menos favorecidos deste país.

            A covardia é velha, assim como também o é o novo ensino médio!!!


[1] PORTARIA Nº 627, DE 4 DE ABRIL DE 2023 – PORTARIA Nº 627, DE 4 DE ABRIL DE 2023 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)

[2] Art. 4º A implementação nos estabelecimentos de ensino que ofertam o ensino médio dos novos currículos, alinhados à BNCC e aos itinerários formativos, obedecerá ao seguinte cronograma:

I – No ano de 2020: elaboração dos referenciais curriculares dos estados e do Distrito Federal, contemplando a BNCC e os itinerários formativos;

II – No ano de 2021: aprovação e homologação dos referenciais curriculares pelos respectivos Conselhos de Educação e formações continuadas destinadas aos profissionais da educação;

III – No ano de 2022: implementação dos referenciais curriculares no 1º ano do ensino médio;

IV – No ano de 2023: implementação dos referenciais curriculares nos 1º e 2º anos do ensino médio;

V – No ano de 2024 – implementação dos referenciais curriculares em todos os anos do ensino médio; e

VI – Nos anos de 2022 a 2024 – monitoramento da implementação dos referenciais curriculares e da formação continuada aos profissionais da educação.

[3] PORTARIA Nº 521, DE 13 DE JULHO DE 2021 – PORTARIA Nº 521, DE 13 DE JULHO DE 2021 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)

[4] Ementa da Lei nº 13.415/2017:

Altera as Leis n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.

[5] O Programa Itinerários Formativos é instituído pela PORTARIA Nº 733, DE 16 DE SETEMBRO DE 2021 (PORTARIA Nº 733, DE 16 DE SETEMBRO DE 2021 – PORTARIA Nº 733, DE 16 DE SETEMBRO DE 2021 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)).

O realismo fiscal do novo arcabouço.

Editorial

Essa semana foi anunciada a nova regra fiscal, também denominada de novo arcabouço fiscal, em substituição ao teto de gastos previsto na EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016[1].

Ainda que se possa questionar a qualidade de uma ou de outra regra, a verdade é que pensar em regra fiscal é um importante avanço institucional para o Estado brasileiro qualquer que seja ele. Nenhuma metodologia está imune a críticas e a efeitos colaterais, mas o simples fato de se pensar nela já representa um avanço no trato com a res pública.

O resultado primário e a regra fiscal são as duas metas a serem perseguidas ao longo do ano para que o equilíbrio fiscal da União se estabeleça e gere os frutos sobre toda a economia. A evolução destas variáveis determina os valores dos contingenciamentos[2][3] aplicados pelo Poder Executivo aos órgãos setoriais ao longo do tempo.

O resultado primário para o ano vigente é definido como a diferença entre as receitas e as despesas primárias, enquanto a regra fiscal é definida como o valor limite para as despesas públicas definidas em lei que o Poder Executivo poderá lançar mão para executar as suas políticas públicas.

As regras fiscais podem não depender da ampliação das receitas, como é o caso do então do Teto de Gastos, em que as despesas primárias do ano vigente são restringidas pelo valor do limite do exercício anterior, corrigido pela variação do IPCA[4], ou podem ser calibradas de acordo com um percentual da receita realizada, como é o caso do novo arcabouço fiscal proposto pelo governo, em que o crescimento das despesas primárias fica atrelado a 70% do crescimento das receitas públicas realizadas no ano anterior.

Quadro 1. Comparação entre o Teto de Gastos e o Novo Arcabouço Fiscal

Teto de GastosNovo arcabouço fiscal
Aplica-se a variação do IPCA sobre as despesas primárias do ano anterior para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.A despesa pública poderá crescer até 70% da receita pública realizada dos últimos 12 meses

Um dos ensinamentos basilares da matéria de finanças públicas é o de que as despesas públicas[5] devem ser fixadas e as receitas públicas[6] previstas, sendo as primeiras fixadas em função das segundas estimadas no exercício financeiro vigente ou realizadas no exercício financeiro anterior a que se refere a lei orçamentária.

O novo arcabouço fiscal é mais condizente com a teoria das finanças públicas do que é o Teto de Gastos, pois a fixação das despesas na nova regra fiscal se movimentará de acordo com um percentual das receitas realizadas no ano anterior, fato que não acontece quando se aplica apenas a taxa de crescimento da inflação sobre o limite do ano anterior.

O ato de aplicar índice inflacionário sobre qualquer valor de despesa pública passada gera atualização monetária e nada mais, ao passo que limitar o crescimento do valor da despesa ao crescimento do valor da receita do ano anterior gera, além da importante conexão entre os dois elementos do orçamento, o tão desejado equilíbrio entre receitas e despesas.

O tempo dirá se o novo arcabouço fiscal atingirá as suas metas!!!


[1] Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br)

[2] O art. 9º da Lei Complementar 101/2000 (LRF) especifica o critério para contingenciamento.

[3] Bimestralmente são reavaliadas as estimativas das receitas e despesas primárias do Governo Federal, observando a arrecadação das receitas primárias e a realização das despesas primárias até o mês anterior ao início do próximo bimestre. Se forem identificadas frustações de receita

[4] Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA do IBGE.

[5] As despesas públicas são compostas por três fases: empenho, liquidação e pagamento.

[6] São fases da receita pública: previsão, lançamento, arrecadação e recolhimento.

Por que é importante analisar os ecossistemas digitais, plataformas, marketplace e concentrações conglomeradas a partir do caso de recuperação judicial das Americanas S/A?

Editorial

Com uma dívida de mais de R$ 40 bilhões junto aos credores, as exigências para implementar a recuperação judicial do grupo passa pela venda de importantes empresas do grupo comandado por Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles. O primeiro plano de restruturação apresentado prevê a alienação de alguns ativos com posição relevante nos seus respectivos mercados, dentre os quais pode-se destacar a rede Hortifruti Natura da Terra (Hortifruti).

O Hortifruti é uma rede de comércio atacadista de frutas, verduras, raízes, tubérculos, hortaliças e legumes frescos, que atua predominantemente no estado do Rio de Janeiro (57 lojas)[1], muito embora também possua lojas nos estados do Espírito Santo, São Paulo e Minas Gerais. Foi adquirido pelas Americanas S/A em setembro de 2021 [2] por meio da aprovação pelo CADE do ato de concentração 08700.004481/2021-80[3][4] em sede de rito sumário.

Conquanto a operação tenha sido aprovada sem dor, importante alerta foi dado pela manifestação da então Conselheira Paula Farani no Despacho de avocação, chamando a atenção para o fato de que a autoridade de defesa da concorrência brasileira deveria aproveitar este caso para se debruçar sobre os setores envolvidos e refinar a jurisprudência sobre varejo online, ecossistemas digitais, plataformas de marketplace e concentrações conglomeradas.

O mencionado alerta teve por base a posição de liderança que o grupo Americanas S/A (empresa BW2 Digital) apresentava no mercado de varejo online e do argumento de que essa posição de liderança poderia gerar incentivos para fechamento de mercado e de discriminação onde as lojas do Hortifruti atuavam com posição dominante.

Embora o alerta trazido pela Conselheira tenha sido rechaçado pelo Plenário do CADE na ocasião, o fato é que argumentos importantes expostos no documento terão agora que ser enfrentados, principalmente porque há uma grande probabilidade de que os interessados pelos ativos do Hortifruti sejam outras varejistas com participação relevante no e-commerce.

As coisas começam a se desenhar para o deslinde do caso Americanas S/A e a  “joia da coroa” não está nos tomates e nas batatas vendidas, mas sim na relação existente entre a expertise do comércio varejista de alimentos desenvolvida pelo Hortifruti e os ecossistemas digitais, plataformas de marketplace e concentrações conglomeradas.


[1] HF LP | Nossas Lojas – Hortifruti

[2] A Superintendência-Geral do CADE identificou sobreposição horizontal no mercado de (supermercados, hipermercados, etc) e integração vertical nos mercados de Atividades da Hortifruti no segmento de varejo de autosserviço (supermercados, hipermercados e atacarejos), e atividades do Grupo LASA no segmento de serviços de entrega de pedidos de mercado (aplicativos); e Atividades da LASA em soluções de pagamentos, e atividades da Hortifruti como varejista de autosserviço.

[3] :: SEI – Pesquisa Processual :: (cade.gov.br)

[4] Apesar de ter sido aprovado sem restrições pelo CADE, o caso foi avocado pela Conselheira Paula Farani por meio do DESPACHO DECISÓRIO Nº 12/2021/GAB4/CADE (SEI/CADE – 0966743 – Despacho Decisório).

Era uma vez a taxa Selic.

No meio do caminho, guerra, quebra de bancos e desarranjo fiscal.

Editorial

Nada é perfeito, não é mesmo!!! Os livros de economia e as teorias econômicas contidas nele, ao contrário do que se andou a falar por aí, é o guia da sociedade e não está fora de moda. No entanto, como tudo que fazemos na vida, miramos no mundo ideal e acertamos no mundo real ou, de outra forma “jogo é jogo e treino é treino”.

Com a fixação da taxa Selic, que é a taxa de juros básica da economia brasileira, também utiliza-se o mesmo ditado: “jogo é jogo e treino é treino”. É preciso lembrar que o Brasil adota o modelo de metas de inflação desde 1999 e os resultados obtidos desde lá não são bons nem ruins, são apenas os resultados de algo que, até que prove o contrário, é o melhor método para controlar inflação, pelo menos na terra Brasilis.

Apenas para lembrar, o Conselho Monetário Nacional define uma meta de inflação para o ano e o instrumento que calibra o alcance desta meta é a taxa de juros definida pelo Comite de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil em suas reuniões ao longo do ano.

De maneira simples, o Copom eleva a taxa básica de juros (Selic) hoje com o objetivo de fazer a inflação convergir para a meta definida no final do ano. Trocando em miúdos, a taxa de juros hoje ajusta a trajetória da inflação amanhã.

Tudo muito lindo e muito belo, principalmente se as hipóteses utilizadas no modelo estiverem ajustadas. No entanto, não é tão simples assim!!! Por mais que os sofisticados modelos de previsão utilizados pelo Bacen e pelo mercado incorporem incertezas e as tente controlar, elas são incertezas e, como tal, são incontroláveis.

O caminho é o seguinte: há uma guerra Rússia/Ucrânia a mais de 1 ano sem previsão de final, bancos internacionais importantes como o Credit Suisse estão indo a lona e, não menos importante, temos um desajuste extremo em nossas contas fiscais. É muita incerteza no caminho, não!?!

É verdade que muito desta incerteza já estava precificada, principalmente a guerra da Rússia/ Ucrânia e o desarranjo fiscal, mas, como dissemos anteriormente, “jogo é jogo e treino é treino”. Quem diria que naquela fatídica tarde de 2014 na Arena Mineirão a seleção brasileira iria levar 7 a 1 da Alemanha na Copa do Mundo?

Para piorar, há uma conexão direta entre a taxa Selic e a dívida pública brasileira, haja vista que grande parte da nossa dívida interna está indexada a esta variável, o que significa dizer que elevação da taxa básica de juros majora o valor do numerador na relação Dívida/PIB e, tudo o mais constante, esta relação também vai para os “céus”.

Pois é!!! Apesar da imperfeição do mecanismo de metas e das intercorrências não controláveis (guerra, quebra de bancos e arcabouço fiscal), tudo o que não precisamos é de mais incertezas. A insatisfação é legítima e as críticas responsáveis devem ser feitas, no entanto, precisamos acreditar naquilo que somos e que construímos, teoria econômica e instituições são exemplos. Do contrário, perderemos a referência e o rumo do caminho.

Investimento e gasto: uma sutil distinção que faz toda a diferença.

Editorial

O Presidente da República expressou ontem que a educação e a saúde não podem ser encaradas como gastos, mas sim como investimentos.

É claro que o mandatário estava se referindo a dignidade humana. Naturalmente que as suas palavras estavam a verbalizar o quanto expresso no art. 6º da Constituição Federal de 1988, que diz que [s]ão direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).

Sem querer entrar na discussão se estes “arroubos” são de natureza populista ou não, o fato é que tratar a educação e a saúde como investimento e não como gasto é um grande avanço em um país que pouca atenção dá a estas áreas, menos pelo que de fato acontecerá e mais por coloca-las em agenda positiva.

Mas o que é investimento e gasto? Por que tratar educação e saúde como investimento está correto?

Se não nos atentarmos para a palavra investimento, podemos pensar que investimento se reduz a aplicar recursos financeiros em um banco em troca de taxas de juros atrativas.

Não!! Não é isso!! Investimento é muito mais do que isso. Em economia investimento é aplicar recursos em capital físico e em capital humano, de forma a gerar ganhos privados e públicos para além dos valores “gastos”.

A contabilidade de custos diferencia claramente investimentos de gastos. Nos ensina Martins[1] que o gasto implica em um desembolso de recurso para pagamento da aquisição de um bem ou serviço, enquanto que investimento é o gasto ativado em função de sua vida útil ou de benefícios atribuíveis a futuro(s) período(s).

Portanto, investimentos e gastos somente são iguais no momento em que os recursos são aportados, no momento seguinte o dispêndio transforma as capacidades do capital, sobretudo o humano, e aquele recurso empregado no primeiro período transforma-se em algo muito mais valioso que o gasto inicial.

Por este motivo, faz toda a diferença tratar a educação e a saúde como investimento. Nestes casos, gasto é o dispêndio que se faz para a construção e manutenção das escolas e dos hospitais e para a remuneração digna dos seus profissionais (professores e médicos), enquanto que o investimento é o benefício que toda a sociedade colhe com estudantes mais bem formados e profissionais mais produtivos.

Fazer a distinção entre os conceitos faz toda a diferença e optar pelo investimento ao invés de optar pelo gasto para classificar os necessários dispêndios em educação e saúde é sinal importante de valorização destas áreas. Conquanto possamos estar enebriados pelo populismo ou qualquer coisa que o valha, isto já é um bom começo!!!


[1] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. Editora Atlas, São Paulo. 2003. Disponível em: Contabilidade de Custos – Eliseu Martins.pdf (google.com)

Por que o caso das joias sauditas importa? Não se pode fazer na vida pública o que se faz na privada!!!

Editorial

O evento das joias sauditas é um exemplo de como o público deve ser tratado como público e o privado como privado. Não é preciso citar os nomes dos envolvidos, pois a confusão entre público e privado é, infelizmente, uma rotina no dia a dia da Terra de Santa Cruz.

Quem fez ou é acusado de ter feito tem pouca importância e se não tem é porque há algo de errado e é ai que está o cerne do problema. O tratamento diferenciado a indivíduos por qualquer que seja a razão fere de morte o que diz o art. 5º da Constituição Federal de 1988 que [t]odos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade….

A celeuma em torno das joias sauditas tem razão de ser. O ex mandatário, assim como eu, você, o médico, o advogado etc é um cidadão que possui CPF como qualquer outro e, como tal, está sujeito a todos os regramentos da lei como cidadão e, enquanto servidor público, está sujeito ao que prevê a legislação específica, ou seja, o presente deve ter caráter personalíssimo[1] e seu valor ser aferido por critérios objetivos previstos em lei.

Mas o que é pior nisso tudo? É a leitura equivocada de caráter personalíssimo do presente ou é a “leitura” equivocada da separação entre público e privado?

Bom, não estamos aqui para adentrar no direito personalíssimo, principalmente porque o valor dos “regalos” é por demais grandioso, o que por si só já justifica a polêmica. No entanto, não podemos deixar de ressaltar que, no regime presidencialista, o Presidente da República, além de ser o chefe de governo, é também o chefe de Estado e, como tal, a sua atuação nas relações internacionais não é sua, mas sim da nação que lhe outorgou o poder da representação nas urnas.

Missão oficial é missão oficial!!! Quem está a serviço é o Estado brasileiro e não o cidadão!!! Não é por outro motivo que os representantes das nações mundo afora ingressam nos países em missão oficial com o passaporte oficial.

Neste sentido, conforme dito anteriormente, qualquer “regalo” que não seja de caráter personalíssimo e que não atenda os critérios objetivos do valor patrimonial do presente é um presente para o Estado brasileiro e não para o CPF do mandatário.

O que estamos a verificar com o caso das joias sauditas é muito mais do que o pagar imposto pelo bem, é simplesmente se apropriar da representação PÚBLICA para obter benefícios PRIVADOS, ou, de uma maneira já conhecida por todos nós, não se pode fazer na vida pública o que se faz na privada!!!


[1] De acordo com Romano (2019), o [d]ireito personalíssimo é aquele direito que, relativo à pessoa de modo intransferível, só por ela pode ser exercido.

ROMANO, Rogério Tadeu. Direitos Personalíssimos. Disponível em: DIREITOS PERSONALÍSSIMOS – Jus.com.br | Jus Navigandi. Acesso em: 18 de março de 2023.

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) renomeado.

Novo governo, antigas ideias. Ou seriam velhas ideias?

Editorial

As palavras antigo e velho são dois adjetivos que qualificam e classificam o substantivo programa, mas que possuem significados bem distintos um do outro, muito embora o senso comum os utilize como se sinônimos fossem.

O adjetivo antigo implica uma avaliação mais positiva ou ao menos neutra da antiguidade da obra, ao passo que o adjetivo velho inspira depreciação e negatividade. Dizer que uma obra é antiga é completamente diferente de dizer que uma obra é velha. No primeiro caso, estão embutidos atributos positivos de antiguidade, como, por exemplo, tradição enquanto que para o adjetivo velha está implícito o abandono, por exemplo.

E, aí? O PAC é um programa antigo ou um programa velho?

O PAC foi um programa de investimentos públicos lançado no segundo mandato do primeiro governo Lula e que tinha como objetivo fomentar a economia por meio de gastos públicos em obras relativas a saneamentohabitaçãotransporteenergia e recursos hídricos.

Usando os adjetivos antigo e velho apresentados nos parágrafos anteriores, é possível se atribuir à orientação tipicamente keynesiana do PAC o adjetivo antigo ao programa, no sentido de que o novo governo retoma uma política com características de um modelo econômico consagrado, inspirado pela obra “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” de John Maynard Keynes[1][2].

A teoria keynesiana faz parte da tradição, pois tem a sua marca registrada na história do pensamento econômico e, como tal, encontra-se inserida no mundo das ciências sociais.

Mas, e o que dizer da política pública denominada PAC?

Bom, aí a coisa muda de figura!!! O adjetivo antigo, que dá um atributo positivo a teoria keynesiana, tem grande chance de dar lugar ao adjetivo velho, pois o programa traz consigo a lembrança recente, ainda que questionável, da malversação dos recursos públicos em projetos desta natureza.

Mas os significados dos adjetivos antigo e velho estão no radar do mandatário. Não é por outro motivo que se busca um nome que se afaste da sigla PAC, pois sabe-se que a antiga política fiscal keynesiana pode ser um bom caminho, mas o velho desgaste dos “erros” do passado pode ser a encruzilhada.


[1] KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Ed. Atlas. 1982.

[2] John Maynard Keynes (Cambridge5 de junho de 1883 — TiltonEast Sussex21 de abril de 1946) foi um economista britânico e membro do Partido Liberal cujas ideias mudaram fundamentalmente a teoria e prática da macroeconomia, bem como as políticas económicas instituídas pelos governos. Ele fundamentou as suas teorias noutros trabalhos anteriores que analisavam as causas dos ciclos econômicos, refinando-as enormemente e tornando-se amplamente reconhecido como um dos economistas mais influentes do século XX e o fundador da macroeconomia moderna.[1][2][3][4] O trabalho de Keynes é a base para a escola de pensamento conhecida como keynesianismo, bem como suas diversas ramificações. (John Maynard Keynes – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org))

Os anjos e a Constituição Federal não têm gênero. E o mercado de trabalho?

Editorial

As famosas pinturas do período da Renascença apresentam os anjos como seres desprovidos de gênero. O renascentista Gregório Lopes ao pintar o quadro denominado “A Virgem, o Menino e Anjos” [1], retrata Nossa Senhora e o menino Jesus sendo cortejados por anjos que prestam as suas reverências independentemente de serem meninos ou meninas.

Da mesma forma, a Constituição Federal iguala homens e mulheres a uma só espécie quando afirma no inciso I do art. 5º (Direitos Fundamentais) que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

Se no plano celestial os anjos não têm gênero e se no mundo terrestre brasileiro a carta maior estabelece que todos são iguais perante a lei, por que no mundo do trabalho deveria ser diferente?

Não, não deveria ser diferente!! O problema é que é!! A literatura econômica empírica está ai para demonstrar que homens e mulheres recebem salários distintos ao desempenharem funções idênticas[2], situação que piora bastante quando se faz o recorte por raça. As mulheres negras recebem salários menores que as mulheres brancas e muito menores que os homens brancos.

Camposa et al. (2021) apresenta, em sua revisão da literatura, uma série de explicações para a desigualdade salarial entre gêneros (hiato de gênero), dentre as quais: a baixa participação feminina em ocupações ligadas às ciências, engenharias e computação (Barth et al. (2017)[3]); maior poder de barganha dos trabalhadores do sexo masculino que do sexo feminino (Card, Cardoso e Kline (2013)[4]); e o fenômeno conhecido como “teto de vidro (Powell; Butterfield (2015)[5]).

De todas as explicações apresentadas, nenhuma chama mais a atenção que àquela apresentada por Powell e Butterfield (2015), de que o gênero feminino percebe um salário menor do que o gênero masculino porque tem o famoso “teto de vidro”. Cimelli et al. (2021)[6], ao fazer um estudo empírico a respeito do hiato salarial entre gêneros para 25 países europeus, trazem resultados sugerem que, em média, “sitcky floors” relacionados a normas sociais, estereótipos de gênero e discriminação representam 40% da diferença salarial de gênero, enquanto o “teto de vidro” relacionado à penalidade de maternidade é responsável por cerca de 60%[7].

Além de Cimelli et al., alguns outros estudos têm demonstrado que a produtividade feminina fica afetada a partir do nascimento do primeiro bebê. Cullen e Perez-Truglia (2019)[8] apontam que após o nascimento da primeira criança, as mulheres tendem a tirar licença de maternidade e fazer a transição para o trabalho de meio período em uma proporção maior que os homens. Como consequência, elas podem não desenvolver as habilidades e redes profissionais que lhes permitiriam subir a escada salarial[9].

Espera ai!!! Então, só o fato de a mulher poder gestar um ser humano durante 9 meses já justifica salários menores? Será que a probabilidade de engravidar afeta a produtividade esperada da mulher e, por isso, afetado fica também o salário esperado do sexo feminino?

Quer dizer, não seria o diferencial de produtividade que faria com que a mulher em idade fértil sem filhos recebesse salários menores do que o homem em funções idênticas, mas sim o efeito esperado sobre a produtividade futura resultante da probabilidade de engravidar?

Nada mais cruel do que isso!! O mercado de trabalho tem gênero, e este gênero é o masculino!!!


[1]  A Virgem, o Menino e Anjos é uma pintura a óleo sobre madeira de carvalho, de c. 1536 – 1539, do pintor português do Renascimento Gregório Lopes (c. 1490-1550), obra proveniente do Convento de Cristo, em Tomar e que está actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.

A pintura é uma representação simbólica do culto mariano surgindo a Virgem Maria com o Menino Jesus em primeiro plano rodeados pelos anjos. [A Virgem, o Menino e Anjos (Gregório Lopes) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]

[2] CAMPOSA, Vinícius Thomaz de; SILVA, Maria Micheliana da Costa; CARDOSO, Leonardo Chaves Borges. Evidências do hiato de gênero e produtividade na indústria de transformação brasileira. Revista de Economia Contemporânea (2021) 25(2): p. 1-2. Disponível em: 25691 (ufrj.br). Acesso em: 08 de março de 2023.

[3] BARTH, E. et al. The effects of scientists and engineers on productivity and earnings at the establishment where they work. Cambridge: National Bureau of Economic Research, 2017.

[4] CARD, D.; CARDOSO, A. R.; KLINE, P. Bargaining, sorting, and the gender wage gap: Quantifying the impact of firms on the relative pay of women. The Quarterly Journal of Economics, v. 131, n. 2, p. 633-686, 2015.

[5] POWELL, G.; BUTTERFIELD, A. The glass ceiling: what have we learned 20 years on? Journal of Organizational Effectiveness: People and Performance, v. 2, n. 4, p. 306-326,

[6] CIMINELLI, Gabriele; SCHWELLNUS, Cyrille; STADLE, Balazs. Sticky floors or glass ceilings? The role of human capital, working time flexibility and discrimination in the gender wage gap. Economics Departament Working Papers No. 1668. 2021. Disponível em: 02ef3235-en.pdf (oecd-ilibrary.org). Acesso em: 08 de março de 2023.

[7] Tradução livre do trecho: The findings suggest that, on average, “sticky floors” related to social norms, gender stereotyping and discrimination account for 40% of the gender wage gap, while the “glass ceiling” related to the motherhood penalty accounts for around 60%.

[8] Cullen, Z. and R. Perez-Truglia (2019), “The Old Boys’ Club: Schmoozing and the Gender Gap”, NBER Working Paper Series, No. 26530, National Bureau of Economic Research, http://www.nber.org/data-appendix/w26530 (accessed on 28 January 2021).

[9] Tradução livre do trecho: [a] after the birth of the first child women tend to take maternity leave and transition to part-time work in a larger proportion than men. As a consequence, they may not develop the skills and professional networks that would allow them to climb the wage ladder.

Quem disse que imposto de exportação é para arrecadar?

Não é, mas pode ser!!!

Editorial

Esta semana foi a grande prova de fogo da lua de mel do novo governo. A bomba relógio da desoneração dos impostos dos combustíveis ativada no governo anterior foi parcialmente desativada neste dia primeiro de março. Digo, parcialmente, porque nem todos os tributos voltaram a carga nesta data. O diesel, por exemplo, permanecerá isento dos impostos federais por um bom tempo ainda.

O retorno parcial de tributos nos combustíveis é até aceitável, haja vista que o retorno integral dos impostos poderia ter um impacto muito negativo na popularidade do recente mandatário, algo que não é desejável logo nos três primeiros meses do mandato. O que é no mínimo preocupante é a criação, por quatro meses, de um imposto sobre exportações de óleo cru.

Mas o que vem a ser um imposto de exportação?

Bom, de acordo com a Professora Fernanda Manzano Sayeg, [o] Imposto de Exportação está definido no artigo 153, inciso II e § 1º, da CF/88, e no artigo 23 a 28 do CTN. Trata-se de um tributo que visa a tributar a saída definitiva determinadas mercadorias do território brasileiro. Sua função é precipuamente extrafiscal, ou seja, deveria ser um instrumento da atuação da União no controle do comércio exterior[1]. [Sayeg (2023)].

Na verdade, este imposto tem funções claras e objetivas, podendo assumir diferentes formas[2]. Conforme pondera Sayeg (2023), [a]o contrário de diversos outros tributos, a função principal do IE não é arrecadar, mas desestimular a exportação de determinados produtos, pois será mais vantajoso efetuar as vendas no mercado interno, o que aumentará a oferta e, consequentemente, reduzirá o valor de venda do referido produto. [Grifo nosso].

Seria a contenção dos preços dos combustíveis um segundo objetivo da equipe econômica? Arrecada mais com o imposto de exportação e de lambuja ainda pressiona o preço dos derivados do petróleo para baixo?

Pode até ser verdade que a arrecadação do governo aumente com o imposto de exportação do óleo bruto, mas o efeito principal da medida é o sobre o preço do combustível no território brasileiro, pois, como afirma Sayeg (2023), a função precípua do IE não é arrecadação.

E aí, a pergunta é outra: o tamanho da economia brasileira no cenário mundial do petróleo tem poder para afetar os preços internacionais da commodity?

Se a resposta for positiva, o imposto de exportação proposto pelo governo pode ser um verdadeiro tiro no pé, pois, como a formação de preços da Petrobras está diretamente atrelada aos preços praticados no mercado internacional, a redução de parte significativa da oferta internacional de óleo bruto pressionará os preços internacionais do petróleo que, por consequência, afetarão a economia brasileira.

É o Brasil um player importante no mundo em termos de oferta de óleo bruto?

Bom, segundo dados do BP Statistical Review of Word Energy o Brasil ocupava em 2020 a nona posição no ranking dos maiores produtores de petróleo do mundo, como 3,4% da produção mundial[3].

Este percentual é razoável para afetar o equilíbrio internacional?

A resposta a este questionamento esta além da proposta deste editorial, mas o que sugere as suas entrelinhas é que há uma engrenagem subliminar em tudo isso.

Se o Brasil não tiver o poder de alterar os preços internacionais do petróleo, a medida adotada arrecada mais e pressiona o preço para baixo dos combustíveis. Se, no entanto, a economia brasileira tiver o condão de afetar os preços internacionais do petróleo, o governo arrecada duas vezes: com imposto de exportação e com a inflação.

Quem disse que imposto de exportação é para arrecadar? Não é, mas pode ser!!!


Anexo I. O efeito da aplicação do imposto de exportação sobre os preços do produto taxa em economia pequenas e grandes

Bouët e Debucquet (2010)[4], ao analisar os efeitos econômicos da taxação das exportações no setor alimentício, ponderam que o a taxação das exportações tem efeitos distintos em países pequenos e em países grandes e a razão é a de que um país pequeno não altera o preço internacional do bem taxado, ao passo que um país grande, que detém uma grande participação no mercado, afeta o preço internacional porque a redução nas exportações tem um efeito significativo na quantidade ofertada no mundo.

Fonte: Bouët e Debucquet (2010)

Na economia pequena (figura 1), o preço do bem doméstico fica abaixo do preço internacional, uma vez que a taxação desestimula a venda do bem externamente e, como consequência do aumento da oferta doméstica do bem, os preços se reduzem. Para a economia grande (figura 2), no entanto, a taxação amplia a oferta doméstica e, como a economia representa uma elevada participação mercado, a redução na oferta internacional não passa despercebida, o que faz com que os preços internacionais aumentem do preço P0 para P2.


[1] Ver: SAYEG, Fernanda Manzano. A função extrafiscal do Imposto de Exportação e do Imposto de Importação. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Fernanda Manzano Sayeg. Disponível em: A função extrafiscal do Imposto de Exportação e do Imposto de Importação (webadvocacy.com.br). Acesso em 05 de março de 2023.

[2] Para Piermartini (2004), [o]s impostos de exportação podem assumir diferentes formas. Pode ser um imposto ad valorem, especificado como um imposto percentual sobre o valor do produto; ou um imposto específico, especificado como um valor fixo a pagar por unidade de produto. Pode ser um imposto progressivo, ou seja, caracterizado por uma alíquota alta quando o preço do produto é alto e uma alíquota menor quando o valor do produto é baixo. Todos os tipos de impostos de exportação têm o efeito de reduzir o volume das exportações e são, portanto, uma forma de restrição à exportação.

Tradução livre do trecho:

Export taxes can take different forms. It can be an ad valorem tax, specified as a percentage tax of the value of the product; or a specific tax, specified as a fixed amount to pay per unit of a product. It can be a progressive tax, i.e. characterised by a high tax rate when the price of the product is high and a lower tax rate when the value of the product is low. All types of export taxes have the effect of reducing the volume of exports and are therefore a form of export restriction.

[3] Figura 3. Maiores produtores de petróleo do mundo – 2020

País%
EUA18,6
Arábia Saudita12,5
Rússia12,1
Canadá5,8
Iraque4,7
China4,4
Emirados Árabes Unidos4,1
Irã3,5
Brasil3,4
Kuwait3

Fonte: BP Statistical Review of World Energy e Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), 2021.

[4] BOUËT, Antoine; DEBUCQUET, David Laborde. Economics of Export Taxation in a Context of Food Crisis: A Theoretical and CGE Approach Contribution. IFPRI Discussion Paper 00994. Junho 2010. Disponível em: The Economics of Export Taxation in a Context of Food Crisis (foodsecurityportal.org). Acesso em: 04 de março de 2023.

Programas de transferência de renda matam a fome da barriga e da esperança

Editorial

Aproveitamos a data de hoje, em que será lançado o novo Bolsa Família[1], para trocarmos em miúdos o que deve estar estipulado em um programa de transferência de renda para que ele seja exitoso e, principalmente, qual deve ser o objetivo de programas desta natureza para a sociedade.

Um programa de distribuição de renda bem desenhado deve possuir regras bem definidas tanto para entrar no programa quanto para sair dele. Para isso, o programa deve estar bem focado na classe social que objetiva atingir, deixando bem especificado os direitos e os deveres dos beneficiários (ex. manter os filhos regularmente matriculados e com a carteira de vacinação em dia), e deve apresentar portas de saída para o benefício (ex. renda familiar acima do patamar de renda usado no programa para incluir beneficiários).

Elaborar portas de saída não é algo trivial e, ao contrário do que se imagina pode ser um verdadeiro “tiro no pé”. No caso da renda familiar acima do patamar de renda do programa citado, por exemplo, Medeiros et alii (2007) apontam que, [a]o escolher entre aceitar ou não um novo trabalho, as pessoas levam em consideração, entre outras coisas, o risco de trocar as transferências estáveis do programa por rendas instáveis de um trabalho qualquer. Nessas situações também não seria desejável que ocorresse a cessação dos benefícios, uma vez que regras de interrupção desse tipo podem desestimular a inserção laboral. [Medeiros et ali (2007)].

Então, regras de entrada e portas de saída são condições si ne qua non para o sucesso de programas de transferência de renda. Mas, o que é sucesso nesse caso? O senso comum entende que “sucesso” é retirar as pessoas da miséria no curto prazo, o que não deixa de ser uma verdade nobre destes programas.

No entanto, o objetivo de um programa de transferência de renda é muito mais nobre que isso e o seu efeito é muito mais poderoso na segunda e terceira gerações do que na primeira que recebeu o benefício. A renda para a primeira geração significa alimentação, ensino e saúde para a segunda e terceira gerações. A oportunidade de se alimentar na idade correta da vida e de receber as vacinas para cada faixa etária possibilita a ampliação exponencial do aprendizado das novas gerações. Com mais aprendizado, maiores são as chances de se formar cidadãos qualificados e aptos para o trabalho. Além de melhorar a qualidade de vida das pessoas, cidadãos com mais estudo tem maiores possibilidade de dar produtividade para seu país.

Assim, programas de transferência de renda matam a fome da barriga e da esperança. Alimentam a primeira geração e salvam a segundo e terceiras gerações da pobreza.


[1] De acordo com Medeiros et alli (2007), [o] Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência mensal de renda que surgiu, no final de 2003, a partir da unificação de uma série de programas preexistentes, bastante inspirado pelo programa de renda mínima vinculado à educação, o Bolsa Escola. [Medeiros et alli (2007)].

MEDEIROS, Marcelo; BRITO, Tatiana; SOARES, Fábio. Transferência de Renda no Brasil. Novos estudos CEBRAP (79) • Nov 2007. Disponível em: SciELO – Brasil – Transferência de renda no Brasil Transferência de renda no Brasil. Acesso em 02 de março de 2023.