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André Santa Cruz & Henrique Arake
Na última semana, sites especializados em notícias do mundo jurídico informaram que, no julgamento do recurso de apelação 1000712-41.2015.8.26.0068, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo firmou um importante precedente sobre direito societário.
Em um processo de dissolução parcial de sociedade limitada, o juízo de primeiro grau determinou a apuração de haveres com base na metodologia do fluxo de caixa descontado[1], por entender “ser devida a inclusão do ‘fundo de comércio’ no cômputo dos haveres, visto que a apuração de haveres deve abranger todos os bens integrantes do patrimônio incorpóreo da sociedade: o fundo de comércio e aviamentos, a clientela, know-how dos funcionários, a aptidão da empresa para gerar lucros/riqueza, além de sua imagem de mercado, elementos estes que foram abordados na perícia por meio do critério da apuração da goodwill, nos moldes do art. 606 do CPC”.
Esse entendimento, porém, foi reformado pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento de recurso de apelação.
O relator do recurso, desembargador Azuma Nishi, ressaltou que, no caso, os sócios não estipularam critério específico de apuração de haveres no contrato social, limitando-se a definir que seria feito um balanço patrimonial extraordinário, algo que, na visão do desembargador, refletiu uma opção pelo critério legal, que privilegia o valor patrimonial, e não o “valor econômico” da empresa.
Vejamos o que dizem dois dispositivos legais relevantes para a solução de controvérsias como essa:
Código Civil
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
Código de Processo Civil
Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.
Continuando, o desembargador relator destacou que, no seu entender, o critério legal de apuração de haveres previsto nos dispositivos mencionados (balanço patrimonial) – que deve sempre ser aplicado quando os sócios não estipularem expressamente um critério específico no contrato social – é incompatível com uma avaliação baseada no “valor econômico da empresa”, que normalmente é feita por meio da conhecida metodologia do fluxo de caixa descontado.
Transcrevo trecho do voto do relator:
Todavia, na espécie, não há previsão específica no contrato social a ponto de, por si só, definir o critério para apuração de haveres. O contrato social define (critério eleito pelas partes) como base para a apuração de haveres o balanço patrimonial extraordinário. Quanto o contrato social define balanço patrimonial, entendo prestigiar o patrimônio líquido constante da contabilidade da sociedade, ou seja, na linha do que dispõe o Código Civil, em que foi prestigiado o critério contábil e não o valor econômico da empresa.
Segundo o magistério de Fábio Ulhôa Coelho, “o valor patrimonial, e não o econômico, é o critério mais ajustado à avaliação das quotas da sociedade limitada, quando se trata de apurar haveres de sócio retirante, excluído ou dos sucessores do falecido, e também das ações da sociedade anônima heterotípica parcialmente dissolvida, na definição do reembolso devido ao acionista que se desliga.”
O termo ‘extraordinário’ entendo referir-se não ao balanço ordinariamente levantado por ocasião do encerramento do exercício social, mas aquele especialmente levantado para fins específico de apuração de haveres do sócio retirante.
Não havendo disposição específica no contrato social, aplica-se o critério da Lei, mais especificamente, aquele previsto no artigo 606 do CPC 2015, mesmo porque o disposto em tal diploma legal, não conflita com o ‘balanço patrimonial extraordinário’ referido em contrato social, sendo com ele harmônico. O critério previsto no CPC, e que já era o definido no CC 2002, considera a história da sociedade culminada no momento de sua dissolução, não contemplando os resultados futuros. Considera o valor contábil do patrimônio, apurado segundo princípios de contabilidade, notadamente os de conservadorismo e de escrituração pelo custo de aquisição, apurado em balanço especialmente levantado na data da dissolução, ajustado pelos valores de saída ou de realização. Ademais, o critério de avaliação baseado no valor econômico da empresa, que é aquele utilizado para dimensionar o valor do fundo de comércio, é incompatível com o critério legal. Tal critério de avaliação é alternativo e incompatível com o do valor patrimonial contábil levantado na data da resolução, tendo os itens de ativo e passivo ajustados aos preços de saída ou de realização, vez que partem de princípios ou partidos diferentes. O primeiro baseado na história construída da sociedade e, o segundo, baseado no futuro.
Entender que o critério do CPC 2015, quando fala da avaliação dos intangíveis, significa admitir a avaliação da empresa pelo valor econômico ou pelo fluxo de caixa descontado, é uma visão equivocada, respeitada a posição em sentido contrário que prevalecia na jurisprudência, como a seguir veremos. Equivocada, pois, além de contrariar o princípio da apuração do valor baseado na história da sociedade, acabaria por reconhecer uma participação do sócio retirante, ou excluído, nos lucros futuros da sociedade, ainda que não mais participasse do risco do negócio, o que é incompatível com a lógica da atividade empresarial, em que o lucro é a contrapartida direta do risco e do capital empregado em determinado negócio, que, com a saída do sócio, não mais subsistiriam.
Como o fundo de comércio constitui uma combinação de ativos, tangíveis e intangíveis, além de passivos gerados ou tomados no exercício da atividade empresarial, podemos dizer que a sua avaliação constitui a própria avaliação da empresa ou da sociedade, que detém esse composto organizado de ativos e passivos para desempenho de sua atividade empresarial. O fundo de comércio não constitui um item específico de qualquer conta do ativo, constante do balanço patrimonial da sociedade, nem corresponde a apenas os seus itens intangíveis, constituindo, sim, uma universalidade de fato que integra o patrimônio do empresário. Ou seja, o fundo de comércio não constitui um item intangível, tais como as marcas e patentes, mas o conjunto de todos os elementos, ativos e passivos organizados, dentre eles os intangíveis. Assim, quando a Lei se refere à avaliação de intangíveis (além dos tangíveis), não está se referindo à avaliação do fundo de comércio que é um critério de avaliação alternativo ao do valor patrimonial de mercado, que não tem previsão legal, por ser incompatível com o partido legal de avaliação da empresa baseada na sua história e não no seu futuro.
Por fim, o desembargador relator ainda citou um recente precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual prevaleceu o entendimento capitaneado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no sentido de que, sendo omisso o contrato social, o critério legal (balanço patrimonial – art. 1.031 do CC e art. 606 do CPC) deve ser aplicado, afastando-se a aplicação da metodologia do fluxo de caixa descontado.
Confira-se, a propósito, a ementa do acórdão do mencionado julgado do STJ:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. SOCIEDADE EMPRESÁRIA LIMITADA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. SÓCIO RETIRANTE. APURAÇÃO DE HAVERES. CONTRATO SOCIAL. OMISSÃO. CRITÉRIO LEGAL. ART. 1.031 DO CCB/2002. ART. 606 DO CPC/2015. VALOR PATRIMONIAL. BALANÇO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO. FUNDO DE COMÉRCIO. BENS INTANGÍVEIS. METODOLOGIA. FLUXO DE CAIXA DESCONTADO. INADEQUAÇÃO. EXPECTATIVAS FUTURAS. EXCLUSÃO.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a definir se o Tribunal de origem, ao afastar a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado para avaliação dos bens imateriais que integram o fundo de comércio na fixação dos critérios da perícia contábil para fins de apuração de haveres na dissolução parcial de sociedade, violou o disposto nos artigos 1.031, caput, do Código Civil e 606, caput, do Código de Processo Civil de 2015.
3. O artigo 606 do Código de Processo Civil de 2015 veio reforçar o que já estava previsto no Código Civil de 2002 (artigo 1.031), tornando ainda mais nítida a opção legislativa segundo a qual, na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação.
4. O legislador, ao eleger o balanço de determinação como forma adequada para a apuração de haveres, excluiu a possibilidade de aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado.
5. Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema demonstram a preocupação desta Corte com a efetiva correspondência entre o valor da quota do sócio retirante e o real valor dos ativos da sociedade, de modo a refletir o seu verdadeiro valor patrimonial.
6. A metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente.
7. A doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, entende que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, tais como (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade.
8. Recurso especial não provido.
(REsp 1.877.331/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 13/4/2021, DJe de 14/5/2021)
Em suma: se os sócios querem um critério específico de apuração de haveres, precisam estipular isso de forma clara e expressa no respectivo contrato social; caso contrário, o critério legal (balanço patrimonial) será impositivo, valendo lembrar que, a depender do tipo de empreendimento, tal critério pode não ser o mais adequado. O próprio Desembargador Nishi, inclusive, trata da possibilidade de o juiz admitir outros critérios ou realizar ajustes se existirem distorções relevantes, caso aplicado apenas o critério legal. Em suas palavras, seria o caso:
[…] das empresas da nova economia baseada em tecnologia de informação, que possuem uma estrutura patrimonial totalmente diferente das empresas da chamada indústria tradicional ou convencional. Se tomarmos por base negócios como a Uber, Airbnb, Mercado Livre ou Google, que muitas vezes apresentam patrimônio líquido e resultados negativos, quase sem ativos fixos em seu patrimônio, o valor patrimonial, ainda que real ou a valores de mercado ou de saída, certamente não representará o valor dos respectivos negócios, sendo imperativo considera, na avaliação de tais empresas, o aviamento e outros elementos intangíveis, sendo plenamente justificável a avaliação destas empresas baseada no valor econômico […].[2] [3]
A mesma observação feita no parágrafo anterior vale para a forma de reembolso do sócio falecido/retirante/excluído, em caso de dissolução parcial: se o contrato social não determinar, de maneira clara e expressa, uma forma específica de reembolso das quotas (pagamento parcelado, por exemplo), aplica-se a forma prevista em lei, que é o pagamento em dinheiro no prazo de 90 dias (art. 1.031, § 2º do CC).
Tudo isso mostra a importância da construção estratégica do contrato social, por meio da contratação de advogados especialistas para a elaboração do documento, os quais saberão identificar, à luz do modelo de negócio explorado pela sociedade, que cláusulas são imprescindíveis e como elas devem ser redigidas, de modo a prevenir litígios e garantir a desejada segurança jurídica aos empreendedores e investidores envolvidos.
[1] Por meio do método do Fluxo de Caixa Descontado, o analista estuda o histórico dos resultados da empresa analisada e faz uma projeção dos resultados futuros. Depois, ele aplica uma taxa de desconto sobre esses resultados futuros, de maneira a trazê-los a valor presente. Para maiores detalhes, cfr. NETO, Alexandre A. Valuation – Métricas de Valor e Avaliação de Empresas. SP: Ed. Atlas, 2021.
[2] NISHI, Eduardo Azuma. Apuração de Haveres – Novos Paradigmas na Ordem Jurídica. SP: Quartier Latin, 2022. P. 170.
[3] Conquanto concordemos com a posição do autor, discordamos no que tange à possibilidade de o juiz da causa adotar critérios que não sejam os legais ou os contratuais, uma vez que esses são os estritos limites dentro dos quais o legislador o autorizou. Não é papel do magistrado corrigir o equívoco do empresário que, podendo construir contratualmente os critérios adequados para avaliação de sua própria empresa, se queda inerte e assume o risco de sua participação societária ser subavaliada.