Defesa comercial

O Regime de Origem como um dos Focos Centrais das Negociações Internacionais

Josefina Guedes & Eliane Fontes

Quando se aborda o tema de acordos internacionais, imediatamente pensa-se em questões tarifárias, procurando resguardar as tarifas de importação dos produtos fabricados e reduzir as dos não fabricados, dependendo do interesse de cada nação envolvida. Acordos internacionais são complexos e abarcam inúmeros temas, que vão muito além da mera desgravação tarifária para obter acesso a mercados ou tentar restringi-los. De maneira alguma, questiona-se a relevância de questões tarifárias, mas normalmente quando se completa a desgravação tarifária perde-se o objeto. Outros temas, em contrapartida, ganham em importância, como é o caso do regime de origem, que abordaremos no presente artigo.

Regime de origem é o corpo normativo de determinado acordo comercial que estabelece a maneira pela qual a origem será comprovada para que faça jus aos benefícios firmados nesse acordo. Por intermédio do regime de origem, as partes acordam sobre os critérios, exigências e obrigações na matéria origem. A observância desse regime permite que os países possam garantir vantagens comerciais que foram acordadas, sendo considerado importante instrumento de política comercial.

Historicamente, após a Segunda Grande Guerra, em 1947, foi estabelecido o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ou Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio (GATT), visando promover o comércio internacional e remover ou reduzir barreiras comerciais, tais como tarifas ou quotas de importação, a eliminação de preferências entre os signatários.

O Acordo Geral tratava-se de um conjunto de normas tarifárias destinadas a impulsionar o livre comércio e a combater práticas protecionistas nas relações comerciais internacionais, gerando com isso riqueza entre as nações.

Vinte e três foram membros fundadores, são eles: Brasil, Bélgica, África do Sul, Austrália, Birmânia (ou Myanmar), França, Canadá, Reino Unido, Ceilão, Holanda, Estados Unidos, Chile, China, Cuba, Checoslováquia, Índia, Líbano, Síria, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Rodesia do Sul.

O Acordo inicialmente foi discutido na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego, em Havana, entre 1947 e 1948, após o fracasso das negociações para criação da International Trade Organization (ITO).

Assim, o Acordo Geral, conhecido como GATT, foi assinado, em Genebra, no dia 30 de outubro de 1947, com vigência a partir de 1º de janeiro de 1948, ficou vigendo até 14 de abril de 1994, quando foi substituído pelos Acordos da Rodada do Uruguai, assinado por 123 países membros, em Marrakesh, criando a entidade internacional denominada Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1º de janeiro de 1995.

Em paralelo as negociações multilaterais, nessa mesma época, diversos outros acordos foram surgindo em formatos regionais, uniões aduaneiras, como a União Europeia, ALADI na América Latina, Mercosul, NAFTA, ASEAN, entre outros. Cada um desses acordos estabeleceu seu próprio regime de origem, para assim preservar preferências regionais mais vantajosas para seus parceiros. Além de garantir, o início das cadeias globais de valor das grandes multinacionais e nações.

Esse emaranhado de acordos, no final da década de 90, passou a ser um problema, sendo duramente criticado, uma vez que os regimes de origens elaborados para cada acordo, sejam regionais ou de livre comercio, passaram a ser grandes barreiras ao comércio de bens pelo mundo.

A complexidade dos regimes de origens começou a ser questionada pelas cadeias globais de valor que foram surgindo nas últimas décadas, uma vez que o objetivo desses grandes grupos é fabricar seus produtos em regiões mais competitivas, levando em consideração o custo da mão de obra, logística e incentivos fiscais locais.

Diante de todo esse movimento, foi necessário reavaliar os regimes de origem e buscar uma simplificação, principalmente a redução de conteúdo local, para poder atingir as necessidades desse novo desenho de produção e comércio.

Nesse novo cenário, surgiram novos conceitos de regime de origem, sofisticando-se de tal forma, que a nomenclatura vem resultando numa linguagem complexa para os que não atuam na área internacional, como mercadoria originária, mercadoria obtida, mercadoria integralmente elaborada, transformação substancial, salto tarifário, índice de conteúdo regional e etc.

Em função dessas necessidades, houve um desmembramento das regras de origem, podendo ser classificadas em regimes de origem: Não-Preferenciais ou Preferenciais.

Independentemente do tipo de regras de origem, todos observam conjunto de leis, normas, regulamentos e atos administrativos de aplicação geral, utilizados por cada país para a determinação do país de origem das mercadorias, desde que não relacionados as regras comerciais contratuais ou autônomos acordadas, que prevejam a concessão de preferências tarifárias.

Em relação ao regime de origem não-preferencial, a regra de origem utilizada é o tratamento de nação mais favorecida que está prevista no Acordo Geral da OMC, como também, nas medidas de defesa comercial, nas restrições quantitativas discriminatórias ou quotas tarifárias como salvaguardas, compras governamentais, entre outras.

No âmbito da OMC foi criado um Comitê para estabelecer regras de origem não-preferenciais comuns, para utilização de todos os Países-Membros. No entanto, por diferenças incontornáveis de enfoques econômicos entre os países, o trabalho não pode ser concluído.

Quanto aos regimes de origem preferenciais, usualmente são regras negociadas nos acordos internacionais de comércio, para a concessão de preferências tarifárias entre as partes signatárias, que devem ser cumpridas para que uma determinada mercadoria possa ser considerada originária de um desses países e assim receber tratamento tarifário preferencial.

Existem alguns regimes de origem preferenciais estabelecidos sem negociação entre as partes, quando um país decide conceder, unilateralmente, preferências tarifárias para outros. Um exemplo clássico é o Sistema Geral de Preferências (SGP), pelo qual vários Países Desenvolvidos, se comprometeram, no âmbito da UNCTAD, a efetuar concessões unilaterais preferenciais a Países em Desenvolvimento ou Países Menos Desenvolvidos, podendo estabelecer regras de origens próprias para esses regimes comerciais autônomos ou específicos, com o objetivo principal de auxiliar no desenvolvimento econômico e social e a inserção dos outros países na economia mundial.

Mas a grande maioria das regras de origem preferenciais integram os Regimes de Origem negociados nos acordos de comércio, definindo duas categorias de mercadorias que podem ser consideradas como originárias: (i) bens integralmente obtidos ou produzidos no território de um ou mais países signatários do acordo, e (ii) bens que utilizam algum tipo de insumo importado, mas cumprem com as regras de origem estabelecidas no acordo. São consideradas como originárias:

  • Quando as mercadorias são totalmente obtidas no território dos países-membros do acordo. Normalmente são produtos do reino animal, vegetal ou mineral, recursos naturais ou frutos da caça e pesca extraídos no território dos países-membros, produtos de pesca. Ou podem ser produtos elaborados integralmente no território de qualquer parte quando em sua elaboração forem utilizados, única e exclusivamente, materiais originários das partes.
  • Quando as mercadorias utilizam insumos importados de países não integrantes do acordo. Nesses casos, as mercadorias podem ser qualificadas como originárias, mesmo tendo sido produzidas com materiais não-originários, desde que esses produtos, elaborados total ou parcialmente com insumos de países de fora do acordo, cumpram com as regras de origem estabelecidas no acordo. Estas regras podem ser de cumprir um percentual mínimo de valor agregado no seu território ou de que os produtos são resultantes de um processo de transformação que lhes confira nova individualidade, caracterizada pelo fato de estarem classificados em uma posição tarifária diferente dos materiais não-originários.

Outrossim, as partes envolvidas no acordo podem determinar requisitos específicos de origem, que prevalecem sobre os critérios gerais, os quais têm por objetivo principal dificultar qualquer manobra para o não cumprimento das regras de origem acordadas e assim garantir a correta utilização dos benefícios do acordo.  

A título de exemplo, o acordo de livre comércio Mercosul e União Europeia, o regime de origem foi em grande parte baseado em requisitos específicos por setor econômico ou até por produto, devido as cadeias globais de valor, e demais necessidades das regiões envolvidas, como a manutenção de investimentos e empregos.

Com os acordos que resultaram em uma união aduaneira e considerando também as cadeias globais de valor, foram necessárias outras regras para acomodar tais situações, o que resultou na regra de acumulação de origem, que consiste na possibilidade da mercadoria ser originária, quando os produtores de um país-membro desse acordo ou união aduaneira, considere como originário todos os insumos provenientes dos países sócios do acordo ou união aduaneira.

Dessa forma, a acumulação de origem, constitui um dos elementos mais importantes dos regimes de origem, porque permite integrar as estruturas produtivas dos países-membros do acordo, incrementando o comércio entre as partes signatárias. Para isso, é necessário que se cumpram alguns tipos de acumulação:

“a) Acumulação de mercadorias ou bens: considerar como originário todos os insumos dos países sócios do acordo, desde que esses cumpram os regimes de origem do acordo;

b) Acumulação de processos: no momento da aplicação da regra de origem, considera os territórios dos países-membros do acordo como um único território;

c) Acumulação estendida: permite aos membros de um acordo (A e B) acumular insumos de terceiros países não-membros (C), sempre que esses terceiros países tenham acordos com cada um desses países-membros (A e B). A acumulação pode ser ampla (para todos os produtos) ou somente setorial [1]

Por exemplo, no caso europeu, um produto pode ter seu processo produtivo em 2 (dois) ou mais países e ser considerado produto originário da União Europeia.

Diante da complexidade do tema, somado a dinâmica do comercio exterior, conclui-se que em negociações internacionais para criação de acordo comercial o capítulo destinado às regras de origem deve ter atenção especial e redobrada, pois essas regras subsistirão aos temas tarifários, que podem ser considerados temporários, durando apenas enquanto a desgravação tarifária total não é atingida. 

Por fim, o dinamismo atual, em especial do comércio internacional, onde a cada momento surgem novas necessidades para atender as demandas globais, somados a fatores externos, como guerras e pandemias nos permite dizer que muitas outras mudanças poderão ocorrer no debate sobre regras de origem.


[1] Fonte: Secretaria de Comercio Exterior – SECEX

Novas regras de comércio exterior promovem o alinhamento da legislação brasileira a acordos multilaterais de comércio e resultam em benefícios econômicos

Fernanda Manzano Sayeg & Karla Borges Furlaneto

No mês de junho de 2022, foram publicadas importantes alterações legislativas relacionadas a comércio exterior. Em 8 de junho de 2022, foi publicado o Decreto nº 11.090, que alterou o artigo 77, do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009 ao determinar que devem ser excluídos do valor aduaneiro os gastos incorridos no território nacional e destacados no custo do transporte, comumente denominados de capatazia. Já em 24 de junho, foi publicada a Instrução Normativa RFB nº 2090, de 22 de junho de 2022, que atualizou as regras de controle e valoração aduaneira de mercadorias e previu expressamente a exclusão da capatazia do valor aduaneiro.

As duas publicações foram comemoradas por entidades de classe, importadores e estudiosos do comércio internacional e do direito aduaneiro. Afinal, a legalidade da inclusão das despesas relativas à carga, à descarga e ao manuseio das mercadorias importadas, também conhecidas como “despesas de capatazia”, na base de cálculo do imposto de importação estava sendo questionada judicialmente há anos.

Com a publicação do Decreto nº 11.090/2022, de iniciativa do Ministério da Economia e motivada pela necessidade de redução do preço de bens essenciais importados em um cenário de alta de preços e inflação, prevaleceu a tese defendida pelos importadores e estudiosos do direito do comércio internacional, que havia sido rejeitada em 2020 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entendimento equivocado que passamos a esclarecer.

As normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), foro de caráter multilateral do qual o Brasil é parte, estabelecem parâmetros e critérios para o estabelecimento dos tributos que podem ser cobrados na importação de mercadorias.

Nesta linha, tanto o Poder Executivo, como o Legislativo brasileiro devem se ater ao que diz as normas da OMC para determinar quais itens integram a base de cálculo do imposto de importação. Em específico, ao Acordo sobre Valoração Aduaneira (AVA) do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) determina quais valores compõem o valor aduaneiro de um produto, ou seja, o que pode ser acrescentado ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas.

O AVA visa a criar um sistema equitativo, uniforme e neutro para a valoração de mercadorias para fins aduaneiros, que exclua a utilização de valores aduaneiros arbitrários ou fictícios. Recordando que, o imposto de importação tem como base de cálculo o valor aduaneiro da mercadoria importada. Desta forma, o AVA estabelece que, sempre que possível, a base de valoração de mercadorias para fins aduaneiros deve ser o valor de transação das mercadorias a serem valoradas.

O artigo 8o do AVA autoriza a inclusão dos gastos relativos ao carregamento descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação. Contudo, não há previsão de inclusão das despesas incorridas após a chegada do navio no porto, a exemplo do descarregamento e manuseio da mercadoria, por se tratarem de despesas incorridas após a chegada da mercadoria até o porto ou aeroporto alfandegado de descarga ou ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro.

No Brasil, o AVA foi internalizado à legislação pátria pelo Decreto Executivo nº 1.355/94 e, até 1º de julho de 2022, era regulamentado pela Instrução Normativa (IN) SRF nº 327/03. Contrariamente ao AVA, o artigo 4º, § 3º, da IN SRF nº 327/03 determinava que os gastos relativos à descarga da mercadoria do veículo de transporte internacional no território nacional serão incluídos no valor aduaneiro, independentemente da responsabilidade pelo ônus financeiro e da denominação adotada.

Em outras palavras, a IN nº 327/03 desconsiderava que somente integram o valor aduaneiro os gastos de carga e descarga associados ao transporte da mercadoria até o porto ou o aeroporto e determinava que fossem incluídos os gastos de descarga de mercadoria após a entrada no porto/aeroporto, contrariando o texto do artigo 8o do AVA.

A esse respeito, é importante ressaltar que o AVA e demais acordos da OMC são aplicáveis no Brasil e devem prevalecer sobre a legislação tributária interna, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, assim como dos artigos 96 e 98 do Código Tributário Nacional (CTN).

Logo, teve início uma relevante discussão sobre a legalidade da inclusão dos custos de descarga da mercadoria na composição do valor aduaneiro no Poder Judiciário, que chegou ao STJ em 2014. Muitos anos depois, em abril de 2020, a Primeira Seção desse tribunal superior definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, que os serviços de capatazia deveriam ser incluídos na base de cálculo do Imposto de Importação.

Segundo o ministro Francisco Falcão, cujo voto prevaleceu no julgamento, o GATT estabelece normas para a determinação de valor para fins alfandegários, prevendo a inclusão no valor aduaneiro dos gastos relativos à carga, descarga e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação.

Assim, segundo a interpretação do STJ, tais serviços integrariam a atividade de capatazia, de acordo com a Lei nº 12.815/2013, editando a instrução normativa RFB explicitando que eles deveriam fazer parte do valor aduaneiro.

Desse modo, desde 2020, os pedidos de exclusão dos serviços da base de cálculo do imposto de importação estavam sendo julgados improcedentes, não obstante a flagrante violação às normas internacionais e os prejuízos econômicos que essa medida trouxe ao país.

Em estudo de 2020, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) projetou que o fim da inclusão da capatazia no valor aduaneiro contribuiria para um acréscimo de R$ 3,6 bilhões ao PIB no acumulado dos próximos 20 anos. No setor de alimentação, esse valor seria de R$ 2,4 bilhões e, no de siderurgia e construção, de R$ 1,8 bilhão. Outros setores que elevariam sua contribuição para o crescimento do PIB seriam os de têxtil e calçados, em R$ 1,4 bilhão; eletroeletrônicos, em R$ 861 milhões; químicos com R$ 832 milhões; perfumaria, cosméticos e farmacêuticos, R$ 824 milhões; petróleo, etanol e outros R$ 523 milhões; e madeira, papel e celulose, com R$ 173 milhões.

O referido estudo elencou, ainda, os 20 produtos que teriam maiores ganhos na produção até 2040 caso fosse retirado o custo da capatazia portuária. Em valores, os produtos com maiores altas na produção seriam automóveis e utilitários, com R$ 4 bilhões, e semiacabados e outros aços, com R$ 2,3 bilhões. Máquinas e equipamentos e vestuário ficariam em terceiro e quarto lugar, com R$ 2,2 bilhões e R$ 1,9 bilhão, respectivamente.

Segundo as projeções feitas, a indústria de transformação exportaria R$ 11 bilhões a mais, no acumulado dos próximos 20 anos, com a retirada da capatazia do custo aduaneiro. Os números mostram que o setor de construção e siderurgia teria o maior ganho em exportações nesse período, de R$ 3,5 bilhões ou 4,8%. Para o setor químico, o ganho seria de R$ 2,3 bilhões ou 9,8%. O setor de bens de capital seria o terceiro com o maior ganho em exportações, de R$ 1,7 bilhão ou 1,9%, seguido do de alimentação, de R$ 1,6 bilhão ou 1,3%.

Fato é, que as alterações legislativas em questão possibilitarão uma importante redução no valor pago por importadores a título de imposto de importação, com impactos positivos na competitividade e na integração do Brasil aos fluxos globais de comércio. Afinal, a inclusão dessa taxa contribuía para inflar o custo de importação, na contramão da agenda de competitividade e da melhoria do ambiente de negócios no Brasil, onerando a produção nacional, inclusive para a exportação.

Da mesma forma, também representa o alinhamento da legislação aduaneira brasileira aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil junto aos parceiros do Mercosul e à Organização Mundial do Comércio. Exatamente em linha com o que a sociedade precisa, de uma mais competitivo e mais integrado ao comércio internacional.

Os instrumentos de políticas comerciais, sua importância para emprego, renda, bem-estar social e econômico, além da manutenção do livre comércio justo.

Josefina Guedes

José Ricardo Machado Bernardo

O comércio internacional sempre foi muito importante para o desenvolvimento e enriquecimento das nações, ainda mais após a Segunda Guerra mundial.

Muitos países com forte corrente de comércio e com uma política comercial mais madura já possuíam legislações nacionais que tratavam de questões de concorrência predatória ou desleal nas importações e com isso já utilizavam diversos instrumentos para combater tais práticas, há mais de 100 anos. Esses instrumentos já tinham por objetivo principal equalizar concorrência justa no comércio entre os parceiros.

As experiências canadenses, norte-americanas e de outros países, sobre regras do sistema de acordos comerciais entre nações, nortearam o esboço do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio – conhecido como GATT, que, desde 1947, vem tendo uma função crucial para a manutenção do livre comércio e foi fundamental para a criação da Organização Mundial do Comércio.

A Organização Mundial do Comércio é uma organização criada com o objetivo de supervisionar e liberalizar o comércio internacional. A OMC surgiu oficialmente em 1o de janeiro de 1995, com o Acordo de Marraquexe, em substituição ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que começara em 1947.

O Brasil participou das negociações da fracassada Carta de Havana (OIC) em 1947, mas é importante destacar que é também membro fundador do GATT (1948).

Somente em 1987, o Brasil publicou o Decreto nº 93.941, de 16 de janeiro de 1987, promulgando o Acordo Relativo à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), reconhecendo a necessidade de implementar um dos instrumentos de políticas comerciais já utilizados por membros da organização, devido a maior abertura comercial naquela época, a extinção de regulamentação nacional de outros instrumentos condenados pela OMC e sua maior inserção ao comercio internacional.

Com a criação do Departamento de Defesa Comercial no Ministério da Indústria e a publicação do novo código nacional antidumping através do Decreto nº 1.602, de 23 de agosto de 1995, foram regulamentadas as normas para disciplinar os procedimentos administrativos, relativos à aplicação de medidas antidumping, bem como a Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, que dispôs sobre a aplicação dos direitos previstos no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios.

A Lei nº 9.019, em seu Artigo 1º, parágrafo único, veio atender reivindicação da indústria nacional para que os direitos antidumping e os direitos compensatórios fossem cobrados independentemente de quaisquer obrigações de natureza tributária relativas à importação dos produtos afetados.

Medidas Antidumping impostas (1995 a junho/2021)

Fonte: WTO (https://www.wto.org/english/tratop_e/adp_e/AD_MeasuresByRepMem.xlsx).

Observam-se ciclos de altas e baixas pela utilização das medidas antidumping. Os ciclos de aumento da utilização ocorrem normalmente em tempos de crise. Países europeus e os EUA, buscando manter o nível de emprego e renda diante da forte concorrência predatória, principalmente por parte dos países asiáticos, impõem barreiras, muitas vezes não tarifárias, proibidas pela própria OMC. Nesse momento de desequilíbrio entre a oferta e demanda, há uma corrida para países periféricos, como Brasil. Assim, há um aumento natural da utilização de instrumentos que eliminem as distorções dos preços predatórios.

A abrangência dos instrumentos de defesa comercial é tão específica aos produtos objetos das investigações, que não há nenhum estudo que demonstre que o aumento da utilização desses instrumentos influenciou na queda das importações brasileiras, pelo contrário, as importações brasileiras vêm crescendo ao longo dos anos e quando houve quedas foram influenciadas pela queda do PIB e não por imposição de medidas de defesas comerciais. O quadro e gráfico a seguir apresentam as importações brasileiras de 1997 a 2021:

Fonte: Comexstat/ME (http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home).

Conforme já mencionado acima, os anos de queda das importações brasileiras estão diretamente ligadas aos períodos de PIB negativo brasileiro. Em 2009, em consequência da quebra do Lehman Brothers. Em 2015 e 2016, consequência da queda do PIB brasileiro em função de decisões  governamentais e, por fim em 2020, decorrência da pandemia.

O Brasil, diferentemente de muitos países membros da OMC, tem se mostrado mais conservador na utilização dos instrumentos de defesa comercial, por aplicar direitos inferiores ao montante de dumping.

Além disso, em todas as investigações antidumping originais, há abertura de avaliação de interesse público. Importante ressaltar que este instrumento é adotado por poucos países e em situações bem específicas, como observado em investigações realizadas no Canadá, Austrália, UE e Índia.

Tal prática tem gerado muita insegurança para todo o ambiente de investimentos nacionais e estrangeiros no país. No Brasil, além da redução do direito antidumping a ser aplicado, também existem diversos casos nos quais foi recomendada a suspensão, por um ano, renovável por mais um ano, da cobrança do direito. Em outros países que realizam a análise de interesse público, em pouquíssimos casos houve apenas redução do direito.

Ao longo dos últimos anos é observada uma enorme celeuma, quando se debatem os instrumentos de defesa comercial. É fundamental destacar que medidas antidumping e compensatórias não constituem barreiras às importações e nem proteção à indústria doméstica. A utilização de medidas de defesa comercial de maneira justa, equilibrada e de acordo com as regras da OMC é legítima e fundamental para a correção de distorções indevidas decorrentes de práticas desleais de comércio.

A aplicação de uma medida traz diversos efeitos positivos para a indústria doméstica e, também, sobre o mercado como um todo. A medida permite que o dano que vem sofrendo a indústria doméstica em decorrência da concorrência desleal seja equalizado, garantindo que a indústria doméstica possa comercializar seus produtos de forma competitiva e justa, permitindo o devido retorno de seus investimentos e, como consequência, a manutenção de seus contínuos investimentos em tecnologia, inovação e competitividade.

Em nenhum fórum de debate é avaliado o impacto ao emprego, ao salário e a renda no país. Convém destacar a importância dos instrumentos de defesa comercial para proteção de milhares de empregos no Brasil, na geração de aumento de salários, renda, geração de bem-estar social e econômico para toda população. A indústria é responsável por gerar milhões de empregos com carteira assinada e com melhores salários, quando comparados aos demais setores da economia, basta observar o quadro abaixo:

Fonte: CNI

Além das questões de emprego e de renda, fatores considerados importantíssimos em outros países, outro ponto importante que precisa ser levando em consideração é a representatividade dos produtos sujeitos às medidas de defesa comercial frente ao total importado pelo país aplicador. Somente assim pode-se entender as verdadeiras razões que motivam os maiores países utilizadores desse instrumento no comércio internacional.

O consumidor precisa compreender que comprar um produto mais barato num primeiro momento, parece ser vantajoso. Porém, se o preço não for de mercado, apenas um preço artificialmente baixo para quebrar a concorrência, em um segundo momento trará prejuízos irremediáveis à indústria nacional, com fechamentos de fábricas, desemprego, redução da renda dos brasileiros e menos impostos arrecadados, podendo acarretar em diminuição da capacidade dos governos em investir em educação, saúde e segurança pública. A indústria participa com mais de 32% do total da arrecadação dos impostos no país.

Segundo dados da Confederação Nacional da Indústria, divulgados em 18 de março de 2022[1], em 2021, a indústria respondeu por 22,2% do PIB e por 71,8% das exportações brasileiras de bens e serviços. Os dados mais recentes disponíveis indicam também que o setor industrial representa 68,6% do investimento empresarial em pesquisa e desenvolvimento e 32,9% da arrecadação de tributos federais (exceto receitas previdenciárias).”

Fonte: CNI

Maior reflexão sobre a importância da defesa comercial, sua legislação e a valorização dos órgãos responsáveis por sua análise deve ser feita por toda sociedade, para que não sejam cometidos erros que possam prejudicar a indústria, e consequentemente, o futuro da nação.

O debate sobre os instrumentos de defesa comercial não deve ocorrer de forma alijada da sociedade, pois o tema não afeta apenas a indústria, o maior impacto é sentido na sociedade como um todo, pois seu efeito direto e mais importante é na geração de emprego e renda, resultando no bem-estar da população.

Josefina Guedes

Diretora da GBI Consultoria Internacional, Diretora da Associação de Comércio Exterior do Brasil – AEB e Membro do Conselho de Relações Internacionais da Firjan

José Ricardo Machado Bernardo

Diretor da GBI Consultoria, membro da Câmara de Comércio da Florida- BACCF – Miami desde 2004, Membro da Associação de Comércio Exterior do Brasil – AEB.

Colaboração: Rogério Pitta

                      Economista da GBI Consultoria Internacional


[1] Disponível em: https://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/importancia-da-industria/#:~:text=A%20import%C3%A2ncia%20da%20Ind%C3%BAstria%20para,brasileiras%20de%20bens%20e%20servi%C3%A7os.

Defesa Comercial é sinônimo de Protecionismo?

Fernanda de Magalhães Furlan

Apesar da redução de barreiras ao comércio internacional ser condição necessária para diminuir o poder de mercado de oligopólios domésticos, não é condição suficiente quando há empresas com poder de mercado em nível mundial[1].

Neste contexto, é assente o importante papel desempenhado pela defesa comercial no esforço de combate às nocivas práticas internacionais de comércio desleal. Aliás, as medidas de defesa comercial impostas num ano pelo Brasil, bem como na maior parte dos países membro da OMC[2], correspondem historicamente a percentuais inferiores a um por cento (1%) das importações totais do país no período. Ou seja, o impacto das medidas de defesa comercial é irrelevante quando inseridas no contexto do total das importações brasileiras, ou de qualquer player relevante no comércio internacional.

Uma política eficaz para aumentar a inserção internacional do país e “abrir a economia” ao mercado externo seria, por exemplo, a redução de tarifas de importação, como, aliás, foi questão relevante da agenda econômica da disputa presidencial de 2018.  Isso porque as importações de bens e serviços pelo Brasil somaram apenas 15,5% do Produto Interno Bruto em 2020[3].

Parece, infelizmente, e com o devido respeito, haver uma visão distorcida em setores do Poder Executivo sobre os objetivos e a utilidade dos instrumentos de defesa comercial. Como visto, uma simples redução unilateral de tarifas melhor resolveria o problema da “agorafobia comercial”[4] do Brasil, do que um acinte retórico sobre mecanismos de defesa contra práticas desleais.

As importações nem sempre são uma ameaça. Na verdade, elas somente são sancionáveis quando realizadas a preços artificiais (dumping ou subsídios) e capazes de gerar dano/prejuízo à indústria doméstica. Ou seja, não são todas as importações que são atingidas pelos instrumentos de defesa comercial, mas somente aquelas em que há prática desleal de comércio (preços artificialmente baixos).

No Brasil, inclusive, há ainda a utilização obrigatória da lesser duty rule (regra do menor direito), que determina a aplicação do direito antidumping apenas em medida suficiente a eliminar o dano à indústria doméstica.

É sempre bom atentar para o fato de que, independentemente do poder de mercado da indústria nacional, a não aplicação de medidas de defesa comercial poderá significar, de outro modo, a consolidação de poder de mercado de oligopólios internacionais e, no longo prazo, o próprio desaparecimento da produção nacional.

A participação do CADE e da SEAE/ME nas discussões de comércio exterior[5], no âmbito institucional da CAMEX, é bem-vinda. Ela serve para contribuir com informações e dados que possam resultar no aumento da competitividade da economia brasileira. Porém, não deve ser uma participação de mão única, ou seja, o CADE também deve instar as autoridades de comércio a atuar para o bom funcionamento do mercado interno e para a saúde da concorrência[6] no Brasil.

A opinião dos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (CADE e SEAE/ME) nas análises de interesse público em defesa comercial é construtiva, contudo, sua participação também na própria análise de dano e nexo causal parece ser dispensável e até invasiva.

Infelizmente, a ofensiva contra os instrumentos de defesa comercial é perene, como se eles incorporassem a própria essência do mal, chamado protecionismo. Pois o Ministério da Economia, vem publicando regulamentações que dispõem sobre questões afetas à defesa comercial e, em especial, ao antidumping, que inovam onde não haveria espaço para tanto, consideradas as leis atualmente em vigor.

Tais propostas contêm disposições que extrapolam parâmetros do Acordo Antidumping da OMC[7]. Elas concebem critérios inovadores de análise e aplicação de direitos antidumping, sem amparo no Acordo da OMC e que não são adotados por qualquer outro país membro da organização, enfraquecendo posições negociadoras do Brasil e diminuindo, na sua própria essência, os atuais instrumentos de defesa comercial contra práticas desleais de comércio, fruto de extensas negociações no seio do GATT/OMC.

Além disso, as regras da OMC foram internalizadas no Brasil por meio da Lei nº 9.019/95 e Decreto nº 1.355/94, não podendo ser alteradas por simples portarias do Ministério da Economia. As competências das secretarias do Ministério da Economia são de regulamentar os procedimentos relativos às investigações de defesa comercial e às avaliações de interesse público, desde que, naturalmente, não extrapolem ou contrariem o estabelecido em legislação de hierarquia superior.

A Lei da Concorrência (Lei 12.529/11), por exemplo, em seu artigo 119, dispõe não ser ela aplicável “aos casos de dumping e subsídios de que tratam os Acordos Relativos à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, promulgados pelos Decretos nº 93.941 e 93.962[8], de 16 e 22 de janeiro de 1987, respectivamente”.

Não parece legítimo, portanto, que se busquem, de forma enviesada, os mesmos efeitos proibidos pelo legislador. Ou seja, ao aplicar conceitos e, em especial, parâmetros de análise, típicos da investigação antitruste, aos processos e procedimentos de defesa comercial, estaríamos desobedecendo a própria Lei Antitruste.

De acordo com o artigo 3.4 do Acordo Antidumping, da OMC, o exame do impacto das importações a preços de dumping sobre a indústria nacional correspondente deverá incluir a avaliação de todos os fatores e índices econômicos relevantes que tenham relação com a situação da referida indústria, inclusive queda real ou potencial das vendas, dos lucros, da produção, da participação no mercado, da produtividade, do retorno dos investimentos ou da ocupação, da capacidade instalada, fatores que afetem os preços internos, a amplitude da margem de dumping, efeitos negativos reais ou potenciais sobre o fluxo de caixa, estoques, emprego, salários, crescimento, capacidade para aumentar capital ou obter investimentos. Tais fatores, contudo, não são exaustivos, nem poderão, isoladamente ou em conjunto, ser tomados necessariamente como indicação decisiva.

Contudo, parece haver alguma confusão quando passam a se utilizar parâmetros de investigação antitruste, em investigações de defesa comercial, ao invés de simplesmente considerar um (participação de mercado), entre vários critérios de análise de dano. Ao se socorrer de parâmetros[9] de análise antitruste para as investigações de dano, em defesa comercial, a autoridade competente está utilizando premissas invertidas.

Ao não aplicar direitos antidumping, comprovadamente cabíveis, a um setor da indústria nacional, simplesmente por considerá-lo concentrado ou porque esteja sendo investigado por comportamento anticompetitivo; a autoridade governamental, com todo o respeito, está promovendo uma intromissão desnecessária e ilegítima, pois, tal controle de concentração de mercado deve ser prévio e realizado pelo CADE e qualquer punição/sanção às empresas deve se dar dentro do processo respectivo e não fora dele.

Não há dúvidas dos avanços que vem sendo feitos pelo Ministério da Economia, por meio da Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) em relação à processualidade[10] e à transparência, tanto nas investigações de defesa comercial, quanto nas análises de interesse público.

Tais avanços não devem ser obscurecidos por ofensivas deliberadas sobre os instrumentos de defesa comercial, como se fossem medidas ilegítimas e protecionistas, tanto mais quando se utilizam para tanto, parâmetros estranhos à tradicional análise de dumping/subsídios, dano e nexo causal.


[1] MATTOS, César. Harmonização das Políticas de Defesa da Concorrência e Comercial: Questões Teóricas e Implicações para o Mercosul, Alca e OMC. Disponível em: http://www.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2008/01184.pdf. Acessado em: 26/02/2014.

[2] Na União Europeia, por exemplo, todas as medidas antidumping e compensatórias em vigor no final de 2006 correspondiam a somente 0,6% do volume total de importações do bloco. Apud MUELLER, Wolfgang et al. EC and WTO Anti-Dumping Law: A Handbook. 2a ed. Oxford. 2009.

[3] Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NE.IMP.GNFS.ZS?name_desc=false. Acesso em: 30/01/2022.

[4] A agorafobia é caracterizada por sintomas como medo e ansiedade de viver situações que fogem do controle e causam constrangimento em meio a locais abertos, reunião de pessoas e multidões. O termo “agorafobia comercial” indica o receio de um país em abrir a sua economia ao mercado externo.

[5] O artigo 22, inciso VIII, da Constituição Federal dispõe competir privativamente à União legislar sobre comércio exterior.

[6] O artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal elege a livre concorrência como princípio geral da atividade econômica.

[7] Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 30/94 e promulgado pelo Decreto no 1.355/94, bem como o disposto na Lei nº 9.019/95, na parte que dispõe sobre a aplicação das medidas previstas no Acordo Antidumping.

[8] De acordo com o artigo 49 da Constituição Federal, compete ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados”, por meio de processo legislativo próprio, que culmina com a publicação de decretos do presidente da República, que insere os tratados na legislação brasileira, no nível de lei federal (exceto para tratados sobre Direitos Humanos, cuja estatura é de emenda constitucional).

[9] Parâmetros são princípios e regras a serem considerados na estruturação ou equacionamento de um dado problema, sistema de problemas ou situação.

[10] A processualidade é a instrumentalidade metodológica construída a partir dos conflitos existentes na sociedade para se chegar ao processo e procedimento adequados para solucioná-los, de modo a obter a tutela processual e de direitos, em caráter efetivo e justo. 

A força do conceito de vantagem comparativa para o comércio internacional

Segunda-feira| 25 de abril de 2022

O comércio internacional é algo que interessa ao ser humano desde os mais remotos tempos. A transição do feudalismo para o mercantilismo representa o período de ampliação e importância desta atividade. Foi neste período que o comércio se fez presente e deu origem a Estados Nação que colocaram em prática aquilo que conhecemos por comércio entre nações.

A teoria econômica em matéria de comercial internacional evoluiu sobremaneira a partir de então. Foi neste período que se definiu o conceito de vantagem comparativa elaborado por David Ricardo, em sua obra The Principles of Political Economy and Taxation[1], que, em apertada síntese, significa o benefício natural que um país tem em produzir e exportar um determinado produto em relação às demais nações do mundo.

Os livros textos de economia sempre trazem como exemplo para definir vantagem comparativa o clássico exemplo apresentado por David Ricardo dos vinhos produzidos por Portugal e dos têxteis produzidos e pela Inglaterra, respectivamente.

No exemplo trazido à baila, Portugal deveria exportar vinho para a Inglaterra e importar produtos têxteis do país anglo-saxão. De acordo com David Ricardo, Portugal aferia mais riqueza investindo o seu capital na produção de vinho Portugal do que investindo parte na produção de vinho e de tecidos e, da mesma forma, a Inglaterra aferia mais riqueza investindo na produção de tecidos do que em ambos os produtos.

O conceito trazido por David Ricardo é relevante que a teoria econômica deu origem a importante modelos, dentre os quais, vale mencionar o clássico modelo de Heckscher-Ohlin e o Teorema de Rybczynski.
De acordo com o modelo de Heckscher-Ohlin, os países têm diferentes dotações de fatores de produção (capital e trabalho), de maneira que países com abundância de trabalho em relação a capital exportarão bens intensivos em trabalho e países com abundância de capital em relação a trabalho exportação bens intensivos em capital.
O Teorema de Rybczynski parte do modelo de Heckscher-Ohlin (fatores fixos de produção) e verifica que tudo o mais constante (coeteris paribus), o aumento de um fator em relação aos outros eleva a produção dos bens intensivos neste fator. Esse teorema é muito útil para explicar os efeitos do investimento em capital, da imigração e da emigração nos países.
Estes resultados são muito atuais nos dias de hoje e sempre o serão, pois os fatores de produção, sobretudo o trabalho, sempre se movimentarão voluntaria ou involuntariamente entre as nações.

[1] RICARDO, David. the Principles of Political Economy and Taxation. London: John Murray, 1821. Third edition. First published: 1817

Mudança à vista nas investigações de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

A partir de 1º de setembro de 2021, os autos das investigações de defesa comercial conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) migrarão do Sistema Decom Digital (SDD) para o Sistema Eletrônico de Informações do Ministério da Economia (SEI/ME).

A Portaria Secex nº 103, de 27 de julho de 2021, publicada no Diário Oficial da União do último dia 28 de julho, revogou a Portaria SECEX nº 30, de 7 de junho de 2018, e determinou que o SEI/ME passará a ser utilizado para produzir, editar, assinar, tramitar, receber e concluir os processos eletrônicos referentes a investigações de defesa comercial.

Até 2015, os processos administrativos de defesa comercial eram todos em papel. Isso significava que os representantes legais da indústria doméstica, exportadores e importadores passavam dias imprimindo, organizando e numerando centenas de documentos, que eram compilados em verão pública e confidencial e enviados por courier para protocolo em Brasília. A consulta aos autos era agendada e só podia ser realizada in loco, o que resultava em centenas de cópias impressas das páginas relevantes dos autos dos processos.

À época, o sistema representou um importante avanço institucional no sentido de modernizar as práticas processuais da SDCOM. As partes interessadas passaram a ter a possibilidade de realizar protocolo e a consulta dos autos eletrônicos dos processos de forma remota, a qualquer momento. Porém, o SDD era um sistema engessado, com acesso restrito em alguns sistemas operacionais e navegadores, e diversos problemas começaram a surgir. Com os prazos apertados das investigações de defesa comercial, as partes interessadas eram significativamente prejudicadas sempre que o SDD apresentava instabilidades ou problemas técnicos, resultando em algumas horas para que um simples protocolo fosse realizado.

Assim, é possível dizer que o SDD se tornou um gargalo operacional na SDCOM, tendo em vista o custo relacionado à manutenção, suporte técnico e instabilidades recorrentes do sistema.

Por sua vez, o SEI/ME é uma ferramenta simples, acessível por qualquer sistema operacional, que é amplamente utilizada pela Administração Pública, sendo, inclusive, utilizado pelas partes interessadas para protocolos e acompanhamento dos autos eletrônicos de Avaliações de Interesse Público.

Com a migração dos processos de defesa comercial p[ara o SEI/ME, a partir de setembro, os representantes legais das partes interessadas terão acesso a nada menos do que quatro autos no SEI com numerações distintas, a saber: (a) restrito de defesa comercial; (ii) confidencial de defesa comercial; (c) público de interesse público; e (d) confidencial de interesse público.

Uma outra alteração relevante consiste no fato de que a assinatura de documentos de defesa comercial e interesse público seguirá procedimentos distintos no SEI/ME. Nos processos de defesa comercial, passará a ser obrigatória a assinatura de documentos por meio de certificado digital, conforme disposto no art. 17 da Lei 12.995 de 18 de junho de 2014). Na prática, funcionará da seguinte forma: os representantes legais das partes interessadas devem assinar os documentos com certificado digital, os atos processuais serão previamente assinados pelos usuários externos com a utilização de certificado digital padrão ICP-Brasil e, posteriormente, juntados aos autos na forma de documentos externos mediante upload com usuário e senha no SEI/ME.

É importante observar que a obrigação de que os documentos protocolados sejam assinados por meio de certificado digital não existe para os processos de interesse público, conforme estabelecido pelo artigo 1º, §2º da Portaria nº 103, de 2021.  Assim, SEI/ME continuará sendo utilizado na condução dos processos eletrônicos de avaliação de interesse público e os documentos protocolados nos autos público e confidencial de interesse público continuarão sendo assinados apenas por meio de usuário e senha no SEI.

Todo o processo de transição entre os sistemas vem sendo executado pela equipe de servidores da SDCOM juntamente com uma consultora externa. A Circular nº 52, de 2 de agosto de 2021, publicada no Diário Oficial da União de 3 de agosto de 2021, divulgou o Guia Interno e Externo Do Processo Eletrônico no SEI para Processos Administrativos de Defesa Comercial e Interesse Público, que traz orientações para os usuários sobre a transição dos processos para o SEI/MF.  Ademais, no dia 20 de agosto, a SDCOM realizará um treinamento externo de forma virtual para esclarecer dúvidas sobre a transição entre os sistemas eletrônicos.

Os usuários dos instrumentos de defesa comercial e seus representantes legais saúdam essa importante mudança no sistema de gestão processual eletrônica dos autos dos processos de defesa comercial, que representa uma bem vinda modernização e otimização das práticas processuais pela SDCOM.

Defesa comercial em tempos de pandemia

Fernanda Manzano Sayeg

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (COVID-19) e as medidas adotadas pelos governos para seu enfrentamento, em todo o mundo, resultaram em restrições à circulação e ao ingresso em diversos países e afetaram diretamente as investigações de defesa comercial no Brasil, que são conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”).

Uma das principais consequências das restrições para evitar a propagação do vírus foi a adoção do home office. Diversas empresas se viram obrigadas a realizar inúmeras alterações em suas estruturas. Para as empresas que eram partes interessadas em investigações nde defesa comercial, essas adaptações tiveram um grande impacto na obtenção de informações necessárias para as respostas aos questionários e aos ofícios enviados pela autoridade investigadora às partes interessadas, que possuem prazos exíguos e demandam um grande esforço.

Se já era difícil cumprir os prazos de uma investigação antidumping antes da pandemia, as mudanças introduzidas na pandemia tornaram essa tarefa praticamente impossível. Havia uma grande insegurança jurídica em relação aos procedimentos que seriam adotados para a verificação das informações apresentadas pelas partes interessadas e pela ausência de reuniões presenciais com as autoridades nas quais costumava-se discutir aspectos relevantes dos casos. Não obstante as reuniões presenciais tenham sido substituídas por videoconferências, a pandemia levou a uma maior dificuldade de contato entre as partes interessadas e a SDCOM.

Apenas em 18 de agosto de 2020, foi publicada a Instrução Normativa nº 1/2020, que dispõe sobre as adaptações necessárias aos procedimentos das investigações de defesa comercial e das avaliações de interesse público conduzidas pela SDCOM em decorrência da pandemia.

A referida Instrução Normativa suspendeu, por prazo indeterminado, a realização das verificações presenciais nas fábricas e escritórios das partes interessadas nas investigações de defesa comercial. Ademais, determinou que, em razão da impossibilidade de realização das verificações in loco, a SDCOM promoveria uma análise detalhada de todas as informações submetidas pelas partes interessadas, buscando verificar sua correção com base na análise cruzada das informações protocoladas nos autos do processo e de informações constantes de outras fontes disponíveis. 

Adicionalmente, a Instrução Normativa nº 1/2020 dispõe que a SDCOM poderá solicitar informações complementares adicionais e outros elementos de prova, tais como amostras de operações constantes de petições e respostas a questionários e detalhamentos de despesas específicas, a fim de validar informações apresentadas pelas partes interessadas, nos termos do parágrafo único do art. 179 do Decreto nº 8.058, de 2013.

Cumpre notar que a Instrução Normativa nº 1/2020 determina que os documentos e dados que visam a validar as informações protocoladas pelas partes interessadas sejam apresentadas forma mais completa, clara e precisa possível, e que estes sejam acompanhados de suas respectivas comprovações, justificativas, fontes e metodologias utilizadas, bem como das planilhas e documentos auxiliares utilizados na elaboração dessas informações. Isso sem falar nas traduções juramentadas para o português de todos os documentos elaborados originalmente em língua estrangeira – com exceção do inglês, francês e espanhol – em conformidade com o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Assim, desde 18 de agosto de 2020, o procedimento de verificação in loco tem sido substituído pela SDCOM pelo envio de um único ofício, que deve ser cumprido no prazo de 10 dias, prorrogável por igual período, com vistas a validar todas as informações apresentadas por determinada empresa na investigação antidumping. Não obstante o art. 3º da Instrução Normativa estabeleça que podem ser solicitadas informações complementares adicionais àquelas solicitadas após a submissão dos questionários do produtor doméstico, exportador e importador, a SDCOM tem limitado o pedido de informações adicionais a apenas um ofício.

As partes interessadas – sobretudo os exportadores – acabam enfrentando inúmeras dificuldades para cumprir com esse único ofício. Se durante a verificação in loco a maioria dos documentos é analisada presencialmente – sobretudo as telas do sistema contábil e números – e não é solicitada a juntada de tradução juramentada dos mesmos para o português, o mesmo não ocorre quando a comprovação dos dados é realizada por ofício. Simplesmente não há tempo hábil para que que as partes obtenham as inúmeras informações solicitadas nesse ofício no exíguo prazo determinado pela SDCOM, muito menos para que sejam realizadas todas as traduções juramentadas dos documentos, de modo a atender o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Como se não bastasse, as partes interessadas ainda se deparam com a dificuldade de apresentar todas as informações solicitadas e respectivas traduções antes do término do período probatório. Embora os artigos 7º e 8º da Instrução Normativa nº 1/2020, determinem que os prazos previstos no Decreto nº 8.058, de 2013, poderão ser suspensos, com base no art. 67 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, de forma a garantir tempo adequado para a coleta e análise das informações necessárias às determinações da SDCOM, levando em consideração as necessidades de cada processo administrativo individualmente, bem como os princípios constitucionais da razoabilidade e da eficiência, esse não tem sido o caso.

Passados mais de dez meses da entrada em vigor da Instrução Normativa nº 1/2020, resta evidente que a metodologia introduzida por ela é ineficiente, aumentou o grau de dificuldade de comprovação das informações apresentadas nas investigações de defesa comercial para as partes interessadas e os custos das mesmas (haja vista o elevado número de documentos cuja tradução passou a ser necessária), e tornou praticamente impossível para qualquer exportador apresentar todos os dados solicitados de forma completa antes do término do período probatório.

É irrealista esperar que a realização de uma verificação in loco, tanto no exportador quanto no importador, possa ser substituída pelo simples envio de um único ofício requerendo que a empresa transformasse todo o intenso trabalho realizado por uma equipe ao longo de dias em uma resposta escrita e completamente suficiente para validação de todos os dados. Se fosse esse o caso, a realização de verificações in loco com o traslado e dedicação integral de funcionários ao longo de todos esses anos, por várias autoridades no mundo, teria sido um excesso e desperdício de recursos públicos.

Faz-se necessário repensar a condução das investigações de defesa comercial até o término da pandemia, sobretudo no que diz respeito aos prazos e procedimentos para apresentação de informações, de modo a evitar que as decisões nesses processos sejam questionadas tanto judicialmente, no Brasil, quanto no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (“OMC”).

Como as regras multilaterais de comércio podem auxiliar no fim da pandemia e a restaurar o prestígio da OMC

Fernanda Manzano Sayeg

A Organização Mundial do Comércio (“OMC”) é, indiscutivelmente, uma das mais importantes organizações internacionais. Desde os inícios de suas atividades, em 1º de janeiro de 1995, a OMC tem gerenciado os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio, atuado como fórum para a negociação de novas regras, supervisionado a implementação dos acordos pelos membros e solucionado os conflitos gerados pela aplicação de suas regras.

Contudo, a OMC foi perdendo, progressivamente, a capacidade de atualizar a sua agenda temática e, atualmente, vive um momento extremamente delicado.

Nos últimos anos, as disputas comerciais entre Estados Unidos e China resultaram na adoção de medidas protecionistas e sanções comerciais que são contrárias às regras da OMC. Além disso, o Órgão de Apelação da organização está impossibilitado de funcionar por falta de quórum, visto que os Estados Unidos conseguiram bloquear a indicação de novos membros para o Órgão.

Em meio às discussões sobre a necessidade de reforma da organização, teve início a pandemia da COVID-19 e, com ela, ficou clara que a interdependência das cadeias produtivas, que são transnacionais, bem como a relevância da liberalização do comércio internacional, já que insumos para medicamentos, equipamentos de proteção individual e vacinas são, muitas vezes, importados.

Assim, quando foi deflagrada a pandemia, com o intuito de evitar a escassez doméstica, muitos países, incluindo os Estados Unidos e alguns membros da União Europeia, impuseram restrições temporárias à exportação de certos produtos médicos e alimentícios. Entre tais medidas estava a necessidade de autorização para a exportação para equipamentos de proteção individual. Outros países aumentaram a concessão de subsídios e incentivos fiscais para fortalecer a produção interna de medicamentos e equipamentos médicos. 

No entanto, a maioria das medidas introduzidas pelos países buscavam facilitar o comércio, com a eliminação ou a redução da alíquota de imposto de importação para bens relacionados ao tratamento ou prevenção da COVID-19, bem como a aceleração das inspeções alfandegárias para determinados bens, como equipamentos médicos usados no tratamento da doença.

Nesse cenário, não é surpreendente que, até 21 de agosto de 2020, os Membros tenham apresentado à OMC 225 notificações sobre a adoção de medidas relacionadas à COVID-19. Como as notificações dependem de apresentações oficiais e, portanto, muitas vezes estão atrasadas ou incompletas, acredita-se que o número real de medidas introduzidas no contexto da COVID-19 seja ainda maior.

Assim, a pandemia trouxe à tona a necessidade de se repensar e, quem sabe, reestruturar as cadeias globais e valor de forma a garantir o suprimento de itens essenciais a todos os países, mesmo em situações excepcionais, como aquela gerada pela COVID-19. Da mesma forma, a pandemia está acelerando tendências como a mudança para uma economia prioritariamente digital, que não era uma realidade em muitos membros da OMC antes da COVID-19, sobretudo em países de menor desenvolvimento econômico relativo. E, principalmente, a pandemia tem colocado em xeque questões como a proteção às patentes em um momento em que milhares de vidas humanas poderiam ter sido salvas com vacinas, medicamentos e equipamentos hospitalares, muitos dos quais são protegidos por direitos de propriedade intelectual.

Em outubro de 2020, momento em que as vacinas para a COVID-19 estavam em fase de testes, e de modo a evitar o que se chamaria posteriormente de “nacionalismo da vacina”, Índia e África do Sul apresentaram ao Conselho do TRIPS uma proposta para a concessão de um waiver temporário à implementação, aplicação e execução das Secções 1, 4, 5, e 7 da Parte II do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) em medicamentos utilizados na prevenção, na contenção ou no tratamento da COVID-19. A proposta objetiva suspender as proteções dos direitos de propriedade intelectual (patentes, direitos autorais, desenhos industriais e informações não divulgadas) em medicamentos utilizados na proteção e no tratamento da COVID-19 até que a pandemia esteja sob controle. 

Se por         um lado a proposta de waiver conta com o apoio de 57 Membros, incluindo todo o Grupo Africano e países menos desenvolvidos, por outro, países desenvolvidos como Inglaterra, Suíça e os Estados Unidos, que têm grandes indústrias farmacêuticas domésticas, se manifestaram contrários, alegando que a proteção dos direitos de propriedade intelectual incentivou a pesquisa e a inovação e que a suspensão desses direitos não resultaria em um súbito aumento no fornecimento de vacinas. O Brasil, após semanas de silêncio sobre o tema – com vistas a evitar uma crise política com a Índia, que é um importante fornecedor do imunizante se manifestou contrariamente à proposta da Índia e da África do Sul.

Propostas alternativas, incluindo a decretação de uma moratória de dois anos para a aplicação de patentes, sem as exigências de renúncia à proteção da propriedade intelectual sobre direitos autorais, desenhos industriais e informações confidenciais, bem como a proposta de flexibilização de quaisquer restrições e impostos de exportação que possam estar restringindo o fluxo de vacinas e tratamentos para a COVID-19.  Também há esperanças de que os Membros possam chegar a um acordo com empresas farmacêuticas sem que necessariamente ocorra um waiver do TRIPS, como vem sugerindo a Diretora-Geral da OMC.

Em todos os cenários, o que se depreende é que a necessidade de consenso entre todos os Membros, que é um dos princípios basilares da OMC, tornou-se um dos principais obstáculos à atuação da Organização, seja como um fórum que poderia estar criando novas regras mais adequadas para o momento atual, seja atuando na fiscalização do cumprimento das normas existentes. É imprescindível que os membros repensem essa questão e procurem uma solução, que pode estar na celebração de acordos plurilaterais.

Portanto, a crise da COVID-19 pode dar o impulso necessário para que os 164 membros da OMC busquem modernizar a organização e cheguem a um acordo sobre uma ambiciosa agenda de reformas. A Conferência Ministerial da OMC, que ocorreria no Cazaquistão, em junho de 2020, e que foi transferida para junho de 2021, parece ser a ocasião perfeita para esse acordo.

Neste cenário otimista, a nova Diretora-Geral, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, que tomou posse, no início de março de 2021, tem a oportunidade de fazer história não apenas como a primeira mulher e a primeira africana a dirigir a OMC, mas como a mulher que ajudou colocar fim à pandemia e a desenhar uma nova OMC, adequada ao Século XXI. Afinal, a liberalização comercial não é mais um objetivo, mas uma realidade inexorável.

Referências Bibliográficas

FUNKE, Martha. Geopolítica envolve o licenciamento compulsório. Publicado no Valor Econômico em 25/02/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2021/02/25/geopolitica-envolve-o-licenciamento-compulsorio.ghtml

SAYEG, Fernanda M. O papel decisivo da OMC na pandemia. Publicado no JOTA em 18 de março de 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-papel-decisivo-da-omc-na-pandemia-18032021

SCHNEIDER-PETSINGER, Marianne. Reforming the World Trade Organization: Prospects for Transatlantic Cooperation and the Global Trade System. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2020/09/reforming-world-trade-organization/02-wto-reform-and-covid-19.

ZUCOLOTO, Graziela; MIRANDA, Pedro; PORTO, Patrícia. A propriedade industrial pode limitar o combate à pandemia? Publicado em 04/30/2020. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/en/topics/188-a-propriedade-industrial-pode-limitar-o-combate-a-pandemia

Atualização das regras aplicáveis às investigações de subsídios e aos procedimentos de verificação in loco

Fernanda Manzano Sayeg

O mês de outubro de 2021 foi marcado pela modernização do arcabouço normativo na área de defesa comercial.

Em 19 de outubro de 2021, foi publicado o Decreto no 10.839, de 18 de outubro de 2021, que regulamentará as investigações sobre subsídios conduzidas pela autoridade brasileira e a aplicação de medidas compensatórias. O decreto entrará em vigor 120 dias após sua publicação e substituirá o Decreto no 1.751/1995, que foi promulgado no contexto da criação da Organização Mundial do Comércio (“OMC”). Desde então, houve avanços significativos na defesa comercial, no Brasil e no mundo, tendo o antigo decreto ficado à margem dessa evolução.

O Decreto no 10.829/21 atualiza as normas procedimentos utilizados nas investigações de subsídios e atualiza os conceitos de subsídios com base na jurisprudência construída pela OMC, além de harmonizar os procedimentos das investigações de subsídios com as investigações de dumping, cujo regulamento foi modernizado em 2013. Grande parte dos artigos do novo decreto é bastante similar às disposições do Regulamento Antidumping Brasileiro, tanto no conteúdo quanto na ordem de disposição.

Da mesma forma que ocorre em investigações antidumping, o novo Decreto prevê a possibilidade de não-aplicação de medida compensatória pela Câmara de Comércio Exterior (“CAMEX”) caso seja constatado interesse público. 

O novo regulamento estabelece um cronograma preciso sobre as etapas da investigação, como fases probatórias e de manifestações, além de estabelecer a obrigatoriedade de determinações preliminares para investigações originais, que são essenciais para aplicação de direitos compensatórios provisórios. Ademais, traz inovações importantes em temas não abarcados pelo decreto antigo, como o procedimento de avaliação de escopo, a redeterminação e a anticircunvenção. Há também disciplinas específicas para investigações que envolvam Estados Partes do Mercosul e um maior detalhamento para as condições de aceitação de compromissos de preços.

A SDCOM estima que haverá maior celeridade e segurança jurídica ao processo investigação de subsídios e medidas compensatórias, reduzindo os prazos de análise das petições e das investigações. A expectativa é que os trâmites sejam encurtados em até um terço. Cumpre notar, ainda, que a elaboração do novo decreto foi debatida com o setor privado, por meio de consulta pública.

A atualização da legislação brasileira sobre subsídios e medidas compensatórias é extremamente necessária e bem vinda. Não há dúvidas que a aproximação entre essas investigações e aquelas relacionadas à prática da investigação de dumping é um grande avanço para a indústria doméstica, para os importadores, para os exportadores e para os consultores que atuam nessa área, que lidam há quase 10 anos com o detalhado Regulamento Antidumping Brasileiro.

Com a modernização da legislação, a tendência é que a indústria doméstica recorra cada vez mais a esse instrumento de defesa comercial. Atualmente, há apenas três medidas compensatórias em vigor no Brasil em comparação às 141 medidas antidumping em vigor. No mundo, a frequência na aplicação de medidas compensatórias pelos membros da OMC tem aumentado. Acredita-se que estratégias de incentivos às indústrias nacionais pós-pandemia pelos Estados possa levar a uma maior necessidade de utilização de medidas compensatórias pela indústria brasileira. A modernização do arcabouço normativo no Brasil, garantindo maior transparência e previsibilidade nas investigações de subsídios conduzidas pela autoridade investigadora brasileira, certamente aumentará a atratividade dessa medida de defesa comercial.

Durante o período de vacatio legis do Decreto nº 10.839, será publicada nova portaria com a atualização do arcabouço normativo relacionado às investigações de subsídios e medidas compensatórias, a qual já foi objeto de consulta pública. Também está nos planos da SDCOM publicar em 2022 um guia de investigações de subsídios e medidas compensatórias, nos moldes dos diversos guias da SDCOM já publicados.

Adicionalmente, em 26 de outubro de 2021, a Secex abriu consulta pública sobre quatro petições relacionadas às investigações de subsídios que não tinham fundamento legal na legislação anterior, a saber: (i) petição de revisão anticircunvenção, que trata da investigação de práticas elisivas que frustrem medidas compensatórias aplicadas; (ii) petição de restituição de direitos recolhidos, se o montante de subsídios apurado para o período de revisão for inferior ao direito vigente; (iii) petição de avaliação de escopo, por meio da qual qualquer parte interessada poderá solicitar que se apure se um certo produto está sujeito à medida compensatória em vigor; e (iv) petição de redeterminação, na qual é determinado se a medida compensatória aplicada teve sua eficácia comprometida em razão da forma de aplicação da medida ou em razão da absorção da medida compensatória. A ideia é manter o paralelismo com o já estabelecido nas investigações antidumping.

Nessa mesma data, foi publicada a Circular nº 71, que abriu o prazo de 20 dias para que sejam apresentados dúvidas, questões e temas de interesse no âmbito de investigações sobre subsídios e medidas compensatórias, que serão abordados pela SDCOM no Guia de Investigações sobre subsídios que será publicado futuramente.

Já a Instrução Normativa Secex nº 3, de 22 de outubro de 2021, quer foi republicada no Diário Oficial da União em 3 de novembro, traz novas determinações sobre a realização da verificação in loco em investigações de defesa comercial. Em razão da pandemia da COVID-19, as verificações presenciais das informações prestadas pelos exportadores estavam temporariamente suspensas desde julho de 2020. De acordo com a nova Instrução Normativa, a partir de agora, será dada preferência à verificação in loco e, apenas na impossibilidade de realização desse tipo de verificação, será realizada a verificação dos elementos de prova, por ofício.

Essa alteração é muito benéfica para os exportadores, que foram muito prejudicados com as demasiadas exigências burocráticas e com os prazos extremamente curtos da verificação dos elementos de prova, e voltarão a ter oportunidade de comprovar as informações apresentadas nas respostas aos questionários de forma presencial, em suas próprias instalações.  

A necessidade de aprimoramento da avaliação de interesse público em casos de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

Nos últimos anos, a principal alteração na legislação brasileira de defesa comercial diz respeito à avaliação de interesse público.

O Decreto nº 9.745, de 2019, transferiu à Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”) do Ministério da Economia a competência para propor a suspensão ou alteração de aplicação de medidas antidumping ou compensatórias em razão de interesse público, e a Portaria SECEX nº 13/2020 disciplinou o processo administrativo de avaliação de interesse público no Brasil.

Essa avaliação não está prevista nos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, a maioria dos Membros da OMC não adotou previsão específica sobre o assunto em suas legislações. Entre os poucos países que ponderam o interesse público ao aplicar medidas de defesa comercial estão Brasil, Canadá, União Europeia, Nova Zelândia, China, Malásia e Tailândia, os quais incluíram provisões normativas de interesse público em suas legislações.

A avaliação de interesse público tem por objetivo analisar se há elementos que justifiquem a suspensão ou a alteração de medidas antidumping definitivas compensatórias, provisórias ou definitivas. A avaliação de interesse público também pode concluir pela necessidade de não aplicação de medidas antidumping provisórias, caso seja recomendada a aplicação desses direitos na investigação de defesa comercial.

Interesse público é um bastante conceito bastante amplo. A legislação brasileira tenta delimitar esse conceito ao estabelecer que há interesse público sempre que o impacto da imposição da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos se mostrar potencialmente mais danoso quando comparado aos efeitos positivos da aplicação da medida de defesa comercial. O processo administrativo de avaliação pública visa a analisar o eventual impacto da adoção da medida de defesa comercial na oferta do produto em questão no mercado brasileiro, de modo a prejudicar a dinâmica do mercado nacional (incluindo os elos a montante, a jusante e a própria indústria), em termos de preço, quantidade, qualidade e variedade entre outros.

Atualmente, tanto processo administrativo da investigação dumping ou de subsídios quanto o processo administrativo de avaliação de interesse público são conduzidos pela SDCOM, de forma concomitante, seguindo o mesmo rito processual. No caso da avaliação de interesse público, a SDCOM recebe informações, as analisa e pode recomendar: (i) a suspensão da exigibilidade de direito antidumping definitivo ou de compromissos de preços; (ii) a não aplicação do direito antidumping provisório, a homologação de compromisso de preços ou a aplicação de direito antidumping definitivo em valor diferente do recomendado; (iii) a suspensão da aplicação de direito compensatório provisório ou definitivo ou a não homologação de compromissos e a aplicação do direito compensatório provisório ou definitivo em valor diferente do recomendado. Contudo, cabe ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX/CAMEX) o encerramento da avaliação de interesse público e da decisão final na investigação de defesa comercial, em caso de determinação positiva de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória[1].

Sem querer adentrar na discussão se o argumento de interesse público seria compatível com a lógica da defesa comercial – em que medida o reconhecimento de uma prática desleal de comércio como o dumping comporta uma mitigação? – há alguns aspectos do processo administrativo de avaliação de interesse público que não só podem como devem ser aprimorados, de modo a possibilitar que essa análise seja ainda mais precisa e completa.

No caso de investigações originais, de modo geral, o prazo para envio da resposta ao questionário de interesse público é o mesmo prazo para envio da resposta ao questionário do importador e do exportador. Na maioria das vezes, empresas acabam dedicando muito tempo ao preenchimento do questionário do importador e/ou do exportador a ser apresentado na investigação de dumping ou de subsídios, sem o qual não é possível obter uma margem individual de dumping, e não conseguem se dedicar a obter todas as informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse público.

As informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse não são informações fáceis de ser obtidas, sobretudo por importadores, que são os principais interessados em evitar a aplicação ou suspender uma medida de defesa comercial em vigor. Ao contrário do questionário do importador e do exportador, que devem ser preenchidos com informações contábeis e do dia-a-dia das empresas, o questionário de avaliação de interesse público solicita informações de natureza concorrencial e de mercado que muitas vezes são desconhecidas por aqueles que não são fabricantes. Basta lembrar que o questionário solicita que sejam apresentados dados de natureza concorrencial como o cálculo de índices de concentração de mercado (em especial do HHI) considerando produção nacional (nos termos de defesa comercial), importações e substitutos e barreiras à entrada. Essa dificuldade é ainda maior quando se trata de um bem que é apenas um dos diversos bens classificados em uma determinada sub posição da NCM, já a que é com base nessa classificação que é possível obter parte das informações publicamente disponíveis sobre determinado produto.

Ao contrário da que ocorre em uma investigação de defesa comercial, não há peticionário nas avaliações de interesse público em investigações originais. O fato de não haver empresa ou associação faz com que o processo administrativo não receba tantas informações nem tanta atenção das autoridades, o que pode resultar em uma avaliação de interesse público incompleta, imprecisa e superficial. Isso é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, já que a aplicação de direito antidumping ou compensatório pode resultar no encarecimento do produto objeto da investigação, com reflexos nos demais bens que utilizam esse produto em sua fabricação.

É importante notar que a avaliação de interesse público representa um custo adicional às partes, visto que, como desconhecem as informações solicitadas recorrem à contratação de advogados, economistas e consultorias especializadas, bem como de institutos de pesquisas e relatórios setoriais, para obter as informações solicitadas no questionário.

Não há dúvidas que, dada a relevância da verificação dos efeitos das medidas de defesa comercial sobre o interesse público, a insuficiência de dados substantivos que subsidiem devidamente o processo decisório pode prejudicar a funcionalidade dessa avaliação. Assim, é importante que a sociedade debata formas de tornar essa análise ainda mais eficaz.

Entre as possíveis sugestões, estão a ampliação do escopo da análise – que, na prática, está limitada aos itens estabelecidos no questionário de avaliação de interesse público – para que ela seja adaptável a cada tipo de produto. É evidente que o impacto de uma medida antidumping sobre um bem intermediário deve ser analisada de forma diferente do impacto de uma medida antidumping sobre um bem final. Da mesma forma, há questões específicas relacionadas a produtos agrícolas que não se aplicam a produtos químicos e vice-versa.

Outra medida que pode fazer muita diferença é um maior engajamento da SDCOM não só na análise, mas também na obtenção das informações. Hoje observa-se uma grande passividade na condução da avaliação de interesse público. Não é aceitável que a SDCOM decida que não há impactos apenas porque não recebeu informações das partes, as quais muitas vezes não dispõem dos dados ou de condições econômicas para levantá-los.

Por fim, os aspectos atinentes à concorrência doméstica que fazem parte da análise também deveriam receber mais atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora o CADE seja consultado nas avaliações de interesse público, suas análises são superficiais e em nada se assemelham àquelas analises profundas realizadas em atos de concentração ou investigações de cartel. Da mesma forma, outros órgãos da administração pública poderiam ser engajados, de modo que a avaliação de interesse público seja cada vez mais precisa e completa.


[1] Sempre que a SDCOM concluir por a uma determinação negativa de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória na investigação original ou na revisão de final de período, caberá à Secretaria de Comércio Exterior (“SECEX”) o encerramento concomitante da investigação de defesa comercial e da avaliação de interesse público, por perda de objeto.