Dayane Criscuolo

A Independência Relativa de Instâncias

Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O princípio da relativa independência de instâncias determina que as esferas civil, penal e administrativa são independentes, isto é, uma decisão proferida em uma dessas instâncias não tem caráter vinculante, podendo, desta forma, existir a absolvição em uma delas e a condenação na outra. Diz-se relativa independência, pois toda regra comporta exceção, sendo elas o caráter vinculante (i) da absolvição penal, que nega a existência do fato ou autoria; (ii) da condenação de agente público na esfera penal, e (iii) da absolvição penal por ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito[1].

Neste contexto, no julgamento do REsp 2.081.262-RS (2022/0252631-6)[2], realizado em novembro de 2023, os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entenderam pela possibilidade de condenação, pela prática da conduta de cartel, no âmbito do Processo Administrativo que tramita perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ainda que tenha ocorrido a absolvição dos acusados nas esferas penal e civil.

Foram analisados e julgados, pelos Ministros, os recursos interpostos pelo CADE e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em face de acórdão proferido, por unanimidade, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (4ª T – TRF4), no julgamento de apelações e reexame necessário[3], que decidiu pela anulação de decisão proferida pelo CADE. Referida decisão, proferida pela autarquia, condenou, nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, diversos postos de gasolina e pessoas físicas a eles relacionadas, por formação de cartel[4], sob o fundamento de que os fatos objeto do referido processo administrativo foram analisados tanto no âmbito penal, quanto no civil, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), sendo tais fatos e o conjunto probatório que os fundamentou, considerados insuficientes para a condenação dos acusados pela prática de cartel na revenda de combustíveis no Município de Caxias do Sul/RS, nas duas esferas.

No voto proferido pela Ministra Relatora Regina Helena Costa[5], ela esclarece que “[À] à vista do princípio da relativa independência entre as instâncias de responsabilização consagrado nos arts. 66 do Código de Processo Penal, 935 do Código Civil de 2002 e 125 da Lei n. 8.112/1990, ressalvada a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta, ou, ainda, quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática, as conclusões levadas a efeito em âmbito criminal não reverberam sobre as atribuições da autarquia antitruste, viabilizando-se, por isso, a submissão de idêntico acervo probatório ao crivo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para exame dos pressupostos indispensáveis à apuração de condutas anticoncorrenciais”.

Adiciona que o artigo 16[6], da Lei nº 7.347/1995, excepciona[7] parcialmente o regramento “pro et contra” disposto no artigo 502[8], do Código de Processo Civil, instituindo o regime jurídico da “res judicata secundum eventum probationis”, que delibera acerca da “ausência de formação de coisa julgada quando, não obstante apreciado o mérito da ação civil pública, a sentença de improcedência é fundada em insuficiência probatória, hipótese na qual exigida apresentação de prova nova tão somente como requisito de ulterior demanda coletiva aviada por outros legitimados, regra não extensível à análise do mesmo contexto fático pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica[9].

Neste sentido, ainda de acordo com o voto da Ministra, a independência relativa das sanções administrativas baseadas na legislação de defesa da concorrência e as “demais órbitas de responsabilidade” autorizam que o mesmo conjunto probatório, tido por insuficiente para condenação em outras esferas, seja reputado apto a fundamentar a aplicação das penalidades decorrentes da prática de condutas anticoncorrenciais, ressalvada a hipótese prevista no artigo 66, do Código de Processo Penal[10]. Tal entendimento decorre, segundo a julgadora, dos objetivos de cada plano de proteção à concorrência – a Lei Antitruste visa coibir condutas anticompetitivas e punir, por meio de sanções, os responsáveis; o âmbito civil tem como escopo a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas e fixação de ordens com intuito de conformar a atuação dos agentes econômicos à legislação, sem prejuízo do acionamento da jurisdição penal com relação às pessoas físicas – dentro de um sistema próprio composto por três esferas independentes entre si.

Neste contexto, o voto da Ministra Relatora, que foi acompanhado à unanimidade pelos demais julgadores, deu parcial provimento ao recurso interposto pelo CADE, para afastar a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, como reconhecida pelas instâncias inferiores.

É importante destacar que, conforme ressaltado pela Ministra, no âmbito do processo administrativo, embora tenha sido utilizado o mesmo conjunto probatório, considerado insuficiente pelas esferas civil e penal anteriormente, outras provas foram produzidas, tais como oitiva de testemunhas e a coleta de informações junto à agência reguladora do setor petrolífero, sobre os preços de combustíveis no mercado local, o que afastaria eventual entendimento de que a decisão proferida pelo CADE foi baseada apenas em provas emprestadas.

Neste ponto, e apenas para provocar uma reflexão sobre o tema, entende-se que a questão posta, quanto à esfera cível, faz todo sentido, diante das características dos direitos tutelados. No entanto, no âmbito penal, esfera legitimada e detentora da expertise necessária para a apuração do crime de cartel, a análise de provas e a conclusão pela sua insuficiência, quanto à prática de cartel, não podem ser desconsideradas pelo CADE, ainda que as esferas sejam independentes entre si, sob pena de grave insegurança jurídica, pois, repise-se, tanto a esfera penal quanto a administrativa possuem a expertise para analisar a configuração ou não desta prática ilícita e (e não ‘ou’) concorrencial. Por essa razão, imprescindível que o conjunto probatório emprestado da esfera penal, diante da conclusão, nesta esfera, no que concerne à existência da prática da conduta de cartel, seja subsidiado com novas provas, de modo a complementar e tornar suficiente o que antes não era.

Não pode o CADE ignorar a decisão penal, pelo menos para sopesar com as demais provas que porventura possa invocar, sob pena de termos decisões conflitantes na avaliação dos mesmos elementos probatórios.


[1] Inteligência dos artigos:

Código de Processo Penal, Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Código Civil, Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Lei 8.112/1990, Art. 125.  As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Lei 12.529/2011, Art. 35.  A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (correspondente à Lei 8884/94, artigo 19). 

Lei 12.529/2011, Art. 47.  Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação (correspondente à Lei 8884/94, artigo 29). 

Lei 13.869/2019, Art. 8º. Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[2] Acórdão disponível no link: Julgamento Eletrônico (stj.jus.br).

[3] Ação anulatória de decisão proferida pelo CADE, movida por Paulo Ricardo Tonolli e Auto Posto Tonolli Ltda, tendo em vista a condenação de ambos pela prática de cartel, no âmbito do CADE, bem como da correlata penalidade de revogação da autorização para exercer atividade de posto de combustíveis, aplicada pela ANP. Em primeira instância, os pedidos foram julgados procedentes, tendo sido reconhecida a inviabilidade de o CADE reconhecer a existência de cartel, quando os mesmos fatos estavam acobertados pelo manto da coisa julgada decorrente da Ação Civil Pública 010.1.07.001043-59 e da Ação Penal 010.207.000.52097, momento em que fora afastada a existência de conduta ilícita. A decisão de 1º grau foi mantida pelo TRF4.

[4] Processo administrativo nº 08012.010215/2007-96, que teve por objeto apurar a existência coordenação de mercado ajustada entre revendedores de combustíveis líquidos (gasolina álcool e diesel) com atuação no Município de Caxias do Sul – RS —nos anos 2004, 2005 e 2006.

[5] A decisão da Ministra Relatora foi acompanhada pela unanimidade dos demais Ministros presentes na sessão de julgamento.

[6] Lei 7.347/1995, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

[7] A exceção parcial à regra ocorre no âmbito das ações coletivas, conforme artigo 18 da Lei 4.717/1965 e artigo 16 da Lei 7.347/1985, tendo em vista a preocupação legislativa com os interesses difusos e coletivos tutelados nas demandas desta natureza, que exige robusta e exauriente produção de provas.

[8] CPC, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

[9] A coisa julgada pro et contra, forma-se independentemente do resultado do processo, do teor da decisão judicial proferida. Não é relevante se o resultado é de procedência ou de improcedência do pedido, se houve ou não o esgotamento de provas, a decisão definitiva sempre será apta a produzir a coisa julgada. Essa é a regra geral do nosso Código de Processo Civil.

A coisa julgada secundum eventum probationis, forma-se no caso de esgotamento das provas. No caso de os pedidos formulados na demanda serem julgados procedentes (com esgotamento de provas), ou improcedentes (com provas suficientes), a decisão judicial só produzirá a coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar os pedidos improcedentes por insuficiência de provas, não haverá a coisa julgada.

[10] Vide nota de rodapé 1.

Deveríamos repensar na definição de humano?

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em nossa sociedade as pessoas e objetos são conhecidos por seus nomes, características e adjetivos a eles relacionados. Cada coisa, expressão ou palavra tem o seu ou os seus significados, e tendemos a conviver com muitos deles sem, ao menos, refletir sobre eles ou questioná-los.

Dentro deste contexto, após algumas pesquisas corriqueiras, chamou-nos a atenção um dos significados dado à palavra “humano”. De acordo com o Dicionário Online de Português[1], “humano” significa “[Q] que é piedoso, indulgente, compreensivo; bondoso, caridoso: mostrou-se humano diante das dificuldades alheias”. Como sinônimo de “humano”, o dicionário traz, ainda, as palavras generoso, benevolente e benigno e como antônimos as palavras desumano, bárbaro, cruel, desalmado, desapiedado, inumano, atroz, duro e brutal. Já o conhecido Dicionário Michaelis traz como um dos significados de “humano” “[Q] que denota compaixão (…)”[2].

Ler as definições descritas acima, assim como outras semelhantes trazidas por dicionários importantes[3], nos fez refletir não apenas sobre os episódios recorrentes, que ocupam as páginas dos jornais e meios de comunicação do mundo inteiro, mas também sobre aqueles que tanto se falou e que nada mais se tem a dizer, ou porque normalizados ou porque desgastadas estão todas as tentativas de solucioná-los. Ressalte-se que não se está aqui a questionar qualquer religião, gênero, raça, orientação sexual, nada disso, mas, sim, a convidar os leitores a uma reflexão sobre os conceitos aceitos pela sociedade sem qualquer questionamento.

Os jornais e os meios de comunicação reportam, repostam, comentam, reiteradamente, notícias retratando violência e guerras. A violência reiterada e desmedida contra pessoas idosas, pretos, mulheres, crianças, comunidade LGBTQIAPN+, violência esta que não tem classe social. Veicula-se, também, a violência decorrente da corrupção, que tira da criança e dos menos privilegiados o prato de comida ou o acesso à educação. Fala-se, sem trégua, das atrocidades trazidas pelas guerras, que destroem famílias e mutilam pessoas.

Não é novidade de que nestas guerras, tem-se o abuso de crianças e mulheres, o desrespeito pela vida e pelos direitos humanos, o uso de força brutal, com invasões e bombardeios de cidades e vilarejos inteiros, tirando da população, vítima de governos desumanos, o mínimo necessário à sobrevivência e à dignidade que lhe sobrou. Há quem aplauda todas essas condutas, há quem apoie cegamente a postura desses governantes, em nome de um território, de dinheiro, de poder, ou, ainda, pelas mais impensáveis razões. É o humano matando o humano, apoiando a matança, a corrupção, os preconceitos, a violência.

Em uma sociedade marcada pela presença de pessoas ávidas por dinheiro e poder, e pelo machismo estrutural, pelo racismo e outros preconceitos, que são conceitos e problemas frutos de condutas humanas, sem que tenhamos uma resposta social suficientemente rápida para os devidos enfrentamentos, temos a ideia de que a impunidade, ao final, é o que prevalece.

O “humano”, então, que é definido como um ser do qual se denota compaixão, piedade, indulgência, compreensão, bondade, caridade, reveste-se justamente dos antônimos desta definição, pois veste facilmente a roupagem do bárbaro, do cruel, do desalmado, do desapiedado, do inumano, do atrozdurobrutal, porque já não se importa mais com aquele que, ao seu ver, não teria o direito de pensar ou agir diferente. Porque, ao seu ver, a partir do momento em que o seu semelhante não pensa como ele, não possui a mesma opinião ou não segue a mesma religião ou, ainda, por não ter a mesma cor da pele ou orientação sexual, sua vida e existência deixam de ter valor, dando, então, margem aos mais absurdos e cruéis abusos, baseados em justificativas absolutamente infundadas e descabidas.

Levando-se em consideração este cenário, visto e vivenciado reiteradamente por todo o mundo, cumpre-nos questionar se, de fato, estariam corretas essas definições de “humano”, absorvidas culturalmente. É certo que todo humano pode ser bom, benigno, benevolente, mas que nem todo humano, de fato, o é, e o mesmo pode ser afirmado com relação a todos os outros sinônimos acima destacados. Neste caso, não seria, então, mais prudente afirmarmos serem, essas definições e sinônimos, adjetivos que podem ser atribuídos aos humanos, e não características a eles inerentes?

A vida muda, é dinâmica, assim como a sociedade, e as leis acompanham essas mudanças, de modo a suprir as necessidades sociais. Talvez fosse o caso de revisarmos esses antigos conceitos, aceitos como verdadeiros, mas que, atualmente, não mais refletem a realidade na qual vivemos. Infelizmente!


[1] https://www.dicio.com.br/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[2] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[3] Dicionário Oxford: human – kind behaviour, considered to be natural to humans (humano – comportamento gentil, considerado natural para os humanos – tradução livre. (https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/us/definition/english/human_1?q=human Acesso em 07.12.2023).

Dicionário Real Academia Española: humano – comprensivo, sensible a los infortunios ajenos (humano – compreensivo, sensível aos infortúnios alheios – tradução livre). Sinônimos: humanitario, solidário, caritativo, compassivo, bienhechor, filantrópico, altruista (humanitário, solidário, caridoso, compassivo, benfeitor, filantrópico, altruísta – tradução livre). Antônimo: cruel. (https://dle.rae.es/humano?m=form&m=form&wq=humano Acesso em 07.12.2023).


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Blackout no CADE

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

De acordo com o Regimento Interno do CADE (RICADE)[1], o Tribunal do CADE é composto por um Presidente e 6 (seis) Conselheiros, nomeados pelo Presidente da República, depois de sabatinados e aprovados pelo Senado Federal. O mandato do Presidente e dos Conselheiros é de 4 (quatro) anos.

Compete ao Plenário do Tribunal[2], dentre outras atribuições, decidir (i) sobre a existência de infrações à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei; (ii) decidir os processos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, instaurados pela Superintendência-Geral; (iii) aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, bem como determinar à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento; (iv) apreciar e julgar processos administrativos de atos de concentração econômica, na forma da Lei.

As decisões do Tribunal são tomadas por maioria, com a presença mínima de 4 (quatro) membros para a instalação da sessão de julgamento, sendo o quórum de deliberação mínimo de 3 (três) membros[3]. Se, no caso de encerramento de mandato dos Conselheiros, a composição do Tribunal ficar reduzida a número inferior, os prazos previstos na Lei de Defesa da Concorrência (LDC)[4] serão automaticamente suspensos e, nos casos em que o processo estiver no Tribunal, será suspensa a tramitação dos processos, continuando-se a contagem do prazo imediatamente após a recomposição do quórum[5].

E é justamente este o cenário atual do CADE. Isto porque, no mês de outubro, findaram os mandatos de 3 (três) Conselheiros, Sérgio Ravagnani, Lenisa Prado e Luiz Hoffmann. No início do mês de novembro, encerrou-se o mandato do Conselheiro Luís Braido. A questão preocupante, até o momento, é que não houve pelo Presidente da República a indicação de nenhum nome ao Senado, travando as atividades do Tribunal, o que irá gerar um verdadeiro blackout.

Sem que haja um quórum mínimo, atrasa-se não apenas a análise e julgamento de processos administrativos que aguardam resolução no Tribunal, mas, também, a aprovação definitiva de quaisquer operações que devam ser submetidas ao CADE[6]. Isso porque a ausência de quórum mínimo, além de suspender deliberações do Tribunal, traz discussão sobre a suspensão dos prazos de avocação. Com relação às operações, até mesmo aquelas consideradas de menor complexibilidade, ainda que sem qualquer preocupação concorrencial, aprovadas sem restrições pela Superintendência-Geral (SG), ficarão travadas, na medida em que qualquer Conselheiro pode avocá-la ou terceiros interessados podem questioná-la, de modo a rever o trabalho da SG no Tribunal. E esses prazos estão suspensos.

De acordo com dados levantados pelo Valor Econômico[7], a SG conseguiu encerrar a análise de 79 (setenta e nove) atos de concentração até o dia 16 de outubro, praticamente zerando o estoque. Essa era a data limite para a análise e publicação de pareceres da SG sobre os casos e, ainda, ter os 15 (quinze) dias, previstos pelo RICADE, para terceiros e/ou Conselheiros questionarem a análise e, eventualmente, levarem os casos ao Tribunal. Todas as demais análises realizadas a partir desta data, não poderão ser concluídas em razão da falta de quórum[8].

Importante destacar que, sem que haja a aprovação pelo CADE, em decisão definitiva, as operações não podem ser consumadas, sob pena de configuração de gun jumping, o que enseja possível declaração de nulidade da operação, imposição de multa pecuniária em valores que variam entre R$ 60.000,00 e R$ 60.000.000,00 – a depender da condição econômica dos envolvidos, dolo, má-fé e do potencial anticompetitivo da operação, entre outros – e a possibilidade de abertura de processo administrativo contra as partes envolvidas. Desta forma, deverão ser preservadas, até a decisão final da operação, as condições de concorrência entre as empresas envolvidas[9]

Esta não é a primeira vez que a Autarquia vivencia esta situação preocupante, que implica na paralisação de parte de suas atividades, e na qual questões políticas interferem e causam sérios impactos e prejuízos em nossa economia, que necessita de negócios e investimentos, com decisões céleres, como é a tradição do CADE.

Durante o período no qual o Tribunal permanece sem quórum, os Conselheiros voltam seus olhos para os trabalhos administrativos, analisando casos outrora recepcionados, envolvendo investigação de condutas (cartéis, condutas unilaterais etc.) e a preparação de atos de concentração para que, assim que possível, sejam julgados pelo Tribunal.

O fato de esta situação ter acontecido reiteradas vezes, nos faz refletir acerca da efetividade da estrutura do Tribunal, algumas vezes levantadas para discussão como, por exemplo, do número de Conselheiros ou, ainda, se não seria oportuno a existência de Conselheiros substitutos, evitando-se, desta maneira, a repetição deste blackout. No entanto, até o momento, referidos assuntos não passam de discussões no Legislativo e no Executivo, sem ainda resultados práticos efetivos.

A Lei 12.529/2011 tentou impedir que isso acontecesse, dispondo sobre os prazos de mandato de maneira não uniforme, sendo de 2, 3 e 4 anos, dependendo do caso. No entanto, os atrasos nas indicações, ao longo do tempo, provocaram a situação que nos encontramos hoje.

A nós, administrados, resta apenas aguardar e torcer para que as indicações, a serem realizadas pela Presidência da República, e a sabatina e aprovação, pelo Senado Federal, sejam tratadas como um tema prioritário, como deve ser. Ou teremos que pensar em pedir socorro ao Judiciário, para impedir que prejuízos à economia e às empresas sejam ampliados.


[1] Artigo 12, RICADE.

[2] Art. 9º, Lei 12.529/2011: Art. 9º Compete ao Plenário do Tribunal, dentre outras atribuições previstas nesta Lei:

I – zelar pela observância desta Lei e seu regulamento e do regimento interno;

II – decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei;

III – decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral;

IV – ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar;

V – aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, bem como determinar à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento;

VI – apreciar, em grau de recurso, as medidas preventivas adotadas pelo Conselheiro-Relator ou pela Superintendência-Geral;

VII – intimar os interessados de suas decisões;

VIII – requisitar dos órgãos e entidades da administração pública federal e requerer às autoridades dos Estados, Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta Lei;

IX – contratar a realização de exames, vistorias e estudos, aprovando, em cada caso, os respectivos honorários profissionais e demais despesas de processo, que deverão ser pagas pela empresa, se vier a ser punida nos termos desta Lei;

X – apreciar processos administrativos de atos de concentração econômica, na forma desta Lei, fixando, quando entender conveniente e oportuno, acordos em controle de atos de concentração;

XI – determinar à Superintendência-Geral que adote as medidas administrativas necessárias à execução e fiel cumprimento de suas decisões;

XII – requisitar serviços e pessoal de quaisquer órgãos e entidades do Poder Público Federal;

XIII – requerer à Procuradoria Federal junto ao Cade a adoção de providências administrativas e judiciais;

XIV – instruir o público sobre as formas de infração da ordem econômica;

XV – elaborar e aprovar regimento interno do Cade, dispondo sobre seu funcionamento, forma das deliberações, normas de procedimento e organização de seus serviços internos; Vide Decreto nº 9.011, de 2017

XVI – propor a estrutura do quadro de pessoal do Cade, observado o disposto no inciso II do caput do art. 37 da Constituição Federal ;

XVII – elaborar proposta orçamentária nos termos desta Lei;

XVIII – requisitar informações de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades e entidades públicas ou privadas, respeitando e mantendo o sigilo legal quando for o caso, bem como determinar as diligências que se fizerem necessárias ao exercício das suas funções; e

XIX – decidir pelo cumprimento das decisões, compromissos e acordos.

[3] Artigo 9°, §1º, Lei 12.529/2011.

[4] Lei 12.529/2011.

[5] Artigo 12, §5º, RICADE.

[6] Conforme artigos 88 e 90, Lei 12.529/2011 e Portaria Interministerial 994/2012.

[7] Valor Econômico. Olivon, Beatriz. Cade está em vias de perder o quórum mínimo para julgamentos. Enquanto não repuser vagas abertas, órgão vai se limitar a dar andamento administrativo e adiantar processos. Publicado em 03.11.2023. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/11/03/cade-esta-em-vias-de-perder-o-quorum-minimo-para-julgamentos.ghtml . Acesso em 08.11.2023.

[8] Mandato do Conselheiro Luís Braido encerrou em 04.11.2023.

[9] Artigo 88, § 3º e §4º, LDC.


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Combate à violência de gênero – Aplicação da tese da ‘Legítima Defesa da Honra’[1]

Pedro S. C Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em 2022, de acordo com o Monitor da Violência do site g1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base nos dados oficiais dos estados e do Distrito Federal, 1,4 mil mulheres foram mortas apenas pelo fato de serem mulheres, crime caracterizado como feminicídio[1]. Esse grave cenário se dá em razão de estarem enraizados, no cerne de nossa sociedade, conceitos e valores machistas, dos quais há tempos[2] tentamos nos desvencilhar.

Dentro deste contexto, no dia 01° de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF)[3] afastou, definitivamente, o uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Referida decisão é um marco importante no combate à violência de gênero que assola nossa sociedade e que mata mais mulheres do que o câncer e os acidentes de trânsito[4][5].

Para explicar melhor, a tese da legítima defesa da honra defende a ideia de que é legitima a absolvição do réu/homem que, comprovadamente, pratica feminicídio em defesa de sua honra. Esta tese decorre da herança do patriarcado que carregamos, no sentido de que o homem, chefe da casa, é o detentor/possuidor de sua esposa e, portanto, com ela pode agir da forma como bem entende, de modo corretivo e violento.

Esses valores e comportamentos foram, por muito tempo, aceitos pela sociedade e até mesmo chancelados pelo direito. Neste sentido, a decisão proferida pelo STF destaca os principais pontos de nossa legislação que culminaram no surgimento da tese, já que a honra masculina já foi um bem jurídico protegido pelo nosso ordenamento.

Neste sentido, a decisão esclarece que à época do Brasil colônia, desde o ano de 1605, os portugueses adotaram as Ordenações Filipinas, que tutelavam o “poder do homem sobre o corpo e a vida da mulher” no Livro V, Título XXXVIII (“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella”). Explica a Min. Carmen Lúcia, em seu voto, que o assassinato da mulher era um meio de afastar do marido a pecha da traição, já que o adultério colocava à prova a masculinidade do marido traído. Citando Sandra Ornellas, explica, ainda, que essa legislação, aliada aos valores culturais dos colonizadores, relacionavam a honra masculina ao comportamento feminino; a preocupação com os laços consanguíneos, com a patrilinearidade, que passavam de geração para geração, não só a herança, como também a honra da família.

Já os Códigos Criminal do Império e do Regime Republicano, posteriores às Ordenações Filipinas, embora não autorizassem expressamente o direito de o homem matar a sua esposa, passaram a considerar, apenas formalmente, o homem como sujeito potencial da prática do crime de adultério. Para tanto, deveria haver prova de que mantinha uma relação estável com sua amante, na medida em que eram normalizadas e aceitas pela sociedade as relações extraconjugais do homem. No entanto, no que concerne à mulher, bastava a presunção do adultério, destacando evidente diferenciação entre os requisitos para configuração do crime, dada a discriminação em relação ao gênero do agente.

Com a promulgação do Código Penal de 1940, esta diferenciação quanto à tipificação do crime, com base no gênero do agente, deixou de existir, não se exigindo mais a comprovação de relacionamento permanente com relação ao adultério masculino. No corpo do novo Código, no entanto, permaneceram diversas expressões discriminatórias (“mulher virgem”, “mulher honesta” etc.). Isto quer dizer, nada mudou culturalmente, pois a cobrança social e política apenas da mulher continuou, sendo ela considerada como propriedade do homem e sua exclusividade sexual[6].

Essa cobrança podia ser verificada, ademais, na legislação civil. O Código Civil de 1916 determinava serem relativamente incapazes as mulheres casadas; dispunha acerca da submissão da mulher ao homem na sociedade conjugal; preconizava ser o marido o chefe da sociedade conjugal e ter a mulher o dever de velar pela direção material e moral da família; determinava atos que a mulher não poderia praticar sem a autorização do marido.

Depreende-se, desta forma, que havia uma contaminação sistêmica do direito brasileiro, que culmina na ideia de submissão dos direitos das mulheres aos interesses do homem e que relaciona a honra masculina ao dever da mulher. Carmen Lúcia, explica, ainda, citando Margarita Danielle Ramos, o dever de a mulher, com sua castidade e fidelidade, sustentar a legitimidade do sangue, fator de honorabilidade de seu pai e marido, sendo a infidelidade perigosa por duas razões: desonra do pai e marido, e o risco de trazer para o seio familiar filhos ilegítimos.

Essa contaminação sistêmica ficou ilustrada no caso emblemático envolvendo o assassinato da socialite Ângela Diniz[7], crime passional com grande repercussão e mobilização da opinião pública. Ângela foi morta a tiros por seu marido, o empresário Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street, no dia 30 de dezembro de 1976, em Búzios, no Rio de Janeiro que, em um primeiro julgamento, foi condenado a dois anos de prisão, com o direito de cumprir a pena em liberdade.

Em sua tese de defesa, seu advogado alegou ter ele matado por amor e agido em legítima defesa de sua honra. Essa argumentação causou forte controvérsia, protestos populares e a organização de um movimento feminista “quem ama não mata”, que impulsionaram pedido de revisão pelo promotor e levaram Doca a um segundo julgamento, no qual foi condenado a 15 anos de prisão em regime fechado (ele depois obteve liberdade condicional).

Esse caso ganhou forte repercussão em razão de envolver pessoas da alta sociedade brasileira, o que levou a imprensa a veicular todos os seus passos, desde a descoberta do crime, enterro de Ângela, missa de sétimo dia, investigações e, posteriormente, todos os passos de Doca. Interessante notar que, em pesquisa realizada pela Rádio Novelo, disponibilizada em seu podcast Praia dos Ossos, verifica-se que, durante a investigação realizada, muitas foram as tentativas de justificar a conduta de Doca e de imputar a culpa pelo acontecido à vítima, em razão de Ângela ter um comportamento considerado muito à frente de sua época. O podcast relata, inclusive, reportagem na qual Doca foi mencionado como vítima.

Os desdobramentos decorrentes do assassinato de Ângela, retratam não só inúmeras tentativas de se culpar a vítima pela agressão ou, ainda, pelo seu próprio assassinato, cenário que só é encontrado em casos de feminicídio, jamais quando o corpo encontrado é masculino. Retrata também que a comoção popular[8], que causou a reviravolta no caso e a condenação de Doca, deu-se porque a imprensa esteve presente retratando os detalhes do crime, por envolver atores da alta sociedade, o que foi considerado um escândalo à época. No entanto, pergunta-se, quantos outros crimes não ocorreram nessa mesma época, nos quais o homem saiu pela porta da frente da delegacia ou do tribunal, sob o argumento de que sua honra valia mais do que a vida de sua namorada, companheira, esposa e até mesmo filha?

Voltando à análise da decisão proferida pelo STF, esta esclarece, ainda, que apenas com a promulgação da Constituição de 1988, essa diferenciação e submissão da mulher deu espaço ao tratamento idêntico a todo e qualquer cidadão, independentemente do gênero. Desta forma, homens e mulheres passam a ter os mesmos deveres e obrigações na sociedade e o Estado passou a ter o dever de instituir mecanismos para coibir a violência de gênero, doméstica, com intuito de construir uma sociedade justa e livre de preconceitos e discriminações.

Neste cenário, o Brasil assinou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Dec. n° 1.973/1996) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (Dec. n° 4.377/2002). Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, regulamentando os direitos assegurados constitucionalmente e ratificados pelo Brasil por tratados de direitos humanos, com intuito de coibir as múltiplas formas de violência contra a mulher.

Como é possível depreender da leitura desse resumido contexto histórico apresentado na decisão do STF, a submissão da mulher perante o homem e de seu papel na sociedade, a ideia de ser a mulher propriedade do homem, seja de seu pai ou marido, ou de ser seu dever social a manutenção da honra do homem, ficaram impregnados na cultura de nossa sociedade. A cultura, por sua vez, é o conjunto dos valores, atos, ações, que são aceitos pela sociedade, que influenciam em todos os aspectos que a norteiam, como o direito, as reações e as relações sociais, e que são passados de geração para geração.

A sociedade, no entanto, sofre transformações, exigindo modificações no direito que deve acompanhar essas mudanças, tornando efetiva a sua tutela. No entanto, os valores que envolvem a sociedade, a cultura, necessitam de muito mais tempo para se transformar, o que pode ser verificado com a necessidade da assinatura de tratados, edições de leis e adoção de medidas visando ao combate da violência de gênero, que surge quando o homem, acostumado a ser chefe e dono, não atura o fato de não mais ocupar esse papel, reagindo com violência e, por vezes, matando.

E é nesse contexto que a tese da legítima defesa da honra surgiu, e criou suas raízes, absolvendo centenas de assassinos, com base na alegação de que sua honra, seu brio e seu orgulho valem mais do que a vida de uma mulher. Note que a referida tese é aceita há anos, enquanto vigente não só a Constituição Federal de 1988, que traz como princípios basilares a defesa da proteção à vida, da igualdade, da proteção dos direitos humanos, mas também todos os tratados assinados pelo Brasil e a Lei Maria da Penha.

A utilização desta tese como defesa perante os tribunais brasileiros, demonstra a tolerância da sociedade com relação à violência contra a mulher, já que a aceita mesmo sem ela apresentar qualquer amparo legal. E, diz-se isso porque, conforme esclarecido pelo Min. Dias Toffoli em seu voto, a legítima defesa da honra não é tecnicamente legítima defesa, já que seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência.

De acordo com o artigo 23 do Código Penal, a legítima defesa é uma das causas excludentes de ilicitude. Já o artigo 25 do Código Penal esclarece que, entende-se por legítima defesa, “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Adiciona Toffoli que por agressão injusta, entende-se aquela que ameaça ou lesa um bem jurídico; que há em nossa legislação a proibição do excesso, no sentido de que a defesa deve consistir no uso de meios proporcionais à agressão, isto é, suficientes para repeli-la; e que, com o objetivo de evitar que a autoridade judiciária absolvesse o agente movido por ciúme ou outras paixões e emoções, o legislador inseriu no Código Penal a regra do artigo 28, que dispõe que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal.

Desta forma, Toffoli conclui que a honra é um atributo pessoal, íntimo e subjetivo, cuja tutela se encontra delineada na Constituição, isto quer dizer, aquele que se vê lesado em sua honra tem meios jurídicos para buscar sua compensação. Neste contexto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas, sim, a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa.

E adiciona, que a legítima defesa da honra “normaliza e reforça uma compreensão de desvalor da vida da mulher, tomando-a como ser secundário cuja vida pode ser suprimida em prol da afirmação de uma suposta honra masculina”, o que está em descompasso com os objetivos fundamentais da Constituição, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Trata-se de uma tese violadora dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres e, citando Silvia Pimentel, reforça que lançar mão dessa tese significa não o julgamento do crime em si, mas do comportamento da mulher, com base um uma dupla moral sexual, cabendo, assim, ao Estado não ser conivente e não estimular a violência doméstica e o feminicídio.

Neste sentido, a cláusula tutelar de plenitude de defesa do Tribunal do Juri[9], não pode constituir em um instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas, como o feminicídio ou qualquer outra forma de violência contra a mulher, já que no Direito brasileiro o bem considerado como mais valioso é justamente a vida. Assim, decidiu-se por obstar à defesa de um acusado, à acusação, à autoridade policial e ao juízo a utilização, direta ou indireta, da tese da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Assim, à unanimidade, a tese da legítima defesa foi julgada inconstitucional, e conferidos aos artigos 23, II 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65, do Código de Processo Penal, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.

Como visto, a decisão proferida pelo STF é um importante marco no combate a violência de gênero e reforça as mudanças sofridas no âmbito de nossa sociedade, mas também demonstra o quanto a luta é árdua para afastar do cerne de nossa cultura os traços do machismo decorrentes do patriarcado, que marcou nossa legislação e ainda corrompe o pensamento de muitos brasileiros.

Preocupa o fato de a tese ter sido afastada apenas após passados mais de 34 anos da promulgação da Constituição, que reconheceu a igualdade, e este fato reforça a questão acerca da dificuldade de se mudar a cultura de um povo e, portanto, dos valores que o envolvem. No entanto, ao mesmo tempo, conforta, na medida em que a partir de agora nenhum homem poderá dar à sua honra, ao menos em nossos tribunais, mais valor do que a vida de uma pessoa, até porque, quem assim pensa, sequer honra tem a ser defendida.

Esse é um dos diversos e importantes passos dados pela sociedade e pelas Instituições brasileiras em busca da igualdade plena entre homens e mulheres. Chegará o dia em que olharemos para esses fatos e sentiremos a distância das atrocidades vividas pelas mulheres neste país, pois, sim e, de fato, todos serão verdadeiramente iguais em direitos e obrigações diante não só da lei, mas da sociedade como um todo.


[1] Fonte: RESENDE, Rodrigo. STF decide proibir uso da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/08/01/stf-decide-proibir-uso-da-tese-de-legitima-defesa-da-honra-em-casos-de-feminicidio#:~:text=contra%20a%20mulher-,STF%20decide%20proibir%20uso%20da%20tese%20de%20leg%C3%ADtima%20defesa%20da,Weverton%20(PDT%2DMA). Acesso: 30.08.23.

[2] Os primeiros núcleos em defesa dos ideais feministas surgiram no Brasil no século XIX. Já no século XX, houve uma diversificação dos feminismos no Brasil, que iam desde uma tendência mais conservadora (feminismo “bem-comportado”) até o feminismo mais incisivo. No entanto, foi em 1960 que o movimento ganhou força, reafirmando a necessidade da luta contra “opressões sistemáticas”. Fonte: Feminismo no Brasil. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/feminismo.htm#:~:text=Entre%20as%20d%C3%A9cadas%20de%201930,pelo%20governo%20de%20Get%C3%BAlio%20Vargas. Acesso em 12.09.2023.

[3] Decisão proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, registrada sob nº ADPF 779, requerente Partido Democrático Trabalhista.

[4] Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Precisamos falar sobre Violência Contra as Mulheres. Disponível em: https://www.defensoria.rs.def.br/upload/arquivos/202303/08151229-precisamos-falar-sobre-violencia-contra-a-mulher.pdf . Acesso 30.08.23.

[5] De acordo com dados que constam na decisão, 40% de todos os assassinatos de mulheres registrados no Caribe e na América Latina, ocorrem no Brasil; no Estado de São Paulo, a cada 60 (sessenta) horas, uma mulher é vítima de feminicídio; de acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, entre 2014 e 2018, a cada 4 (quatro) minutos, uma mulher foi agredida por um homem no Brasil; 1 (um) feminicídio a cada 7 (sete) horas no Brasil.

[6] O adultério deixou de ser crime no Brasil apenas em 2005, com a edição da Lei 11.106/2005.

[7] Fonte: Assassinato de Ângela Diniz. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/assassinato-de-angela-diniz/noticia/assassinato-de-angela-diniz.ghtml . Acesso em 12.09.2023.

[8] Importante esclarecer, neste ponto, que houve comoção apenas de uma parte da população, já que muitos foram os apoiadores de Doca, dentre eles muitas mulheres, que não estavam de acordo com o modo de vida escolhido por Ângela. As pessoas chegaram, inclusive, a fazer camisetas com a foto de Doca para apoiá-lo.

[9] Os crimes contra a vida são julgados no Brasil pelo Tribunal do Juri. A plenitude da defesa é princípio essencial à instituição do Tribunal do Juri e está disposta, na Constituição Federal, no rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XXXVIII, a). Por meio deste princípio, restou assegurado aos réus a apresentação de argumentos jurídicos e não jurídicos (morais, políticos, sociológicos etc.) para a formação do convencimento dos jurados.


[1] Mais informações: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690


Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.