A Independência Relativa de Instâncias
Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal
Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo
O princípio da relativa independência de instâncias determina que as esferas civil, penal e administrativa são independentes, isto é, uma decisão proferida em uma dessas instâncias não tem caráter vinculante, podendo, desta forma, existir a absolvição em uma delas e a condenação na outra. Diz-se relativa independência, pois toda regra comporta exceção, sendo elas o caráter vinculante (i) da absolvição penal, que nega a existência do fato ou autoria; (ii) da condenação de agente público na esfera penal, e (iii) da absolvição penal por ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito[1].
Neste contexto, no julgamento do REsp 2.081.262-RS (2022/0252631-6)[2], realizado em novembro de 2023, os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entenderam pela possibilidade de condenação, pela prática da conduta de cartel, no âmbito do Processo Administrativo que tramita perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ainda que tenha ocorrido a absolvição dos acusados nas esferas penal e civil.
Foram analisados e julgados, pelos Ministros, os recursos interpostos pelo CADE e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em face de acórdão proferido, por unanimidade, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (4ª T – TRF4), no julgamento de apelações e reexame necessário[3], que decidiu pela anulação de decisão proferida pelo CADE. Referida decisão, proferida pela autarquia, condenou, nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, diversos postos de gasolina e pessoas físicas a eles relacionadas, por formação de cartel[4], sob o fundamento de que os fatos objeto do referido processo administrativo foram analisados tanto no âmbito penal, quanto no civil, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), sendo tais fatos e o conjunto probatório que os fundamentou, considerados insuficientes para a condenação dos acusados pela prática de cartel na revenda de combustíveis no Município de Caxias do Sul/RS, nas duas esferas.
No voto proferido pela Ministra Relatora Regina Helena Costa[5], ela esclarece que “[À] à vista do princípio da relativa independência entre as instâncias de responsabilização consagrado nos arts. 66 do Código de Processo Penal, 935 do Código Civil de 2002 e 125 da Lei n. 8.112/1990, ressalvada a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta, ou, ainda, quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática, as conclusões levadas a efeito em âmbito criminal não reverberam sobre as atribuições da autarquia antitruste, viabilizando-se, por isso, a submissão de idêntico acervo probatório ao crivo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para exame dos pressupostos indispensáveis à apuração de condutas anticoncorrenciais”.
Adiciona que o artigo 16[6], da Lei nº 7.347/1995, excepciona[7] parcialmente o regramento “pro et contra” disposto no artigo 502[8], do Código de Processo Civil, instituindo o regime jurídico da “res judicata secundum eventum probationis”, que delibera acerca da “ausência de formação de coisa julgada quando, não obstante apreciado o mérito da ação civil pública, a sentença de improcedência é fundada em insuficiência probatória, hipótese na qual exigida apresentação de prova nova tão somente como requisito de ulterior demanda coletiva aviada por outros legitimados, regra não extensível à análise do mesmo contexto fático pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica”[9].
Neste sentido, ainda de acordo com o voto da Ministra, a independência relativa das sanções administrativas baseadas na legislação de defesa da concorrência e as “demais órbitas de responsabilidade” autorizam que o mesmo conjunto probatório, tido por insuficiente para condenação em outras esferas, seja reputado apto a fundamentar a aplicação das penalidades decorrentes da prática de condutas anticoncorrenciais, ressalvada a hipótese prevista no artigo 66, do Código de Processo Penal[10]. Tal entendimento decorre, segundo a julgadora, dos objetivos de cada plano de proteção à concorrência – a Lei Antitruste visa coibir condutas anticompetitivas e punir, por meio de sanções, os responsáveis; o âmbito civil tem como escopo a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas e fixação de ordens com intuito de conformar a atuação dos agentes econômicos à legislação, sem prejuízo do acionamento da jurisdição penal com relação às pessoas físicas – dentro de um sistema próprio composto por três esferas independentes entre si.
Neste contexto, o voto da Ministra Relatora, que foi acompanhado à unanimidade pelos demais julgadores, deu parcial provimento ao recurso interposto pelo CADE, para afastar a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, como reconhecida pelas instâncias inferiores.
É importante destacar que, conforme ressaltado pela Ministra, no âmbito do processo administrativo, embora tenha sido utilizado o mesmo conjunto probatório, considerado insuficiente pelas esferas civil e penal anteriormente, outras provas foram produzidas, tais como oitiva de testemunhas e a coleta de informações junto à agência reguladora do setor petrolífero, sobre os preços de combustíveis no mercado local, o que afastaria eventual entendimento de que a decisão proferida pelo CADE foi baseada apenas em provas emprestadas.
Neste ponto, e apenas para provocar uma reflexão sobre o tema, entende-se que a questão posta, quanto à esfera cível, faz todo sentido, diante das características dos direitos tutelados. No entanto, no âmbito penal, esfera legitimada e detentora da expertise necessária para a apuração do crime de cartel, a análise de provas e a conclusão pela sua insuficiência, quanto à prática de cartel, não podem ser desconsideradas pelo CADE, ainda que as esferas sejam independentes entre si, sob pena de grave insegurança jurídica, pois, repise-se, tanto a esfera penal quanto a administrativa possuem a expertise para analisar a configuração ou não desta prática ilícita e (e não ‘ou’) concorrencial. Por essa razão, imprescindível que o conjunto probatório emprestado da esfera penal, diante da conclusão, nesta esfera, no que concerne à existência da prática da conduta de cartel, seja subsidiado com novas provas, de modo a complementar e tornar suficiente o que antes não era.
Não pode o CADE ignorar a decisão penal, pelo menos para sopesar com as demais provas que porventura possa invocar, sob pena de termos decisões conflitantes na avaliação dos mesmos elementos probatórios.
[1] Inteligência dos artigos:
Código de Processo Penal, Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Código Civil, Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
Lei 8.112/1990, Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
Lei 12.529/2011, Art. 35. A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (correspondente à Lei 8884/94, artigo 19).
Lei 12.529/2011, Art. 47. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação (correspondente à Lei 8884/94, artigo 29).
Lei 13.869/2019, Art. 8º. Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
[2] Acórdão disponível no link: Julgamento Eletrônico (stj.jus.br).
[3] Ação anulatória de decisão proferida pelo CADE, movida por Paulo Ricardo Tonolli e Auto Posto Tonolli Ltda, tendo em vista a condenação de ambos pela prática de cartel, no âmbito do CADE, bem como da correlata penalidade de revogação da autorização para exercer atividade de posto de combustíveis, aplicada pela ANP. Em primeira instância, os pedidos foram julgados procedentes, tendo sido reconhecida a inviabilidade de o CADE reconhecer a existência de cartel, quando os mesmos fatos estavam acobertados pelo manto da coisa julgada decorrente da Ação Civil Pública 010.1.07.001043-59 e da Ação Penal 010.207.000.52097, momento em que fora afastada a existência de conduta ilícita. A decisão de 1º grau foi mantida pelo TRF4.
[4] Processo administrativo nº 08012.010215/2007-96, que teve por objeto apurar a existência coordenação de mercado ajustada entre revendedores de combustíveis líquidos (gasolina álcool e diesel) com atuação no Município de Caxias do Sul – RS —nos anos 2004, 2005 e 2006.
[5] A decisão da Ministra Relatora foi acompanhada pela unanimidade dos demais Ministros presentes na sessão de julgamento.
[6] Lei 7.347/1995, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
[7] A exceção parcial à regra ocorre no âmbito das ações coletivas, conforme artigo 18 da Lei 4.717/1965 e artigo 16 da Lei 7.347/1985, tendo em vista a preocupação legislativa com os interesses difusos e coletivos tutelados nas demandas desta natureza, que exige robusta e exauriente produção de provas.
[8] CPC, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
[9] A coisa julgada pro et contra, forma-se independentemente do resultado do processo, do teor da decisão judicial proferida. Não é relevante se o resultado é de procedência ou de improcedência do pedido, se houve ou não o esgotamento de provas, a decisão definitiva sempre será apta a produzir a coisa julgada. Essa é a regra geral do nosso Código de Processo Civil.
A coisa julgada secundum eventum probationis, forma-se no caso de esgotamento das provas. No caso de os pedidos formulados na demanda serem julgados procedentes (com esgotamento de provas), ou improcedentes (com provas suficientes), a decisão judicial só produzirá a coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar os pedidos improcedentes por insuficiência de provas, não haverá a coisa julgada.
[10] Vide nota de rodapé 1.