Artigos de opinião

Enforcement concorrencial privado e as condutas unilaterais

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde o último Peer Review da OCDE, é uníssono entre doutrinadores brasileiros e estrangeiros a relevância que o enforcement concorrencial privado possui com relação ao aprimoramento da persecução pública. No Brasil, apesar da previsão normativa do Art. 47 da Lei 12.529/2011 possibilitar sua propositura, deficiências sistêmicas do sistema judiciário brasileiro e a dificuldade de equiparar as reparatórias concorrenciais ao sistema de reparação cível tradicional originaram um absoluto desestímulo ao crescimento deste tipo de demanda em território nacional.

Dentre as dificuldades desta equiparação, está a problemática de quantificação do valor do dano, uma vez que a captura do sobrepreço proveniente de condutas colusivas exige um robusto contrafactual, produzido a partir de exercícios econométricos não apenas complexos, como absolutamente distantes da realidade dos julgadores.

A metodologia acima descrita, contudo, possibilita unicamente o cômputo do sobrepreço em decorrência de condutas de natureza colusiva, ou seja, cuja ocorrência prejudica os demais entes da cadeia que precisarão absorver este aumento. Não obstante, é necessário relembrarmos que o Art. 47 não realiza qualquer delimitação de objeto, isto é, quanto a que tipo de infração econômica poderia vir a ensejar a propositura de uma ação reparatória privada. Do contrário, o artigo refere-se, de forma genérica, às “práticas que constituam infração à ordem econômica”, ou seja, incluindo-se também práticas de natureza unilateral, cujo cálculo do dano possui uma lógica diametralmente distinta.

Estas peculiaridades acentuaram ainda mais a coleção de desincentivos para que particulares ingressassem com estas ações no Brasil. Assim, em que pese a esperança de que o PL 11.275/2018 possa resolver parte relevante destes problemas – como as calorosas discussões sobre o prazo prescricional aplicável – a reparação de danos em sede de condutas unilaterais está ainda um passo atrás neste processo.

Enquanto isso, cinco dias atrás, na Inglaterra, teve início uma ação coletiva ajuizada em face do grupo Meta, hoje controlador do Facebook, cujos pedidos reparatórios somam aproximadamente 2,3 bilhões de libras. Trata-se de um pedido de reparação de danos com base no alegado abuso de posição dominante da plataforma Facebook durante o período de outubro de 2015 a dezembro de 2019, quando 44 milhões de usuários ingleses haveriam sido afetados por uma política de coleta de dados que, apesar de agressiva, como defendem os advogados da causa, seria essencial para que os usuários pudessem acessar os benefícios da rede social.

Retomando a discussão acerca das limitações para a difusão deste instrumento, para além do cálculo em si, há outras diferenças importantes e que vêm sendo mapeadas pela literatura estrangeira[1], como o grau de impacto da infração com relação aos competidores, o momento do dano, a duração e diferenciação do efeito sobre diferentes tipos de consumidores.

Com relação ao grau de impacto, além de prejudicar os demais entes ao longo da cadeia produtiva, condutas unilaterais possuem repercussões patrimoniais tanto para os consumidores diretos do infrator, quanto para os competidores[2], que atuam na mesma fase da cadeia. Isto ocorre porque, diferentemente do cartel, cujo intuito é apropriar-se de excedentes, similarmente ao fenômeno do monopolista, condutas unilaterais, como a utilização de preços predatórios, podem inicialmente inclusive beneficiar o consumidor, que se beneficiará de preços melhores.

Entretanto, uma vez que o incumbente tem sucesso ao excluir ou até mesmo coibir a entrada de novos competidores, a elevação de preços e possível deterioração da qualidade dos produtos é certa – caso contrário, não haveria racionalidade na conduta. Dessa maneira, a cobrança de lucros cessantes como reparação privada é não apenas mais óbvia, como também mais fácil de ser quantificada.

Sobre o momento do dano, diferentemente dos cartéis, as fases de implementação das condutas unilaterais são bastante demarcadas e geralmente remontam um fechamento, seguido por um atrito, onde ocorre a retirada dos demais concorrentes do mercado, e, em seguida, a recuperação, seguida pelo crescimento deste incumbente no mercado. Essas fases terão impacto direto não apenas na duração do efeito sobre concorrentes e consumidores, como também na forma com que são afetados, uma vez que, em razão do tratamento diferenciado com relação a consumidores específicos (por exemplo, oferecendo compensação a alguns deles), é possível que consumidores não sejam afetados de forma homogênea

Certamente, a proliferação da utilização de vieses comportamentais especialmente no contexto das plataformas digitais pode acentuar este fenômeno, ocasionando um desnível no grau de afetação dos consumidores com relação à prática, o que precisará ser levado em conta no momento de quantificar o dano.

No que diz respeito à duração do efeito – em que pese as calorosas discussões que debatem uma extensão de efeitos no contexto dos cartéis em licitação – ao passo em que o efeito do cartel normalmente não se sustenta por muito tempo após o encerramento da prática colusiva (o que também dependerá de características próprias de cada mercado, como a elasticidade da demanda, por exemplo), condutas unilaterais poderão implicar em saídas forçadas ou entradas impedidas, o que possibilita que os efeitos da infração perdurem por muito tempo após a cessação da conduta.

Ora, todas estas distinções carecem de um tratamento próprio e chamam atenção para a necessidade de fortalecer o enforcement concorrencial privado também com relação às condutas unilaterais – o que pode não apenas assumir a forma de tutelas reparatórias, como ressaltaram Camargo e Violada (2021)[3], mas também, no formato das chamadas “stand-alone suits”, de tutelas declaratórias, desconstitutivas, inibitórias ou mesmo reintegrativas.

Com o crescimento na quantidade de casos envolvendo infrações unilaterais e discutindo complexidades adicionais no que diz respeito às características inerentes às plataformas, observemos as cenas dos próximos capítulos. Mardsden (2013)[4], ao referir-se sobre a interação entre os dois tipos de enforcement, manifestou o entendimento de que o ideal seria que sua interação seguisse um modelo de engrenagens, como um veículo híbrido, que pudesse alternar suas baterias de acordo com a necessidade naquele momento. Ainda há muita estrada pela frente até que o Brasil possa atingir este “estado da arte” de aplicação do Direito Concorrencial, mas é possível que os novos desafios trazidos com a proliferação de condutas unilaterais possam acelerar este processo.


[1] MAIER-RIGAUD, Frank P.; SCHWALBE, Ulrich. Quantification of Antitrust Damages. In: ASHTON, David; HENRY, David. Competition Damages Actions in the EU: Law and Practice, 2013.

[2] Sobre este tema, a American Bar Association, em publicação que trata sobre a prova nas ações reparatórias, igualmente ressalta tal diferenciação: “Thus, exclusionary condut cases may be brought by either a rival or a customer (or class of customers). In this way, exclusionary conduct cases differ from price-fixing cases, in which competitors to the price-fixing conspirators typically do not have a claim to antitrust injury”, in: AMERICAN BAR ASSOCIATION. Proving antitrust damages: legal and economic issues. 3a Ed. Chicago: 2017, p. 275.

[3] GOMES, Adriano Camargo; VIOLADA, Kelly Fortes. Private enforcement do direito concorrencial: a tutela dos direitos nos casos de conduta unilateral. In MOTTA, Ricardo; OLIMPIA, Anna. Concorrência: um olhar contemporâneo sobre condutas unilaterais. São Paulo: Editora Singular, 2021, p. 125-142.

[4] MARSDEN, Philip. Public-Private for effective enforcement: some “hybrid” insights? In: FABBIO, Philipp, MARSDEN, Philip; WALLER, Spencer Weber. Antitrust Marathon V: When in Rome Public and Private Enforcement of Competition Law. European Competition Journal, Vol. 9, Número 3, 2013, p. 510-511.

A celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais: dúvidas, inquietações e algumas poucas certezas

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Os Termos de Compromisso de Cessação (“TCCs”) foram disciplinados pela antiga Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 8.884/94) e mantidos pela Lei nº 12.529/2011 em seu artigo 85, podendo ser negociados com a autoridade antitruste a pedido do representado ou a requerimento, uma vez atendidos os critérios de conveniência e oportunidade previstos no caput do referido artigo.

A partir da promulgação da nova lei, o papel dos TCCs no contexto de investigações de condutas colusivas mostrou-se decisivo na construção da história institucional do Cade, seguindo o padrão do continente americano, no qual, de acordo com o levantamento mais recente da OCDE[1], cerca de 48% dos casos envolvendo condutas cartelizadas resultou em acordo (considerando uma média de 130 casos julgados por ano, no período compreendido entre 2015 e 2019).

Há, entretanto, uma importante lacuna a ser preenchida em relação à política de acordos do Cade: e quando estes TCCs são celebrados no contexto da “terceira onda do antitruste”? Conforme defendem Athayde e Jacobs[2], esta terceira onda remete à ascensão dos ilícitos concorrenciais advindos de condutas unilaterais, o antigo calcanhar de Aquiles do Cade, de acordo com os últimos Peer Reviews publicados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[3].

Em que pese já se falar em uma quarta onda, que remeteria à análise regulatória do antitruste[4], a terceira onda não parece ter chegado a seu zênite no Brasil, mas, ao contrário, vem sendo impulsionada por abalos sísmicos cada vez mais emblemáticos e representativos, sobretudo a partir da pandemia do COVID-19, sua relação com o crescimento dos mercados digitais e a consequente ampliação do número de casos envolvendo abuso de posição dominante por parte das plataformas[5].

Entretanto, a elevada complexidade ínsita a este tipo de análise – considerando que se trata de ilícitos por efeitos e, portanto, avaliados sob a ótica da regra da razão – impõe desafios adicionais ao juízo de conveniência e oportunidade para iniciar um acordo. Esses desafios se estendem a outras questões debatidas ao longo de sua negociação, como é o caso da necessidade e quantificação de uma contribuição pecuniária, da aplicação de multa por descumprimento, da necessidade de confessar ou não a prática lesiva e, finalmente, da inclusão ou não de garantias, por parte da Administração Pública, com relação à determinação sobre se a prática cessada através da celebração do acordo constituirá ou não um precedente vinculante para a instituição e da própria análise de mérito do caso.

Assim, inobstante o fato de ter o Cade estruturado um Guia de TCC, trazendo diretrizes gerais sobre a celebração destes acordos no âmbito da Autarquia, ainda há muita dúvida no que diz respeito aos parâmetros de negociação para acordos em sede de condutas unilaterais, como abuso de posição dominante através da adoção de cláusulas de exclusividade, programas de desconto, fixação de preços de revenda, recusa de contratar e discriminação de preços[6].

Recentemente, o Documento de Trabalho “TCC na Lei 12.529/2011” – publicado pelo Cade em Fevereiro de 2021 e fruto das contribuições de Carolina Saito, consultora PNUD[7] – identificou alguns padrões na celebração de acordos pelo Cade desde que a Lei nº 12.529/2011 entrou em vigor. Naquela oportunidade, chamou-se atenção à proporção dos TCCs celebrados em sede de cartel, frente aos acordos realizados perante condutas unilaterais – aproximadamente 3 para 1[8].

Tal desequilíbrio poderia se explicar como um reflexo da desproporção no que diz respeito à quantidade de investigações em cartéis vis-à-vis o volume de casos instaurados para averiguar infrações à ordem econômica no contexto das condutas unilaterais. Entretanto, analisar os dados sobre a abertura de investigações na Autarquia é suficiente para se chegar à conclusão de que esta hipótese não explica este desnível – pelo menos não exclusivamente – uma vez que, segundo aponta o Anuário do Cade 2020, a proporção média de cartéis com relação às condutas unilaterais considerando todas as investigações instauradas naquele ano foi de 1,16[9].

De acordo com o último Peer Review produzido pela OCDE em relação ao enforcement do antitruste no Brasil[10], é possível que a reduzida frequência da celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais possa ser explicada a partir do receio da Autarquia em impedir a formação de um histórico jurisprudencial e, consequentemente, reduzir a experiência analítica do Tribunal Administrativo do Cade a respeito da matéria. Entretanto, apesar de parecer uma preocupação válida, sua natureza parece ser muito mais prospectiva do que explanatória.

Assim, o que talvez seja a melhor explicação para a desproporção na celebração destes acordos em relação aos diferentes tipos de conduta é o frequente arquivamento de investigações envolvendo condutas unilaterais[11], somado às incertezas quanto à correta fase processual para a celebração de um acordo – considerando a evolução do Procedimento Preparatório (Art. 66, §2º) para o Inquérito Administrativo (Art. 66, §1º) e, finalmente, para o Processo Administrativo (Art. 69 e seguintes), todos previstos na Lei de Defesa da Concorrência.

Ademais, a natureza do ilícito investigado traduz boa parte desta dificuldade, uma vez que as condutas unilaterais possuem pressupostos de ilicitude distintos, dependendo essencialmente da aplicação da regra da razão, o que, por si só, já configuraria um desincentivo ao promitente compromissário, vez que sua probabilidade de condenação é reduzida[12].

Tal desincentivo, por sua vez, possui efeito direto com relação à fixação de uma contribuição pecuniária e dos parâmetros para a sua quantificação. Neste sentido, enquanto que nos TCCs celebrados em casos de cartéis um dos requisitos é a fixação de tal contribuição, a mesma afirmação não é verdadeira em se tratando de condutas unilaterais.

Ao observarmos o histórico dos 76 TCCs celebrados desde a vigência da Lei 12.529/2011, 14 casos (18,42%) dispensaram sua fixação, ao passo em que um total de 39 casos (51,3%) teve a fixação da contribuição fixada proporcionalmente ao aporte da operadora Unimed (Representada), variando entre R$ 10 e R$ 30 milhões. Finalmente, os 23 casos remanescentes (30,26%) aplicaram uma média de R$8.652.645,90 em contribuições pecuniárias, com um desvio padrão amostral de aproximadamente 14.959.567,37. Esta média representa tão somente 6,14% do total de contribuições fixadas em TCCs no ano de 2020[13].

A desnecessidade de apresentar uma contribuição pecuniária para ensejar a negociação destes acordos em sede de condutas unilaterais poderá causar pelo menos dois efeitos, cujo entendimento requer retomar os conceitos de falsos positivos e falsos negativos. Quando tratamos de um falso positivo, ou seja, a condenação de um agente que não praticou um ilícito, é possível que o fato de se tratar de uma conduta unilateral gere danos mais intensos ao mercado, prejudicando a própria dinâmica naturalmente competitiva. Assim, exigir o pagamento de uma contribuição pecuniária nessas circunstâncias apenas potencializaria este dano. Por outro lado, um falso negativo poderia beneficiar-se da incerteza quanto aos parâmetros para aplicação da contribuição, que provoca um desvio-padrão tão alto quanto o que verificamos no caso concreto.

Para além dos efeitos reportados acima, a indefinição quanto à contribuição pecuniária afetará também o que será adotado como valor da multa por descumprimento do acordo, ensejando uma problemática quanto à mensuração deste valor. Neste sentido, apesar de o art. 85, §1º, II do RICADE estabelecer como cláusula obrigatória a multa por descumprimento total ou parcial dos termos do TCC, quando os acordos não fixam uma contribuição pecuniária, torna-se impossível realizar qualquer exercício de correlação entre estes valores – o que normalmente se faria nos casos de cartel.

Após revisar os mesmos 76 TCCs firmados neste espaço de tempo, constata-se que a maioria deles (aproximadamente 85,5%) possui cláusulas de multa por descumprimento do tipo “escalonadas”, ou seja, que fixam multas diferentes a depender do tipo de obrigação que venha a ser descumprida.

Do universo das cláusulas escalonadas, apenas 4,6% delas utilizam-se da receita líquida corporativa como a base de cálculo da multa, ao passo em que 3% acabam aplicando como multa um percentual do valor da contribuição pecuniária fixada. Dentre as cláusulas que fixam multas apenas em caso de descumprimento integral, 9% relacionam o valor da multa com esta contribuição.

A maior questão relativa ao estabelecimento de multa nesses casos deriva da própria dificuldade no monitoramento de cumprimento do acordo. Assim, caso a autoridade antitruste entenda pela não aplicação de cláusula de contribuição pecuniária, por todos os problemas evidenciados acima, os termos do acordo de TCC estarão calcados tão somente em obrigações de fazer e de não fazer, além de remédios comportamentais, cuja dificuldade de monitorar o seu cumprimento é conhecida não apenas pelo Cade, como também pelos demais órgãos atuantes na defesa da concorrência no Brasil.

Ora, a dificuldade no monitoramento também é outro elemento característico neste tipo de acordo. Neste sentido, denota-se que a esmagadora maioria, compreendendo aproximadamente 85,5% destes TCCs, adota como padrão de monitoramento de decisão a prestação de informações diretamente ao Cade, ao passo que o percentual remanescente se divide entre a contratação de consultoria externa, auditoria independente ou, mais recentemente, a adoção dos Trustees.

É certo que a ausência de um terceiro independente pode acarretar comportamentos oportunistas por parte dos promitentes compromissários, na medida em que estes vislumbrem, no decorrer das negociações, formas de maquiar eventuais descumprimentos, utilizando-se da assimetria informacional entre a autoridade e o representado no que diz respeito às particularidades de seu negócio.

De toda forma, ainda que o monitoramento seja realizado pela figura do Trustee, a fixação de obrigações comportamentais continua representando um ponto sensível para a identificação de descumprimento e, retomando o ponto anterior, a fixação de uma multa suficientemente dissuasória poderia ajudar, fixando a base de cálculo para a vinculação da multa por descumprimento – o que significaria uma incerteza a menos no mar de dúvidas potencializadas pelo abalo sísmico pandêmico.

Dentre tantas questões em aberto a respeito do desenho destes acordos em sede de unilaterais, contudo, resta uma possível certeza no que diz respeito à obrigação de confissão da prática lesiva – é possível que a estrutura de incentivos demonstre que obrigar o compromissário acusado de possivelmente cometer este tipo de ilícito pode enfraquecer a própria política de acordos, uma vez que, a depender da fase em que se encontra o processo, o agente que se comprometesse com a celebração do TCC em um estágio inicial e precisar confessar que praticou o ilícito para ter direito à celebração do acordo – assim como ocorre nos casos de cartel[14] – não enxergaria grandes benefícios com o TCC, sendo mais lógico que apenas optasse por fazê-lo em uma fase processual mais amadurecida e próxima à formação da convicção do julgador quanto à existência deste ilícito – que ainda enfrentaria uma ponderação sobre as possíveis eficiências geradas.

Corroborando com esta possível – e aparentemente, isolada – certeza, caberia questionar se a obrigatoriedade de assunção de culpa como requisito para a celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais não seria capaz de viciar os termos contratuais[15], vez que inexiste a mesma presunção de ilicitude dos cartéis na qualidade de ilícitos per se.

A experiência do Cade na celebração destes acordos ainda é muito incipiente se comparada ao histórico de TCCs celebrados no âmbito de condutas colusivas. Entretanto, ao passo em que a OCDE manifestou sua preocupação no sentido de que estimular a celebração destes acordos pode acabar por prejudicar a formação de uma jurisprudência sólida sobre este tipo de análise antitruste, é possível que o aprimoramento da sua utilização possa gerar ganhos à autoridade, inclusive no que diz respeito à sistematização da análise investigativa.

[1] OECD (2021), OECD Competition Trends 2021, Volume I: Global Competition Enforcement Update 2015-2019. P. 13.

[2] ATHAYDE, Amanda; JACOBS, Patrícia. “A terceira ‘onda’ do antitruste no Brasil: marolinha ou tsunami?”. Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/athayde-jacobs-terceira-onda-antitruste-brasil. Acesso em: 20 de setembro de 2021.  

[3] OECD (2019), OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-and-policy-brazil-2019.htm. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[4] JÚNIOR, Marco Antonio Fonseca. “Que onda surfa o Cade?”. Jornal Estadão. 17 de agosto de 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/que-onda-surfa-o-cade/#:~:text=Come%C3%A7ou%2Dse%2C%20ent%C3%A3o%2C%20a,reparat%C3%B3rias%20decorrentes%20de%20danos%20concorrenciais. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf

[6] PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. CASAGRANDE, Paulo Leonardo. Direito Concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2016. P. 135.

[7]CADE, 2021. Documento de Trabalho: TCC na Lei 12.529/11. Fevereiro/2021. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.52911/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.529-11.pdf . Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[8] Ibid. Conforme é possível constatar da Leitura da Imagem 6 (Página 18), aproximadamente 65,6% dos TCCs firmados envolviam casos de cartel, enquanto que apenas 22,6%, casos de conduta unilateral.

[9] CADE, 2020. Anuário do Cade 2020. P. 9. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[10] Ob cit. OCDE (2019).

[11] Dos 19 casos que envolviam abuso de posição dominante através da imposição de exclusividades contratuais na história do Cade, aproximadamente 47% foram arquivados. Disponível em <https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2021)23/en/pdf>

[12] “(…) a caracterização do ilícito de cartel exige uma efetiva comprovação de que existe ou existiu entre concorrentes um acordo cujo objeto é a restrição da competição, em que a presunção de produção dos efeitos anticompetitivos visados baseia-se, notadamente, pela detenção de relevante parcela conjunta de mercado”. Ob. Cit. PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. 2016. P. 14.

[13] p. 11 https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073

[14] Conforme dispõe o §5º do art. 179 do Regimento Interno do Cade

[15] Pode-se aqui realizar uma espécie de paralelismo com a colaboração premiada realizada na esfera penal, em que a Legislação responsável prevê como requisito para a celebração do acordo a voluntariedade do compromisso estabelecido, e que caso não seja observado, poderá vir a viciar os termos do contrato e torná-lo nulo.

Sobre a estupidez de Robert Musil e o combate as fake news: qual é a roupa da verdade?

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Elvino de Carvalho Mendonça

As sociedades estão em constante transformação. As rupturas paradigmáticas decorrem da evolução das descobertas científicas pelos seres humanos e é inegável que a sociedade em rede traz incontáveis benefícios para a humanidade, tendo grande destaque a fluidez, a rapidez e a facilitação da troca de conhecimentos e experiências em tempo real. Dentre inúmeras modificações produzidas com o novo paradigma tecnológico, o modo de comunicação entre os seres humanos, considerados globalmente, teve especial impacto.

Até o advento da sociedade das plataformas e sua efetiva implementação por meio da utilização massiva dos aparelhos digitais e, notadamente, smartphones aliada à implantação de aplicativos de redes sociais, a produção do conteúdo da mídia era restrito aos meios tradicionais de comunicação, como emissoras de televisão, de rádio ou de jornal/revistas escritas, cujos parâmetros de atuação eram regulados pela Lei de Imprensa nº 5.250/1967.

Com a criação da internet e a possiblidade de comunicação instantânea via transmissão de dados, o modo de se comunicar mudou radicalmente, acelerando a transmissão do conhecimento e, por consequência, o poder de manipulação da informação que, diga-se de passagem, não é um fato novo. As notícias do outro lado do mundo chegam em tempo real em qualquer recanto do planeta e toda a humanidade passou a ter conhecimento e ser diretamente influenciado e/ou ter seus comportamentos induzidos sobre tudo o que acontece ao redor desse mesmo mundo instantaneamente.

Primeiro, foi a vez da criação da World Wide Web (www) e de duas ferramentas fundamentais para a sua plena utilização que foi o código HTML e o protocolo HTTP por Berners-Lee. Em seguida, vieram os aparelhos eletrônicos que permitiram a conexão em teia, como os computadores, celulares, tablets etc. Após essa inovação, foi a vez da criação das redes sociais e, essas sim, acabaram por implementar a comunicação instantânea e em rede, de notícias verdadeiras e falsas, propagadas pelos bem-intencionados no exercício do direito constitucional à liberdade de expressão e pelos mal-intencionados que utilizam dos mecanismos tecnológicos existentes, muitas vezes potencializados por robôs, para distorcer a realidade dos fatos e o real sentido do que seja liberdade de expressão.

Nesse contexto, é inegável que as Fake News já têm produzido impactos estarrecedores na jovem redemocratização brasileira. Os propaladores de Fake News utilizam os mecanismos tecnológicos em benefício próprio e, na grande parte das vezes, justificam as suas ações sob o manto do direito constitucional à informação e da garantia constitucional à liberdade de expressão.

O grande desafio do Estado é o de separar o joio do trigo. Liberdade de expressão não garante direitos à propagação em massa de notícias falsas e, também não se configura como um direito absoluto que permita divulgar qualquer notícia, de qualquer modo.

No entanto, dada a velocidade e a difusão da criação de conteúdos e a velocidade e o alcance da transmissão dessas informações, muitas vezes “viralizadas”, como separar o que é verdade e o que é mentira? Como criminalizar opiniões antidemocráticas?  Qual a diferença entre uma opinião, onde o certo e o errado cada ser humano tem o seu, de uma Fake News?

Segundo Robert Musil “sobre a estupidez”, “[n]ão há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode vestir todas as roupas da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem. A estupidez a que nos referimos aqui não é uma doença mental, porém a doença mais perigosa da mente, perigosa para a própria vida.[1]

É preciso, pois, abordar os impactos da desinformação sobre a higidez da democracia, notadamente, produzida e alardeada em grande escala por meio da divulgação massiva de notícias fraudulentas (Fake News) via whatsapp. É preciso analisar quais seriam os melhores caminhos a serem perseguidos pelo próprio Estado com o objetivo de refrear a avalanche de informações falsas que distorcem a realidade dos fatos e acabam induzindo a população a comportamentos antidemocráticos e, ao fim e ao cabo, produzem um impacto negativo ainda maior que é o de embaralhar os reais significados do direito constitucional à informação e da garantia fundamental da liberdade de expressão.

A democracia está em erosão e não está à venda. O Estado precisa agir para conter os abusos de poder econômico (não só das big techs, mas também daqueles que propagam Fake News), sob pena de se perder a noção do certo e do errado e acabar por esfacelar o bem mais precioso da humanidade que é a liberdade de agir, pensar e de comunidade, isenta de qualquer indução de comportamentos, como uma conquista democrática das nações. 


[1] MUSIL, Robert. Sobre a estupidez. 3.ed. Âyiné: Belo Horizonte, 2020, p. 44.

Autores:

RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA. Doutoranda em direito pelo IDP, mestre em direito público pela UNB, pós-graduada em direito econômico e regulatório pela  PUC-RIO, pós-graduada pela EMERJ, advogada, sócia fundadora do Mendonça Advocacia e sócia fundadora da WebAdvocacy.

ELVINO DE CARVALHO MENDONÇA. Ex-conselheiro do CADE e doutor em economia.

Da vinculação da sociedade aos atos do administrador

André Santa Cruz*

Henrique Arake**

A vinculação da sociedade pelos atos do seu administrador sempre foi uma questão muito debatida no direito societário, em razão da natureza jurídica da relação que há entre ambos.

Com efeito, a sociedade personificada é um sujeito de direitos para todos os fins legais a partir do momento em que seus atos constitutivos são arquivados no órgão de registro competente (art. 985 do Código Civil – “CC”), que será a Junta Comercial, no caso de sociedades empresárias, ou o Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, no caso das sociedades simples (art. 1.150 do CC).

Desse modo, a sociedade é juridicamente distinta da pessoa que ocupa o cargo de administrador e de seus sócios (art. 49 do CC), constituindo-se em uma esfera de direitos e obrigações autônoma e independente destes.

Entretanto, ao contrário do que se verifica entre as pessoas naturais, as sociedades (pessoas jurídicas que são – art. 44, inciso II do CC) existem perante o Direito, mas não existem no mundo fático. Vale dizer, as sociedades não possuem um “substrato concreto”[1] para se manifestarem autonomamente e interagirem com outros sujeitos de direito no mundo real. Por essa razão, ela precisa se valer de alguém que lhe empreste esse “substrato concreto” para que essa interação possa ocorrer. Esse “alguém” é o administrador que, no ordenamento jurídico brasileiro, necessita ser sempre uma pessoa natural (art. 997, inciso VI do CC), absolutamente capaz, e não impedida nos termos do art. 1.011, §1º do CC.

Assim, o administrador é, no exercício dessa função, um órgão da própria sociedade, ou seja, parte integrante desta, e não uma pessoa distinta dela (no mandato, por exemplo, o mandatário é, necessariamente, uma pessoa distinta do mandante – art. 653 do CC).

Com efeito, não é correto dizer que o administrador de uma sociedade é o seu representante ou mesmo o representante da vontade dos seus sócios, porque na verdade o administrador, como dizia Pontes de Miranda, “presenta” a vontade da sociedade[2], de modo que quando o administrador “fala”, quem “diz” é a sociedade.

É aqui que as analogias encontram seu limite. É evidente que quando nossos doutrinadores defenderam que o administrador é apenas um órgão da sociedade, tal qual a nossa boca é um órgão por meio do qual manifestamos nossas ideias para outras pessoas, não estavam fazendo o testemunho de um fato, mas uma comparação e uma simplificação úteis para ilustrar uma ideia mais complexa[3].

Na verdade, parece-nos evidente que as sociedades são instituições que existem para atender a um fim específico, qual seja, o exercício da atividade econômica (empresarial ou não) prevista em seu objeto social, de modo que os seus titulares (ou seu titular) possam partilhar os seus resultados positivos ou negativos, cuja formalidade de constituição e atuação no mundo real está prevista em lei.

Nesse passo, é, também, a lei quem diz que os atos do administrador vinculam a sociedade (arts. 47 e 1.015 do CC) e, do mesmo modo, é também a lei quem excepciona essa questão, como, por exemplo, no caso de oneração ou alienação de bens imóveis, não sendo este o objeto da sociedade (art. 1.015 do CC, parte final).

E aqui chegamos ao cerne deste artigo: a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que previa, expressamente, a adoção pelo legislador da chamada teoria dos atos ultra vires e suas consequências legais, bem como a desvinculação da sociedade quando o administrador contratasse contra as disposições do contrato social ou com terceiro de má-fé.

Sem a necessidade de adentrar nas origens históricas da teoria dos atos ultra vires, basta relembrarmos que, segundo ela, o administrador não poderia extrapolar os fins sociais da sociedade administrada e, assim, fazer a sociedade contratar matéria estranha ao seu próprio objeto social.[4]

A despeito das críticas que sempre foram feitas a essa teoria, parece-nos importante destacar que a sua proposição não é de todo errada, ao menos em uma primeira leitura.

Com efeito, considerando-se que, em última instância, as sociedades são instituições criadas para que os seus administradores possam otimizar o patrimônio dos seus titulares dentro dos limites estabelecidos nos seus atos constitutivos, parece-nos adequado concluir que o distanciamento desses objetivos se assemelharia a um “inadimplemento” por parte do administrador, não havendo razão, portanto, para que a sociedade honrasse os compromissos assumidos por este nessas condições.

Desse modo, ad absurdum, um administrador de uma padaria que, sem uma “boa razão”, contratasse a compra de uma tonelada de urânio enriquecido em nome da sociedade, estaria cometendo um ilícito tão patente e tão evidente que não seria “razoável” que a sociedade tivesse de honrar esse compromisso.

É essa, fundamentalmente, a ratio por trás da teoria dos atos ultra vires, que estava prevista em nosso ordenamento jurídico no (hoje revogado) inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC[5].

O problema com essa teoria, portanto, não era a sua proposição em si mesma, mas a sua aplicação prática nos casos mais usuais.

Utilizando o mesmo exemplo do administrador da padaria, imaginemos que ele investiu parte não significativa das reservas de lucro da sociedade no mercado acionário como forma de otimizar os resultados dela, mas infelizmente isso acabou gerando um enorme prejuízo, porque o investimento foi realizado às vésperas da Pandemia da COVID-19. Esse negócio jurídico (compra de ações) deveria ser oponível contra a sociedade? A resposta não é tão clara assim, razão pela qual a adoção da referida teoria pelo Código Civil de 2002 foi bastante criticada pela doutrina especializada.

De fato, muitos defendiam, mesmo antes da revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que aos atos dos administradores que extrapolassem o objeto social deveria aplicar-se a teoria da aparência e o princípio da proteção aos terceiros de boa-fé, o que acarretaria o seguinte: a sociedade responderia perante terceiros pelos atos ultra vires dos seus administradores, mas poderia voltar-se contra eles posteriormente, exigindo reparação pelos prejuízos suportados.[6]

Por conseguinte, na linha desse posicionamento crítico à teoria dos atos ultra vires, o parágrafo único do art. 1.015 do CC foi revogado integralmente pela Lei 14.195/2021, de modo que, atualmente, não há mais regra legal que determine a não vinculação da sociedade aos negócios jurídicos celebrados por seus administradores que não tenham aderência com o seu objeto social, o que representa, na nossa opinião, um grande avanço em prol da segurança jurídica das relações econômicas.

Todavia, é preciso destacar que a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC não retirou do nosso ordenamento jurídico apenas o seu inciso III – que tratava, especificamente, dos atos “evidentemente estranhos aos negócios da sociedade” –, mas também os seus incisos I e II.

Esses incisos do parágrafo único do art. 1.015 do CC, respectivamente, previam duas outras exceções à vinculação da sociedade aos atos do seu administrador: (i) quando tais atos violassem, expressamente, previsão disposta no contrato social ou em ato separado devidamente arquivado no órgão de registro competente (Junta ou Cartório, conforme a natureza da sociedade); e (ii) quando tais atos envolvessem a contratação com terceiro de má-fé, isto é, que conhecia a ausência de poderes do administrador para a sua prática.

Alguns defendem que, após a revogação integral do parágrafo único do art. 1.015 do CC, a sociedade deve honrar com os negócios jurídicos contratados pelo administrador “mesmo havendo excesso de poder por parte do administrador ou prática de atos que não estavam autorizados […]”[7]. Mas discordamos desse entendimento.

Com efeito, em se tratando de relações econômicas entre iguais[8], há a presunção legal de que os negócios jurídicos sejam interpretados à luz dos pressupostos da autonomia privada, da liberdade contratual, da presunção de boa-fé e da intervenção estatal mínima (arts. 2º, incisos I, II e III e art. 3º, incisos V e VIII da LLE). Vale dizer, há que se presumir que as sociedades que decidam contratar entre si são agentes econômicos acostumados ao “giro mercantil”, conhecem o risco do negócio que estão celebrando, tendo-os avaliado ou optado por não investir nessa investigação, dentro de parâmetros razoáveis do comportamento esperado[9], e contrataram de boa-fé.

Desse modo, em negócios jurídicos materialmente relevantes, isto é, que tenham um valor envolvido não desprezível, é de se esperar que agentes econômicos racionais invistam em algum grau de investigação a respeito da sua contraparte contratual. Nesse passo, como os atos constitutivos de qualquer pessoa jurídica são públicos e é baixo o custo para a sua obtenção e análise (mormente com a digitalização das Juntas Comerciais), a diligência minimamente esperada é que as sociedades contratantes verifiquem nos atos constitutivos de suas respectivas contrapartes se existe alguma restrição específica para a contratação daquele negócio jurídico pretendido, até mesmo porque o art. 47 do CC e o caput do art. 1.015 do CC (que não foi modificado pela Lei 14.195/2021) são expressos em condicionar a vinculação da sociedade aos atos do administrador exercidos nos limites dos seus poderes de gestão.

Desse modo, o entendimento de que a mera proteção a terceiros de boa-fé deve convalidar a contratação de negócios jurídicos materialmente relevantes em violação aos atos constitutivos de um dos contratantes não parece razoável, na nossa opinião.

Na mesma esteira, observa-se que a presunção de contratação de boa-fé é juris tantum e, portanto, passível de ser impugnada, caso a sociedade afetada pela contratação com terceiro de má-fé consiga provar esse fato. Até mesmo porque, novamente, a lei veda a contratação de má-fé ou simulada (arts. 113, 166, inciso VI, 167 e 171, inciso II do CC). Entender de forma diferente seria aceitar que o ordenamento jurídico protegeria a colusão entre administradores que, de má-fé, aproveitassem de sua posição para prejudicar o patrimônio daqueles a quem lhes fora confiada a gestão.

Assim, discordamos da ideia de que a revogação dos incisos I e II do parágrafo único do art. 1.015 do CC importa na responsabilização irrestrita da sociedade por atos de seu administrador que violem uma limitação expressa de poderes. Para nós, se tal limitação de poderes foi devidamente publicizada por meio do arquivamento do ato respectivo no órgão de registro competente, ou se era comprovadamente conhecida pelo terceiro contratante – que nesse caso estará agindo de má-fé –, pode a sociedade, a depender do contrato e do contexto negocial, eximir-se de responsabilidade pelos atos excessivos do seu administrador (arts. 47 e 1.064 do CC).[10]

No tocante à teoria dos atos ultra vires (atos que simplesmente não guardam pertinência com o objeto social), concordamos que a revogação do inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC significou a sua superação em nosso ordenamento jurídico, devendo-se aplicar, em seu lugar, a teoria da aparência, algo que consideramos um avanço em termos de segurança jurídica para os negócios empresariais.


[1] Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p. 361.

[2] Nesse sentido: Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p.361; Campinho, S. Curso de direito comercial – direito de empresa. SP: SaraivaJur. 17ª Ed. 2020. p.108; Diniz, G.S. Curso de Direito comercial. SP: Atlas. p. 190. Negrão. R. Curso de direito – comercial e de empresa v.1. – teoria geral da empresa e direito societário. SP: SaraivaJur. 16ª Ed. p. 356; Leite, M. L. Intervenção judicial em conflitos societários. RJ: Lumen Juris, 2019. p. 49.

[3] Para uma discussão mais aprofundada a respeito da relação entre a propriedade privada dos sócios e a delegação da gestão desse patrimônio por meio da constituição de uma sociedade (corporation), confira-se: Berle, A. A., & Means, G.C. The modern Corporation and private property. NJ: Transaction Publishers. 1999 (1968).

[4] “A ultra vires doctrine, formulada em meados do século XIX pelas cortes inglesas, tinha por objetivo evitar desvios de finalidade na condução dos negócios sociais, declarando nulo qualquer ato praticado em nome da sociedade que extrapolasse seu objeto” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).

[5] Nesse sentido, veja-se o Enunciado 219 das Jornadas de Direito Civil: “Está positivada a teoria ultra vires no Direito brasileiro, com as seguintes ressalvas: (a) o ato ultra vires não produz efeito apenas em relação à sociedade; (b) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (c) o Código Civil amenizou o rigor da teoria ultra vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade; (d) não se aplica o art. 1.015 às sociedades por ações, em virtude da existência de regra especial de responsabilidade dos administradores (art. 158, II, Lei n. 6.404/76)”.

[6] Nesse sentido: “Sempre me pareceu que o tratamento dos atos que extrapolassem os limites do objeto social deveria se dar à luz da teoria da aparência, com o escopo de proteção aos terceiros que, de boa-fé, realizam negócios jurídicos com a sociedade, que não pode descurar-se do dever de zelar pelos atos praticados por seus administradores, não lhe sendo lícito, pois, alegar ignorância. O administrador que o praticasse, como regra geral, vincularia a pessoa jurídica perante os terceiros de boa-fé e, dessarte, responderia civilmente diante da sociedade, na via de regresso” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC). No mesmo sentido, pode-se mencionar o Enunciado 11 das Jornadas de Direito Comercial: “A regra do art. 1.015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé”. Ainda no mesmo sentido, merece menção o seguinte precedente do STJ: “Direito comercial. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Garantia assinada por sócio a empresas do mesmo grupo econômico. Excesso de poder. Responsabilidade da sociedade. Teoria dos atos ultra vires. Inaplicabilidade. Relevância da boa-fé e da aparência. Ato negocial que retornou em benefício da sociedade garantidora. (…) 3. A partir do CC/2002, o direito brasileiro, no que concerne às sociedades limitadas, por força dos arts. 1.015, § único e 1.053, adotou expressamente a ultra vires doctrine. 4. Contudo, na vigência do antigo Diploma (Decreto n.º 3.708/19, art. 10), pelos atos ultra vires, ou seja, os praticados para além das forças contratualmente conferidas ao sócio, ainda que extravasassem o objeto social, deveria responder a sociedade. 4. No caso em julgamento, o acórdão recorrido emprestou, corretamente, relevância à boa-fé do banco credor, bem como à aparência de quem se apresentava como sócio contratualmente habilitado à prática do negócio jurídico. 5. Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente” (REsp 704.546/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 01.06.2010, DJe 08.06.2010).

[7] Vaz, M. R. M. A nova Lei de Ambiente de Negócios e a extinção da teoria ultra vires societatis. Consultor Jurídico, 2021. Acessado em 28.11.2021 – https://www.conjur.com.br/2021-out-07/vaz-lei-ambiente-negocios-ultra-vires-societatis.

[8] Excluindo-se de nossa análise, portanto, as relações havidas com vulneráveis/hipossuficientes, tais como as relações de consumo ou as relações trabalhistas.

[9] Forgioni, P. Contratos Empresariais – Teoria Geral e Aplicação. SP: Revista dos Tribunais, 2018, 3ª Ed. pp. 269-70.

[10] No mesmo sentido: “Parece, portanto, à luz do ordenamento jurídico vigente, que a melhor orientação é aquela que apoia e valoriza a teoria da aparência e a boa-fé objetiva para, como regra, vincular a sociedade ao negócio celebrado por seu administrador, caracterizador de ato ultra vires. Cabe a ela provar o conhecimento do terceiro do contrato social ou do estatuto para eximir-se da responsabilidade do ato derivada, ou demonstrar circunstancialmente que, em razão das condições e da natureza da negociação e pela qualidade profissional do contratante, cabia a ele diligenciar para ter acesso e conhecimento do seu objeto social. Vinculada a sociedade ao ato ultra vires, abre-se-lhe o ensejo de regressivamente responsabilizar o administrador que atuou com o excesso por ela não ratificado e que lhe causou prejuízo” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).


[*] Procurador Federal. Doutor em direito empresarial pela PUC-SP. Professor de direito econômico e empresarial do Centro Universitário IESB-DF.

[**] Sócio de Henrique Arake Advocacia Empresarial. Doutor em análise econômica do direito. Professor de direito empresarial do UniCEUB, do IDP e do IBMEC. Associado à Association of Certified Fraud Examiners (ACFE), Conselheiro Consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU) e Conselheiro Fiscal do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial (IADE).

Perícia no Processo Administrativo do CADE

Mauro Grinberg

Nos processos administrativos que correm na Superintendência-Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem sido constante, ao decidir sobre pedidos de produção de prova pericial, o despacho de indeferimento sob o fundamento de que existem meios menos custosos para provar o mesmo que se quer provar com a perícia.

Há, todavia, determinadas situações em que a perícia é a prova melhor que se pode apresentar. Vejamos algumas situações, desde logo começando com a definição de mercado relevante. Se temos uma acusação de cartel entre indústrias químicas, é imperioso que se esclareça quais os produtos que concorrem entre si para saber se o suposto cartel inclui todos os produtores e/ou se o suposto cartel tem (ou não) qualquer influência no mercado. Ou se essa acusação for relativa a medicamentos, é de fundamental importância saber se existem medicamentos que podem substituir aqueles cujos produtores estão em conluio.

Essas informações, aqui em meras hipóteses, necessariamente devem ser produzidas por peritos, eis que o julgador médio não deve ter conhecimentos específicos das áreas em questão. Não se espera que o Superintendente-Geral ou os Conselheiros do Cade – ou, se em Juízo, os Juízes, os membros do Ministério Público e os Desembargadores e Ministros – conheçam as composições dos produtos químicos ou as fórmulas dos medicamentos. Essa informação, todavia, é fundamental pois, para saber se uma determinada ação empresarial incide na eliminação total ou parcial da concorrência, é necessário saber quais empresas fazem parte dessa concorrência.

Em outra hipótese que tem sido discutida recentemente, fala-se em punir os praticantes de condutas anticoncorrenciais com base na vantagem auferida de cada um deles. Há alguns métodos para chegar a esse valor mas todos eles chegam a um número que não passa de uma possibilidade, não sendo possível conferir a este número o caráter de realidade ou verdade. Ou seja, o infrator deve ter auferido uma determinada vantagem, mas tais métodos, supostamente neutros, não levam à certeza de que o infrator auferiu realmente tal vantagem. Para se chegar a esse número real, a única possibilidade é a perícia.

Nos exemplos acima, vê-se que a decisão deve ser balizada em determinados conhecimentos técnicos que os julgadores médios não têm, inexistindo motivo razoável para a recusa da perícia. Leve-se em conta, todavia, que a Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) é lacônica quando às provas que poder produzidas, pois seu art. 72 estabelece apenas que “a Superintendência-Geral, em despacho fundamentado, determinará a produção de provas que julgar pertinentes, sendo-lhe facultado exercer os poderes de instrução previstos nesta Lei”.

Ante a falta de definição dos meios de prova na LDC, recorre-se ao Código de Processo Civil (CPC), cuja aplicação subsidiária – juntamente com a da Lei 9.784/1999, conhecida como Lei do Processo Administrativo (LPA) – decorre do disposto no art. 115 da própria LDC. Ali encontramos o § 1º do art. 464 dispondo que “o Juiz indeferirá a perícia quando” “I – a prova do fato não decorrer de conhecimento especial de técnico”, “II – for desnecessária em vista de outras provas produzidas” e “III – a verificação for impraticável”. São esses os únicos fundamentos permitidos para negar a produção de prova pericial. Por sua vez, a LPA, em seu art. 38, estabelece que “o interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias (…)”. Ou seja, a lei concede à parte acusada o direito à prova pericial. Mais ainda, o seu eventual indeferimento constitui violação do princípio da ampla defesa.

O argumento mais utilizado pela autoridade para negar a perícia estaria contido no inciso II do art. 464 do CPC. Este – importa esclarecer aqui – não fala em outras provas a produzir mas sim em outras provas (já) produzidas. O art. 472 do CPC é mais específico: “O juiz poderá dispensar prova pericial quando as partes, na inicial e na contestação, apresentarem, sobre as questões de fato, pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes”. Esta justificativa não pode ser considerada para o processo administrativo do Cade pois uma das partes está na posição dupla de parte e julgadora e não faz sentido que ela julgue suficiente um parecer por ela produzido.

É certo que as partes acusadas no processo administrativo do Cade podem apresentar pareceres de especialistas por elas convidados mas, como esclarecem Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, isso “não é prova pericial (…). Prova pericial é a determinada pelo juiz, com nomeação de perito de sua confiança e facultando às partes a indicação de assistente técnico”[1]. É exatamente aqui que resta a diferença entre os pareceres apresentados pelas partes e a perícia: esta é uma prova oficial, determinada pela autoridade que dirige o processo e sem o condão de gerar qualquer tipo de desconfiança quanto à sua origem.

Há vários depoimentos doutrinários a respeito da imperiosidade da perícia. Diz Michele Taruffo que, “no contexto da admissão das provas, ter o direito de provar um fato significa estar a parte autorizada a apresentar todos os meios de prova relevantes e admissíveis para apoiar a sua versão dos fatos em litígio”[2]. Em matéria de processo administrativo, Irene Patrícia Nohara e Thiago Marrara dizem que “as análises químicas da substância ou do produto que constitui objeto do processo administrativo em que se discute, por exemplo, um registro de medicamento ou a aplicação de uma sanção, são objeto de um laudo”[3]. A jurisprudência vai no mesmo sentido, conforme decisão no AgRg no AREsp 184.563-RN, Segunda Turma, sendo Relator o Ministro Humberto Martins: “Em se tratando de matéria complexa, em que se exige o conhecimento técnico ou científico, a perícia deve ser realizada”.

As dificuldades inerentes à realização da perícia também não podem ser opostas ao pedido da parte, sendo aqui legitimamente alegável o princípio da ampla defesa que, por ser constitucional, encontra-se acima dos ditames legais. Mas tem a autoridade à sua disposição, em determinadas situações, a possibilidade de perícia simplificada, constante do § 2º do art. 464 do CPC: “De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade”, sendo que, conforme dispõe o parágrafo seguinte, “a prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico”. A prova pericial é mais um instrumento para que a SG e o Tribunal do Cade emitam decisões bem fundamentadas no seu exercício de tutelar a livre concorrência. Por isso, ela não pode ser indeferida a não ser nas hipóteses previstas na lei. Repita-se aqui que seu eventual indeferimento constitui violação do princípio da ampla defesa


[1] “Comentários ao Código de Processo Civil”, RT, São Paulo, 2015, pág. 1.083

[2] “A Prova”, Marcial Pons, São Paulo, 2014, pág. 54

[3] “Processo Administrativo”, RT, 2018, pág. 337

Os Embargos de Declaração no Processo Administrativo do CADE

Mauro Grinberg

Introdução

Os embargos de declaração, aplicáveis ao processo administrativo sancionador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) estão previstos em norma infralegal. Com efeito, estabelece o art. 219 do Regimento Interno do Cade (Ricade): “Das decisões proferidas pelo Plenário do Tribunal, poderão ser opostos embargos de declaração, nos termos do art.1.022 e seguintes do Código de Processo Civil, no prazo de 5 (cinco) dias, contados de sua respectiva publicação em ata de julgamento, em petição dirigida ao Conselheiro-Relator, na qual o embargante indicará a obscuridade a ser esclarecida, a contradição a ser eliminada, omissão a ser suprida quanto a ponto ou questão sobre o qual o Tribunal devia se pronunciar de ofício ou a requerimento, ou o erro material a ser corrigido na decisão embargada”.

Aplicação a todas as decisões

Desde logo vê-se que os embargos de declaração são aplicáveis, se limitados à norma infralegal mencionada, somente em relação às decisões do Plenário do Cade, ficando logicamente excluídas as decisões tomadas anteriormente. Mas não deve ser assim. Com efeito, a lei – art. 1.022 do Código de Processo Civil (CPC), invocada inclusive pela norma infralegal mencionada – prevê que “cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial”. Assim, não de deve excluir quaisquer decisões, sejam elas inclusive monocráticas e/ou interlocutórias, proferidas no processo administrativo sancionador do Cade. Vale aqui lembrar que as leis estão acima das normas infralegais, estando o CPC, ainda que aplicado subsidiariamente de acordo com o art. 115 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC), acima dos regimentos.

Deve aqui ficar claro que um regimento interno é uma norma que regulariza o funcionamento de um determinado grupo ou de uma entidade; isso vale sobretudo para os tribunais. Vale como norma, embora de hierarquia mais baixa. Portanto, é o que se passa com o Ricade: é norma mas é inferior à lei. Consequentemente, o CPC, ainda que aplicado subsidiariamente, é lei e como tal é superior hierarquicamente ao Ricade. As próximas linhas deste artigo tomam por base esta constatação.

Esclarece Teresa Arruda Alvim que “as tendências contemporâneas predominantes só permitiriam entender que este direito estaria realmente satisfeito sendo efetivamente garantida ao jurisdicionado a prestação jurisdicional feita por meio de decisões claras, completas e coerentes” [1]. É claro que todas as decisões devem seguir estas qualificações, razão pela qual não se pode excluir da embargabilidade quaisquer decisões, aqui fazendo referência específica às decisões anteriores àquelas proferidas pelo Tribunal do Cade. Com efeito, qualquer decisão pode sofrer dos males que os embargos de declaração têm por objetivo sanar.

Efeito suspensivo

O art. 222 do Ricade estabelece que “os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo (…)”. Recorrendo-se ao CPC, vê-se que a redação do caput do art. 1.026 é igual. Mas o respectivo § 1º é eloquente: “A eficácia da decisão monocrática ou colegiada poderá ser suspensa pelo respectivo juiz ou relator se demonstrada a probabilidade de provimento do recurso ou, sendo relevante a fundamentação, se houver risco de dano grave ou de difícil reparação”. Mais uma vez prevalece a lei sobre o regimento.

Um bom exemplo de decisão que deve merecer efeito suspensivo é dado por Teresa Arruda Alvim ao falar da “real impossibilidade de a decisão ser cumprida porque contem obscuridade, contradição ou omissão que realmente comprometam a sua inteligibilidade” [2]. Isso significa claramente que o Relator do processo no Tribunal do Cade – e bem assim qualquer autoridade da autarquia que profira decisões embargadas – pode conceder efeito suspensivo aos embargos de declaração sempre que as condições o exigirem. Ainda segundo a mesma autora, “a doutrina, nesse início de vigência do NCPC, classificou como hipóteses para concessão de efeito suspensivo aos Embargos de Declaração os mesmos requisitos para concessão da tutela de evidência e a tutela de emergência”[3].

Assim, havendo fumaça do bom direito e perigo na demora, o prolator da decisão embargada deve conceder o efeito suspensivo aos embargos de declaração porque o CPC assim o prevê e o sistema só resta completo se visto em sua maior abrangência, não importando o fato de que o Ricade não estabeleça tal efeito, se o CPC, que lhe é hierarquicamente superior, contenha tak previsão.

Efeito infringente

Tem-se colocado como regra a impossibilidade dos embargos de declaração não poderem ser recebidos com efeito infringente, já que a sua função é (i) esclarecer obscuridade, (ii) eliminar contradição, (iii) suprir omissão ou (iv) corrigir erro material. De fato, o efeito infringente não existe aprioristicamente; se, por exemplo, no recurso de apelação o objetivo é tornar procedente o que é improcedente ou improcedente o que é procedente, o mesmo não ocorre nos embargos de declaração. Todavia, é possível que o acolhimento dos embargos de declaração implique, ainda que como resultado secundário e/ou subsequente, na necessidade de reconhecimento do efeito infringente. Isso fica claro ante a leitura do art. 1.024 do CPC: “Caso o acolhimento dos embargos de declaração implique modificação da decisão embargada (…)”.

A exemplificação não é complexa. Num processo resultante de acidente de trânsito, o Juiz decidiu que o culpado foi o condutor do veículo A pois ele é azul e as marcas do acidente no veículo B eram azuis; todavia, se, nos embargos de declaração, for reconhecido erro material pois o veículo A é vermelho, resulta clara a necessidade de aplicação do efeito infringente. O erro material obviamente também pode ocorrer no direito concorrencial pois uma decisão condenatória pode ter por base o fato da empresa condenada ter 90% do mercado; se, nos embargos de declaração, for reconhecido o erro material e ficar claro que a empresa condenada tinha apenas 9% do mercado, também resulta clara a necessidade de aplicação do efeito infringente.

Conclusão

Os embargos de declaração no processo administrativo do Cade (i) podem ser opostos contra qualquer decisão e não apenas contra aquelas proferidas pelo Plenário do Cade, (ii) podem ter efeito suspensivo e (iii) podem ter efeito infringente.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador do escritório Grinberg e Cordovil.


[1] “Embargos de declaração”, RT, São Paulo, 2017, págs. 15/16

[2] Obra citada, pág. 52

[3] Obra citada, pág. 53

A Superintendência-Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e suas duas funções

Mauro Grinberg

A importante e nobre função das autoridades concorrenciais – e aqui é feita referência específica à SG – é de investigar e, se for o caso e com base na sua expertise, recomendar ao Tribunal do Cade a punição dos autores de infrações contra a ordem econômica. Entretanto, no cumprimento do seu dever, a SG tem exercido os papéis de acusadora e julgadora; obviamente essa mistura decorre do texto da lei e não da vontade da SG, razão pela qual a ideia deste artigo é encontrar um meio de cumprir a lei (o que é óbvia obrigação da SG) e ao mesmo tempo separar suas funções. Assim, o cumprimento concomitante de suas duas funções requer uma série de cuidados que não podem nem devem ser desprezados.

Examinemos essas funções. A primeira função da SG é a de promover os processos administrativos sancionatórios e, como tal, atua de maneira equivalente à do Ministério Público no processo penal. A outra função, equivalente à de um juizado de instrução, é a de, recebendo as defesas, ordenar e produzir ou deferir a produção das provas. Ao final, examinando essas provas, a SG envia o processo para o Tribunal do Cade para julgamento, sempre com a sua recomendação, seja para arquivamento, seja para condenação. A SG não emite o julgamento final mas decide não só pela abertura do processo mas também com relação à produção de provas, podendo deferi-las ou indeferi-las. A

Expõe Rafael Munhoz de Mello[1]: “Nos processos em que a Administração Pública figure também como parte, além de órgão julgador, sua situação é, evidentemente, desigual em relação ao particular. A Administração ocupa duas posições na relação processual, juiz e parte, peculiaridade que coloca em risco a imparcialidade que se exige do órgão julgador. O particular contende com uma parte que, ao final do processo, proferirá a decisão (…)”.

Mas não é necessário que seja assim, podendo cuidados de separação de órgãos ser tomados em favor de uma posição mais equidistante da acusação e da defesa, ainda que a acusação e o julgamento sejam feitos pelo mesmo órgão público. A ideia da imparcialidade deve ser levada à mais alta potência, sob pena de se ter julgamentos parciais e viciados. Uma comparação talvez grosseira é a do defensor público livre na sua manifestação mas que, ao fim e ao cabo, é remunerado pelo mesmo ente estatal que remunera o promotor que acusa. 

Na sequência, encontramos o recente pensamento de Michel Reiss e Daniel Sternick[2], em matéria penal mas inteiramente aplicável ao direito administrativo sancionatório: “Portanto, é somente ao visualizar o acusador de maneira desconectada de qualquer resquício de modelos inquisitivos de processo penal, como a exigência punitiva ou o direito de supremacia, que se torna viável delimitar substancialmente o campo destinado a cada um dos sujeitos processuais, incluindo o próprio Estado-juiz”.

Ou seja, o Estado-juiz tem que se deparar com polo acusatório desvinculado dos poderes estatais, estes concentrados no poder de julgar imparcialmente, desconsiderando o fato de que o polo acusador também é estatal. O que se nota é que, de todos os modos, a atividade acusatória deve ser desvinculada da autoridade julgadora, ainda que o julgamento seja limitado, como é o caso da SG, às medidas preliminares e à produção de provas (que já guardam substancial importância para os destinos dos processos.

E nem se alegue que o Tribunal do Cade tem (e de fato tem) o poder de ordenar novas provas pois o art. 76 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) estabelece que “o Conselheiro-Relator poderá determinar diligências (…)”. Quando o texto legal diz “poderá”, está claro que não tem obrigação de fazê-lo; esta obrigação é da SG e não do Tribunal do Cade e o eventual indeferimento de pedidos das partes pode constituir cerceamento de defesa. Por isto, a SG tem o mais completo dever de imparcialidade, mesmo sendo uma das partes.

De fato, deve-se considerar que a prova deve ser feita na fase em que o processo está na SG. Para o Tribunal do Cade segue o processo possivelmente ou tentativamente pronto para a decisão. As discussões idealmente devem versar sobre o mérito a ser decidido. Mas nada impede que o Tribunal do Cade determine a produção de novas provas, o que, todavia, deve ser considerado subsidiário (até porque o poder de deferir inclui o poder de indeferir) em relação às provas já produzidas na SG.

Ao trabalhar na produção de provas, a SG não pode alegar a presunção de veracidade dos atos do Poder Público, até porque ela mesma faz parte do Poder Público. Figurando a SG como acusadora e julgadora da instrução, a alegação dessa presunção fere os princípios do contraditório e da ampla defesa. Não é possível presumir que uma parte diz a verdade quando se está em um processo sancionador em que esta mesma parte é julgadora. A valer, apenas em tese, o princípio da presunção de veracidade da Administração Pública, a própria defesa seria dispensável, jogando-se por terra os princípios do contraditório e da ampla defesa, já que a acusação estaria sempre certa.

Acusar e julgar, como funções da mesma autoridade, parece um contrassenso, lembrando que no juizado de instrução há um poder decisório, ainda que limitado. Pode ocorrer, por exemplo, da SG entender que determinada prova não é necessária, até porque sua convicção já está formada. Mas é preciso sopesar a convicção da autoridade com o legítimo interesse que a parte acusada tem de apresentar suas provas. Isso fica ainda mais evidente ao se considerar que um dos princípios do processo administrativo é a busca da verdade material, o que deve levar a autoridade a, independentemente de requerimento da parte, procurar a prova e construir a verdade material.

Estamos obviamente diante de um impasse. Mas como esse impasse decorre totalmente da aplicação da lei, não se pode atribui-lo à SG. Mas é possível mostrar que ele pode e deve ser contornado para que não haja prejuízo da parte e bem assim negativa de aplicação do princípio da ampla defesa. Rafael Munhoz de Mello[3] apresenta uma sugestão: “Deve-se abrandar a inevitável situação com a divisão das atividades próprias da Administração-parte das típicas da Administração-juiz entre órgãos distintos: um órgão administrativo deve ser competente para praticar os atos próprios da parte; outro, os atos próprios de condutor do processo e julgador”.

Ou seja, enquanto a mesma divisão ou câmara ou coordenação da SG defere ou indefere, determinando ou não a produção de provas, e ao mesmo tempo, pronuncia-se a favor do arquivamento ou da condenação (ainda que a decisão final não seja sua), da parte que contende com a Administração, estamos diante de uma confusão entre a Administração-parte e a Administração-Juiza. É importante que os as normas infralegais da SG cuidem detalhadamente desta divisão de poderes, separando a Administração-parte da Administração-juiza, eliminando assim a confusão.


[1] “Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador”, Malheiros, São Paulo, 2007, pág. 231

[2] “Os Pressupostos do Devido Processo Penal no Estado Democrático de Direito”, em VirtuaJus, Belo Horizonte, v. 6, n. 10, 2021, pág. 79

[3] Obra e página citadas

ARTIGO 36 DA Lei de Defesa da Concorrência: Um caso de inconstitucionalidade parcial

Mauro Grinberg

Estabelece o caput do art. 36 da Lei 12.529/2011, aqui referida como Lei de Defesa da Concorrência (LDC): “Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados”. E segue a lista das possíveis infrações, aqui mencionada apenas para dar completude ao texto, até porque a afronta à Constituição ocorre no caput: “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”, “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, “aumentar arbitrariamente os lucros” e “exercer de forma abusiva posição dominante”.

Tem-se aqui manifestação clara do direito administrativo sancionador, que não pode prescindir dos elementos de dolo ou culpa para eventual condenação, já que constitui punição por ato ilícito. Esclarece Fábio Medina Osório que “consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialidade pro futuro, imposto pela Administração Pública (…) como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar (…)”[1].

Lembremos aqui que Alexandre Cordeiro (aliás baseado expressamente em Fábio Medina Osório), diz claramente que “o que realmente faz sentido, e não vejo nenhum problema nisso, é a importação para o direito administrativo sancionador de alguns institutos do direito penal” [2]. Em trecho anterior do mesmo artigo, o autor diz que “o que se procura saber na culpabilidade é se a sociedade, naquelas condições em que o agente se encontrava, o autoriza a agir em desconformidade ao direito”[3]. Temos aqui um vislumbre do que pode ser a exigência de ato volitivo, ainda que carente de interpretação, para a configuração de infração da ordem econômica.

O que não se pode admitir é uma infração assemelhada à penal – por ser parte do Direito Sancionador – que um agente cometa “sem querer”, por mero acidente, sem dela ter a vontade de participar e, pior ainda, sem a consciência de participar de um ilícito. Imagine-se, ainda que de forma exagerada (mestres de antigamente gostavam das demonstrações por absurdo), que garçons e outros funcionários de um restaurante sejam processados porque nas mesas do local houve um conluio e os funcionários serviram os infratores.

Neste ponto devemos retornar à origem de tudo, ou seja, à Constituição Federal, cujo § 4º dom art. 173 dispõe: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Que se ressalte aqui a expressão “que vise a”, adiante revisitada. Desde logo é possível constatar que o caput do art. 36 da LDC extrapolou o texto constitucional que lhe dá sustentação e que lhe deve servir de orientação, havendo aqui duas expressões que merecem exame especial para se concluir pela inconstitucionalidade parcial do artigo: “ou que possam produzir” e “independentemente de culpa”.

Com efeito, o texto constitucional só se refere ao abuso “que vise a”, ou seja, que tenha por objetivo, que seja intencional. Já o caput do artigo 36 da LDC fala em atos “que tenham por objeto” (neste caso de acordo com o texto constitucional) ou que “possam produzir” determinados efeitos. Os atos que “possam produzir”, sem que haja o elemento da vontade do agente, são desautorizados pelo texto constitucional, estão fora do limite neste contido. Mais ainda, se o ato pode produzir determinado efeito, ainda que sem a vontade do agente, aqui possível responsável objetivo, também resta óbvio ser inconstitucional a expressão “independentemente de culpa”, além, obviamente, da expressão “possam produzir”. Retornemos à expressão “que vise a” do texto constitucional, lembre-se, com Celso Ribeiro Bastos, que “não se pode esvaziar por completo o conteúdo de um artigo, qualquer que seja, pois isso representaria uma forma de violação da Constituição (…) todos preceitos constitucionais têm valia, não se podendo nulificar nenhum”[4]

Aos que entendem que a interpretação acima pode ser simplória, diz Celso Ribeiro Bastos que, “a não ser excepcionalmente, e de forma devidamente fundamentada, não se deve atribuir aos termos interpretados significado distinto daquele que estes termos têm na linguagem comum”[5]. Temos aqui uma orientação segura de que a expressão “que vise a” do § 4º do art. 173 da Constituição deve ser entendida pelos atores do direito da mesma forma que uma pessoa medianamente instruída o faria: denotando intenção. Isso significa que (i) a produção de efeitos só vale se houver intenção e, mesmo sendo em parte repetitivo, (ii) não há infração da ordem econômica independente de culpa.

Vale também observar que um texto legal pode ter inconstitucionalidade apenas parcial, sendo este o caso aqui tratado. Zeno Veloso é claro ao mostrar que, “residindo a inconstitucionalidade numa parte, num segmento, num período da norma, em uma expressão, numa frase, ou até numa palavra, a inconstitucionalidade parcial é declarada, salvando-se o remanescente”[6]. De fato, o que se vê no caso concreto é a inconstitucionalidade de duas expressões do art. 36 da LDC: “independentemente de culpa” e “ou possam produzir”.

A Constituição de 1946 foi também clara – como a atual – neste tema ao prescrever, no art. 148: “A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”.

Benjamin Shieber assim discorre sobre esse artigo constitucional, como certamente discorreria sobre o texto atual: “A legislação expressamente baseada nessa outorga constitucional não deve ir além do mandato, afastando a finalidade da conduta como elemento de sua ilicitude. Isto posto, impõe-se a conclusão de que a lei deve ser interpretada pelo CADE como se a expressão `de propósito´ modificasse as palavras `dominar´ e `eliminar´ (…)”[7].

Por estas razões, são claramente inconstitucionais as expressões “independentemente de culpa” e “ou possam produzir” do art. 36 da LDC. Também claramente, a infração da ordem econômica exige o elemento volitivo, a intenção de cometer a ilicitude.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro da Fazenda Nacional, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial, fundador e sócio de Grinberg Cordovil Advogados


[1] “Direito Administrativo Sancionador”, RT, São Paulo, 2019, pág. 105

[2] “Teoria Normativa da Culpabilidade no direito antitruste”, Jota, 09/08/2017, pág.13

[3]  Obra citada, pág. 11

[4] “Hermenêutica e Interpretação Constitucional”, IBDC/Celso Bastos, São Paulo, 1997, pág. 105

[5] Obra citada, pág. 112

[6] “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade”, Del Rey, BH, 2003, págs. 163/164

[7] “Abusos do Poder Econômico”, RT, São Paulo, 1966, pág. 35

Cooperação das partes no e com o CADE

Mauro Grinberg

Um artigo do Código de Processo Civil apresenta-se como intrigante e até enigmático. Ainda não há jurisprudência consolidada sobre ele mas o que certamente se pode dizer é que não é possível ignorar a existência de um dispositivo legal como se ele não faça parte do mundo jurídico.

O objetivo aqui é entender o art. 6º do CPC: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Entretanto, como cooperar se, no processo, as partes se situam em posições tradicionalmente antagônicas? Mais ainda, como fazê-lo no processo administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Comercial (Cade), partindo-se do pressuposto da subsidiariedade do CPC em relação à Lei de Defesa da Concorrência (LDC), de acordo com o art. 115 da LDC?

O art. 6º foi saudado, desde a edição do CPC, como um novo paradigma do processo civil. Diz Rafael Stefanini Auilo: “Trata-se de uma verdadeira releitura do contraditório, incluindo o órgão jurisdicional no diálogo e posicionando-o de maneira distante dos sujeitos parciais do processo apenas quando chegado o momento de proferir alguma decisão” [1]. Daniel Mitidiero fala em “uma verdadeira comunidade de trabalho”[2].

A jurisprudência já tratou do artigo em questão como uma forma de evitar a procrastinação ao obrar contra a razoável duração do processo. “O artigo 6º do Código de Processo Civil prevê a cooperação das partes para que, em tempo razoável, seja alcançada a solução de mérito efetiva”[3] Já a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que “incumbe ao Poder Judiciário promover a razoável duração do processo em consonância com o princípio da cooperação processual”[4].

A Quinta Turma do STJ foi mais longe ao decidir que “o nosso sistema processual é informado pelo princípio da cooperação, sendo pois, o processo, um produto da atividade cooperativa triangular entre o juiz e as partes, onde todos devem buscar a justa aplicação do ordenamento jurídico no caso concreto, não podendo o Magistrado se limitar a ser mero fiscal de regras, devendo, ao contrário, indica-las, precisamente, a fim de evitar delongas desnecessárias e a extinção do processo sem julgamento de mérito”[5].

Vê-se aqui que o STJ adiantou uma parte importante do princípio da cooperação processual – e do art. 6º do CPC – que é a vinculação não apenas das partes como também do juiz. Isso ajuda a explicar a obrigação de cooperação entre as partes que se posicionam em confronto. Explica Daniel Mitidiero que “quem está gravado pelo dever de cooperar na condução do processo é o juiz. As partes não têm o dever de colaborar entre si”.[6] Assim, o art. 6º do CPC prevê que o juiz não é estático ou inerte. Para o juiz, segundo o autor, conduzir o processo de forma cooperativa implica em “dever judicial de advertência às partes a respeito da existência de lacunas e eventuais irregularidades em suas manifestações processuais com o objetivo de evitar soluções meramente formais do litígio”[7]

Aqui temos a lógica processual do princípio da cooperação. Ele vincula o juiz para com as partes e as partes para com o juiz mas não as partes entre si. Falta-nos ver agora essa mesma lógica no processo administrativo do Cade, que tem sistemática específica em que o aparato estatal faz as vezes de acusador e de julgador. Neste sentido, o princípio da cooperação é muito mais importante no processo administrativo do Cade do que no processo judicial.

Para começar, devemos caracterizar bem as partes: o processo administrativo sancionador começa na Superintendência-Geral (SG), que faz parte da estrutura do Cade e que se constitui no seu órgão investigador e acusador. A SG desempenha a função da promotoria nesses processos pois é ela que acusa, além de investigar. Quando o processo chega ao Tribunal do Cade, órgão eminentemente julgador, não se pode perder de vista que o acusador é o próprio Cade, por meio de sua SG. Assim, já existe uma cooperação natural entre órgão julgador e órgão acusador, ambos do mesmo Cade. Falta a cooperação com as partes acusadas; sem ela o preceito do art. 6º do CPC estará descumprido.

Tenha-se em mente que a obrigação do Tribunal do Cade não é condenar mas sim julgar. Mas esse julgamento não pode ocorrer sem que se tenha dado aos acusados o direito ao contraditório de todo o processo e todas as provas, mesmo aquelas que não deverão fazer parte expressa da decisão pois são certamente conhecidas pelo órgão acusador e pelo órgão julgador mas eventualmente não pelos acusados. Sem isso o preceito do art. 6º do CPC estará descumprido.

Mas aqui ainda estamos ainda nas formalidades. É preciso que o princípio da cooperação avance para o mérito de cada processo.  É preciso ter em mente que é importante criar um método. Para o processo judicial, Rafael Stefanini Auilo diz que “pelo modelo cooperativo de estrutura do processo, todo o saneamento e, por conseguinte, a delimitação do thema probandum deverá ser feita em audiência (…) Isso permite que todos os sujeitos do processo tragam suas reais intenções ao processo”[8].

Qual o método que pode ser utilizado no processo administrativo do Cade para implementar o princípio da cooperação? Para começar, deve haver a conscientização de que o Cade desempenha as duas funções, de acusador e de julgador. Portanto, é importante que se coloque claramente nas duas posições de modo a não confundir uma com a outra.

Assim, na fase investigatória, com o processo ainda na SG, é importante que as acusações sejam claras de modo a permitir a defesa plena e ampla, e que haja clareza de que a SG exerce duas funções: a de promotor e a de juízo de instrução. Exercendo a função de promotor, a SG acusa o Representado de determinada prática contrária à livre concorrência. Já exercendo a função de juízo de instrução, a SG precisa ser equidistante e tomar decisões de acordo com os princípios do contraditório e da ampla defesa e, igualmente, ser transparente quanto a suas duas funções. Tem especial importância nesta fase o despacho saneador, que deve deixar explícitas as questões debatidas e as provas deferidas[9].

Passando o processo para o Tribunal do Cade, após a Nota Técnica e o Despacho finais da SG, normalmente as partes procuram os Conselheiros do Cade para expor suas razões. É um direito – que em alguns casos é dificultado pois em determinadas ocasiões é tratado como ato discricionário – mas pode ser organizado de outra forma. Para respeitar o princípio da não surpresa, consagrado no art. 10 do CPC, e para deixar bem claras as posições processuais, recomenda-se uma audiência em que compareçam todos os Conselheiros do Tribunal do Cade, a SG, a Procuradoria do Cade e, se for o caso, o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do mesmo Cade.

Nesta audiência devem ficar claras as posições da SG, aqui atuando apenas como promotora, e dos Representados, agindo o Tribunal do Cade como julgador. Aliás, se e quando a SG procurar o Tribunal do Cade (Presidente, Conselheiros, Procurador), a reunião deverá constar da agenda pública, como ocorre com as reuniões com os Representados. Efetivamente a SG age aqui como Representante e/ou acusadora e não integra o órgão julgador. Nesta audiência os Representados devem necessariamente tomar conhecimento dos pontos que a SG tem contra eles e os Conselheiros devem estar preparados e podem inquirir a todos. Não deve o órgão julgador usar um argumento que não tenha sido previamente discutido com os acusados.

É preciso encarar o desenvolvimento do direito processual. Deixando claras as posições da SG e dos Representados, e cumprindo o ditame do art. 10 do CPC, ter-se-á a forma mais sofisticada de cooperação entre as partes que o Tribunal do Cade pode oferecer, cumprindo também o ditame do art. 6º do CPC. Com isto aplica-se a lei, sem criação de desnecessária lei nova.


[1] “O modelo cooperativo de processo civil no novo CPC”, Juspodium, Salvador, 2017, pág. 52

[2] “Colaboração no processo civil”, RT, São Paulo, 2019, pág. 50)

[3] Decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio nos EeDd em ARE 852.022-PE

[4] REsp 1.820.838-RS

[5] Recurso em HC 102.457-SP

[6] Obra citada, pág. 71

[7] Obra citada, pág. 106

[8] Obra citada, pág. 107

[9] Ver “O despacho saneador no processo administrativo sancionatório do Cade” em “Colunas da Web Advocacy – Opiniões qualificadas”, Vol. II, Brasília, 2021

Um projeto sobre redação de decisões

Mauro Grinberg

O Projeto de Lei nº 3.326, de 2021, do ilustre Deputado Paulo Bengtson, merece no mínimo o adjetivo de curioso pois acrescenta o parágrafo 4º ao art. 489 do Código de Processo Civil (CPC), (que estabelece os “elementos essenciais da sentença”): “a reprodução do dispositivo da sentença em linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica e acrescida das considerações que a autoridade judicial entender necessárias, de modo que a prestação jurisdicional possa ser plenamente compreendida por qualquer pessoa do povo”.

Já existem muitos trabalhos que procuram fazer com que as apresentações feitas pelas partes e pelos seus advogados, sejam mais simples, em geral mais curtas; mas poucas vezes encontramos trabalhos dirigidos à própria linguagem das decisões. Agora encontramos um projeto dirigido aos magistrados. E, por inferência óbvia, aos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Com efeito, há situações em que até os advogados têm dificuldades de entender o conteúdo – e sobretudo a parte dispositiva – de determinadas decisões, embora para isso existam os embargos de declaração. s

Aos julgadores deve ser imputado o mesmo dever de clareza que é imputado aos advogados. Esse dever de clareza não se coaduna com linguagem rebuscada e citações óbvias ou aleatórias. A decisão deve não só obedecer aos ditames do art. 489 do CPC como também ser direta aos pontos no preenchimento desses requisitos, sendo que existem pontos positivos – (i) o relatório, (ii) os fundamentos (ou seja, a razão de decidir) e (iii) o dispositivo (ou seja, a decisão propriamente dita).

Mas existem os requisitos negativos, tão importantes quanto os positivos, sobretudo na parte em que o § 1º diz o que não deve ser considerado fundamento. É de suma importância o inciso VI deste parágrafo: “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

Aliás, no caso dos processos administrativos, o inciso comentado está em linha com o inciso XIII do art. 2º da Lei 9.784, de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, sendo que esse dispositivo veda “aplicação retroativa de nova interpretação”.

Vistas essas características necessárias da decisão, cumpre voltar nossa lente para o projeto em si e verificar a dificuldade de sua aplicação pela impossibilidade, na prática, de definir o que é linguagem coloquial e o que é a compreensão de qualquer pessoa do povo. Os conceitos aqui são extremamente vagos; a decisão deve ser entendida por um funcionário público, um operário, um médico, um musicista, um fisioterapeuta, um programador de computadores? Como definir qualquer pessoa do povo? Alguém com que grau de educação formal?

O esforço legislativo é louvável mas essas definições faltam para integrar o texto proposto. Há aqui mais perguntas do que respostas. De fato, o que é linguagem coloquial? É aquela dos personagens de Jorge Amado em “Capitães da Areia”? É o tatibitate infantil? É o linguajar de uma parte da nossa juventude (amigo vira “bróder”, beleza vira blz, olá vira oiê e assim por diante)? Deve-se usar a linguagem coloquial de que região do país? Onde fica a gíria nisso tudo? Como um Juiz pode escrever em linguagem coloquial, por exemplo, que uma ação é improcedente e a reconvenção é procedente? Haverá embargos de declaração para adaptar a linguagem jurídica à linguagem coloquial?

Enfim, o rol de questões levantadas pelo projeto comentado é muito grande e desde logo cumpre destacar que a obrigatoriedade do uso da linguagem coloquial encontra obstáculos imensos. Não há como fazê-lo sem que se use um glossário, este mesmo mutável na medida que é mutável também a linguagem coloquial.

Nada impede, todavia, que se busque a maior simplicidade na redação jurídica, sendo que isso vale não só para os julgadores como também para os que peticionam. Frequentemente são ouvidas críticas de parte a parte a respeito da prolixidade de determinados textos. Pode-se, por exemplo, usar anexos (ou links) para evitar citações longas no corpo do texto; esta iniciativa torna o texto mais eficiente ainda mais quando o processo é eletrônico.

É preciso ter em mente, todavia, que o uso da linguagem coloquial (ou mesmo pretensamente coloquial) não pode nunca comprometer a compreensão do texto por quem quer que seja. Afinal, séculos de cultura jurídica não pode ser jogados às traças pela vontade de se fazer entendido pelos que tiveram menores possibilidades de estudo.

Em todos os textos, é preciso escrever bem, não apenas com correção gramatical mas sobretudo seguindo o determinado roteiro: (i) descrição e/ou histórico, (ii) preliminares (quando existentes), (iii) mérito, (iv) conclusão e (v) requerimento. A decisão judicial final deve seguir o mesmo roteiro, embora considerando que as questões preliminares (se existentes) já devem ter sido resolvidas no despacho saneador.

É claro que esse roteiro pode sofrer algumas variações, sobretudo em questão de estilo. Um argumento decisivo, aquele que resolve a questão, pode ser apresentado no início do texto, ainda que deva ser repetido no roteiro acima apresentado. Com efeito, esta abertura com um argumento definitivo chama a atenção da interlocução, julgador ou parte, para o ponto mais importante. É o que Antonin Scalia e Bryan A. Garner preconizam (“Making your case”, Thomson West, St. Paul, MN, 2018, pág. 14).

Voltando ao tema do projeto, os mesmos autores mencionam um caso em que um enorme desastre ecológico passou a ser caracterizado pelos advogados como um “incidente” e logo todos os demais atores do processo passaram a usar a mesma denominação para o evento (obra citada, pág. 36). Assim, um crime ambiental passou à categoria de incidente pelo simples fato das palavras terem sofrido manipulação.

Assim, buscar a linguagem coloquial encontra um obstáculo tangível: é preciso usar a linguagem correta e as palavras certas para cada situação. Concluindo, trata-se de um projeto com excelentes intenções mas que, se for transformado em lei, será de implementação altamente duvidosa.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio e fundador de Grinberg Cordovil.