Artigos de opinião

Planos de saúde coletivos: análise econômica do reajuste por faixa etária*

Fernando Boarato Meneguin

As políticas públicas na área de saúde são cruciais para o desenvolvimento adequado de um Estado. De fato, a saúde é considerada na literatura tanto como capital humano, quanto como insumo para outros fatores, o que alicerça o desenvolvimento.

No Brasil, é notória a insuficiência do sistema público de saúde. Daí ser especialmente alarmante a sensível queda no acesso da população brasileira aos planos de saúde suplementar (a taxa de crescimento do número de beneficiários foi negativa ou praticamente nula em todos os períodos desde 2015).

Tal situação ressalta a importância de um desenho correto da regulamentação estatal, de maneira que se ache um equilíbrio entre interesses das administradoras dos planos de saúde e seus consumidores, para que não haja abuso por parte dos fornecedores de saúde privada, mas tampouco se imponha um regramento inviabilizador do negócio.

Dada a importância dessas regulações, cuidados devem ser tomados para que elas sejam concebidas de maneira a trazer mais benefícios do que custos à sociedade, mitigando possíveis efeitos colaterais negativos em decorrência da intervenção. Caso contrário, pode-se ter situações nas quais a medida, preliminarmente destinadas a ajudar o consumidor, acabam por prejudicá-lo.

Esse efeito adverso é conhecido na literatura como “Efeito Peltzman”, situação em que a regulação tende a criar condutas não previstas para os regulados, anulando os benefícios almejados.

Nesse sentido, com foco na atuação estatal, tem-se uma questão extremamente atual relacionada à saúde suplementar, com grande repercussão na sociedade, que merece debate: a validade de cláusula contratual de plano de saúde que preveja reajuste por faixa etária, especialmente para planos de saúde coletivos.

A regulamentação e a supervisão dos reajustes dos planos cabem à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que possui normatização sobre como devem acontecer esses reajustes. Apesar da atuação da Agência, o assunto foi judicializado.

Importante pontuar que, atualmente, são permitidas duas espécies de reajustes nos preços de planos de saúde: (i) anual (periódico) e (ii) por faixa etária do segurado.

No tocante aos contratos de planos de saúde do tipo coletivo (que representam mais de 80% do mercado), diferentemente dos planos individuais e familiares, o percentual de reajuste anual independe de prévia aprovação da ANS, ficando a operadora obrigada apenas a comunicar o reajuste aplicado no ano, o qual será livremente negociado com a pessoa jurídica contratante (empresa, sindicato, associação). Nesse caso, a ANS restringe-se a monitorar o mercado.

Já as regras de reajuste por variação de faixa etária são as mesmas para as diversas espécies de planos de saúde (individuais ou familiares e coletivos). As faixas para correção variam conforme data de contratação do plano e os percentuais de variação precisam estar expressos no contrato, mas não dependem de prévia aprovação da ANS. De todo modo, somente é permitida a incidência do reajuste de acordo com as faixas etárias estabelecidas pela agência reguladora.

A norma mais recente sobre este assunto é a Resolução Normativa nº 63, de 2003 – ANS (RN nº 63/03), que define os limites a serem observados para adoção de variação de preço por faixa etária nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 2004. Nessa Resolução foram previstas dez faixas etárias, aplicáveis a todos os tipos de planos (individuais, familiares e coletivos).

O art. 3º da RN nº 63/03 dispõe ainda que os percentuais de variação em cada mudança de faixa etária deverão ser fixados pela operadora, sendo que: o valor fixado para a última faixa etária não poderá ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária; a variação acumulada entre a sétima e a décima faixas não poderá ser superior à variação acumulada entre a primeira e a sétima faixas; as variações por mudança de faixa etária não podem apresentar percentuais negativos.

No âmbito do Poder Judiciário, o STJ apreciou a legalidade dos reajustes por faixa etária em planos individuais ou familiares no REsp nº 1.568.244, julgado sob o rito dos repetitivos em dezembro de 2016. Naquela ocasião, foi firmado o entendimento de que é válida a cláusula que prevê o reajuste de mensalidade de plano individual ou familiar pautado na mudança de faixa etária do beneficiário. Os argumentos caminharam em prol do equilíbrio econômico-financeiro dos planos de saúde, admitindo-se, entretanto, a solidariedade intergeracional, a fim de que não ocorra um exacerbado incremento no preço a ser cobrado dos idosos. Outrossim, não pode haver aumento de preços a beneficiários com mais de 60 anos, ante a vedação prevista no Estatuto do Idoso (art. 15, § 3º, da Lei 10.741/03).

Em poucas palavras, deve ser encontrada a calibragem ideal dos preços para que mais pessoas, de todas as idades, possam ter acesso à saúde suplementar, sem inviabilizar esse mercado.

Quanto aos planos coletivos, ainda não há decisão definitiva. As Cortes de Justiça têm, usualmente, seguido as mesmas diretrizes estatuídas no REsp nº 1.568.244. No entanto, há decisões conflitantes – e por vezes dotadas de alto grau de subjetividade – reconhecendo a nulidade de reajustes por faixas etárias. As várias decisões divergentes têm gerado bastante insegurança jurídica ao setor.

Por exemplo, reajustes de 51% e 67,57% foram tidos como abusivos pelos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), respectivamente (Apelação Cível [AC] nº 1004264-21.2014.8.26.0562 e AC nº 0030706-35.2016.8.07.0001). As decisões foram fundamentadas na ausência de elementos idôneos a justificarem o reajuste e na violação do dever de informação ao consumidor. No último caso, chegou-se a afirmar: “Revela-se abusivo e discriminatório o aumento demasiado na prestação do beneficiário idoso, pois a desvantagem contratual inibe a permanência no referido plano de saúde, em violação aos princípios da boa-fé objetiva e da equidade”.

Em consequência das divergências, a matéria será apreciada pelo STJ no bojo do Recurso Especial n.º 1.715.798/RS – afetado à sistemática dos recursos repetitivos (art. 1.036 do CPC), a fim de firmar precedente qualificado e específico sobre os planos de saúde coletivos, mais especificamente sobre: a) a validade de cláusula contratual de plano de saúde coletivo que prevê reajuste por faixa etária; e b) o ônus da prova da base atuarial do reajuste.

Para uma análise econômica do assunto, há que se enfatizar que o setor de saúde suplementar possibilita um nível elevado de assimetria de informação que, se não tratada adequadamente, pode inviabilizar o seu funcionamento.

O primeiro problema informacional é a seleção adversa. Os beneficiários dos planos privados de assistência médica conhecem bem o seu estado de saúde, mas a operadora não detém essa informação. Assim, a seguradora estabelece o valor da mensalidade com base em um risco médio. Contudo, fazendo isso ela seleciona os clientes com maior exposição ao risco, ou seja, a seguradora seleciona adversamente os piores segurados.

Evidentemente, os planos de assistência médica estão a par dos problemas de seleção adversa e investem recursos para dividir os segurados em graus de riscos diferentes para, consequentemente, cobrar de maneira diferente. Uma variável que serve de indicativo para o grau de risco é a idade do segurado. Esse indicativo que está em jogo por meio da atuação do Estado.

Outro tipo de problema envolvendo a assimetria informacional é o risco moral ou incentivo adverso. Nesse aspecto, o obstáculo encontra-se na dificuldade de as operadoras monitorarem o quanto cada segurado cuida da sua própria saúde, ou, ainda, se o segurado está usando demasiadamente os serviços sem haver necessidade.

Perceba que a assimetria de informação no setor de saúde suplementar exige a construção, por parte do Estado, de uma sinalização correta para que os tipos de planos de saúde sejam oferecidos de maneira adequada, criando interesse para segurados e seguradoras.

Essa sinalização, juntamente com a respectiva precificação gerada, deve ser transposta para um contrato claro, com concordância expressa das partes, diminuindo as chances de intervenções estatais indevidas prejudiciais ao setor.

Uma vez que o Poder Judiciário poderá vedar o uso da idade como forma de diferenciação, cabe avaliação, com base na teoria econômica de incentivos e da análise econômica do direito, dos efeitos da proibição dessa diferenciação, notadamente os impactos na oferta e na solidariedade intergeracional embutidos nos planos de saúde em equilíbrio.

Os principais resultados sugeridos por modelagem microeconômica são os seguintes:

Se houver total liberdade na precificação nos planos de saúde coletivos, não haverá solidariedade intergeracional.

Por outro lado, se for proibida a cobrança diferenciada entre jovens e idosos, existe probabilidade alta de se inviabilizar o mercado de planos coletivos direcionados aos jovens. Nesse caso, os mais novos terão como alternativa planos individuais mais caros, persistindo a falta de solidariedade intergeracional.

 Na situação intermediária, em que o Estado permite a diferenciação por idade nos preços dos planos coletivos, mas estabelecendo uma amplitude nos preços, poderá existir incentivos para um certo nível de solidariedade intergeracional com a manutenção da oferta de planos coletivos de saúde para cada faixa etária, desde que essa amplitude seja corretamente delimitada.

Assim, o recado que se quer deixar consiste na importância de haver uma análise cuidadosa das consequências das ações do Poder Público. O desafio estatal, considerando ações oriundas dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, é regrar os preços dos planos de saúde, de maneira que estes sejam sustentáveis do ponto de vista econômico-financeiro, mantendo atratividade tanto para os consumidores quanto para as operadoras de saúde suplementar. Um erro nesse regramento pode representar sérios danos para a saúde suplementar no Brasil e consequentemente para todos seus beneficiários. Espera-se dessa maneira um desfecho no qual a calibragem seja correta, promovendo bem-estar social.

* Texto baseado no seguinte artigo acadêmico: MENEGUIN, F. B.; BUGARIN, M. S.; BUGARIN, T. T. S. Planos de saúde coletivos: Análise econômica do reajuste por faixa etária. Revista de Análise Econômica do Direito. vol. 2. ano 1. São Paulo: Ed. RT, jul.-dez. 2021.

Economia política e concorrencial em tempos de Bigtechs

Luiz Alberto Esteves

Nenhum fenômeno tem preocupado mais as autoridades antitruste ao redor do mundo do que as condutas unilaterais, comumente originadas do excesso de poder de mercado exercido pelas grandes empresas de tecnologia: as Bigtechs. A maioria das empresas de tecnologia são plataformas digitais e plataformas eficientes são plataformas grandes. Por exemplo, uma operadora de plano de saúde é um tipo de plataforma (não necessariamente digital) de dois lados, onde de um lado temos os pacientes e do outro temos os médicos, clínicas e hospitais. Uma administradora de cartões de crédito também é uma plataforma. Numa plataforma eficiente e bem-sucedida, os usuários devem desfrutar dos benefícios dos efeitos de rede (network effect). Esse benefício será maior, quanto maior o número de usuários nos dois lados da plataforma. Por exemplo, nenhum paciente ficará feliz em adquirir um plano de saúde com uma rede credenciada reduzida. Os médicos também terão incentivos reduzidos em aceitarem um seguro de saúde que cobre poucos usuários.

Uma rede social é uma plataforma digital, onde as pessoas partilham conteúdo. Tais plataformas podem trazer grande valor para seus usuários, sem que tais usuários necessariamente paguem por compartilhar conteúdo. Os usuários também proporcionam grande valor para as plataformas, afinal a circulação massiva de pessoas e organizações naquela infraestrutura a torna uma espécie de “Rua 25 de Março” de proporções globais. Com uma diferença relevante: a plataforma é capaz de coletar informação estratégica (inferência sobre hábitos, costumes, padrão de consumo, capacidade de pagamento etc.) de cada uma das pessoas daquela multidão. Tais inferências são possíveis por conta dos comportamentos e dos padrões de interação dos usuários na plataforma. O potencial de geração de valor econômico disso é incomensurável e é refletido no enorme valor de mercado de tais corporações.

O poder de edição das plataformas digitais é também conhecido como gatekeeper power. A teoria do gatekeeper power foi originalmente associada ao poder de edição da imprensa e o suposto exercício de noticiar apenas o que os jornalistas assim desejam. Cabe destacar que não há um consenso na teoria do jornalismo se tal poder de edição de fato exista. No caso das plataformas digitais, o poder de edição se daria de forma semelhante, mas não estaria limitado à circulação de notícias, mas também a qualquer forma de conteúdo partilhável, inclusive publicidade e propaganda.

Algumas questões merecem ser endereçadas nesse ponto: as plataformas digitais teriam de fato poder de influenciar preferências e decisões de consumo? Você compraria um produto pelo simples fato de um algoritmo inferir isso e divulgá-lo em sua timeline? As corporações que adquirem espaços publicitários nestas plataformas realmente acreditam que vão alavancar vendas? As respostas parecem ser positivas para todas estas perguntas.

Isso também significa que podemos ser potenciais consumidores de um bem ou serviço que sequer sabíamos da existência, mesmo porque tal bem é capaz de suprir uma necessidade que sequer nos incomodava até então. Mito ou realidade, o fato é que os empreendedores são guiados por tal crença, como pode ser constatado nas palavras de Steve Jobs: “a lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”. Se de fato isso for verdadeiro, o poder econômico de edição das plataformas digitais é, mais uma vez, proporcional ao valor de mercado de tais corporações.  

O poder econômico de uma grande corporação, associado ao poder de edição de veiculação de informações (gatekeeper power) acerca de bens e serviços (que as pessoas não sabiam que desejavam até que tenham sido apresentados e elas), proporciona à plataforma uma capacidade gigantesca de geração de sinergias com novos negócios. Por exemplo, distribuir e comercializar conteúdo digital em geral, tal como notícias, músicas, filmes, softwares, soluções e aplicativos em geral.

Contudo, o mesmo poder de edição pode ser usado para imputar custos aos rivais e a potenciais entrantes nos diferentes mercados explorados pela plataforma, inclusive contra startups provedoras de produtos altamente inovadores e diferenciados. Um suposto uso abusivo do poder de edição teria como efeito a restrição de espaço para divulgação de tais soluções aos potenciais consumidores, de modo que a probabilidade de sucesso na introdução de uma inovação por rivais ficaria, ao menos teoricamente, bastante reduzida. Parece claro que as consequências disso em termos de bem-estar da sociedade são bastante negativas, uma vez que limitaria a velocidade com que as inovações são produzidas e difundidas na economia.

Em artigo publicado em 2017 no prestigioso periódico Journal of Economic Perspectives, Luigi Zingales sugere a construção de uma teoria política da firma. A proposta teórica do artigo, intitulado “Towards a Political Theory of the Firm”, gira em torno da noção do que o autor denomina de círculo vicioso de Médici, em referência ao poder econômico da família de banqueiros e mecenas fiorentinos da Renascença. Os Médici não apenas acumularam fortuna com seus negócios, mas também tiveram papel fundamental na construção da revolução cultural e científica do Renascentismo. Adicionalmente, obtiveram êxito político extraordinário ao garantirem, por exemplo, que quatro de seus membros exercessem um dos postos políticos mais poderosos e influentes do mundo ocidental: o Papado da Igreja Católica.   

Sabemos que o faturamento de muitas das modernas corporações da economia digital supera até mesmo a arrecadação tributária de vários países. Isso significa que tal poder econômico seja capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Portanto, grandes corporações podem usar o poder econômico para obtenção de poder político, de forma a influenciar as “regras do jogo”, garantindo assim mais poder econômico, que proporcionará mais poder político e ainda maior capacidade de influenciar na construção das “regras do jogo” e assim por diante. Cabendo destacar que as “regras do jogo” não se limitam ao âmbito dos Estados Nacionais, mas também as “regras do jogo” dos mercados globais e dos acordos multilaterais.

A lógica da alocação de recursos no interior das firmas não segue, necessariamente, a mesma lógica de alocação de recursos por meio dos mercados. Como foi brevemente descrito na primeira seção deste artigo, segundo a TCT, quando os custos de transação dos mercados são elevados, a firma internalizaria tais trocas. Portanto, a firma seria, sob algumas condições e circunstâncias, um substituto dos mercados. Logo, não faria muito sentido imaginarmos que firmas e mercados seguissem os mesmos padrões de regras alocativas. Neste sentido, fica claro interpretar o argumento de Zingales, quando o autor sugere que a extensão do círculo vicioso de Médici depende de vários fatores não relacionados aos mercados. 

Vários países dispõem de legislação antitruste (algumas mais sofisticadas que outras) que busca endereçar alguns dos problemas acima relacionados. O “pacote básico” de política antitruste inclui controle de concentrações (análise de fusões e aquisições) e repressão às condutas unilaterais (abuso de posição dominante) e concertadas (cartéis). Algumas jurisdições dispõem de relativa riqueza de recursos humanos e materiais para exercer tais tarefas, como são os casos do sistema FTC/DOJ dos EUA e do DG Comp da União Europeia. Mesmo em tais jurisdições, há um debate em torno da ideia de que o atual conjunto de ferramentas disponíveis para estas autoridades não seja suficiente para lidar com os novos desafios impostos pela economia digital. Parte disso se deve ao fato de que autoridades da concorrência se guiam em torno da noção de mercados (principalmente a noção de mercados relevantes) e, como já discutido ao longo deste artigo e sugerido por Zingales, os mercados podem ter muito pouco a revelar acerca da real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder econômico.

Failing Firm Defense: uma proposta de screening test

Marcio de Oliveira Junior*

Luiz Alberto Esteves**

Failing Firm Defense

A saída de uma empresa do mercado decorrente de sua falência pode implicar a diminuição da oferta e o aumento de participação de mercado das empresas sobreviventes, que, assim, aumentarão seu poder de mercado. Ademais, a failing firm defense reconhece que objetivos para além da concorrência podem ser considerados quando se analisa uma aquisição, entre os quais o de manter os ativos de uma empresa em estado falimentar em uso, de modo a garantir o emprego dos fatores de produção. Em assim sendo, a reprovação da venda de uma empresa pode causar prejuízos maiores que a aprovação, ainda que a venda seja feita para um concorrente com poder de mercado.

Do ponto de vista econômico, a doutrina é consistente com o princípio da eficiência, que pode ser aferida comparando-se os efeitos da saída da empresa em estado falimentar do mercado com aqueles decorrentes de sua aquisição, ainda que por um concorrente com poder de mercado. A saída da empresa em situação falimentar do mercado pode fazer com que seus ativos tenham outro uso, com menor valor social, ou fiquem ociosos, sem gerar emprego e renda. Em ambos os casos, haveria perda de bem-estar. A questão, portanto, seria estimar qual dos efeitos seria menor.

No entanto, a doutrina não prevê o sacrifício da concorrência a qualquer custo em prol da manutenção da operação dos ativos da empresa em situação falimentar. Na verdade, a doutrina propõe critérios objetivos para orientar a escolha a ser feita pela autoridade de concorrência ao avaliar essa possibilidade. Esses critérios foram incorporados aos guias para análise de fusões e aquisições usados pelas principais autoridades de concorrência.

O Horizontal Merger Guidelines de 2010 dos órgãos antitruste dos EUA (Federal Trade Commission e US Department of Justice) estabelece três exigências para a aplicação da doutrina: 1) a empresa adquirida deve estar prestes a falir, ou seja, incapaz de cumprir suas obrigações financeiras no curto prazo; 2) as perspectivas de recuperação da empresa que está sendo vendida devem ser inexistentes ou muito remotas, de acordo com o disposto no Bankruptcy Act; 3) não deve haver outros compradores para a empresa em estado falimentar ou para seu estoque de ativos; não havendo a aquisição da empresa em estado falimentar, seus ativos sairiam do mercado, gerando desemprego de capital e trabalho.

Na Europa, o Guidelines on the assessment of horizontal mergers under the Council Regulation on the control of concentrations between undertakings prevê que a failing firm defense será usada de forma excepcional. Três critérios são especialmente relevantes para seu uso: 1) a empresa em situação falimentar sairia do mercado em um futuro próximo devido a dificuldades financeiras caso não fosse adquirida; 2) não há alternativa de venda da empresa com menor impacto concorrencial; 3) na ausência da aquisição, os ativos da empresa em situação falimentar sairão do mercado.

O Guia para Análise dos Atos de Concentração Horizontal (Guia H) do CADE também trata da doutrina da empresa em situação falimentar, chamando-a de teoria da empresa insolvente. São três as condições cumulativas para a aplicação dessa teoria: 1) a empresa sairia do mercado caso reprovada a operação; 2) se a operação for reprovada, os ativos da empresa alvo não permaneceriam no mercado, causando uma possível redução da oferta e um maior nível de concentração, com consequente queda de bem-estar; 3) a empresa alvo deve demonstrar que buscou alternativas de venda com menor impacto concorrencial e que não há alternativa para se manter no mercado a não ser a aprovação da operação.

As condições para aplicação da doutrina nos três guias são similares e restritivas. Além disso, o ônus da prova cabe ao vendedor, que deve mostrar à autoridade de concorrência que se esforçou para obter compradores alternativos. Mas, principalmente em um período de forte retração econômica, um concorrente com poder de mercado pode ser o único interessado em adquirir a empresa em estado falimentar, por conhecer bem o setor de atividade, o que reduz os riscos da compra, e/ou pela necessidade de consolidação do mercado decorrente da queda da demanda. Nesse caso, o requisito de busca de um comprador alternativo que represente um menor impacto concorrencial pode nunca ser alcançado, inviabilizando a aplicação da failing firm defense.

No caso brasileiro, há uma restrição adicional, que torna o padrão probatório ainda mais oneroso ao vendedor. Essa restrição decorre da seguinte afirmação contida no Guia H do CADE:

“… o requisito de efeitos líquidos não-negativos deve ser preenchido. É dizer que o CADE deve concluir que os efeitos antitrustes decorrentes da reprovação da operação (e da, acredita-se, provável falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação. O ônus da prova da existência desses elementos recai sobre as requerentes”.

Depreende-se dessa passagem do Guia H que o vendedor tem que provar ao CADE que os efeitos líquidos não são negativos, o que é bastante desafiador e pode impedir que a doutrina seja usada.

As restrições são rígidas e o ônus da prova é alto porque se trata de uma situação excepcional. No entanto, em um período de grave retração econômica como o que se avizinha, a doutrina da empresa falimentar tende a ganhar relevância. Para ter parâmetros sobre seu uso, as empresas que nela julgam se enquadrar poderiam buscar amparo na jurisprudência, mas são poucos os casos em que a failing firm defense foi usada. Seguem três exemplos sob a vigência da Lei nº 12.529/2011.

A compra da PSUAPE e da CITEPE (subsidiárias da Petrobras) pelo Grupo Petrotemex[1] foi impugnada pela Superintendência Geral (SG) do CADE com recomendação de aprovação mediante acordo, o que foi feito pelo Tribunal do órgão. O então Conselheiro João Paulo de Resende apresentou voto vogal em que discutiu o argumento de failing firm.

O voto vogal reconheceu a dificuldade financeira das empresas que foram vendidas, mas afastou a aplicação da doutrina da empresa falimentar ao questionar o argumento de que só havia um interessado nos ativos, que teria sido o único requisito demostrado pela vendedora (Petrobras). Para o ex-Conselheiro, o desenho dos processos de venda afeta o número de interessados. Como os concorrentes diretos valorizam mais os ativos à venda, suas ofertas serão maiores, desestimulando a participação de entrantes. Com base nesse argumento, o voto vogal propôs que as evidências apresentadas pela vendedora de que não havia vários compradores potenciais deveriam ser afastadas.

Embora o voto vogal tenha sido vencido, isso mostra como o padrão probatório para se aprovar uma aquisição com base na failing firm defense é restritivo.

Outro exemplo que ilustra o quão restritivos são os critérios da doutrina da empresa falimentar é a venda da Mataboi para a JBJ[2], em que foi elaborado um parecer do Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE afastando a aplicação da doutrina para a aprovação da aquisição. O parecer da DEE/CADE afirma que, apesar de a Mataboi estar em recuperação judicial e de suas dificuldades financeiras, não houve a comprovação de que o plano de recuperação era inviável e que ela sairia do mercado sem a venda para a JBJ.

Em relação à possibilidade de outros compradores, o DEE/CADE afirmou que a vendedora deve provar (por meio de propostas públicas ou particulares críveis, por exemplo) que não houve outros interessados. Além de listar todos os interessados, a empresa deveria ainda fundamentar a rejeição caso não aceite alguma proposta com menor potencial de dano concorrencial. Como essa prova não foi feita, considerou-se que o critério de inexistência de compradores alternativos não foi cumprido.

O Tribunal do CADE corroborou a posição do DEE/CADE e concluiu que a doutrina da empresa em situação falimentar não se aplicava à operação de venda da Mataboi.

O terceiro exemplo que vale ser mencionado é a aquisição de controle da Neobus pela Marcopolo[3], que detinha 45% do capital social da empresa alvo e adquiriu os 55% restantes. As requerentes da operação informaram ao CADE que a operação viabilizaria a continuidade das atividades produtivas da Neobus, pois a empresa se encontrava em má situação financeira. Ressaltando que não estava aplicando a failing firm defense e que recuperação judicial da Neobus não foi analisada, a SG/CADE afirmou que não podia “deixar de considerar a situação econômica da empresa e a participação de 45% já detida pela Marcopolo” em seu capital social.

Portanto, a lei de defesa da concorrência não prevê um rito especial para empresas em situação falimentar, a jurisprudência é escassa e as condições previstas nos guias são restritivas e corretamente previstas para situações excepcionais. Além disso, os poucos casos em que a doutrina da empresa em situação falimentar foi discutida mostram que o ônus da prova é das empresas requerentes. Ainda, os precedentes não permitem às empresas ter informações precisas sobre qual padrão de provas é esperado pela autoridade, gerando incerteza. Nesse sentido, considerando que esta é uma crise excepcional e que a venda para concorrentes pode ser uma alternativa de saída do mercado para várias empresas, seria útil o CADE fornecer aos jurisdicionados algumas diretrizes sobre como lidará com a failing firm defense.

É com base nisso que propomos um mecanismo de screening que poderia ser adotado pela autoridade de concorrência para caracterizar a situação falimentar das empresas e a possibilidade de usar a failing firm defense. Com isso, as empresas teriam uma diretriz para saber quando é viável levar essa tese ao CADE, ainda que, por suposto, não consigam saber previamente se ela será aceita, pois isso depende da análise concorrencial a ser feita.

Uma Proposta de Screening Test para Failing Firm Defense

Comecemos pelas seguintes premissas: os agentes econômicos tomam decisões de investimento em condições de risco e incerteza. Por isso, projetam diferentes cenários para exercícios envolvendo fluxos de caixa, tais como a taxa interna de retorno (TIR) e o valor presente líquido (VPL). Isso ocorre porque muitas das variáveis que constituem os fluxos de caixa são aleatórias, tais como receitas e despesas futuras. O investidor também constrói cenários de estresse, bem como planos de contingência para mitigar eventuais riscos, de modo a assegurar a atratividade mínima do negócio.

Contudo, choques adversos imprevisíveis e exógenos, de grande magnitude, chamados de cisnes negros, podem proporcionar resultados muito piores que os inicialmente projetados pelos agentes econômicos quando da decisão pelo investimento. Situações do tipo cisnes negros são excepcionais e devem ser tratadas como tal.

Não parece um absurdo sugerir que um investidor que tenha incorrido em uma perda real decorrente de choques adversos muito superior àquela que seria normalmente esperada em uma análise estressada de investimento liquide sua posição de forma não estratégica (no-exit strategy), ou seja, se desfaça de seus ativos sem que os lucros esperados tenham sido realizados. Em uma situação do tipo cisne negro, tais ocorrências podem se tornar comuns. A questão passa a ser, então, como identificar as situações de no-exit strategy por meio de um screening test. É o que propomos a seguir.

Nosso objetivo é apresentar uma proposta para o caso de empresas que tenham (i) sofrido impactos negativos; (ii) queiram se desfazer de ativos de forma não estratégica (no-exit strategy); (iii) e que a operação de venda seja objeto de escrutínio pela autoridade antitruste. A proposta de screening test é composta de cinco passos:

  1. A autoridade de concorrência determina qual é o marco do evento adverso.
  2. Coletar informações da empresa que liquida os ativos (vendedora, ou alvo) para um período anterior ao marco. Por exemplo, coletar uma série histórica de variáveis de resultado, como as margens brutas ou receitas brutas mensais nos últimos cinco anos, pelo menos;
  3. A partir dos valores das distribuições das variáveis selecionadas, computar valores extremos negativos ( , que são thresholds distantes da média) que poderiam ser considerados em um cenário de estresse para uma análise de investimento com aquelas informações. Existem métodos alternativos de se obter esses thresholds a partir de uma distribuição estatística;
  4. Coletar informações da empresa que liquida os ativos para o período que sucede o marco. Trata-se das mesmas variáveis do segundo passo. Computar os valores médios das variáveis de interesse para o período pós-marco ( ).
  5. Subtrair o valor médio obtido no quarto passo do valor estressado (threshold) obtido terceiro passo ( ).

Um valor negativo da  significa que a média observada pós-marco foi menor que o valor extremo negativo da distribuição anterior ao marco. A empresa, em função da crise econômica, está em uma situação pior que o extremo negativo que ela planejou quando fez o investimento. Nesse caso, a venda da empresa poderia ser encarada como uma saída não estratégica (no-exit strategy), pois a saída de um investidor ou empresa dos negócios em uma situação de estresse geralmente está associada a perdas inesperadas e exógenas que inviabilizariam a continuidade nos negócios. Em outras palavras, haveria uma evidência robusta de que a empresa à venda está em uma situação falimentar, e de que a sua venda (saída do mercado) não tem objetivos estratégicos (exit strategy), como, por exemplo, a realização de lucros.

Em adição a esses cinco passos, é importante que o CADE considere indicadores adicionais, como, por exemplo, a análise do Índice de Herfindahl-Hirschman (HHI). Se a  for negativa e se a análise do HHI indicar mercados moderadamente concentrados, o CADE poderia considerar a análise da operação tomando como base a failing firm defense.

Considerações Finais.

Há algumas vantagens em se usar um mecanismo de screening. O CADE poderia reduzir a incerteza que cerca o tema failing firm. As próprias empresas poderiam fazer os cálculos e decidir se elas usarão o argumento. Como o número de empresas em dificuldade tende a crescer, a autoridade antitruste pode se beneficiar disso, pois as empresas que não atingirem as condições estabelecidas no teste acima saberiam de antemão que o CADE não aceitaria o argumento da empresa em situação falimentar. Além disso, essa metodologia seria aplicada a todos os setores de atividade, e não apenas àqueles que sofrem mais com a crise. Usando o mesmo critério objetivo, o CADE afastaria qualquer argumento de que privilegia alguns setores ou empresas e de que faz política industrial. Além disso, como a economia é cíclica, o mesmo mecanismo de screening poderia ser utilizado no futuro. Outra questão importante é que o CADE teria um critério objetivo de análise caso seja questionado por algum órgão de controle no futuro.

Há ainda outro ponto a destacar: para uma empresa provar que está em situação falimentar, ela deve mostrar que enfrenta problemas de fluxo de caixa por um longo período antes de sua venda. No entanto, um choque adverso como o atual é uma quebra estrutural, ou seja, ele pode deteriorar as condições financeiras de uma empresa que não necessariamente vinha tendo problemas no passado. Em outras palavras, o conteúdo informacional do passado cai e deixa de ser um bom previsor para o futuro. Nossa proposta contorna esse ponto, pois propõe como base de comparação um limite inferior de uma distribuição de probabilidade.

Em suma, considerando a gravidade da crise econômica, a expectativa de que muitas empresas irão enfrentar dificuldades financeiras, que a venda para concorrentes poderá ser uma alternativa de saída não estratégica do mercado e que há muita incerteza em relação à aplicação da failing firm defense, sugerimos que um mecanismo de screening como o que propomos seja adotado pelo CADE.

Por último, mas não menos importante, destacamos que esse é um instrumento para ser usado em situações excepcionais, do tipo cisne negro, quando há uma forte retração da economia.


[1] Ato de Concentração nº 08700.004163/2017-32.

[2] Ato de Concentração nº 08700.007553/2016-83.

[3] Ato de Concentração nº 08700.002084/2016-14.

*

[*] Doutor em Economia. Foi Conselheiro e Presidente Interino do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: mdeoliveirajr@crai.com

[**] Doutor em Economia. Foi Economista-Chefe do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: luiz.esteves@pakt.com.br

Análise de Atos de Concentração sem Delimitação de Mercado Relevante Antitruste

Luiz Alberto Esteves

Em janeiro de 2021 foi publicada na prestigiosa publicação acadêmica Review of Industrial Organization uma edição especial, intitulada “The 2010 Horizontal Merger Guidelines After 10 Years”. A edição especial traz uma coletânea de artigos que busca avaliar a experiência acumulada da análise de atos de concentração (AC’s) nos EUA após dez anos da publicação do Horizontal Merger Guidelines (2010 Guidelines) do U.S. Department of Justice (DOJ) e do Federal Trade Commission (FTC).

Tal documento equivale ao Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, que é uma publicação mais recente (2016), cuja elaboração foi influenciada pelas inovações trazidas pelo Horizontal Merger Guidelines norte-americano de 2010. Como os EUA acumulam maior tempo de experiência com tais inovações, importante acompanharmos qualquer discussão acerca de avaliações de impacto. Contudo, este não é o objetivo de análise do presente artigo.

Em ambos os casos – EUA e Brasil – a publicação de tais documentos representou uma atualização de versões pretéritas. No caso dos EUA, a versão de 2010 substituiu a versão de 1997. No caso do Brasil, a versão de 2016 substituiu a Portaria Conjunta SEAE-SDE n 50 de 01/08/2001. As inovações introduzidas com as novas versões foram substanciais para ambos os casos.

Considero que a maior destas inovações tenha sido a discussão metodológica em torno da possibilidade de análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste. Pelo teor dos artigos publicados na edição especial da Review of Industrial Organization, parece que esse aspecto também tenha sido considerado especialmente importante para aquela jurisdição.

Para muitos profissionais que militam na área concorrencial, a ideia de uma análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste soa bastante desconfortável. Por outro lado, para um grupo menor de profissionais, formado majoritariamente por economistas, essa possibilidade parece ser bastante atrativa. O principal documento de referência para este segundo público não é exatamente o Horizontal Merger Guidelines de 2010, mas um artigo bastante influente de autoria de Joseph Farrell e Carl Shapiro, intitulado “Antitrust Evaluation of Horizontal Mergers: An Economic Alternative to Market Definition”, publicado também em de 2010 no periódico acadêmico The B.E. Journal of Theoretical Economics, Volume 10 (1).

Ambos os autores são professores do departamento de economia da Universidade da Califórnia, Berkeley e na ocasião da publicação (2010) vinham exercendo diferentes posições nos altos escalões das estruturas hierárquicas do FTC e do DOJ. A proposta fundamental do artigo foi servir como material de insumo para as discussões em torno da elaboração da nova versão Horizontal Merger Guidelines, que viria a ser publicada naquele mesmo ano.

Farrell e Shapiro buscavam endereçar algumas das limitações da análise econômica de AC’s baseada nas noções de mercados relevantes, índices de concentração e testes do monopolista hipotético (denominaremos essa modelagem analítica de TMH). Adicionalmente, trouxeram métodos alternativos de análise, com destaque para o modelo Upward Pricing Pressure (UPP). O objetivo não era substituir a modelagem TMH pela modelagem UPP, mas introduzir um novo conjunto de ferramentas analíticas alternativas e complementares.

Neste sentido, faz-se necessário compreender as razões pelas quais a modelagem UPP conseguiu angariar entusiastas ao redor do mundo. Em termos práticos, um dos principais “testes de estresse” de qualquer autoridade concorrencial é chegar a uma decisão sobre um AC quando não há consenso dentro da própria autoridade acerca da correta ou adequada delimitação do mercado relevante antitruste.

O problema é que os mercados são entidades abstratas, onde são realizadas trocas de bens e serviços, que nem sempre podem ser facilmente discriminadas e alocadas dentro de grupos taxonômicos bem definidos (com base em produto e geografia). Nestes casos, a imposição de alguma regra discricionária costuma ser necessária. Em muitas ocasiões esse procedimento costuma funcionar muito bem, principalmente em AC’s sumários. Por outro lado, em um pequeno número de situações (uma fração dos AC’s complexos), esse procedimento pode implicar em elevado grau de incerteza e frustração. Um segundo problema é que isso costuma ocorrer nos AC’s de maior projeção e visibilidade. Não são raras as situações nas quais o público leigo interpreta tais excepcionalidades como uma fragilidade técnica recorrente por parte das autoridades concorrenciais.    

Ainda a respeito das dificuldades relacionadas à delimitação de mercados relevantes, tomemos como exemplo o caso da classificação oficial das atividades econômicas. Periodicamente os birôs oficiais de estatística atualizam suas classificações (internacionalmente harmonizadas) setoriais por atividades econômicas, agregando cada vez mais segmentos novos de negócios. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão responsável pelas atualizações da classificação nacional de atividades econômicas (CNAE).

Por exemplo: em 1994 a versão CNAE 1.0 (publicada no Diário Oficial da União em 26/12/1994) era constituída de 17 seções (A-Q). Já a versão CNAE 2.0 (Resolução Concla 01/2006 publicada no Diário Oficial em 05/09/2006) de 2006 trouxe 21 seções (A-U). Em suma: ao longo de 12 anos foram adicionadas 4 novas seções com centenas de novas subclasses de atividades econômicas[1]. Parte desse adicional é representado pela introdução de novos mercados, até então não existentes. Isso é fruto das inovações tecnológicas, evidentemente.

Mesmo reconhecendo que os mercados relevantes antitruste não necessariamente guardam uma relação direta com as CNAE’s, o desafio metodológico em classificar atividades econômicas e mercados relevantes é bastante similar. Uma diferença importante é que os birôs de estatística costumam recorrer à rubrica classificatória de “Outros”, quando estão em “apuros”. Já as autoridades antitruste se esforçam em garantir que cada um dos AC’s analisados tenham os seus mercados relevantes antitruste devidamente delimitados. Se tais delimitações seguirem a jurisprudência, melhor para a autoridade[2].

Uma outra limitação importante na modelagem TMH é que ela carrega uma hipótese implícita bastante restritiva, que deriva do cálculo do índice de concentração de Herfindahl-Hirschman (HHI). Suponha que um mercado relevante antitruste seja delimitado com três empresas (X, Y e Z), cada uma com 1/3 do mercado. O HHI neste caso hipotético seria de 3.334 pontos. Já os eventuais Delta HHI’s decorrentes dos AC’s envolvendo as empresas X e Y; ou Y e Z; ou X e Z; seriam exatamente os mesmos, sugerindo assim que qualquer um destes AC’s implicaria em efeitos unilaterais e coordenados muito similares.

Suponha agora que quando a empresa X eleva seu preço em 2%, sua demanda é reduzida em 100 unidades, sendo desviada de forma integral para seus dois concorrentes, Y e Z. Adicionalmente, suponha que 67 unidades destas 100 unidades sejam desviadas para a empresa Y e 33 unidades para a empresa Z. O exemplo sugere que, mesmo que cada empresa disponha de uma parcela idêntica de mercado, isso não assegura que sejam competidores simétricos, tampouco que a rivalidade exercida de Y sobre X seja igual a rivalidade exercida de Z sobre X. Logo, um AC envolvendo as empresas X e Y traria implicações completamente diferentes daquelas decorrentes de um AC entre X e Z. As análises de HHI e Delta HHI não são capazes de capturar essa assimetria de rivalidade entre players dentro de um mesmo mercado relevante. Tampouco é fácil identificar claramente quando um determinado nível de assimetria entre os diferentes players justifique a redefinição do mercado relevante.

A grande contribuição de Farrell e Shapiro (2010), com seu modelo UPP, foi ter trazido um instrumental analítico alternativo, que dispensa a delimitação de mercados relevantes antitruste, bem como o uso de medidas de concentração, tais como o HHI. A metodologia UPP busca inferir a pressão de preço decorrente de um AC por meio de estimativas estatísticas e econométricas das taxas de desvio (diversion ratios). Essa taxa de desvio (diversion ratio) é definida, por exemplo, como a proporção da demanda desviada do produto X e capturada pelo produto concorrente Y, em resposta de um aumento de preço do produto Y.

Não parece haver muita divergência entre os economistas de que a modelagem UPP é um recurso bastante potente, uma vez que providencia estimativas customizadas de pressão de preços para cada um dos AC’s sob escrutínio da autoridade. Outra vantagem da modelagem UPP é sua versatilidade, pois pode ser aplicada a qualquer tipo de modelo de estrutura concorrencial em oligopólio. Foi originalmente concebida para ser utilizada em modelos de competição preço com produtos diferenciados (Bertrand Competition), mas pode ser igualmente utilizada em modelos de competição em quantidades com produtos homogêneos (Cournot Competition).

Se por um lado, a potência e versatilidade da modelagem UPP a torna muito mais atrativa que qualquer modelo baseado na modelagem TMH; por outro lado, seria economicamente inviável para qualquer autoridade antitruste usá-la em larga escala em suas análises de AC’s. A modelagem UPP demanda coleta de informações pormenorizadas e séries históricas de receitas, custos, quantidades e preços de ambas as partes do AC, além de outras informações complementares de mercado. Adicionalmente, faz-se necessária a estimativa econométrica das demandas e elasticidades próprias e cruzadas, o que não é uma tarefa das mais triviais, até mesmo para as autoridades mais bem preparadas e equipadas com recursos humanos e materiais. 

Mesmo com suas limitações, as análises baseadas em mercado relevante, HHI’s e TMH parecem atender de forma bastante satisfatória (com baixo custo e parcimônia analítica) a grande maioria dos AC’s analisados pelas autoridades concorrenciais ao redor do mundo. Contudo, para uma minoria de casos de grande complexidade, tal instrumental analítico tende a perder potência pelos motivos já mencionados anteriormente. Para essa minoria de casos complexos, a utilização da modelagem UPP como recurso analítico complementar parece ser o protocolo mais adequado a ser seguido pelas autoridades concorrenciais.


[1] Uma CNAE é representada por diferentes níveis de agregações setoriais, sendo Seção, Divisão, Grupo, Classe e Subclasse. Exemplo: Seção A – AGRICULTURA, PECUÁRIA, PRODUÇÃO FLORESTAL, PESCA E AQÜICULTURA; Divisão 01 – AGRICULTURA, PECUÁRIA E SERVIÇOS RELACIONADOS; Grupo 01.1 – Produção de lavouras temporárias; Classe 01.11-3 – Cultivo de cereais; e Subclasse 0111-3/01 – Cultivo de arroz.

[2] Imagino que nesse ponto o leitor já tenha percebido que o argumento de jurisprudência na delimitação de mercados relevantes costuma causar bastante estranheza e desconforto entre estatísticos e economistas habituados com discussões acerca das atualizações periódicas do sistema internacional harmonizado de classificação de atividades econômicas.

A política concorrencial e a economia das cooperativas e associações

Luiz Alberto Esteves

Um dos principais desafios das autoridades antitruste ao redor do mundo é julgar casos de conduta em mercados de saúde suplementar, principalmente casos envolvendo condutas anticompetitivas por parte de associações e cooperativas de profissionais médicos. As investigações e punições nestes casos têm se concentrado em três tipos de condutas anticompetitivas: (i) tabelamento de preços; (ii) negociações entre cooperativas de especialidades médicas e operadoras de planos de saúde; e (iii) unimilitância, que envolve a exigência por parte das associações e cooperativas da exclusividade na oferta de serviços por seus associados.

Essa temática recebe atenção crescente ao redor do mundo por conta da rápida reestruturação destes mercados nas últimas décadas, motivada principalmente pelos custos crescentes dos tratamentos médicos, seja por conta da crescente introdução de inovações tecnológicas, seja por conta da rigidez da oferta de profissionais altamente especializados nas áreas médicas. O desdobramento foi o crescimento exponencial do mercado de financiamento de saúde suplementar (o primeiro elo da cadeia da saúde complementar).

Os seguros são acionados quando os consumidores demandam serviços médicos no segundo elo da cadeia de saúde suplementar, formado pelos pacientes demandantes e pelos médicos ofertantes dos serviços. Contudo, os honorários pela remuneração dos serviços médicos neste mercado são negociados entre os médicos e as operadoras ofertantes de planos e seguros de saúde.

A implicação é que os honorários médicos estarão sujeitos a um processo de barganha, em que a parte que dispuser de maior poder de mercado (leverage) terá maior probabilidade de captura de frações maiores dos lucros gerados ao longo da cadeia de saúde suplementar. Por conta disso, a prática autônoma entre os profissionais da medicina tem se reduzido significativamente em favor de estruturas organizacionais cooperadas ou associativas. Tal argumento fornece as bases para a tese de defesa das cooperativas médicas junto às autoridades antitruste em casos de condutas anticompetitivas, ou seja, a tese do poder compensatório.

Por outro lado, há um conjunto de argumentos que fornecem as bases para a acusação de conduta anticompetitiva por parte de cooperativas médicas. Os principais argumentos são: (i) não há poder de mercado a ser compensado, uma vez que a concentração de mercado no mercado de operadores de planos de saúde é pequena; (ii) a maioria das cooperativas de especialidades médicas está localizada em grandes centros urbanos, onde a oferta de profissionais altamente especializados é bem maior do que em regiões menos densamente povoadas; e (iii) a tese do poder compensatório tem seus efeitos pouco conhecidos na literatura econômica.

O objetivo aqui é abordar esta temática sob uma perspectiva completamente diferente. Uma das limitações da análise econômica antitruste é tentar reproduzir, na integra, o mesmo arcabouço analítico comumente utilizado em relações competitivas (horizontais ou verticais, de concentração ou de conduta) envolvendo empresas comerciais (a partir daqui denominadas firmas capitalistas convencionais) para o caso de relações competitivas envolvendo associações, cooperativas de profissionais ou empresas gerenciadas pelo fator trabalho (a partir daqui denominadas firmas cooperadas).

Seria desejável que as autoridades e os profissionais da área de política da concorrência analisassem e endereçassem os casos de concentração e conduta por parte de cooperativas ou associações de profissionais tomando como referência a literatura econômica específica e especializada sobre o tema, aqui denominada de Economia das Firmas Cooperadas (ou Economia das LMFs ou Economia da Firma Democrática)[1].

Assim como todos os demais ramos da Economia, há controvérsia entre os principais autores desta linha de pesquisa, porém num aspecto todos parecem concordar: os incentivos das firmas capitalistas convencionais são completamente diferentes das firmas cooperadas. A literatura econômica tem despendido décadas de esforço analítico para fornecer argumentos teóricos e evidências empíricas minimamente satisfatórias para responder as seguintes questões: Qual a diferença entre o fator capital contratar o fator trabalho e o trabalho contratar o capital? Por que é mais comum encontramos o capital contratando o trabalho e não o contrário? A firma capitalista convencional é mais eficiente que a firma cooperada? As firmas cooperadas são capazes de suavizar ciclos econômicos?

Como já mencionado, o tema é repleto de controvérsias entre os vários estudiosos sobre o assunto, mas um segundo aspecto também parece ser unânime entre os economistas: em equilíbrio walrasiano, com mercados perfeitamente competitivos e completos, com informação perfeita e ausência de externalidades, não haveria qualquer diferença de incentivos entre uma firma capitalista convencional e uma firma cooperada, ou seja, seria completamente indiferente o capital contratar o trabalho, ou o trabalho contratar o capital.

Do parágrafo acima podemos concluir que a única situação na qual podemos colocar firmas capitalistas convencionais e firmas cooperadas em condições de similaridade analítica é exatamente quando a análise antitruste é teoricamente irrelevante e desnecessária, ou seja, sob condições de concorrência perfeita.

Sobre esse ponto é importante lembrar que todo o projeto de pesquisa envolvendo a análise de estrutura-conduta-desempenho (E-C-D) foi construído tendo em mente os incentivos que norteiam as ações das firmas capitalistas convencionais, ou seja, baseado na noção da maximização dos lucros por parte das firmas. Isso não significa que os cooperados também não queiram auferir o maior rendimento possível, mas neste caso, os interesses individuais são subordinados ao interesse coletivo. Em termos econômicos, isso significa dizer que nestes casos os recursos não são alocados pela lógica descentralizada dos mercados, denominada por Adam Smith como “mão invisível”, mas pela lógica da ação coletiva.

Um ponto importante acerca da distinção entre estes dois tipos de organizações diz respeito às suas funções objetivo: as firmas capitalistas convencionais tendem a perseguir a maximização do lucro econômico, enquanto as firmas cooperadas tendem a buscar a manutenção da estabilidade do emprego e do produto (em face às variações de preços e demais choques).

Em termos práticos e empíricos, isso significa que as empresas cooperadas tendem a apresentar uma curva de oferta praticamente inelástica (curva de oferta vertical), enquanto as firmas capitalistas tradicionais tendem a apresentar uma curva de oferta padrão (curva de oferta ascendente). Acerca deste ponto, o leitor perceberá que a hipótese de constituição de falsas cooperativas (cooperativas que se comportam como firmas capitalistas tradicionais) com objetivos meramente anticompetitivos pode ser testada empiricamente, por meio da estimativa da inclinação da curva de oferta da firma cooperada. Portanto, faz-se necessário alertarmos para o fato de que o uso de referencial teórico e analítico inadequado para a análise de condutas envolvendo firmas cooperadas pode aumentar significativamente as probabilidades de ocorrência de erros do tipo I e erros do tipo I


[1] Autores de tradição neoclássica e novo-institucionalista denominam tais tipos de empresas como LMFs (labor-managed firms). Já economistas de tradição marxista, tais como os marxistas analíticos e economistas radicais denominam tais empresas como firmas democráticas.

Economia digital, antitruste e identificação de mavericks

Luiz Alberto Esteves

Grandes avanços tecnológicos nas últimas décadas têm proporcionado o advento do que hoje denominamos de Economia Digital, também conhecida como Nova Economia. Trata-se de uma economia totalmente baseada em tecnologias de computação digital. Uma caracterização pormenorizada da Economia Digital pode ser encontrada em Neto, Bonacelli & Pacheco (2020)[1], que trabalham com a noção de Sistema Tecnológico Digital, formado pelo cluster Inteligência Artificial, Computação em Nuvem e Big Data.   

O desenvolvimento dessa Economia Digital tem proporcionado a criação de um número crescente de novos modelos de negócios, muitos deles amparados em inovações disruptivas, desenvolvidas à margem das disputas concorrenciais que costumam envolver os grandes incumbentes com modelos de negócios tradicionais. Um exemplo tem sido a atual dinâmica da indústria bancária e financeira constituída, por um lado, pelos grandes conglomerados incumbentes e, por outro lado, pela proliferação de Fintechs (empresas que desenvolvem soluções financeiras totalmente digitalizadas).

Tal movimento tem implicações óbvias e imediatas para discussões regulatórias e concorrenciais. Esse movimento tem causado bastante entusiasmo entre consumidores, autoridades, reguladores e formuladores de políticas públicas. Acredita-se que essa concorrência adicional, trazida por Startups e Fintechs, proporcionará amplas vantagens e benefícios aos consumidores, seja na forma de mais opções de escolhas, seja na melhor qualidade de serviços e preços menores. Mesmo considerando o fato de que soluções disruptivas também possam ser desenvolvidas e trazidas ao mercado por grupos econômicos da Economia Digital (Bigtechs), muito maiores que os incumbentes (grandes bancos e seguradoras, por exemplo), as razões para entusiasmo não são infundadas.

Reguladores têm colaborado ativamente com esse movimento. No caso brasileiro, por exemplo, O Banco Central do Brasil tem apostado na agenda do Open Banking e do Open Finance. O Open Banking, por exemplo, possibilita que usuários de produtos e serviços bancários possam compartilhar suas informações com diferentes instituições. Trata-se de uma medida de enorme impacto para a competição bancária, pois um dos principais ativos de um banco é seu acervo de dados de clientes, principalmente as informações que orientam as decisões de concessão de crédito, tais como os 5 C’s (caráter, capacidade, capital, condições e colateral).

O cenário parece bastante alvissareiro para os consumidores. Contudo, quando tratando de formulação de políticas públicas, cabe sempre lembrarmos de duas importantes citações. A primeira é atribuída à John Heywood, poeta inglês do século XVI: “Um homem pode muito bem levar um cavalo até a água, mas ele não pode obrigá-lo a bebê-la”. A segunda é comumente citada como um provérbio alemão: “O diabo mora nos detalhes”. A combinação dessas duas citações sugere que algo bastante alvissareiro pode se transformar em desapontamento e frustração.

Bom, é praticamente impossível anteciparmos todas as contingências que possam implicar em desapontamentos e frustrações. Contudo, nestas circunstâncias, cabe buscarmos o maior número de “pontos cegos” possíveis, ou seja, aqueles detalhes que possam escapar da visibilidade dos formuladores da política pública.

Uma possível fonte de desapontamento e frustração nestes casos pode originar-se do controle de concentrações por autoridades concorrenciais. Por exemplo, uma fração importante de inovadores disruptivos pode ser adquirida pelos próprios incumbentes (grandes instituições bancárias e financeiras, por exemplo), ou por grandes grupos econômicos de tecnologia (Bigtechs), enquanto ainda são empresas pequenas com modelos de negócios incipientes. Tais tipos de operações podem “escapar do radar” das autoridades antitruste, uma vez que as variações de concentração de mercado (Delta HHI) nestes casos costumam ser muito marginais.

Os guias de análise de atos de concentração das principais autoridades antitruste ao redor do mundo não são omissos quanto a esta temática, que costuma ser abordada no tópico “Eliminação de Mavericks”[2]. Contudo, há uma grande distância entre não ser omisso e providenciar um protocolo muito claro de como lidar com tais situações (o que não é nada fácil, definitivamente).  Essa dificuldade é abordada de forma bastante precisa por OWINGS (2013)[3], em artigo intitulado “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”. O autor sugere o uso da Teoria da Inovação Disruptiva, desenvolvida originalmente por Clayton M. Christensen[4], para a identificação de comportamentos econômicos e estratégicos condizentes com a definição dos guias antitruste para Mavericks.

A proposta de OWINGS (2013) é bastante promissora, ao mesmo tempo em que a urgência para lidarmos com esse problema é crescente. O fato é que a medida de Delta HHI pode providenciar um teste de triagem (screening test) bastante poderoso para uma ampla maioria de atos de concentração. Contudo, seu poder pode ser bastante reduzido quando tratamos com fusões e aquisições no âmbito da Economia Digital. Talvez tenhamos que buscar soluções igualmente inovadoras para lidarmos com regulação e concorrência nestes mercados.    

[1] Neto, Bonacelli & Pacheco (2020). “O Sistema Tecnológico Digital: inteligência artificial, computação em nuvem e Big Data”, Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 19, e0200024: p. 1-31.

[2] Seção 4.3.1. (pág. 51) do Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE. O Guia define Mavericks como empresas “que apresentam um nível de rivalidade do tipo disruptivo. Geralmente são empresas com um baixo custo de produção e uma baixa precificação que força os preços de mercado para baixo ou empresas que se caracterizam por sua inventividade e estimulam a permanente inovação no segmento em que atuam. Nesse sentido, sua presença independente no mercado pode disciplinar os preços das empresas com maior market share”.

[3] Owings (2013). “Identifying a Maverick: When Antitrust Law Should Protect a Low-Cost Competitor”, Vanderbilt Law Review, 66 (1): p. 323-354.

[4] Christensen (2012). O Dilema da Inovação: Quando as novas tecnologias levam empresas ao fracasso. M. Books Editora: São Paulo, SP.

Regulação e Empreendedorismo: as duas faces de uma mesma moeda

José Américo Cajado de Azevedo*

Abrem-se as cortinas. Cena 1. Frédéric Bastiat, um expoente entre os economistas franceses, com um viés liberal e intimamente associado à defesa da liberdade do indivíduo contra toda espécie de autoridade, especialmente a estatal, em 1850, alguns meses antes de sua morte, escreveu[1]:

Os órgãos sociais também são constituídos de modo a se desenvolver harmonicamente ao ar livre. Fora com os curandeiros e organizadores! Fora com seus anéis, suas correntes, seus ganchos e suas tenazes! Fora com seus métodos artificiais! Fora com suas obras públicas, seus falanstérios, seu governamentalismo, sua centralização, seus impostos, suas escolas públicas, suas religiões oficiais, seus bancos gratuitos ou monopolizados, suas regras, suas restrições, sua moralização e sua equalização pelos impostos.

Na mesma toada vociferou: “[q]ue se rejeitem os sistemas; que se coloque, por fim, a liberdade à prova”. Eloquente manifestação para um tema que, embora garganteado outrora, ainda encontra insistente eco no pensamento contemporâneo em relação ao papel do Estado e da sociedade nas definições econômicas. Fim do ato.

Cena 2. O Governo Federal brasileiro criou, em 1962, uma autarquia, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), vinculada ao Ministério da Justiça, com atribuições mais modernamente definidas pela Lei nº 12.529/2011, cuja missão é “zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência[2]. Cai o pano.

Como conciliar a livre iniciativa extrema pregada nos grotões ultraliberais com a ação intervencionista estatal que fiscaliza a concorrência? Esse é, ao fim e ao cabo, o dilema que se apresenta, em estado bruto, para se buscar o ponto de equilíbrio entre a ação privada e governamental, no que se refere ao empreendedorismo nos dias atuais.

É senso comum, apoiado em evidências, que empreender em nosso país atrai, per si, uma carga de responsabilidades e compromissos que somente alguns poucos players estruturados terão condições de suportar e superar as agruras que serão submetidos nas questões concorrenciais, tributárias, trabalhistas, dentre tantas outras que se apresentarão no deslinde das atividades.

Inovações legislativas, muitas vezes imbuídas de um aspecto de proteção aos direitos fundamentais, aparecem descontextualizadas, trazendo, não obstante o valor social, e porque não humanitário, uma oneração desmesurada para o empreendedor, em boa parte das vezes, modesto trabalhador que busca uma forma de realizar uma legítima atividade profissional.

Neste condão, projetos de lei são apresentados com o fito de proporcionar ao cidadão benefícios pontuais, eventualmente importantes, mas que não têm uma visão sistêmica da estruturação econômica em que estão inseridos. Transformam-se, dessa forma, em extravagâncias demagógicas que, diversamente de trazer proveitos ao cidadão, penaliza-o, indiretamente, ainda mais.

Assim, por exemplo, traz-se à lume os projetos de lei: (i) PL 2637/2011[3], que “[i]nstitui a obrigatoriedade de ascensorista em edificações comerciais e prédios públicos não residenciais com elevador”; ou (ii) o PL 1838/2020[4] que “[d]ispõe sobre a obrigatoriedade de higienizar ambientes fechados de acesso coletivo e áreas públicas e privadas, para reduzir o risco de transmissão de doenças infectocontagiosas e dá outras providências”.

Ainda mais acentuada a imisção de parcela do Legislativo na livre iniciativa, chega ao ponto de propor um esdrúxulo projeto de lei que visa a proibir o uso de nome de empresas em expressões de língua estrangeira (PL 5632/2020)[5].

Na via inversa, no entanto, setores liberais, inclusive com representação no Congresso Nacional, se organizam a fim de “desregular a regulação”, ou seja, instituir ordenamentos que desonerem os que empreendem em uma atividade econômica. Exemplo disso é o Projeto de Lei Complementar 217/2020 institui o Código de Defesa do Empreendedorismo[6], que estabelece direitos e deveres para o microempreendedor no desenvolvimento da atividade econômica, de modo a modificar o Estatuto da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006).

A proposta estabelece como direitos básicos das empresas a interpretação mais favorável das normas relativas ao poder de polícia; a presunção de baixo grau de risco para todas as suas atividades econômicas; a disponibilização de canal de atendimento na internet para a realização de todos os atos necessários à legalização, inclusive para obtenção de protocolos, certidões, licenças, permissões e alvarás, dentre outros.

Com o propósito de fomentar a discussão sobre o tema, congressistas se organizam em frentes parlamentares como a da Micro e Pequena Empresa, a do Setor de Serviços, a do Comércio, Serviços e Empreendedorismo, para o Desenvolvimento Regional Sustentável, de Apoio ao Mercado de Varejo e E-Commerce, em Defesa da Desoneração da Folha de Pagamento, do Brasil Competitivo, do Empreendedorismo, dentre tantas outras. É a maneira, por conceito, mais democrática de construção de esforços, uma vez que cada parlamentar foi eleito diretamente pela população com um propósito programático e ideológico que irá perseguir dentro do Congresso.

É possível observar o interesse que o assunto desperta, já que se trata de matéria que afeta intrinsecamente toda a economia do país. Poder-se-ia discutir, interminavelmente, a respeito do liberalismo extremado versus o intervencionismo estatal, sob a ótica dos sistemas econômicos que deveríamos estar inseridos ou do tamanho do Estado na vida dos cidadãos. Porém, o que se extrai de uma análise desapaixonada é que – mais uma vez – o ideal é perseguir o conceito budista do caminho do meio.

O viés liberal, confiando nos impulsos capitalistas do mercado, e adotando a cultura estadunidense do self made man – que em tradução livre pode ser compreendido como o homem que se fez por si mesmo, por conta própria –, pressupõe que a meritocracia irá sobrepujar todas as condicionantes estruturais adversas que serão apresentadas ao empreendedor, mesmo ao se deparar com barreiras, pernósticas especialmente para os de menor poder concorrencial. Não leva em consideração, portanto, as desigualdades preexistentes ou mesmos as assimetrias, informacionais ou procedimentais, que permeiam o ambiente econômico.

Assim, não se pode ter a ilusão de que exista, em qualquer local do universo social e econômico, uma possibilidade de igualdade de oportunidades, onde o empreendedor encontrará terreno fértil para o estabelecimento de suas premissas comerciais, em iguais condições com todos os players do mercado. Esse é o mundo real, distante da utopia da plena concorrência e do livre mercado!

Em outro sentido, deleitam-se os defensores do Estado protetor, com tendências intervencionistas, imaginando que é possível, tal como fantasiado por George Orwell em seu clássico 1984, um Grande Irmão comandando os andares da economia e, por fim, da ampla iniciativa.

O porto seguro, mais uma vez e sempre, é o equilíbrio!

A liberdade empreendedora, e aqui vale o reforço à palavra liberdade, deve ser constantemente perseguida. Não é admissível, dentro de um sistema democrático, o tolhimento àqueles que buscam empreender, e que trazem, sem qualquer dúvida, benefícios para a sociedade e para o mercado em sentido lato.

Por outro lado, porém, a adequada estruturação do sistema concorrencial não permite prescindir da atuação estatal, coibindo práticas anticompetitivas que poluem o ambiente de negócios e afetam, prejudicialmente, a economia do país. Deste modo, a visão regulatória refreando ações anticoncorrenciais, eliminando barreiras a novos entrantes, estimulando práticas comerciais que beneficiem o consumidor final, deve ser amplamente adotada e encorajada, pois, em sua essência, o Estado é responsável por propiciar o melhor ambiente para o desenvolvimento de negócios, atuando ou se abstendo de atuar diretamente.

A partir da perspectiva atribuída a Voltaire de que “quand je peux faire ce que je veux, voilà la liberté” (quando posso fazer o que quero, eis a liberdade), F. A. Hayek[7], clássico economista liberal alemão, ponderou:

A questão, pois, é como garantir a maior liberdade possível a todos. Isto pode ser feito restringindo uniformemente a liberdade de todos por meio de regras abstratas que evitem a coerção arbitrária ou discriminatória de ou por outras pessoas e impedem cada um de invadir a esfera de liberdade de qualquer outro. Em suma, fins concretos comuns são substituídos por regras abstratas comuns. O governo é necessário apenas para fazer valer essas regras abstratas e, por meio delas, proteger o indivíduo contra a coerção, ou a invasão da sua esfera de liberdade, por outros.

Humberto Ávila[8] complementa com uma interessante análise sobre o papel do Estado:

(…) o Estado também assume a tarefa de induzir o comportamento dos cidadãos para que se conformem às finalidades públicas. Ultrapassa-se, pois, uma concepção de Estado Liberal, passa-se pelo Estado Providência (gerador de prestações), pelo Estado Propulsivo (fixador de planos) e pelo Estado Reflexivo (fixador de programas), para se chegar ao Estado Incitador (produtor de influências), em cujo âmbito estão estabelecidos vínculos de coordenação e de cooperação.

Remetendo a uma perplexidade praticamente existencial, temos as reflexões acerca de quem é o Estado; o que esperamos dele; e qual deve ser seu tamanho. Essas perguntas, comumente respondidas de acordo com as oportunidades e as conveniências, são fulcrais para a percepção do que se quer para o futuro do nosso país.


[1] BASTTIAT, Frédéric (1801-1850). A lei: por que as esquerdas não funcionam? As bases do pensamento liberal. Trad.: Eduardo Levy.Barueri-SP, Faro Editorial, 2016.

[2] Disponível em https://www.gov.br/pt-br/orgaos/conselho-administrativo-de-defesa-economica#:~:text=O%20Cade%20tem%20como%20miss%C3%A3o,a%20cultura%20da%20livre%20concorr%C3%AAncia. Acessado em 12.10.2021.

[3] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/526012. Acessado em 12.10.2021.

[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2248001. Acessado em 12.10.2021.

[5] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2267965. Acessado em 12.10.2021.

[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2260548. Acessado em 12.10.2021.

[7] HAYEK, Friedrich A. von (1899-1992). Os erros fatais do socialismo. Trad.: Eduardo Levy. Barueri: Faro Editorial, 2017.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

O Sistema de Relevância no STJ: uma evolução ou mais do mesmo?

José Américo Cajado de Azevedo*

O Senado Federal aprovou no último dia 03 de novembro em dois turnos, a PEC 10/2017, conhecida como PEC da Relevância, que cria um filtro para a admissão dos recursos especiais que serão julgados pelo STJ.

Em 23/08/2012, os deputados Rose de Freitas e Luiz Pitiman apresentaram à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012 acrescentando o § 1º no artigo 105 da Constituição Federal, que trata da competência do Superior Tribunal de Justiça, enunciando a necessidade de demonstração da relevância de questões de direito federal infraconstitucional para admissibilidade de recurso especial.

No ano seguinte, o Senado Federal apresentou uma PEC, com idêntico teor, inclusive referenciando-se à proposta da Câmara em sua justificação, que recebeu o nº 17/2013. Em 2017, a PEC da Câmara foi aprovada naquela Casa, subindo para o Senado sob o nº 10/2017. Ao final de 2018 a PEC nº 17/2013 foi arquivada devido ao encerramento da legislatura, não afetando, porém, a tramitação da PEC nº 10/2017.

Uma primeira ponderação que merece ser examinada se refere à razoabilidade da iniciativa, uma vez que o STJ se encontra abarrotado de processos, devido à facilidade de acesso ao julgamento do tribunal e à ausência de filtro que selecione as demandas realmente pertinentes que merecem uma nova análise. Somente em 2019 o STJ recebeu mais de 384 mil processos, tendo sido proferidas quase 504 mil decisões terminativas. Em uma aritmética elementar, dividindo-se as decisões pela quantidade de ministros, tem-se a disparatada média de mais de 15 mil decisões por ministro somente em um ano, sem se considerar eventuais vacâncias ou ausências de ministros, posições de direção no Tribunal, dentre outros fatores, o que elevaria este número.

Assim, merece atenção a necessidade de implementação de um instituto que desafogue esse ônus, permitindo uma prestação jurisdicional de melhor qualidade, em benefício da coletividade. Neste aspecto, o Supremo Tribunal Federal, bem como o Tribunal Superior do Trabalho já possuem ferramentas para a otimização da carga laboral.

No TST, o instituto da transcendência foi instalado a partir de lei ordinária, inicialmente através da Medida Provisória nº 2.226/2001 e regulamentada pela Lei nº 13.467/2017. Não foi necessária uma Emenda Constitucional para criar o filtro utilizado na corte trabalhista. Ficou assim definida:

§ 1º São indicadores de transcendência, entre outros:

I – econômica, o elevado valor da causa;

II – política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal;

III – social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado;

IV – jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista.

Observa-se a intenção do legislador em deixar expressa sua proposta, definindo, com clareza, o que deve ser verificado na análise. Ainda assim, por razões ideológicas ou pela falta de entendimento do fundamento do artigo, subverte-se a essência do comando, não sendo aplicado de maneira uniforme nos 27 gabinetes do Tribunal.

A louvável iniciativa de inserção do instituto da justiça trabalhista, próximo ao writ of certiorari estadunidense, esbarra em questões operacionais que pervertem seu sentido, empobrecendo a prestação jurisdicional e, ao contrário de trazer alguma segurança jurídica, se transforma, muitas vezes, em uma loteria, cujo ganhador é aquele que tem seu recurso de revista admitido.

Somente à guisa de exemplo, existem ministros que defendem que a hipossuficiência de um empregado reclamante é suficiente para impulsionar o recurso de revista sem a análise do valor da causa como quer a lei, ou seja, todo empregado que ingressar com uma reclamação trabalhista, que tiver reconhecida a hipossuficiência (ao contrário do “elevado valor da causa” como disposto na legislação) e que, porventura, tenha seu processo alçado em sede de recurso de revista, este terá sua transcendência econômica e social reconhecida. Põe-se por terra a existência do instituto da transcendência.

No STF, a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário inserida constitucionalmente através da EC nº 45/2004 foi, ainda, regulamentada pelo CPC em seu artigo 1035, que se encontra transcrito, secundado pelo regimento Interno do STF no artigo 322.

Código de Processo Civil

Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.

§ 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.

Observa-se que, embora diga quais são os aspectos – em sentido amplo – que devem ser analisados como expressivos, o regulamento não define parâmetros objetivos dos critérios para essa verificação, deixando à discricionariedade da Corte a admissibilidade do recurso. Ocorre que, após essa primeira avaliação, alguns temas são alçados a outro patamar – também denominados como afetados em repercussão geral – que irá criar uma maior vinculação à decisão proferida, ou seja, temas com menos ou mais repercussão geral ou, de outra forma, decisões erga omnes.

Tal sistemática cria uma gradação de importância nas decisões emanadas pela Corte Suprema. Não obstante estes dois patamares, algumas decisões ainda se transformam em súmulas, e aquelas mais relevantes em súmulas vinculantes. Esta metodologia acaba por enfraquecer, lato sensu, a força dos julgados do STF, pois, todos os recursos admitidos como extraordinários deveriam possuir o condão de se tornarem vinculantes horizontal e verticalmente. Neste sentido, o Regimento Interno do STF estabelece, em seu artigo 187, que “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”. A hierarquização das decisões acaba por não ser saudável à autoridade do STF como Corte Constitucional.

Demais disso, cabem algumas reflexões a respeito do procedimento proposto na PEC da relevância. Duas questões de importância fulcral saltam aos olhos. A primeira diz respeito à forma como o legislador ordinário irá definir e delimitar o conceito de “relevância”. A segunda é a inaplicabilidade automática e autônoma do comando, na medida em que, ao colocar a expressão “nos termos da lei”, transfere à esfera infraconstitucional a estruturação do regramento. Estes dois pontos são de fundamental pertinência para se implementar o almejado filtro que irá possibilitar desafogar o STJ, permitindo que a Corte se debruce sobre as questões realmente significativas, não se tornando somente um tribunal de terceira instância de temas subjetivos.

Caso o Superior Tribunal resolva aplicar diretamente o comando legislativo, sem que haja uma regulamentação, a possibilidade de uma catástrofe se anuncia. Serão trinta e três cabeças utilizando de uma norma imatura, não em uma reunião colegiada para definir sua aplicação, mas em entendimentos jurisdicionais que darão azo a trinta e três entendimentos, na maioria das vezes díspares.

Há que se refrear o afã da aplicação imediata da norma para que se tenha uma regulamentação que atenda à exegese da PEC, trazendo segurança jurídica e a consequente pacificação social.

Um aspecto de essencial interesse decorrente da aprovação da emenda constitucional, é a definição do que deve ser considerado “relevante”. No STF existe a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. No TST, por sua vez, foi instituída a transcendência, não como requisito formal de admissibilidade, mas como pressuposto prévio necessário ao seguimento do recurso de revista. Além disso, as formas de emprego dos filtros diferem, quer no conceito, quer no procedimento de sua aplicação.

A delimitação do sentido do termo “relevância” para a observância do pretendido instituto é fundamental para a recepção do comando e para seu pleno e satisfatório aproveitamento. Os aspectos a serem analisados, como a relevância econômica, social, política e jurídica, para ombrear aos critérios estabelecidos pelo STF e pelo TST, devem estar plena e objetivamente definidos, de forma a não permitir o conflito de avaliação na admissibilidade do recurso.

Não está a se encouraçar a liberdade de julgamento do magistrado, encapsulando sua autonomia decisória. Porém, como balizador para o filtro, devem ser estabelecidos, claramente, os limites de admissibilidade dos recursos especiais, sob pena de a iniciativa decair por imperfeição em sua utilização. Sem embargo, será, de toda forma, atribuição dos Ministros, em análise de admissibilidade, o pleno acatamento do comando para a obtenção de resultados efetivos.

Há que se observar, porém, que a inação ou a morosidade no procedimento legislativo poderá retardar ou até inviabilizar a ideia. Para se ter um parâmetro a respeito desse assunto, como já mencionado, o instituto da transcendência foi inserido na Consolidação das Leis Trabalhistas em 2001, quando, em seu artigo 896-A, caput, definiu que “[o] Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”. No entanto, somente com o advento da Reforma Trabalhista, em 2017, é que se regulamentou a matéria, ou seja, mais de uma década e meia para que se pudesse dar concretude a uma instrução. Corre-se o risco de se repetir a história, de maneira perniciosa e prejudicial ao Judiciário brasileiro e à sociedade em geral.

Se se analisar que somente para definir que deverá existir o critério de relevância já se transcorreram mais de oito anos, e não se tem uma previsão de quando chegará a termo, pode-se inferir o tempo que será necessário para que o Legislativo apresente e discuta um regramento consolidado e aplicável, capaz de gerar efeitos concretos no mundo da prestação jurisdicional. Há, ainda, um longo caminho a ser percorrido no interior dos salões verde e azul do Congresso Nacional, até que o STJ possa obter a ferramenta necessária para descarregar seus escaninhos de matérias irrelevantes que visam somente a procrastinar o trânsito em julgado de uma decisão, muitas vezes sabidamente desfavorável.

Pode-se observar que cada Tribunal procurou, e vem procurando, dispositivos para desafogar suas prateleiras. Desafortunadamente, essas ferramentas são totalmente diferentes estre si, não havendo uma coordenação para uniformizá-las, fazendo com que em cada Tribunal haja diferentes procedimentos, trazendo a impressão de que, quando se está nos corredores dos tribunais superiores em Brasília, existem vários e distintos Poderes Judiciários. Este, porém, é um tema que merece um capítulo próprio.

A questão da relevância, no STJ, deverá fugir das armadilhas que podem surgir no caminho de sua criação. O diálogo entre os Poderes, de forma institucional, é saudável e em nada afeta os princípios republicanos. O acompanhamento mais próximo da tramitação da PEC junto ao Senado Federal, podendo utilizar-se, inclusive, da isenção do Conselho Nacional de Justiça devido à sua diversificada composição, poderia ser uma medida proativa em benefício do Judiciário.

Além disso, poderia o CNJ enviar ao Congresso Nacional, após a aprovação da PEC, uma sugestão de Projeto de Lei que pudesse balizar os parlamentares quanto aos anseios do Poder Judiciário em relação à aplicação do instituto. Ocorreria uma interação saudável entre os Poderes, visando ao mesmo fim, qual seja, o melhor atendimento à sociedade brasileira.

De toda forma, o ajuste fino das questões procedimentais poderá estar contido no Regimento Interno do STJ, que possui a prerrogativa de detalhar os aspectos operacionais e tornar aplicável uma determinação legal.

O que não se pode perder de vista é que existe, ainda, um longo caminho a ser trilhado, não se vislumbrando, em um horizonte próximo, a aplicação do instituto da relevância. Está a se falar em anos, quiçá décadas, até que o STJ possa lançar mão de uma importante ferramenta que, ao fim e ao cabo, irá beneficiar a justiça brasileira.

*

JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

A (in)disponibilidade da expectativa do direito ou a (im)possibilidade de transacionar o próprio direito

José Américo Cajado de Azevedo

A Constituição de 1988 é habitualmente reconhecida como uma Carta garantista e protecionista dos direitos individuais e sociais insculpidos, essencialmente, em seus artigos 5º e 7º. Não por outro motivo é conhecida pela alcunha de Constituição Cidadã. A partir dessa premissa, formou-se um entendimento doutrinário e jurisprudencial que visa a proteger todos aqueles albergados sob sua égide de ameaças aos direitos e às liberdades.

Na esteira desse entendimento, o Estado avoca para si o papel de defensor dos direitos dos cidadãos, tratando-os, inúmeras vezes, como seres hipossuficientes e carecedores da proteção estatal. Como consequência, intervém nas relações entre particulares estabelecendo, muitas vezes, normas e procedimentos para convivência interpartes, como no caso dos regramentos a respeito da disponibilidade de direitos.

A impossibilidade de dispor do próprio direito busca, conceitualmente, proteger o cidadão de situações em que deve existir uma atuação do Estado no sentido de salvaguardar os interesses de seus abrigados. Estes interesses são indeclináveis, e sua perda pode significar um malefício maior, ou seja, o bem tutelado possui um predomínio sobre um eventual aniquilamento de sua garantia.

O Estado, com o intuito de satisfazer sua precípua missão de organizar a sociedade, busca identificar situações em que a perda de direito pode significar um dano irreparável, comprometendo a pacificação social. Como exemplo, pode-se imaginar uma hipérbole jurídica em que uma falha ocasionada por um advogado, como um prazo processual perdido, comprometa a satisfação por alimentos a um menor. Neste caso, embora haja revelia do infante, em razão da inércia de seu patrono, não são produzidos os efeitos jurídicos decadenciais para a parte, como anotado no Código Civil, permitindo a persecução dos interesses do desvalido[1].

O Estado acaba por ter a missão de ser o garantidor dos vulneráveis, uma vez que as desigualdades – sociais, econômicas, profissionais, etc. – são parte inerente à condição humana. Cabe ao governo – e está a se falar em sentido lato – a administração desse imbróglio, buscando atenuar as diferenças e criando modos de compensação para prejuízos circunstanciais.

É importante buscar o entendimento do conceito para avançar na análise das consequências. A palavra “indisponível” pode ser compreendida como (i) um qualificador que impede a perda ou a restrição de um direito ou, por outro lado, compreendida como (ii) impeditivo de renúncia (MARTEL, 2010, p. 337).

Enquanto o primeiro conceito oferece a possibilidade de tutela àquele que possui a expectativa do direito, como, exemplificativamente, nos casos de reconhecimento da paternidade biológica quando o pleiteante pode a qualquer momento de sua vida buscar a satisfação de seu direito, o segundo apresenta-se como uma tutela obrigatória, impositiva, fundada em uma premissa de hipossuficiência da parte, obstando a faculdade de negociar ou mesmo renunciar àquele eventual benefício, como se observa mormente na justiça trabalhista.

A disponibilidade, em sua essência, diz respeito ao direito ou ainda se estende às relações jurídicas subjacentes? Caso assim seja, à guisa de proteção, fica o cidadão impedido de beneficiar-se amplamente de sua liberdade, na medida em que é tolhido na coordenação de seus interesses. No entanto, nota-se forte tendência doutrinária defendendo a impossibilidade de transacionar direitos indisponíveis, entendimento este que é compartilhado por tribunais (COSTA e SANTOS, 2019, p. 219).

A indisponibilidade possui o condão de atrair a imprescritibilidade, daí porque se transforma em direito passível de ser exercido a qualquer tempo. A intenção de transacionar em relação ao direito, no entanto, deve ser analisada como real possibilidade e não como impeditivo do exercício pleno da vontade. No afã de criar uma proteção ao tutelado pode se produzir amarras ao integral desempenho da liberdade individual.

No caso de preservação de interesses difusos, a indisponibilidade do direito salvaguarda a coletividade, justificando a tutela estatal para proteger parcela da sociedade atingida em suas prerrogativas. Há que se ponderar, no entanto, em relação às questões relativas a direitos individuais, onde não há hipossuficiência econômica, social ou mesmo cognitiva, podendo a parte se posicionar favoravelmente quanto à transigência, especialmente em relação a uma expectativa de direito, quando ainda se mostra necessária a prestação jurisdicional para sua efetiva consumação.

O exercício de um direito e a impossibilidade de dele dispor ou transacionar são conceitos excludentes entre si. A indisponibilidade, no sentido de não se poder renunciar, transforma o direito em uma obrigação, sem que seja dada a opção de não querer exercê-lo, conflitando com a acepção mais elementar do verbete direito.

O debate adquire feições práticas se se tomar como exemplo a transação e, portanto, a disponibilidade de créditos trabalhistas. A possibilidade de se negociar esses créditos em discussão judicial pode representar aspectos positivos para os litigantes em ambos os polos, a depender do arranjo. A Justiça do Trabalho sempre foi resistente a essa espécie de acordo pelo risco de lesividade ao empregado, considerado a parte frágil da relação contratual. Tal entendimento está sedimentado em decisão do TST, de 2009, que afirma que “[a] cessão do crédito trabalhista decorrente da presente ação, (…), não interfere no andamento do processo ou na solução do litígio, uma vez que, a teor do art. 100 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho (DEJT de 30/10/2008), ‘a cessão de crédito prevista no art. 286 do Código Civil não se aplica na Justiça do Trabalho’[2]. Neste sentido, não está resguardada a hipótese de um trabalhador, para receber imediatamente determinados valores, veladamente renunciar a direitos certos (COUTINHO, 2000, p. 15).

No entanto, brisas de modernidade parecem soprar no tribunal trabalhista, apontando novas possibilidades para negociação dos direitos laborais. Em recente julgamento, o Ministro Douglas Alencar exarou voto com o entendimento de que “(…) cabe afirmar que a cessão de crédito trabalhista é plenamente possível (CF, art. 5º, II c/c os arts. 286 a 298 do CC. 8º da CLT e 83, § 5º, da Lei 11.101/2005), disso resultando que os cessionários de eventuais créditos trabalhistas estão legitimamente habilitados a ingressar nas lides judiciais correspondentes, como sucessores ou assistentes litisconsorciais (CPC, art. 109, §§ 1ºa 3º c/c o art. 5º, LIV, da CF)[3].

A inflexão demonstrada se reveste de especial importância na medida em que se tem um país ávido pela recuperação a partir de um modelo mais moderno e dinâmico que possibilite novas interações no campo econômico. A possibilidade de transação de créditos não afeta somente as partes sinalagmaticamente. Permite ainda que outras facetas de uma negociação mais abrangente sejam favorecidas.

Tome-se como exemplo uma empresa com potencial atrativo de mercado, porém com significativos débitos, inclusive trabalhistas. Ela pode estar apta a se inserir em um processo de turnaround[4], tendo, no entanto, dificuldades negociais devido ao seu passivo. A possibilidade de transacionar seus débitos pode ser vantajosa tanto para sua própria recuperação, quanto para os trabalhadores em litígio que, ao passarem a ser credores de uma outra pessoa jurídica, de maior capacidade financeira, inserida em uma negociação mais ampla, têm aumentada a probabilidade de recebimento de seus créditos. Dessa forma, a inserção de um novo player no processo aumenta as condições favoráveis para o satisfatório deslinde de uma situação contenciosa, possibilitando o almejado resultado “ganha-ganha”.

É com essa visada que se deve contemplar as novas nuances das relações econômicas nos dias atuais. Se a proteção pretendida para o trabalhador fez sentido, na década de 1940 quando foi implantada a Consolidação das Leis Trabalhistas, pelo quadro histórico em que o país vivia ou, ainda, se foi necessária, em algum momento, uma intervenção do Estado para a proteção do cidadão nos casos de relações desproporcionais de poder, atualmente essa interferência deve ser mitigada e ponderada, de forma a possibilitar arranjos contratuais mais adequados às modernas relações negociais.

A indisponibilidade de um direito fundamental para impedir sua extinção e garantir sua persecução em qualquer momento da vida é regramento louvável e necessário, que irá asseverar a pacificação social. A vedação de transacionar um direito, no entanto, encontra-se em diferente diretriz, na medida em que obsta o pleno exercício da liberdade, especialmente nos casos em que não haja prejuízo para nenhuma outra parte.

Como encerramento, é importante refletir se o objetivo desejado pelo Estado, ao defender o cidadão em relação aos seus direitos, não está criando uma proteção – ou ainda pior, uma barreira – contra ele mesmo, impedindo-o de dispor de um direito, em prejuízo aos seus próprios interesses. A superproteção nesses casos pode, ao contrário do pretendido, deixar de ser um remédio, para tão somente ser o próprio causador do mal.

COSTA, Nilton César Antunes da; SANTOS, Rebeca Barbosa dos. A transação de direitos indisponíveis na mediação. Revista DIREITO UFMS, Campo Grande, MS, v.5, n.1, p. 208 – 232, jan./jun. 2019

COUTINHO, Aldacy Rachid. A indisponibilidade de direitos trabalhistas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 33, 2000.

MARTEL, Letícia de Campos Velho. Indisponibilidade de direitos fundamentais: conceito lacônico, consequências duvidosas. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, p. 334-373, jul./dez. 2010.


[1] Com a maioridade civil, ao completar 18 anos de idade, quando cessa o poder familiar, em relação aos alimentos passa a correr o prazo prescricional de dois anos para cobrar judicialmente os alimentos inadimplidos (artigo 206, § 2º do Código Civil).

[2] RR 632923-19.2000.5.04.5555. Publicado em 13/11/2009.

[3] ED-ED-AIRR – 820-23.2015.5.06.0221. Publicado em 17/08/2021.

[4] Turnaround é um processo de recuperação empresarial visando à restauração do equilíbrio financeiro e a volta à competitividade, buscando o restabelecimento de seu valor e a ressurreição da performance, por meio da implementação de uma reestruturação profunda e sem limites na empresa.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

O convívio entre o poder regulatório setorial e a análise de conduta anticoncorrencial: o caso da cobrança de valores sobre a movimentação de cargas nos portos brasileiros.

José Américo Azevedo*

Catharina Araújo Sá**

Como preâmbulo da análise que se pretende, importante visitar algumas asserções:

i) a agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime jurídico que assegura a autonomia em face da Administração direta e que é investida de competência para a regulação setorial[1]. Sua instituição é justificada não apenas pela necessidade de regulação dos serviços públicos concedidos aos particulares, mas também pela necessidade de controle de determinadas atividades privadas relevantes, destacadas pela lei[2];

ii) a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq – tem como competência regular, supervisionar e fiscalizar as atividades relacionadas à prestação de serviços de transporte aquaviário e de exploração da infraestrutura aquaviária e portuária[3];

iii) o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade – tem como atribuições analisar e posteriormente decidir sobre as fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência, além de investigar, em todo o território nacional, e posteriormente julgar cartéis e outras condutas nocivas à livre concorrência[4]; e

iv) o direito concorrencial e o direito regulatório possuem atuações complementares: enquanto o direito concorrencial abrange todos os setores da economia, a regulação atua de maneira mais restrita em mercados específicos, as agências reguladoras atuam no âmbito de cada setor em que receberam atribuições[5].

Para compreensão e contextualização dos conceitos, peregrinemos pela planície da realidade prática.

O setor portuário brasileiro movimentou em 2020 mais de 1,15 bilhão de toneladas em carga, sendo os principais produtos o minério de ferro, petróleo e derivados, soja, contêineres e milho. Desta movimentação, 810 milhões de toneladas são relativas à navegação de longo curso, divididas em 80% em exportações e 20% em importações[6]. É possível verificar, portanto, a relevância do modal na matriz logística do país.

Com esses números superlativos, a operação portuária, no que diz respeito à movimentação intraportos de cargas, adquire uma importância financeira tamanha que se torna pertinente a avaliação dos impactos decorrentes da cobrança das atividades de estiva.

A cobrança de “THC2” (terminal handling charge 2) ou “SSE” (serviço de segregação e entrega) é um tema famoso referente ao mercado portuário discutido no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

O THC é preço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas desde o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário no caso da importação e entre o portão do terminal portuário e o costado da embarcação na exportação. O SSE/THC2, por sua vez, incide somente nas importações e diz respeito ao valor cobrado pela movimentação da carga que sai do contêiner na pilha do terminal portuário até outro terminal retroportuário, onde estão os armazéns – de propriedade do operador portuário ou independentes – nos quais a carga será armazenada. Tal serviço está previsto na Resolução Antaq nº 34/2019, que revogou a Resolução Antaq nº 2.389/2012, a qual não deixava claro se o SSE/THC2 já estaria sendo remunerado pelo THC e, portanto, ao ser cobrado novamente, estaria ocorrendo uma dupla cobrança, de onde surgiu a sigla THC2.

A principal mudança trazida pela Resolução Antaq nº 34/2019, foi a previsão para a cobrança de SSE/THC2 de forma expressa, além de afirmar, em seu art. 9º, que na importação o SSE/THC2 “não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daquelas cujas despesas são ressarcidas por meio de THC”.

Nesse sentido, a nova resolução buscou demonstrar que o serviço de segregação e entrega ou THC2 não seria remunerado pela THC e, portanto, sua cobrança seria legítima, apesar de muitos entenderem que na prática se trata do mesmo serviço e o operador portuário não foi capaz de demonstrar que o THC e o THC2 são serviços distintos. Ademais, a norma legal também aborda sanções às práticas consideradas abusivas ou ilegais e, nesse sentido, prevê um preço máximo a ser cobrado pelo SSE/THC2.

Após a publicação da Resolução Antaq, ocorreu apenas um julgamento de mérito pelo Tribunal Administrativo do Cade envolvendo a cobrança do referido título[7]. Os processos administrativos em andamento no Conselho discutem se a cobrança em função do serviço de segregação e entrega pelo operador portuário tem o condão de gerar efeitos anticoncorrenciais.

O operador portuário é a pessoa jurídica pré-qualificada para execução de operação portuária do porto organizado. Atua, no que concerne à movimentação de cargas no porto, em duas etapas. A primeira delas é descarregar os contêineres dos navios para colocar na pilha e ao realizar este serviço, o operador portuário cobra um valor a título de THC, que não é questionado no Cade. Em um segundo momento, o operador portuário movimenta a carga da pilha até o seu próprio armazém ou armazéns de terceiros. É justamente este segundo momento que é alvo de cobrança do SSE/THC2 e de questionamentos levados ao Cade por empresas que atuam no setor.

Para se compreender a dinâmica adotada pela autarquia, importante se faz abordar alguns posicionamentos proferidos no Processo Administrativo envolvendo a cobrança de SSE/THC2 julgado pelo Tribunal Administrativo em 2021, a fim de verificar como o Conselho se posicionou após a publicação da Resolução Antaq nº 34/2019.

O Conselheiro Relator Luiz Hoffmann, cujo voto apresentado foi o vencedor[8], se manifestou no sentido que os valores da cobrança do SSE/THC2 já estariam sendo remunerados por meio do THC. Destacou que é incontroverso que o operador portuário não cobra quando presta o serviço de armazenagem, ou seja, quando leva a carga para o seu próprio armazém, atuando de forma verticalizada. Ademais, destacou que o operador portuário não demonstrou que incorre em custos adicionais para poder fazer a cobrança de SSE/THC2 dos armazéns de terceiros (recintos alfandegados).

Nesse sentido, concluiu que o operador portuário abusa da posição dominante que detém, uma vez que é monopolista na cobrança de THC e aproveita dessa posição para fazer outra cobrança em duplicidade com caráter discriminatório – o SSE/THC2, sem qualquer justificativa econômica razoável. Ou seja, para o Relator, a Resolução Antaq nº 34/2019 não apresentou fato novo apto a ensejar a mudança de entendimento do Conselho, que já vinha condenando a cobrança de SSE/THC2 antes da vigência da referida Resolução.

Sobre este mesmo julgamento, o voto do Conselheiro Luis Braido[9] acompanhou o Conselheiro Relator Luiz Hoffmann apenas em suas conclusões. O Conselheiro comparou os arts. 9º das Resoluções Antaq nº 2.389/2012 e nº 34/2019[10] e concluiu que os dispositivos permitem as mesmas práticas, ou seja, permitem que o operador portuário abuse de sua posição dominante ao cobrar pelo SSE/THC2. Também destacou que o operador portuário, que atua em posição de monopolista, cobra pelo valor de SSE/THC2 apenas quando presta este serviço para concorrentes e não cobra quando atua de forma verticalizada e essa situação gera efeitos anticoncorrenciais.

Cabe salientar a posição divergente levantada pela Conselheira Lenisa Prado[11]. Para ela, o THC e o THC2 são diferentes tipos de serviço e englobam duas relações jurídicas distintas. Enquanto o primeiro trata de uma contraprestação exigida para todos os contêineres que são retirados dos navios, o segundo se refere à movimentação horizontal de cargas apenas para contêineres solicitados e não indiscriminadamente como ocorre com a THC. Assim, para a Conselheira, por se tratar de serviços diferenciados, não ocorre cobrança em duplicidade. Há que se ressaltar, no entanto, que esse posicionamento ficou vencido por não restar comprovada a distinção e individualização das atividades, nem justificativa econômica razoável para a realização da cobrança.

Apesar dos posicionamentos contrários ao Relator apresentados no Tribunal Administrativo, a maioria entendeu que a cobrança do SSE/THC2 pelo operador portuário é uma conduta anticoncorrencial, uma vez que o operador portuário abusa de sua posição dominante para realizar a cobrança. Pode ser observada uma completa assimetria de oportunidades, na medida em que o operador lança mão de estratégia heterodoxa, cobrando a tarifa para transportar a mercadoria para um armazém concorrente e não o fazendo quando suas instalações serão utilizadas, majorando, artificialmente, o custo para a concorrência.

O caso narrado evidencia com clareza a linha tênue que divide as competências da agência reguladora e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Existe, e é indubitável, uma interseção entre as atribuições de cada órgão, uma vez que a regulação setorial, na maior parte das vezes, impacta diretamente na esfera concorrencial, podendo ser o Cade instado a dirimir conflitos causados por ações anticompetitivas.

A priori, doutrinariamente, caberia às agências reguladoras a prevalência em relação à regulamentação da atividade econômica, em homenagem ao princípio da especialidade, como afirma OLIVEIRA:

Em razão da especialidade, deveria ser reconhecida, em princípio, a competência das agências reguladoras para promoção da concorrência nos setores econômicos regulados, salvo previsão legal em contrário ou celebração de instrumentos jurídicos específicos (ex.: convênios) entre o CADE e as autarquias. Em relação aos serviços públicos, em que não há livre-iniciativa e incidem exigências distintas daquelas encontradas nas atividades econômicas em geral (ex.: exigência de solidariedade etc.), não haveria que falar em atuação do CADE, mas, sim, das agências reguladoras.[12]

Outros exemplos de esbarros entre os órgãos podem ser encontrados na dinâmica da economia contemporânea. Vale dizer, à guisa de paradigma, que deve permanecer claro que enquanto as agências tratam de regulação setorial, inclusive em mercados que carecem de concorrência, o Cade, imbuído do espírito de autoridade em defesa da concorrência, deve agir de forma transversal, permeando todos os setores, porém, tão somente, nas circunstâncias em que a competitividade econômica se mostrar ameaçada por uma conduta anticoncorrencial.

Como alento e demonstração de crença no respeito à estrutura institucional do país, merece destaque o Memorando de Entendimentos nº 01/2021 firmado entre o Cade e Antaq, que objetiva a cooperação e atuação integrada entre as autarquias para estabelecer procedimentos que possibilitem a análise de indícios de abusividade e condutas anticoncorrenciais na cobrança de SSE/THC2. A assinatura deste Memorando sugere a possibilidade de eliminar ou, pelo menos, mitigar os conflitos entre decisões das autarquias, trazendo maior segurança para os agentes envolvidos. A estabilidade sobre essa questão, por sua vez, poderá conferir maior equilíbrio ao setor como um todo, tornando-o mais atrativo para investidores e granjeando um maior número de interessados.

Pode-se concluir que a insegurança jurídica, proveniente do conflito de entendimentos entre o Cade e agências reguladoras, pode ser reduzida quando for estabelecida a metodologia para divisão de atribuições, o que facilitaria a caracterização dos casos nos quais se faz necessária a regulação técnica e operacional, bem como aqueles que estariam sujeitos à análise de defesa da concorrência.

Não obstante a existência de competências concorrentes, o que deve ser buscado é a interação e o diálogo interinstitucional, determinando, de forma conjunta, a amplitude da intervenção do Estado na atividade econômica. A partir de uma meta alinhada não somente com as atribuições de cada órgão, mas também – importante – com a política econômica estatal, devem ser estabelecidas ações individuais e/ou conjuntas com vistas à persecução de um mesmo fim, qual seja, o estabelecimento de um ambiente onde prospere a livre iniciativa e a ampla concorrência visando ao impulso da economia do país.


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

[3] Disponível em:
<https://www.gov.br/antaq/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/copy_of_competencias>
Acessado em 22.12.2021.

[4] Disponível em:
<https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias>
Acessado em 22.12.2021.

[5] FARACO, Alexandre Ditzel. Direito concorrencial e regulação. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. Disponível em: <https://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=98881>.
Acessado em 22.12.2021.

[6] Estatístico Aquaviário 2.1.4 – 2020. Disponível em:
<http://anuario.antaq.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=painel%5Cantaq%20-%20anu%C3%A1rio%202014%20-%20v0.9.3.qvw&lang=pt-BR&host=QVS%40graneleiro&anonymous=true>
Acessado em 22.12.2021.

[7] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Decisão publicada no DOU de 10 de fevereiro de 2021.

[8] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto do Relator Conselheiro Luiz Hoffmann. 2021.  Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yPyE8wIxrlV2F7dRUaYhWER3Tf7h6wP-LpvbXxH26q5AgMNpgrFhzVd8_xrzShRwUMxl4ziJ2GP0OL_znsaIdkq>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[9] CADE. Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista Conselheiro Luis Braido, 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yP3O0a1GMZdlGqMAhNzTD2ftrt02zuieE4WDcb19wfaFhNjif7D9gKvFAiLFK1oICa5MoJsHYmd1VZPbkNNCu90>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[10] “Resolução Antaq 2389/2012 […] Art. 9º Os serviços de recebimento ou de entrega de cargas para qualquer outro modal de transporte, tanto dentro quanto fora dos limites do terminal portuário, não fazem parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso” e “Resolução Antaq 34/2019 […] Art. 9º O SSE na importação não faz parte dos serviços remunerados pela Box Rate, nem daqueles cujas despesas são ressarcidas por meio do THC, salvo previsão contratual em sentido diverso. Parágrafo único. No caso em que restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal na cobrança do SSE, a Antaq poderá estabelecer o preço máximo a ser cobrado a esse título, mediante prévio estabelecimento e publicidade dos critérios a serem utilizados para sua definição”.

[11] Processo Administrativo: 08700.005499/2015-51. Voto Vista da Conselheira Lenisa Prado. 2021. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yMtn-M9J6Btqm0_LpFfVrdZH0lf5FszZFutDobaLvg_VoUdm9mcJjWs-h9cOl2c-VwC6x76hsqZtw4X4I1RI6yQ>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[12] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

* JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

Colaborador na plataforma WebAdvocacy.

Atua prestando consultoria na área jurídica. Tem como objetivo conciliar o exercício do Direito com a experiência adquirida com a Engenharia e com as relações institucionais e governamentais.

** Catharina Araújo Sá é trainee do escritório Vilanova Advocacia, graduada em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB). Cursou o XVIII Curso de Extensão em Direito da Concorrência (UnB). Ex-estagiária da Coordenação-Geral de Análise Antitruste 8 (CGAA8) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Atuou na área de concorrencial e compliance em uma das maiores bancas de advocacia do País.