O mês de outubro de 2021 foi marcado pela modernização do arcabouço normativo na área de defesa comercial.
Em 19 de outubro de 2021, foi publicado o Decreto no 10.839, de 18 de outubro de 2021, que regulamentará as investigações sobre subsídios conduzidas pela autoridade brasileira e a aplicação de medidas compensatórias. O decreto entrará em vigor 120 dias após sua publicação e substituirá o Decreto no 1.751/1995, que foi promulgado no contexto da criação da Organização Mundial do Comércio (“OMC”). Desde então, houve avanços significativos na defesa comercial, no Brasil e no mundo, tendo o antigo decreto ficado à margem dessa evolução.
O Decreto no 10.829/21 atualiza as normas procedimentos utilizados nas investigações de subsídios e atualiza os conceitos de subsídios com base na jurisprudência construída pela OMC, além de harmonizar os procedimentos das investigações de subsídios com as investigações de dumping, cujo regulamento foi modernizado em 2013. Grande parte dos artigos do novo decreto é bastante similar às disposições do Regulamento Antidumping Brasileiro, tanto no conteúdo quanto na ordem de disposição.
Da mesma forma que ocorre em investigações antidumping, o novo Decreto prevê a possibilidade de não-aplicação de medida compensatória pela Câmara de Comércio Exterior (“CAMEX”) caso seja constatado interesse público.
O novo regulamento estabelece um cronograma preciso sobre as etapas da investigação, como fases probatórias e de manifestações, além de estabelecer a obrigatoriedade de determinações preliminares para investigações originais, que são essenciais para aplicação de direitos compensatórios provisórios. Ademais, traz inovações importantes em temas não abarcados pelo decreto antigo, como o procedimento de avaliação de escopo, a redeterminação e a anticircunvenção. Há também disciplinas específicas para investigações que envolvam Estados Partes do Mercosul e um maior detalhamento para as condições de aceitação de compromissos de preços.
A SDCOM estima que haverá maior celeridade e segurança jurídica ao processo investigação de subsídios e medidas compensatórias, reduzindo os prazos de análise das petições e das investigações. A expectativa é que os trâmites sejam encurtados em até um terço. Cumpre notar, ainda, que a elaboração do novo decreto foi debatida com o setor privado, por meio de consulta pública.
A atualização da legislação brasileira sobre subsídios e medidas compensatórias é extremamente necessária e bem vinda. Não há dúvidas que a aproximação entre essas investigações e aquelas relacionadas à prática da investigação de dumping é um grande avanço para a indústria doméstica, para os importadores, para os exportadores e para os consultores que atuam nessa área, que lidam há quase 10 anos com o detalhado Regulamento Antidumping Brasileiro.
Com a modernização da legislação, a tendência é que a indústria doméstica recorra cada vez mais a esse instrumento de defesa comercial. Atualmente, há apenas três medidas compensatórias em vigor no Brasil em comparação às 141 medidas antidumping em vigor. No mundo, a frequência na aplicação de medidas compensatórias pelos membros da OMC tem aumentado. Acredita-se que estratégias de incentivos às indústrias nacionais pós-pandemia pelos Estados possa levar a uma maior necessidade de utilização de medidas compensatórias pela indústria brasileira. A modernização do arcabouço normativo no Brasil, garantindo maior transparência e previsibilidade nas investigações de subsídios conduzidas pela autoridade investigadora brasileira, certamente aumentará a atratividade dessa medida de defesa comercial.
Durante o período de vacatio legis do Decreto nº 10.839, será publicada nova portaria com a atualização do arcabouço normativo relacionado às investigações de subsídios e medidas compensatórias, a qual já foi objeto de consulta pública. Também está nos planos da SDCOM publicar em 2022 um guia de investigações de subsídios e medidas compensatórias, nos moldes dos diversos guias da SDCOM já publicados.
Adicionalmente, em 26 de outubro de 2021, a Secex abriu consulta pública sobre quatro petições relacionadas às investigações de subsídios que não tinham fundamento legal na legislação anterior, a saber: (i) petição de revisão anticircunvenção, que trata da investigação de práticas elisivas que frustrem medidas compensatórias aplicadas; (ii) petição de restituição de direitos recolhidos, se o montante de subsídios apurado para o período de revisão for inferior ao direito vigente; (iii) petição de avaliação de escopo, por meio da qual qualquer parte interessada poderá solicitar que se apure se um certo produto está sujeito à medida compensatória em vigor; e (iv) petição de redeterminação, na qual é determinado se a medida compensatória aplicada teve sua eficácia comprometida em razão da forma de aplicação da medida ou em razão da absorção da medida compensatória. A ideia é manter o paralelismo com o já estabelecido nas investigações antidumping.
Nessa mesma data, foi publicada a Circular nº 71, que abriu o prazo de 20 dias para que sejam apresentados dúvidas, questões e temas de interesse no âmbito de investigações sobre subsídios e medidas compensatórias, que serão abordados pela SDCOM no Guia de Investigações sobre subsídios que será publicado futuramente.
Já a Instrução Normativa Secex nº 3, de 22 de outubro de 2021, quer foi republicada no Diário Oficial da União em 3 de novembro, traz novas determinações sobre a realização da verificação in loco em investigações de defesa comercial. Em razão da pandemia da COVID-19, as verificações presenciais das informações prestadas pelos exportadores estavam temporariamente suspensas desde julho de 2020. De acordo com a nova Instrução Normativa, a partir de agora, será dada preferência à verificação in loco e, apenas na impossibilidade de realização desse tipo de verificação, será realizada a verificação dos elementos de prova, por ofício.
Essa alteração é muito benéfica para os exportadores, que foram muito prejudicados com as demasiadas exigências burocráticas e com os prazos extremamente curtos da verificação dos elementos de prova, e voltarão a ter oportunidade de comprovar as informações apresentadas nas respostas aos questionários de forma presencial, em suas próprias instalações.
Nos últimos anos, a principal alteração na legislação brasileira de defesa comercial diz respeito à avaliação de interesse público.
O Decreto nº 9.745, de 2019, transferiu à Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”) do Ministério da Economia a competência para propor a suspensão ou alteração de aplicação de medidas antidumping ou compensatórias em razão de interesse público, e a Portaria SECEX nº 13/2020 disciplinou o processo administrativo de avaliação de interesse público no Brasil.
Essa avaliação não está prevista nos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, a maioria dos Membros da OMC não adotou previsão específica sobre o assunto em suas legislações. Entre os poucos países que ponderam o interesse público ao aplicar medidas de defesa comercial estão Brasil, Canadá, União Europeia, Nova Zelândia, China, Malásia e Tailândia, os quais incluíram provisões normativas de interesse público em suas legislações.
A avaliação de interesse público tem por objetivo analisar se há elementos que justifiquem a suspensão ou a alteração de medidas antidumping definitivas compensatórias, provisórias ou definitivas. A avaliação de interesse público também pode concluir pela necessidade de não aplicação de medidas antidumping provisórias, caso seja recomendada a aplicação desses direitos na investigação de defesa comercial.
Interesse público é um bastante conceito bastante amplo. A legislação brasileira tenta delimitar esse conceito ao estabelecer que há interesse público sempre que o impacto da imposição da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos se mostrar potencialmente mais danoso quando comparado aos efeitos positivos da aplicação da medida de defesa comercial. O processo administrativo de avaliação pública visa a analisar o eventual impacto da adoção da medida de defesa comercial na oferta do produto em questão no mercado brasileiro, de modo a prejudicar a dinâmica do mercado nacional (incluindo os elos a montante, a jusante e a própria indústria), em termos de preço, quantidade, qualidade e variedade entre outros.
Atualmente, tanto processo administrativo da investigação dumping ou de subsídios quanto o processo administrativo de avaliação de interesse público são conduzidos pela SDCOM, de forma concomitante, seguindo o mesmo rito processual. No caso da avaliação de interesse público, a SDCOM recebe informações, as analisa e pode recomendar: (i) a suspensão da exigibilidade de direito antidumping definitivo ou de compromissos de preços; (ii) a não aplicação do direito antidumping provisório, a homologação de compromisso de preços ou a aplicação de direito antidumping definitivo em valor diferente do recomendado; (iii) a suspensão da aplicação de direito compensatório provisório ou definitivo ou a não homologação de compromissos e a aplicação do direito compensatório provisório ou definitivo em valor diferente do recomendado. Contudo, cabe ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX/CAMEX) o encerramento da avaliação de interesse público e da decisão final na investigação de defesa comercial, em caso de determinação positiva de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória[1].
Sem querer adentrar na discussão se o argumento de interesse público seria compatível com a lógica da defesa comercial – em que medida o reconhecimento de uma prática desleal de comércio como o dumping comporta uma mitigação? – há alguns aspectos do processo administrativo de avaliação de interesse público que não só podem como devem ser aprimorados, de modo a possibilitar que essa análise seja ainda mais precisa e completa.
No caso de investigações originais, de modo geral, o prazo para envio da resposta ao questionário de interesse público é o mesmo prazo para envio da resposta ao questionário do importador e do exportador. Na maioria das vezes, empresas acabam dedicando muito tempo ao preenchimento do questionário do importador e/ou do exportador a ser apresentado na investigação de dumping ou de subsídios, sem o qual não é possível obter uma margem individual de dumping, e não conseguem se dedicar a obter todas as informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse público.
As informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse não são informações fáceis de ser obtidas, sobretudo por importadores, que são os principais interessados em evitar a aplicação ou suspender uma medida de defesa comercial em vigor. Ao contrário do questionário do importador e do exportador, que devem ser preenchidos com informações contábeis e do dia-a-dia das empresas, o questionário de avaliação de interesse público solicita informações de natureza concorrencial e de mercado que muitas vezes são desconhecidas por aqueles que não são fabricantes. Basta lembrar que o questionário solicita que sejam apresentados dados de natureza concorrencial como o cálculo de índices de concentração de mercado (em especial do HHI) considerando produção nacional (nos termos de defesa comercial), importações e substitutos e barreiras à entrada. Essa dificuldade é ainda maior quando se trata de um bem que é apenas um dos diversos bens classificados em uma determinada sub posição da NCM, já a que é com base nessa classificação que é possível obter parte das informações publicamente disponíveis sobre determinado produto.
Ao contrário da que ocorre em uma investigação de defesa comercial, não há peticionário nas avaliações de interesse público em investigações originais. O fato de não haver empresa ou associação faz com que o processo administrativo não receba tantas informações nem tanta atenção das autoridades, o que pode resultar em uma avaliação de interesse público incompleta, imprecisa e superficial. Isso é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, já que a aplicação de direito antidumping ou compensatório pode resultar no encarecimento do produto objeto da investigação, com reflexos nos demais bens que utilizam esse produto em sua fabricação.
É importante notar que a avaliação de interesse público representa um custo adicional às partes, visto que, como desconhecem as informações solicitadas recorrem à contratação de advogados, economistas e consultorias especializadas, bem como de institutos de pesquisas e relatórios setoriais, para obter as informações solicitadas no questionário.
Não há dúvidas que, dada a relevância da verificação dos efeitos das medidas de defesa comercial sobre o interesse público, a insuficiência de dados substantivos que subsidiem devidamente o processo decisório pode prejudicar a funcionalidade dessa avaliação. Assim, é importante que a sociedade debata formas de tornar essa análise ainda mais eficaz.
Entre as possíveis sugestões, estão a ampliação do escopo da análise – que, na prática, está limitada aos itens estabelecidos no questionário de avaliação de interesse público – para que ela seja adaptável a cada tipo de produto. É evidente que o impacto de uma medida antidumping sobre um bem intermediário deve ser analisada de forma diferente do impacto de uma medida antidumping sobre um bem final. Da mesma forma, há questões específicas relacionadas a produtos agrícolas que não se aplicam a produtos químicos e vice-versa.
Outra medida que pode fazer muita diferença é um maior engajamento da SDCOM não só na análise, mas também na obtenção das informações. Hoje observa-se uma grande passividade na condução da avaliação de interesse público. Não é aceitável que a SDCOM decida que não há impactos apenas porque não recebeu informações das partes, as quais muitas vezes não dispõem dos dados ou de condições econômicas para levantá-los.
Por fim, os aspectos atinentes à concorrência doméstica que fazem parte da análise também deveriam receber mais atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora o CADE seja consultado nas avaliações de interesse público, suas análises são superficiais e em nada se assemelham àquelas analises profundas realizadas em atos de concentração ou investigações de cartel. Da mesma forma, outros órgãos da administração pública poderiam ser engajados, de modo que a avaliação de interesse público seja cada vez mais precisa e completa.
[1] Sempre que a SDCOM concluir por a uma determinação negativa de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória na investigação original ou na revisão de final de período, caberá à Secretaria de Comércio Exterior (“SECEX”) o encerramento concomitante da investigação de defesa comercial e da avaliação de interesse público, por perda de objeto.
Volto a escrever com o economista Fernando Montera sobre energias alternativas, por conta do espaço de destaque que a pauta de descarbonização vem ganhando como questão central no combate às mudanças climáticas. Se dúvida, as metas para a neutralidade de carbono passam cada vez mais a ditar a dinâmica econômica e regulatória dos Países.
E são diversas as soluções possíveis para reduzir as emissões: geração de energia a partir de fontes renováveis, compensações ambientais, tecnologias de captura de carbono, maior eficiência na queima, substituição por combustíveis menos poluentes, ampliação de uso de biocombustíveis, são alguns exemplos. E é dentro desse rol de soluções que a produção de hidrogênio (H2) tem atraído cada vez mais atenção.
De fato, considerando que o H2 entrega grandes quantidades de energia, tem usos diversos, não emite poluentes no seu uso final e pode ser produzido através de fontes 100% renováveis – chamado Hidrogênio Verde, não há dúvidas que se trata de uma aposta chave para contribuir ativamente na redução de gases de efeito estufa. O seu uso, entretanto, não é novidade, sendo realidade em diversas aplicações industriais – produção de derivados de petróleo, amônia e na indústria siderúrgica, por exemplo.
Como resultado desse cenário, de acordo com o Hydrogen Council, são estimados que os investimentos em projetos de H2 até 2030 estejam na casa de US$ 500 bilhões em todo o mundo. Destes, aproximadamente 30% são considerados pela instituição como projeto maduros, ou seja, que estão na etapa de planejamento após decisão final de investimento ou que estão associados a algum projeto em construção, comissionamento ou operacional.
E o Brasil, como se encaixa nesse contexto? Também aqui o H2 não é novidade, sendo tema de projetos e programas federais para desenvolvimento da tecnologia desde meados da década de 2000. Mais recentemente, conforme a Resolução CNPE nº 6, de 20 de abril de 2021 – que determina a realização de estudo para proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – passou a ser considerado como tema prioritário de investimentos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) pelo Conselho Nacional de Política Energética e estruturação das diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio – EPE. Confira-se:
“Art. 1º Determinar ao Ministério de Minas e Energia que, no prazo de até sessenta dias, contados da publicação desta Resolução, em cooperação com os Ministérios da Ciência, tecnologia e Inovação e Desenvolvimento Regional, com o apoio técnico da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, apresente a este Conselho proposta de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio, observados:
(…) II – a inclusão do hidrogênio como um dos temas prioritários para investimentos em pesquisa desenvolvimento e inovação, conforme Resolução CNPE nº 2, de fevereiro de 2021, aprovada pelo Conselho Nacional de Política Energética.”
E não é só: nessa mesma linha, o CNPE, por meio da Resolução nº 7, de 20 de abril de 2021, instituiu o Programa Combustível do Futuro e criou o seu Comitê Técnico com o objetivo de desenvolver medidas para expandir o uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono. Nesse movimento, já ficou definida uma ação direcionada ao desenvolvimento do H2 no Brasil: o uso do energético como combustível de veículos automotivos. Confira-se:
“VI – propor estudos para ampliação do uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono, como, por exemplo:
(…) b) avaliação das tecnologias de célula a combustível disponíveis para orientar pesquisa, desenvolvimento e inovação”
Com isso, o Conselho que propõe políticas nacionais e medidas específicas ao Presidente da República, evidenciou os direcionadores mínimos referentes ao uso do H2 no Brasil. Como resultado da Resolução no 6 do CNPE, o recém-publicado Programa Nacional do Hidrogênio[1], pautado pelos pilares de Políticas Públicas, Tecnologia e de Mercado, identificou a necessidade de se trabalhar o desenvolvimento desse mercado a partir de seis eixos – fortalecimento das bases tecnológicas, capacitação e recursos humano, planejamento energético, arcabouço legal-regulatório, crescimento do mercado e competitividade e cooperação internacional.
Portanto, equacionadas as questões acima, restam outras que deverão ser debatidas e devidamente esclarecidas de modo a garantir a segurança da opção pelo H2 no Brasil: conscientização do mercado consumidor (o que implica no seu custo competitivo) e a competência e alinhamento regulatório.
A sensibilização do mercado consumidor passa por diversas fatores culturais e econômicos. Quando se fala do potencial interno brasileiro, a já mencionada resolução do CNPE que define o Programa Combustível do Futuro, também explicita que se deve encontrar maneiras de educar o consumidor:
“Art. 3º
V – propor ações para fornecer ao consumidor as informações adequadas contribuindo par a escolha consciente do veículo e da fonte de energia considerando o ciclo de vida dos combustíveis”
Não se pode perder de vista que, assim como ocorre com o gás natural, o H2 pode ser comercializado entre continentes pelos mares. Com efeito, em tese, há espaço para o Brasil fornecer H2 para países que vinculados a uma forte pauta de descarbonização da economia, como é o caso dos países europeus.
Outro ponto a ser considerado é a eventual criação de medidas para expandir o consumo interno no Brasil. O Reino Unido, por exemplo, incluiu taxas na conta dos consumidores para estimular a produção de H2, que seria misturado, por exemplo, no gás natural entregue.
De todo modo, a expansão do consumo estará diretamente relacionada a capacidade de inserção em bases competitivas do energético. De acordo com a BloombergNF[2], a difusão da tecnologia levaria a preços competitivos do Hidrogênio Verde apenas em 2050. A necessária redução do custo do H2 de modo a torná-lo competitivo, dependerá, em grande medida, do sucesso de tais escolhas[3].
Sobre a regulação, é possível prever a existência de mais de um ente diferente atuando no tema, acrescentando, portanto, complexidade no alinhamento e harmonia das diretrizes regulatórias, AIR, ARR etc. Veja o caso das versões verde e azul do hidrogênio: caso seja produzido 100% com energia renovável, dependerá principalmente da regulação da ANEEL, mas caso seja produzido utilizando gás natural, com tecnologias de captura de carbono, deverá envolver a ANP e, em alguns casos, os estados que regulam a distribuição de gás natural.
Ao ser utilizado diretamente como combustível (misturado ou não com gás natural) a atuação da ANP e, em alguns casos, das agências estaduais de regulação da distribuição de gás natural, teria ainda seu papel em destaque quanto aos usos na síntese de biocombustíveis.
Nada obstante, apesar da complexidade adicional por conta disso, não há obstáculos intransponíveis para a definição de regulações harmônicas, isonômicas, com base na transparência e com foco na concorrência. Neste sentido, novamente citamos o inc. I do art. 1º da Resolução CNPE nº 6/21, que, entre as diretrizes do Programa de Hidrogênio, corrobora o “interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas”.
Portanto, é possível afirmar que o assunto está encaminhado, mas precisa ser avaliado a partir de uma política pública específica para o Brasil, considerando suas características, necessidades e a diversidade de fontes energéticas disponíveis no País. Exemplos de outros países são importantes, mas apenas dentro de um contexto que realmente reflita os caminhos que o País deseja trilhar nas próximas décadas.
E, como sempre, as (boas) possibilidades no Brasil são inúmeras e, se bem-organizadas, com regras simples, objetivas e transparentes – o que, como se sabe, ainda é um grande desafio – atenderão plenamente às nossas necessidades.
Por fim, considerando que não é possível falar sobre H2 sem falar sobre gás natural, devemos considerar a existência de uma questão ainda pendente que precisa ser equacionada: a especificação do gás natural. Isso porque se pretendemos aproveitar o H2 misturado ao gás natural, é necessário que se tenha clara a composição do gás natural entregue ao consumidor.
*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.
(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)
Hoje o foco da minha coluna mensal, com a participação especial do Fernando Montera, é a exploração da energia offshore, ou seja, a energia gerada no mar – eólica, inclusive, mas pode ser qualquer outra, a partir das ondas, das marés, das correntes marítimas entre outras. Um tema muito atraente para todos aqueles que se interessam pela diversificação da matriz energética nacional, pela inovação tecnológica e pelo meio ambiente.
Para termos uma ideia do “tamanho da coisa”, somente Reino Unido, Alemanha e China respondem por um total de aproximadamente 27 GW de energia proveniente apenas de eólicas offshore[1]. E o mercado continua em franca expansão, incluindo a participação de outros Países como os Estados Unidos.
Apesar do tema não ser tão novo assim – se considerarmos que as primeiras experiências na produção de energia offshore ocorreram na Dinamarca em 1991 – é certo que, no Brasil, trata-se de uma nova frente energética, com um potencial enorme de geração de energia e, consequentemente, de estímulo de novos entrantes no setor.
Considerando todo o movimento mundial, em 2020, a EPE divulgou seu estudo sobre o tema no Brasil – Roadmap Eólica Offshore – Perspectivas e caminhos para a energia eólica marítima. Nele, são apresentadas informações que devem ser consideradas para o amadurecimento do debate sobre a nova fonte energética – já inserida no Plano Decenal de Expansão de Energia –PND.
Em síntese, o trabalho da EPE aponta para (i) a existência de um “potencial técnico de cerca de 700GW em locais com profundidade até 50m” em todo o litoral brasileiro, mas especificamente na região Nordeste (sem excluir outras áreas, inclusive o Rio de Janeiro, por exemplo, com a sua expertise em mercado offshore); (ii) a necessidade de estrutura portuária adequada para a construção, montagem e transporte dos equipamentos eólicos; (iii) custos elevados de implantação e operação dos parques eólicos offshore (tecnologia e equipamentos diferentes da eólica onshore) ; (iv) necessidade de conexão com as linhas de transmissão de energia (e eventuais reforços); (v) ajustes normativos/regulatórios e ambientais.
Paralelamente, no final de 2020, o IBAMA elaborou o Termo de Referência Padrão para Complexos de Energia Eólica Offshore, de modo a garantir o correto entendimento sobre os estudos de impacto ambiental de empreendimentos de geração eólica offshore. A iniciativa é importante para garantir celeridade e segurança para o investidor e o Termo já está sendo utilizado na análise dos projetos já apresentados ao IBAMA.
Em relação à regulação, a despeito de não haver impedimentos para o desenvolvimento da atividade eólica no País, o foco é a geração onshore, que, como sabemos, é uma atividade já estabelecida e diferente da offshore. Assim, recentemente o Ministro de Minas e Energia noticiou que devemos ter as adequações regulatórias necessárias equacionadas ainda em 2021.
Por outro lado, há algumas possibilidades de arcabouço legal que estão sendo cogitadas, o que inclui a adoção do modelo de Oferta Permanente do setor de petróleo e gás e possibilidade de se optar por uma nova lei federal, de modo a garantir segurança aos empreendimentos offshore. No Brasil, há dois projetos de lei sobre o assunto tramitando no Congresso. O mais antigo é o PL nº 11.247/18 (que trata da promoção ao desenvolvimento da geração de energia elétrica a partir de fontes eólica e solar fotovoltaica offshore) e o segundo o PL nº 576/21 (que trata do potencial energético offshore – sem limitar as fontes).
O PL 11.247/18 encontra-se, desde janeiro de 2019, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara do Deputados. Em extrema síntese, o PL propõe alteração na Lei nº 9.074/95 de modo a incluir as usinas eólicas e solares e a autorização da ANEEL para a atividade (com a obrigação de chamada pública). Igualmente, propõe ajustes nos artigos sobre princípios e objetivos da Política Energética Nacional – com o intuito de promoção e incentivo às novas fontes – políticas nacionais e medidas específicas recomendadas pelo CNPE e nas definições (incluindo prismas eólico, fotovoltaico e energia de fonte solar fotovoltaica) contidas na Lei nº 9.478/97.
O mencionado PL propõe a alteração da Lei nº 9.427/96 – garantindo a competência da ANEEL para regular as atividades e promover os procedimentos para a outorga de concessão ou de autorização de uso do bem público associado às usinas eólicas e solar offshore – e da Lei nº 10.847/04, esclarecendo a competência e atribuições da EPE sobre o assunto.
No mais, especifica os regimes de concessão e autorização de uso do bem público associado a implantação das usinas, detalhando o processo licitatório e as cláusulas essenciais do contrato de concessão. Sobre as participações que deverão ser pagas pelos autorizados/concessionários, o PL propõe o seguinte:
“Art. 14. O edital de licitação e o contrato de concessão ou de autorização de uso do bem público disporão sobre o pagamento pela ocupação ou retenção de área, a título de arrendamento ou taxa de ocupação, a ser feito mensalmente, nos termos estabelecidos em resolução do CNPE.” (g.n.)
Por outro lado, o PL 576/21 encontra-se, desde fevereiro de 2021 no Plenário do Senado Federal aguardando a escolha do relator. De forma resumida, o PL altera as Leis nº 9.478/97, nº 9.074/95 e nº 10.438/02, disciplinando a outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore, seja ele eólico ou qualquer outro. O texto apresentado define offshore, prisma energético e descomissionamento, além de esclarecer os princípios e fundamentos da exploração e desenvolvimento da geração de energia a partir de fonte instalada offshore.
O PL estabelece o regime de autorização – e não concessão – de uso de bens da União (com suas respectivas obrigações), por meio de outorga planejada (conforme planejamento do CNPE, por meio de processo seletivo público, considerando, entre outros, a disponibilidade de ponto de interconexão à rede básica) ou de outorga independente (conforme prismas sugeridos pelos interessados – após estudos, por sua conta e risco – com realização de consulta pública prévia).
O texto também define os estudos exigidos para a autorização, o que remete a avaliação técnica e econômica, EIA e avaliação da segurança náutica e aeronáutica. Detalha questões referentes aos prismas energéticos, inclusive indicando a possibilidade de constituição de prismas nas áreas de exploração e produção de petróleo e gás nos casos de constituição de prismas pelos seus operadores ou com sua anuência – boa oportunidade para as concessionárias de E&P!
Ademais, o PL mais recente, além de detalhar o descomissionamento, também fala sobre participações governamentais obrigatórias, o que merece a transcrição do dispositivo proposto:
“Art. 13. O processo seletivo público e o respectivo instrumento de outorga dele resultante disporão sobre as seguintes participações governamentais obrigatórias:
I – bônus de assinatura, que terá seu valor mínimo estabelecido no respectivo instrumento de outorga e corresponderá ao pagamento ofertado na proposta para obtenção da autorização, devendo ser pago no ato da assinatura do termo de outorga;
II – pagamento pela ocupação ou retenção de área, que será pago mensalmente, a partir da data da assinatura do termo de outorga, fixado por quilômetro quadrado ou fração da superfície do prisma energético, na forma da regulamentação;
III – participação proporcional, que será paga mensalmente, a partir da data de entrada em operação comercial, em montante correspondente a cinco por cento da energia efetivamente gerada e comercializada relativamente a cada prisma energético;
§ 1º Regulamento disporá sobre a apuração, o pagamento e as sanções pelo inadimplemento ou mora relativos às participações governamentais devidas pelos autorizatários.
§ 2º O Poder Executivo poderá estipular redução de até sessenta por cento dos valores previstos neste artigo mediante recomendação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) pelo prazo de até cinco anos, sem renovação.” (g.n.)
Em qualquer dos dois projetos, é fundamental garantir que uma eventual lei sobre o tema não engesse a atividade e os avanços tecnológicos, ao mesmo tempo que assegure a sua competitividade e redução de custos, considerando que hoje, a despeito do imenso potencial, devido aos elevados custos associados à tecnologia, a atividade ainda não é competitiva no Brasil. Nesta medida, a questão das participações devidas pelo agente – que impacta na sua competitividade – deverá ser alvo de amplo debate de forma a assegurar que não representem obstáculos ou barreiras para o desenvolvimento da nova atividade.
As oportunidades para eólicas offshore são grandes e estão em linha com o cenário internacional de redução das emissões, incluindo nesse rol a sua convergência com o desenvolvimento de outras tecnologias como o Hidrogênio Verde. Por fim, importante não perder de vista que a “aposta” nas eólicas onshore foi certeira para o Brasil, tratando-se de uma atividade limpa e competitiva consolidada há anos no País, com resultados excepcionais. E é precisamente isso que se espera da eólica offshore, em harmonia com as práticas ESG, gerando mais empregos e competitividade nos próximos anos.
*Fernando Montera é economista e mestre em administração. Atualmente é Coordenador de relacionamento Petróleo, Gás e Naval da FIRJAN, liderando a coordenação do Núcleo de Trabalho de Gás Natural e o desenvolvimento de ações no âmbito de Novas Energias.
(as opiniões do autor não refletem necessariamente o posicionamento da FIRJAN sobre o tema)
[1] De acordo com o Irena o valor de 2020 para esses 3 Países é de 27 GW, equivalente a 80% da capacidade mundial de OW. GWEC-Global-Wind-Report-2021.pdf
Minha coluna de hoje é sobre a Resolução nº 3, de 7 de abril de 2022, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabelece as diretrizes estratégicas para o desenho do novo mercado de gás natural, os aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência nesse mercado, os fundamentos do período de transição.
O contexto dessa Resolução foi a necessidade de construir soluções, ainda que transitórias[1], para garantir, na prática, a concorrência no mercado de gás natural no Brasil. E isso decorreu dos avanços atuais que, por certo, apontaram para problemas/limites que ainda impedem a plena observância dos princípios do Novo Mercado de Gás (NMG) e dos objetivos pretendidos com o desinvestimento da Petrobras no setor, nos termos indicados pelo Termo de Compromisso de Cessação (TCC do gás), celebrado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em 2019.
Foram muitas as diretrizes, medidas e princípios dispostos na Resolução. Todos eles já dispostos em outras normas, experimentados em outros mercados, e reconhecidos como fundamentais para a transição entre um mercado restrito para um mercado seguro e confiável com a participação de diversos agentes.
Mas além do (importante) reforço de tais parâmetros pelo CNPE – vinculado à Presidência da República e presidido pelo Ministério de Minas e Energia – há novidades importantes que devem ajudar no crescimento do mercado de gás enquanto o CADE não sinaliza com decisões mais objetivas no âmbito do TCC do Gás e a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis não finaliza itens fundamentais da sua extensa agenda regulatória.
Mas vamos em partes. Em primeiro lugar, chama atenção para o (correto) apoio dado às diretrizes estratégicas do novo mercado de gás natural no Brasil, especialmente aquelas que indicam a necessidade de dinamismo e acesso à informação (transparência), a participação dos agentes do setor e a promoção à competição na oferta do gás natural (sem perder de vista o respeito aos contratos).
Neste sentido, cito algumas diretrizes que me chamaram a atenção:
remoção de barreiras econômicas e regulatórias às atividades de exploração e produção de gás natural;
implementação de medidas de estímulo à concorrência que limitem a concentração de mercado e promovam efetivamente a competição na oferta de gás natural;
reforço da separação entre as atividades potencialmente concorrenciais, produção e comercialização de gás natural, das atividades monopolísticas, transporte e distribuição;
aumento da transparência em relação à formação de preços e a características, capacidades e uso de infraestruturas acessíveis a terceiros;
promoção do acesso não discriminatório e transparente de terceiros aos gasodutos de escoamento, Unidades de Processamento de Gás Natural – UPGNs – e Terminais de Regaseificação;
promoção da harmonização entre as regulações estaduais e federal, por meio de dispositivos de abrangência nacional, objetivando a adoção das melhores práticas regulatórias;
promoção de transição segura para o modelo do novo mercado de gás natural, de forma a manter o funcionamento adequado do setor.
E como se não bastassem tais diretrizes, o CNPE também confirmou os princípios da transição para um mercado de gás natural concorrencial, que deve primar pela segurança do abastecimento, pela celeridade e pelo fortalecimento e autonomia das agências reguladoras e da autoridade de defesa da concorrência.
Os objetivos da transição também são descritos na Resolução CNPE nº 3/22. Cito apenas alguns deles:
promover um mercado transparente, concorrencial e líquido de gás natural, tanto no atacado como no varejo, com diversidade de agentes do lado da oferta e da demanda;
restringir situações de transações entre comercializadores e concessionárias de distribuição de gás canalizado que sejam partes relacionadas;
promover a transparência e o estabelecimento de regras claras para o acesso negociado e não discriminatório às infraestruturas de escoamento e processamento de gás natural e aos Terminais de Gás Natural Liquefeito – GNL;
promover a transparência do teor dos contratos de compra e venda de gás natural para o atendimento ao mercado cativo; e
incentivar a adoção voluntária, pelos Estados e o Distrito Federal, de boas práticas regulatórias relacionadas à prestação dos serviços locais de gás canalizado, que contribuam para a efetiva liberalização do mercado, o aumento da transparência e da eficiência, e a precificação adequada no fornecimento de gás natural por segmento de usuários.
E tudo isso, sem esquecer da necessidade de (i) coordenação das atividades, (ii) concentração das operações de compra e venda de gás em um ponto virtual de negociação (que servirá como referência para os produtos relacionados à flexibilidade e ao balanceamento da rede), (iii) padronização dos contratos, (iv) redução da tarifa relacionada às interconexões e a efetiva interconexão das instalações do sistema de transporte, (v) a adequação de procedimentos e padrões utilizados pelos agentes, (vi) a implantação de programas para a liberação progressiva de gás natural (com a supervisão da ANP e dos órgão de defesa da concorrência) e (vii) simplificação e periodicidade dos processos de oferta de capacidade de transporte de gás natural. Grifei as palavras-chave para não restar dúvidas sobre os propósitos legítimos e necessários na consecução dos objetivos do NMG.
Para atingir tais objetivos, o MME se comprometeu a disponibilizar, no seu site, os prazos indicativos sobre: (i) interconexão de gasodutos de transporte; (ii) oferecimento de capacidade de transporte; (iii) troca de informação entre usuários e operadores de rede; (iv) elaboração de código de conduta e prática de acesso à infraestrutura; (v) processo de código de rede; (vi) informações sobre a constituição do conselho de usuários e (v) informações dos proprietários e operadores de infraestruturas essenciais. Previsibilidade, transparência e acesso às informações são essenciais para a estruturação do mercado de gás natural no Brasil.
Ademais, para além dos pontos que fazem referência ao transporte de gás natural, os temas que mais chamaram a atenção no artigo 8º da Resolução dizem respeito: (i) ao estímulo à participação ativa na comercialização de gás a curto prazo (para dar maior liquidez e transparência na formação de preços) e (ii) ao prazo de 180 dias para a conclusão das negociações entre os operadores de instalações e infraestruturas essenciais e o terceiro interessado no acesso – senão a ANP poderá atuar para verificar eventuais “condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”, devendo deliberar em 90 dias sobre o caso. Espera-se que, ao se estabelecer prazos, o mercado tenha mais previsibilidade, transparência e segurança nas negociações de acesso. Mais um reforço no papel (protagonista) do regulador federal – sem perder de vista que, havendo dúvida sobre as “condutas anticoncorrenciais” sempre será possível consultar os órgãos de defesa da concorrência.
Ainda sobre acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais, a Resolução CNPE reforça os seus princípios gerais (muitos deles já observados no case de acesso à UPGN Guamaré, por exemplo) merecendo destaque aquelas que ainda não foram implementados total ou parcialmente, quais sejam, os que estabelecem que (i) a remuneração para o acesso deva ser baseada em critérios objetivos e considerar um retorno justo e adequado do investimento, a partir de uma prestação de serviço eficiente; (ii) que toda recusa ao acesso deva ser devidamente justificada; e (iii) que os proprietários ou operadores devam dar transparência e disponibilizar dados e informações sobre as instalações de gás natural, contendo no mínimo: as remunerações dos serviços prestados; as capacidades disponíveis, contratadas e utilizadas; os atuais usuários das instalações; e as negociações em curso, especificando a data de início.
Outro importante tema tratado na Resolução CNPE nº 3/22 diz respeito às medidas estruturais e comportamentais que devem ser observadas pelos agentes que ocupem uma posição dominante no setor – as quais vão desde a alienação total das ações nas empresas de transporte e distribuição até venda de gás em leilões.
O CNPE também ratificou a importância da harmonização das legislações estaduais, ao indicar as medidas que esperam ser tomadas pelos estados, inclusive via aditivo contratual, com as suas concessionárias distribuidoras. Recomendou, também, a articulação do MME, ANP e EPE para treinamento e capacitação das agências reguladoras estaduais. Todos, pontos fundamentais – e ainda pendente em vários estados – para o sucesso do NMG!
Por fim, sobre as condições de concorrência no mercado de gás, o CNPE recomendou a elaboração de um diagnóstico conjunto entre ANP, MME, ME e CADE, em seis meses, o que é de extrema importância para a tomada de decisões estratégicas no sentido de assegurar a desconcentração da oferta do gás natural. Faço menção aos integrantes do Fórum do Gás – em especial à Juliana Rodrigues, especialista em energia da ABRACE – que sempre defenderam diretrizes de transição bem semelhantes às apresentadas pelo CNPE.
Vamos em frente nos caminhos indicados pelo CNPE.
[1] Art. 6º Fica estabelecido o período de transição para o novo desenho de mercado de gás natural até o término do processo de fusão de áreas de mercado de capacidade do sistema de transporte.
Normas que provocam distorções, que geram mais custos que benefícios sociais, têm sido uma frequência nos três níveis da federação. A proliferação legislativa descuidada acarreta insegurança jurídica e dificulta o desenvolvimento econômico.
Essas dificuldades não são específicas do Brasil. Em nível internacional, o movimento chamado Better Regulation ganhou força nos anos 2000 e colocou holofote no problema da falta de qualidade do arcabouço regulatório mundial e na urgente necessidade de saneá-lo.
Com essa perspectiva, é importante trazer à tona novas alternativas de intervenção estatal. No presente texto, discorremos sobre a soft regulation – regulação que acontece por meio de instrumentos não vinculativos que, embora advenham do poder público, não exigem monitoramento e fiscalização ostensivos por parte da administração pública.
Existe um espaço promissor para se promover a soft regulation no Brasil, com consequências positivas para a racionalização do ordenamento jurídico, a dinamização do crescimento econômico e o incremento do bem-estar social.
No Manual de Boas Práticas Regulatórias da Advocacia-Geral da União é destacado que “o excesso de regras, a falta de clareza, a complexidade da linguagem e a ausência de atualização das normas produzem um ambiente deletério à segurança jurídica, ao setor regulado, aos usuários de serviços e ao próprio Estado de Direito”.
Um ambiente regulatório-normativo inchado é nocivo ao ambiente de negócios, já que dificulta investimentos pela falta de regras claras; encarece e burocratiza o empreendedorismo e o estímulo à inovação; e eleva o Custo Brasil, diante dos altos custos de transação, tornando o País menos competitivo no cenário mundial.
A relevância da atuação do Estado Regulador não afasta os questionamentos quanto à qualidade das regulações. Segundo Meneguin e Saab, no texto “Análise de Impacto Regulatório: perspectivas a partir da Lei da Liberdade Econômica”, as perguntas que devem pautar a atuação estatal são, basicamente: “será que o desenho da norma consegue gerar efeitos que eram realmente os esperados? Será que os custos impostos pela regulação superam os benefícios gerados para a sociedade?”.
Nesse sentido é que o desenho dos marcos regulatórios e das políticas públicas deve ser cuidadosamente pensado, pois ele cria incentivos e altera a matriz institucional, favorecendo ou dificultando o desenvolvimento econômico. A utilização da soft regulation vem para colaborar na construção de soluções que contenham os corretos incentivos para a sociedade, possibilitando intervenções estatais mais eficientes e evitando falhas de governo.
O termo soft regulation deriva do debate entre soft law e hard law no Direito Internacional. Os tratados e as convenções internacionais processados, aprovados e ratificados no contexto interno do país são denominados de hard law, de maneira que seu cumprimento pode ser exigido e as punições pelo descumprimento aplicadas. Por outro lado, as declarações, os códigos de conduta, as diretrizes e as outras promulgações de órgãos políticos do sistema das Nações Unidas, por exemplo, são chamadas de soft law, que se equivale a algo que não tem força legal ou vinculante.
No caso da soft regulation, embora difundida na Europa, a expressão não encontra unanimidade na doutrina internacional. Outras referências encontradas na literatura, tais como non-regulatory approaches ou, por vezes, non-regulatory solutions, apesar de serem mais genéricas, incluem, entre outras formas, o que se entende por soft regulation.
Apesar de não haver definição expressa na doutrina, podemos considerar soft regulation como forma regulatória editadas pelo Estado que não exige comando e controle, sendo aplicada por meio de diversos instrumentos sem força normativa cogente. A soft regulation pode anteceder, complementar, suplementar ou substituir a regulação tradicional, a depender da necessidade e do contexto, como mais uma alternativa para minimizar um problema regulatório.
No relatório da OCDE Alternatives to Traditional Regulation, os instrumentos não normativos são separados nas seguintes espécies: market-based instruments; self-regulation approach; co-regulation approach; e information and education schemes.
O novo Guia para Análise de Impacto Regulatório editado pelo governo federal, de forma semelhante ao que propõe a OCDE, categoriza as alternativas não normativas assim:
autorregulação: quando um grupo organizado regula o comportamento de seus membros;
corregulação: regulação compartilhada;
incentivos econômicos: buscam alterar o comportamento dos agentes por meio de incentivos econômicos, como alteração de preço; e
informação e educação: instrumentos usados para corrigir assimetria de informações entre os agentes.
Essas alternativas não normativas, que a depender do desenho podem ser entendidas como soft regulation, tem por objetivo, segundo o relatório da OCDE, Alternatives to Traditional Regulation, “minimizar algumas das principais deficiências da regulamentação tradicional”, por meio do uso de instrumentos regulatórios que possuam como base o desempenho e os incentivos.
Perceba que a escolha do uso de soft regulation está diretamente ligada aos objetivos e à necessidade do mercado e cabe ao gestor público, após fazer a análise de impacto regulatório (AIR) sobre o problema que se pretende minimizar, sopesar a solução mais adequada. Não é necessariamente uma gradação, já que há sempre a opção de se iniciar o processo com uma regulação tradicional.
A literatura aponta algumas vantagens inerentes aos instrumentos de soft regulation: adaptabilidade e flexibilidade às situações que se impõem; rapidez e menos custo para elaboração e implementação; mais assertividade e eficiência diante do problema regulatório; capacidade de influenciar e orientar pedagogicamente os regulados a comportamentos desejados.
Apesar de o uso da soft regulation ainda não ser muito disseminado no Brasil, temos um exemplo de sua utilização no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – o órgão publicou em 2016 o Guia Programas de Compliance, para estabelecer definições, sugestões e diretrizes não-vinculantes para as empresas no âmbito da defesa da concorrência.
A iniciativa, na forma de um “menu de opções”, visa auxiliar as empresas a adotarem programa de compliance para evitar condutas anticompetitivas, por meio de esclarecimento passo a passo para facilitar a implementação da conduta desejável.
O estímulo é feito por meio da demonstração das vantagens da adoção do programa de forma adaptável à realidade de cada organização. Assim, o Cade, guiado pelas práticas que estão sujeitas à sua função repressiva, trouxe, de forma inovadora, opções educativas e preventivas que visam impedir que as empresas violem a Lei de Defesa da Concorrência e sofram penalidades.
Portanto, claramente, não só o Guia do Cade, mas todos os programas de compliance estimulados por autoridades públicas se configuram como opções que se amoldam perfeitamente ao conceito de soft regulation.
Por fim, vale observar que a soft regulation não detém uma só forma para todos os fins e não é uma panaceia para todo problema que carece de intervenção estatal. No entanto, a forma se apresenta como funcional e adaptável ao caso concreto por meio de medidas não intrusivas. Cabe à administração pública, no bojo do processo de AIR, considerar todas as alternativas e decidir pela melhor opção.
Neste artigo continuaremos a explorar os desdobramentos do uso da tecnologia blockchain e seus possíveis efeitos na concorrência, focando especificamente nas práticas colusivas, especialmente nos cartéis.
As condutas colusivas ou coordenadas, as quais englobam acordos e práticas concertadas entre concorrentes, como cartéis, além de práticas verticais, geram diversas preocupações ao mercado e às autoridades antitruste ao redor do mundo. Devido ao seu alto potencial lesivo ao ambiente competitivo, acordos entre concorrentes e outras práticas concertadas têm sido reprimidas com dureza pelas agências.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em seu Guia de Combate a Cartéis em Licitação[i], define o cartel como “acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, estabelecer quotas ou restringir produção, dividir mercados de atuação e alinhar qualquer variável concorrencialmente sensível”.
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o cartel é a mais grave dentre as condutas anticompetitivas, uma vez que prejudica sobremaneira os consumidores e tem efeitos prejudiciais sobre a eficiência econômica. Isso porque, um cartel bem-sucedido pode aumentar os preços acima do nível competitivo, reduzir a quantidade e a qualidade ofertada de bens e reduzir o incentivo à inovação, protegendo seus membros dos riscos inerentes à exposição às forças de mercado, reduzindo a pressão competitiva nos segmentos afetados por este tipo de acordo[ii].
Não à toa, o Cade, assim como outras autoridades antitruste internacionais, tem direcionado contínuos esforços ao combate dos acordos colusivos e cartéis. Apenas no ano de 2021, 19 processos administrativos que investigavam cartéis foram julgados pelo Tribunal do Conselho, os quais resultaram em 13 condenações e na aplicação de multas que, somadas, chegaram ao valor de R$ 1.035.741.384,42[iii].
Além da persecução administrativa de cartéis, exercida no Brasil pelo Cade, a qual pode resultar em caso de condenação na imposição de multas impostas às empresas que variam de 1 a 20% do seu faturamento bruto e outras possíveis punições, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitações envolvendo a administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a cinco anos; os cartéis também são objeto de persecução penal. Ainda, a Lei de Defesa da Concorrência prevê o direito dos prejudicados de ingressarem em juízo para obter indenização por perdas e danos resultantes de práticas que constituam infração da ordem econômica.
Diante da importância conferida ao combate aos acordos colusivos entre concorrentes em face do seu potencial lesivo à concorrência e, consequentemente, aos consumidores, diversos pesquisadores têm se dedicado a compreender se e como, novas tecnologias, como a blockchain, podem interagir com este tipo de prática; seja pela ótica da sua utilização pelas autoridades de defesa da concorrência para reprimir condutas anticompetitivas, seja pela ótica dos agentes de mercado, por meio de sua utilização para implementar e refinar práticas colusivas.
Esse é um dos pontos explorados por Schrepel (2019), no artigo “Collusion by blockchain and smart contracts“, em que o autor afirma ser possível a criação de blockchains para fins anticompetitivos e para o compartilhamento de informações, de modo a induzir os participantes à conduta uniforme.
Segundo o autor, as condições de acesso, uso e/ou saída da blockchain podem acarretar consequências negativas na seara concorrencial, pois as empresas podem acabar se utilizando da tecnologia para facilitar a criação e/ou funcionamento de acordos de conluio sobre suas estratégias no mercado, incluindo preços, níveis de produção, estratégias de inovação e similares (Schrepel, 2019, p. 140).
Ainda, Schrepel defende que as blockchains podem dificultar a detecção de tais práticas pela autoridade antitruste, tendo em vista o seu funcionamento peculiar e suas características, como o anonimato dos membros e, no caso de blockchains privadas, a possível vedação de acesso a membros não autorizados.
O autor também chama atenção para a necessidade de se analisar os smart contracts – os chamados contratos inteligentes, que são autoexecutáveis para transações online. Assim como a tecnologia blockchain, eles possuem um “double effect”, ou seja, ao mesmo tempo que podem dinamizar transações e facilitar negociações, podem também ser facilitadores de transações entre empresas que possuem intenções prejudiciais à concorrência permitindo, inclusive, o implemento de mecanismos de punição mais eficientes aos membros que descumprirem os termos do acordo entre concorrentes.
Nesse sentido, o autor destaca que os contratos inteligentes teriam a potencialidade de fazer com que o número de pedidos de leniência venha a ter uma diminuição, tendo em vista que a blockchain reforça a confiança durante a vigência da colusão[iv].
Esta hipótese nos chama especial atenção, uma vez que a política de acordos antitruste do Cade é um dos principais pilares para a persecução de práticas coordenadas no Brasil, de forma que uma diminuição poderá dificultar severamente o cumprimento da função repressiva pelo órgão. Este cenário pode obstaculizar tanto a identificação dessas práticas e dos seus participantes, quanto a obtenção de provas aptas a ensejarem a condenação dos agentes envolvidos.
Ainda sobre os contratos inteligentes, Nick Szabo sugere que, no futuro, eles também poderão ser usados para integrar elementos de inteligência artificial para detectar o equilíbrio ideal de um acordo e agir de acordo com ele[v].
Trazendo uma perspectiva diversa, Lin William Cong e Zhiguo He (2018) argumentam a tecnologia blockchain tem o potencial de mitigar a assimetria de informações e melhorar o bem-estar do consumidor por meio do aumento da competitividade e da ampliação de espaço para negociação. Não obstante, os autores sugerem que, ao mesmo tempo, essa tecnologia também pode encorajar comportamento colusivo justamente em razão dessa distribuição de informações comerciais.
Especificamente com relação aos possíveis impactos da tecnologia blockchain na atuação das agências antitruste, conforme havíamos mencionado em nosso artigo anterior, é possível que as blockchains possam ajudar as autoridades a coletar mais dados no futuro, os quais permitirão que as agências executem análises mais aprofundadas e explorem teorias do dano mais complexas[vi].
Ao analisar alguns dos impactos possíveis da blockchain na dinâmica competitiva dos mercados, conclui-se que a tecnologia parece capaz de promover, de fato, “efeitos duplos”. Redução da assimetria de informações entre agentes de mercado e entre estes agentes e os consumidores e a oferta de novos meios de coleta de dados e de monitoramento de mercados para as agências antitruste são alguns dos efeitos positivos elencados pela doutrina como resultantes da aplicação dessa tecnologia. De outro lado, porém, a tecnologia pode encorajar, conforme demonstrado acima, comportamentos colusivos, além de dificultar sua detecção pelas autoridades e ser utilizada como meio para implementação de condutas exclusionárias e para o monitoramento da efetividade dos acordos entre concorrentes. Por estes motivos, uma sólida compreensão da tecnologia blockchain e demais novas tecnologias deve ser prioridade das agências de defesa da concorrência, tanto para garantir a efetividade da repressão das infrações da ordem econômica, quanto para que o potencial positivo possa ser integrado a suas práticas.
[iv] RESENDE apud SCHEREPEL, 2021. Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin> Acesso em: 27 de março de 2022.
[vi] Tulpule. Ajinkya. Blockchain and competition: Ajinkya Tulpule and how blockchain might change the way agencies work. Youtube, 4 de set. de 2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=oM-NhHb4ngA >
[i] Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade. Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV.
[ii] Advogada no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV. Atuou como coordenadora-substitua e assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.
[iii] Advogada no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).
A integração vertical, ou verticalização como é mais conhecida no mercado de saúde, se refere ao processo que que há a unificação produtiva de partes da cadeia que antes eram separadas. Quando uma operadora de plano de assistência à saúde adquire um hospital, ou vice-versa, há uma integração vertical pois o plano de saúde e o hospital passam a operar sob uma gestão única. O mesmo ocorre dentro do hospital quando este é responsável, por exemplo, pelo funcionamento dos serviços de gastroenterologia.[1]
Esse processo de integração visa um melhor alinhamento de incentivos entre os agentes econômicos, reduzindo custos de transação e ineficiências decorrentes de uma gestão com objetivos eventualmente conflitantes e separados. Essa não é, portanto, uma peculiaridade da saúde. Ao contrário, a economia industrial é cheia de exemplos em que a verticalização resulta em economias para as partes e maior eficiência econômica. Já o ecossistema da saúde, com crescente uso de informações e transações digitais, atualmente é muito mais próximo ao funcionamento de redes integradas do que a tradicional visão de etapas subsequentes das cadeias produtivas industriais.
A visão mais tradicional da análise antitruste se baseia no argumento de que há um nível de concentração que para além do qual, os custos econômicos superam os benefícios. Diversos índices de concentração (HHI, C4, etc.) ajudam a identificar os mercados relevantes que merecem um maior grau de preocupação das autoridades da concorrência. Não é objetivo desse artigo adentrar este campo já muito desenvolvido na literatura. [2]
Mas e na integração vertical? E, mais ainda, na área da saúde, haveria um indicador capaz de sinalizar ou antecipar algum potencial dano à concorrência? Sabemos que os tradicionais índices de concentração são muito úteis para movimentos horizontais, mas estes não se aplicam diretamente aos movimentos verticais. [3]
A literatura disponível ao conhecimento deste autor não indica um consenso se os efeitos predominantes de uma integração entre empresas que atuam em mercados complementares são ganhos de eficiência ou anticompetitivos. Sabemos que os ganhos de eficiência podem vir de redução dos custos de transação, melhora na capacidade de monitoramento dos elos da cadeia produtiva e melhor coordenação do cuidado. Já em relação aos efeitos anticompetitivos, o fechamento de mercado para a entrada de concorrentes talvez seja o mais danoso.[4]
No Brasil, e em especial na saúde privada suplementar, o movimento de concentração vertical foi acelerado após investimentos de instituições financeiras estrangeiras em toda cadeia de saúde suplementar, que só foram possíveis após a Lei n. 9.656/98 para a recepção de capital estrangeiro em operadoras assim como pela Lei n. 13.097/15, que ampliou esta possibilidade às empresas de assistência à saúde como clínicas, laboratórios e hospitais. [5]
A própria concorrência, a regulação da ANS com requerimentos de entrada e capital, dentre outros, e a escalada dos custos assistenciais impuseram aos agentes econômicos a necessidade de reformatar seus modelos de negócio abrindo espaço para as fusões, aquisições e integrações verticais. Não podemos esquecer que o modelo de remuneração Fee-For-Service (FFS), que paga de acordo com o volume de procedimentos ofertados, contribuiu para uma taxa de crescimento de custos acima do sustentável, nem sempre privilegiando a melhoria da assistência aos pacientes. O mesmo efeito pode ser atribuído ao histórico processo de incorporação de tecnologias na saúde suplementar, sem avaliações técnicas de custo-efetividade como os bons manuais de Avaliação de Tecnologias em Saúde recomendam. Isso tudo, aliada à fragmentação do cuidado assistencial e à excessiva judicialização, contribui para a inovação dos modelos de negócios.
Na saúde suplementar, a obtenção de economias de escala é fundamental para dar maior segurabilidade aos riscos e custos assistenciais crescentes. A integração vertical, seja ela real ou virtual, confere às operadoras a possibilidade de gestão desses riscos com estratégias de coordenação de cuidados assistenciais e de saúde populacional, sem falar na necessidade crescente de integração de dados para melhorar a assistência prestada e desenhar soluções mais focalizadas para grupos de riscos específicos.
A integração com coordenação também pode permitir um melhor resultado assistencial ao melhorar a comunicação entre os agentes, padronizar procedimentos e reduzir redundâncias. No fim do dia, o consumidor estará mais bem atendido. Esse seria o desenho ótimo de uma integração vertical, cabendo às autoridades o monitoramento desse movimento com vistas a preservar os benefícios econômicos que a integração pode trazer. Na ausência de falhas de mercado e infrações à legislação de defesa da concorrência, o mercado encontra o caminho para levar o melhor resultado assistencial aos consumidores de planos.
Nesse sentido, a verticalização é um processo, e não um fim em si mesma, que ajuda a lidar com o desafio do financiamento. Isto porque as despesas assistenciais, representadas na saúde suplementar pela VCMH (variação dos custos médico-hospitalares) crescem em velocidade superior ao crescimento das rendas, salários, inflação ao consumidor e diversos outros indicadores econômicos.
Sob o ponto de vista da defesa da concorrência, a análise das eficiências dinâmicas que geralmente procuram observar efeitos da operação sobre preços e quantidades deve olhar cada vez mais para indicadores de qualidade assistencial, não desprezando evidentemente os tradicionais indicadores de solvência, muito importantes em um mercado que lida com riscos futuros, eventos incertos e com a poupança popular.
Para finalizar, pouco importa se a verticalização é real, mediante a aquisição de ativos, ou virtual, mediante acordos e contratos. O que realmente interessa é o resultado na última linha do balanço assistencial, ou seja, a entrega de valor em saúde para as pessoas.
[1] Song, L., Soroush, S., Saghafian, M., Newhouse.J., Landrum, M., Hsu, J. The Impact of Vertical Integration on Physician Behavior and Healthcare Delivery: Evidence from Gastroenterology Practices Faculty Research Working Paper Series. September 2020
[2] Uma boa discussão sobre a relação entre índices de concentração, mercados relevantes geográficos e preços na saúde suplementar pode ser encontrada em Lima, T (2021). Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar. Documento de Trabalho 04. Departamento de Estudos Econômicos do CADE.
[3] Alguns economistas utilizam o índice de Gans ou HHI vertical (VHHI) para mensurar a verticalização. O VHHI é dado pelo somatório do produto da participação da firma a jusante com o máximo entre essa mesma participação e a da firma a montante. Sendo si a participação da firma a jusante e σi a participação da firma a montante, tem-se que: VHHI = . Cabe o registro de que a definição dos mercados relevantes e, principalmente, na dimensão do produto, condição necessária para cálculo do referido indicador, é tarefa de enorme complexidade devido às múltiplas funções exercidas pelo hospital em seus diversos serviços assistenciais.
[4] Gaynor M (2014) Competition policy in health care markets: Navigating the enforcement and policy maze. Health A↵airs 33(6):1088–1093.
[5] Não nos esqueçamos que a verticalização é um processo antigo. As medicinas de grupo, por exemplo, já nasceram verticalizadas, assim como as filantrópicas e as próprias Unimeds. Faz parte do DNA organizacional dessas entidades a operação conjunta do plano e da assistência.
Following the Glasgow Climate Change Conference (COP 26), Brazil and 104 other countries signed the Global Methane Pledge. Methane emissions reduction is important for curbing global warming, as methane causes approximately 80 times more warming than the same amount of carbon dioxide[1]. Brazil committed to reducing 30% of its methane emissions by 2030. However, should Brazil accomplish this commitment, its large beef industry must adapt, as livestock is the heaviest methane emitter in the country [2].
Due to its large bovine herd (220 million cattle, equivalent to 14% of the bovine global herd), Brazil is the fifth largest methane emitter in the world[3]. In 2020, it emitted almost 402 million metric tons of CO2 equivalent (MMTCO2E – around 2% of total world emissions). The heaviest methane emitter in Brazil is agriculture, which accounts for 78% of total emissions. Livestock, on its own, is responsible for 75% (300 MMTCO2E) of the country’s methane emissions (primarily from enteric fermentation and manure management). Therefore, to achieve a 30% reduction below the 2020 levels, livestock emissions must fall sharply.
According to Embrapa (The Brazilian Agricultural Research Corporation), it is necessary to reduce bovine herd enteric fermentation to address methane emissions in Brazil. For instance, dietary supplements can diminish fermentation and thus lower gas output. JBS, the largest Brazilian meatpacker, is adding a quarter-teaspoon of a feed additive to 30 thousand cattle that inhibits the enzyme responsible for producing methane. Shortening the lifespan of the cattle also leads to the reduction of methane emissions, as the same body mass is reached in less time. This depends on techniques such as genetic alterations and bettering the quality of pastures[4].
All these alternatives depend on the deployment of innovations and imply higher production costs. Unless meatpacking companies can pass these higher costs on to consumers, there may not be incentives to adopt techniques that will result in lower methane emissions. Thus, it is important to investigate whether consumers will agree to pay higher prices for “climate friendly beef”. A recent paper by Lucchese-Cheung et al. (2021)[5] sheds light on this issue, as they investigate whether Brazilian consumers are willing to pay more for carbon neutral beef (CNB).
Embrapa has set up a producers’ certification scheme in which beef producers not only adhere to CNB method of production, but also to a guaranteed quality standard. The certification is aimed at assuring consumers of high-quality carbon neutral beef, a market innovation (Alves 2015, apud Lucchese-Cheung et al. 2021). In fact, the CNB is an attempt to further differentiate beef by adding a characteristic that makes it possible for consumers to compare CNB and non-CNB and decide whether to pay more for carbon neutral beef.
According to Lucchese-Cheung et al. (2021), communication campaigns are vital for a large consumer base to be willing to pay a higher price for carbon neutral beef. However, the results of advertisement campaigns are uncertain, not to mention that they are sunk costs[6]. Hence, there is no guarantee that meatpackers will spend to advertise carbon neutral beef. If they do not, it is less likely that consumers will pay more for CNB. Consequently, producers may decide not to incur the higher costs necessary to produce carbon neutral beef and, as a result, the reduction of methane emissions can be compromised.
Lucchese-Cheung et al. (2021) investigate domestic consumers’ responses to an innovation (carbon neutral beef). However, Brazil is a relevant exporter, which makes it important to investigate whether foreign consumers are willing to pay higher prices for carbon neutral beef (CNB). In the case that they are, and Brazilian firms do not supply it, competitors may do so and therefore divert demand from Brazilian beef exporters. As a result, domestic firms would lose market share. Moreover, some countries may adopt carbon border taxes, which makes it even more costly and risky not to invest in methane emissions reduction.
Furthermore, the cost of capital for the Brazilian meatpackers may increase should they not invest to reduce greenhouse gases emissions. A recent episode helps to illustrate it. Inter American Development Bank (IADB) has blocked a USD 200 million loan for Marfrig, the second largest Brazilian meatpacker. The alleged reason was that Marfrig did not comply with IADB’s sustainability policy. This episode is interesting, as Marfrig was going to use the money to finance its Plan Green + (Plano Verde +), which aims at ensuring sustainability alongside its supply chain[7].
Thus, there seems to be a dilemma. For ranchers and meatpackers to access low-cost capital, such as green bonds or sustainability-linked bonds, they must invest in sustainability. However, to do so, they must have access to low-cost funding. If they do not, they may not invest.
It is believed that the global carbon market can help solve this dilemma. By reducing methane emissions, ranchers and meatpackers would sell carbon credits to companies who need offsets to reduce emission targets. By doing so, their revenue would increase. However, the role of carbon markets for methane emissions is not clear, as there have not been issuances and, therefore, the return on the investment is not known[8][9].
Furthermore, full traceability of ranches that supply livestock into the supply chains is essential for the carbon credit market to work. Although Brazilian largest meatpackers trace cattle sellers, they are not fully traceable. Consequently, it is difficult to accurately estimate the amount of methane reduction and, consequently, the carbon credits to be sold.
Summing up, there is a lot of uncertainty regarding how to fund the methane emissions reduction and the industry transition to “climate friendly beef”. The potential competition faced by Brazilian exporters should be sufficient for the public sector to step in and launch financing schemes. Additionally, there are negative externalities[10] associated with greenhouse gases emissions, such as methane, which justifies public policies for reducing them.
There are two public policies addressing this issue in Brazil: The National Plan for Low Carbon Emission in Agriculture (ABC Plan[11]) and The Zero Methane Program[12]. The ABC Plan has the goal of reducing greenhouse gases emissions in agriculture. Regarding funding, it offers low-cost loans up to USD 1 million (BRL 5 million) per fiscal year. The Zero Methane Program was recently launched and offers funding for activities related to methane reductions, such as the sustainable use of biomethane[13]. It also aims at setting up the legal framework for developing a carbon market for methane emissions reduction.
Given the costs and uncertainties related to the transition to a “climate friendly beef industry”, it is difficult to predict whether these public policies will be enough for enabling it. Meatpacking and livestock companies’ incentives to invest in methane reduction will also be key to enabling this transition. These incentives, on the other hand, depend on their ability to pass higher costs on to prices. However, given the uncertainty regarding the ability to charge higher prices for “climate friendly beef”, and as the Global Methane Pledge is not binding, companies might not invest, which can result in a market failure. To avoid it, Brazil should consider reinforcing the public policies and legally enforcing its reduction commitments as part of the efforts to reduce methane emissions and thus start overturning its image as a climate villain.
[5] Thelma Lucchese-Cheung, Luis Kluwe de Aguiar, Lilian Cunha de Lima, Eduardo Eugênio Spers, Filipe Quevedo-Silva, Fabiana Villa Alves & Roberto Giolo de Almeida (2021) Brazilian Carbon Neutral Beef as an Innovative Product: Consumption Perspectives Based on Intentions’ Framework, Journal of Food Products Marketing, 27:8-9, 384-398.
Com o advento da Lei Complementar nº 190/2022 (LC 190)[1], publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 05/01/2022, foram promovidas as necessárias alterações na Lei Complementar nº 87/1996 (LC 87 ou “Lei Kandir”) para adaptá-la à previsão constitucional instituída pela Emenda Constitucional nº 87/15 (EC 87).
Tratava-se, como muito já se escreveu sobre o tema[2], de cumprimento de condição imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para instituição do diferencial de alíquota nas operações interestaduais dirigidas a consumidores finais (sejam eles contribuintes ou não).
Diversas polêmicas surgiram, como a questão do respeito à anterioridade[3] e a aparente antinomia entre a LC 190 e o recente Convênio CONFAZ nº 236/2021[4] no que diz com a fixação da base de cálculo para o DIFAL – se simples ou dupla[5].
Essas questões, naturalmente, têm levado os contribuintes à justiça, e o chamado “manicômio tributário”[6] segue a todo vapor, agora já em sua faceta mais terrível: o da insegurança na busca da tutela jurisdicional que, pela falta de linearidade em suas decisões – ora favoráveis a uns, ora desfavoráveis a outros[7] –, pode gerar distorções concorrenciais de imensa monta.
Já tentamos ofertar nossas contribuições para as discussões sobre anterioridade da LC 190[8] e acerca da arbitrariedade no exercício da função jurisdicional (que não se confunde com a sagrada independência funcional diga-se)[9].
Nesta oportunidade, interessa-nos deflagrar conversas a respeito de se houve, com a LC 190, a alteração do conceito de “contribuinte de ICMS” desenhado pela jurisprudência do STF[10] e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para efeitos de aplicação do DIFAL, especialmente na tese repetitiva nº 261[11] e na súmula STJ nº 432[12].
A jurisprudência da Corte Superior caminhava mansamente na direção de que não bastava, para configuração de “contribuinte”, que dada pessoa jurídica tivesse um cadastro no sistema de ICMS estadual (inscrição estadual); era necessário averiguar se, de fato, havia a prática mercantil reiterada das hipóteses de incidência do ICMS[13].
A Constituição desta aspirante a República (CRFB/88), em seu artigo 155, §2º, XII, “a”, indica que, para o ICMS, “cabe à lei complementar definir seus contribuintes”. Por óbvio, não se trata de um cheque em branco; a definição deverá observar os aspectos naturais da matriz de incidência tributária.
Sob pena de desnaturar a hipótese de incidência e a elementos basilares de sujeição passiva fiscal, não podemos admitir a definição, como contribuinte de ICMS, contemplando alguém que não demonstre capacidade contributiva e/ou não pratique nem tenha qualquer conexão razoável e concreta com a prática efetiva do fato gerador do referido imposto.
Feito o disclosure, assumamos, neste momento e para fins do iminente debate, a plena viabilidade de uma lei complementar definir os contribuintes de ICMS. Partindo dessa premissa, temos que a LC 190 alterou a LC 87 (esta, a lei geral sobre ICMS à qual faz referência a regra constitucional).
Em seu artigo 4º, a LC 87/96, elenca os contribuintes de ICMS sob o caput de ser “qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”
A LC 190/22, ao trazer uma nova redação ao §2º do referido artigo, atende ao suscitado pelo STF e amplia/reestrutura, aparentemente consoante os moldes da EC 87/15[14], o conceito original e informa o seguinte acerca dos contribuintes de DIFAL em operações interestaduais a consumidores finais:
“§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:
I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;
II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto.”
Com a reconstrução desse conceito e a necessidade de tratamento integral ao tema DIFAL, foi ainda editado o Convênio CONFAZ 236/21. Ao cabo, cada unidade federativa (UF) deve disciplinar, por lei própria, a questão. Entende-se, majoritariamente, que apenas a construção final desse bloco permitirá a legítima cobrança do DIFAL introduzido pela EC 87/15.
Com tamanhas alterações normativas, é – lamentavelmente – justo presumir que poderá se reinstalar toda a discussão que outrora havia sido pacificada no STJ e no STF: quais os requisitos, além dos normativos de cada UF, para que se configure dada pessoa como contribuinte de ICMS?
Será possível, nessa circunstância de tão profundas modificações, que cada UF legisle sobre o tema a seu bel prazer e, eventualmente, entender que para ser contribuinte basta a inscrição estadual, como parece indicar a cláusula sexta do Convênio 236/21?
“Cláusula sexta A critério da unidade federada de destino e conforme dispuser a sua legislação tributária, pode ser exigida ou concedida ao contribuinte localizado na unidade federada de origem inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS.”
Essa redação, nos parece, viabiliza que de modo unilateral cada UF de destino possa gerar o problema original e, pela via da exigência de cadastro estadual, colocar novamente em xeque se esse cadastro bastaria à qualificação como contribuinte, ainda que na UF de origem a pessoa em questão não seja considerada como tal.
Aqui, soaria fundamental, e preferencialmente instituídos em Convênio CONFAZ, que se construíssem critérios objetivos e lineares para tanto. O primeiro deles, em apoio à segurança jurídica, seria o de que uma determinada pessoa não pode – como no conhecido caso das empresas de construção civil – ser considerada contribuinte pela UF “A”, mas não o ser pela UF “B”.
Assentada essa base, outros elementos de objetividade seriam muito bem-vindos para evitar que toda a discussão se dê tendo como paradigma apenas a jurisprudência correlata às empresas de construção civil.
É certo que a resposta outrora dada pelo STF e STJ ao tema considerava um arcabouço constitucional diferente[15] e um bloco de qualificação de contribuinte gramaticalmente diverso do que se avizinha, mas a leitura conferida parte de elementos de realidade e de adequação à regra matriz de incidência do imposto – que, materialmente, entendemos seguem hígidos; não sofreram alteração substancial.
Compreendemos, portanto, que (i) o entendimento do STJ deve prevalecer, pois se ampara em elementos da regra matriz de incidência tributária e (ii) certamente, sob o pálio da cláusula sexta do Convênio, poderá a ocorrer uma nova onda conflitos federativos em que uma UF considera o mesmo perfil de pessoa contribuinte em seu território e não contribuinte no território de outra UF.
Temos que a extensão subjetiva de contribuinte para pagamento de ICMS envolve inexoravelmente três conceitos: “operação”, “circulação” e “mercadoria”, e possui como elemento de interseção os seguintes requisitos: habitualidade e intento lucrativo.
Neste sentido, a projeção é que de um lado tenhamos um alienante praticando atividade mercantil e do outro haja um adquirente, em conjunto coordenados de atos dentro inseridos no contexto de um circuito econômico, por ser um tributo plurifásico.
Esse delineamento jurisprudencial, como dito, parte da própria Constituição quando estabelece que se trata, o ICMS, de um imposto sobre circulação, dado que esse conceito é fixado no direito empresarial. Em uma análise interpretativa semiológica sobre o destinatário padrão-contribuinte, o legislador ordinário não pode fugir aos conceitos estabelecidos na CRFB/88.
Essa bilaterialidade legislador-contribuinte em relação aos conceitos impõe o dever de coadjuvação, isto é, não haver qualquer alteração conceitual constitucional por parte do legislador ordinário, sob pena de contrariedade ao princípio da confiança. A obediência à lógica constitucional se impõe na medida em que se trata aqui de conjunto de normas oriundo do poder constituinte originário, que fixa limites materiais ao legislador derivado e aos infraconstitucionais. Afinal, os textos ainda dizem algo, pois não?
Foi nesse sentido que caminhou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ao exigir os requisitos da habitualidade e onerosidade para conceituar o contribuinte de ICMS. No caso vertente, caso se tente extrair ideia diversa de uma legislação infraconstitucional, tal leitura se mostraria incuravelmente inconstitucional.
Entre tantos problemas, dúvidas e desafios trazidos pela LC 190/22, chamamos atenção a esse risco acerca da própria condição de contribuinte, eminentemente para pessoas jurídicas que tenham cadastros estaduais por motivos – muitas vezes – apenas procedimentais/instrumentais.
Se fossem verdadeiros os argumentos das autoridades fiscais estaduais[16], nascidos da inconformidade com a não conversão do PLP 32/21 até 31/12/2021, apontando que a EC 87/15 promoveu apenas uma repartição de receita tributária[17], a solução seria verdadeiramente mais simples.
As palavras “e se” ganham um contorno pueril, haja vista a necessidade de se viver em apenas uma realidade e tratar dos problemas efetivamente existentes. Mas, ao abrirmos essa porta, a curiosidade nos estimula a seguir.
Em primeiro lugar: considerando a estrutura da EC 87/15 e o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5469/DF e no Tema de Repercussão Geral (TRG) nº 1093, seria possível demandar da LC 190 alguma regulamentação dando tratamento apenas financeiro, isto é, de repartição de receita entre as UFs?
Parece-nos inexoravelmente negativa a resposta, na medida em que o STF, ao conhecer do tema, entendeu que a EC 87/15 trabalhou no plano tributário (isto é, entre contribuintes e UFs), e não apenas no plano financeiro (ou seja, entre UFs), gerando uma nova relação entre o não contribuinte e a UF de destino.
Da mesma forma, e ainda ancorados no decidido pelo STF, se não podemos conviver com uma leitura diferente da EC, por princípio normativo hierárquico simples certamente não podemos aceitar que convênios, lei complementar federal ou lei de cada UF trate do tema como se fosse apenas uma repartição de receitas.
O único “e se” normativamente admissível, portanto, seria a EC 87/15 trazer consigo uma carga axiológica nuclear totalmente diversa, estatuindo – como fez em seu artigo 2º, acrescendo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – um artigo 99 com teor meramente financeiro.
Para o argumento dos fiscos ser verdadeiro, a EC não poderia promover a alteração da sujeição ativa e passiva de ICMS como fez; deveria manter intacta a norma original e tão somente dispor quanto ao compartilhamento das receitas quando de operações interestaduais destinadas a consumidores finais – fossem eles contribuintes ou não.
Nossa pretensão, ao trabalhar nesse cenário hipotético, é reforçar a inadequação total dos argumentos das Secretarias Estaduais de Fazenda. Reforçamos e insistimos, que textos dizem algo e não cabe a intérpretes ocasionais fixar novos sentidos às palavras em um mesmo contexto.
Evitemos, pois o efeito Humpty Dumpty, pois se regressarmos à essência do Direito Tributário, perceberemos, sem maior esforço, que as limitações ao poder de tributar são originadas e mantidas como direitos e garantias fundamentais a serem exercidas contra o arbítrio e o abuso de poder estatal. A fixação livre do sentido pelo intérprete, seja autêntico ou não, é a queda da primeira barricada contra o despotismo, atentemo-nos, pois.
Se queremos tornar o Brasil um país sério, devemos trabalhar da base para o ápice; a lição número um está em irrigar a responsabilidade política e gerar coordenação hábil e eficiente de todos os poderes e entes da Federação para dar nascimento a normas que sejam efetivamente cumpridas.
Sem isso, seguiremos sendo este país pouco apegado à retidão e à boa técnica; uma terra das oportunidades… mas apenas para os oportunistas
FABIO LUIZ GOMES.Mestre e Doutorando em Direito Público, Advogado Corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Autor, Co-autor, Prefaciador de diversas obras jurídicas.
[10]RE 559.936 AgR / CE – Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Julgamento: 09/11/2010 – Publicação: 25/11/2010 – Órgão julgador: Primeira Turma
EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. AQUISIÇÃO DE MATERIAL. EMPRESA DA CONSTRUÇÃO CIVIL. EMPREGO EM OBRA. INSUMOS. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I – As empresas da construção civil – por serem, em regra, contribuintes do ISS – que adquirirem materiais em Estado com alíquotas de ICMS mais favoráveis, ao empregarem essas mercadorias como insumos em suas obras, não estão obrigadas a satisfazer a diferença da alíquota maior do Estado destinatário. Precedentes. II – Agravo regimental improvido.
A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski.
[11] “As empresas de construção civil não estão obrigadas a pagar ICMS sobre mercadorias adquiridas como insumos em operações interestaduais.” https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1135489
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