André Santa Cruz

STF reconhece constitucionalidade da atual redação do art. 289 da Lei das S/A

Dispositivo consagra sistema híbrido de publicação: resumo em jornal físico e íntegra na internet

André Santa Cruz

Amanda Mesquita Souto

Bruno Camargo Silva

A Lei 13.818/2019 alterou a redação do art. 289 da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações – LSA), que trata das publicações das sociedades anônimas. Desde 1º de janeiro de 2022, data da entrada em vigor dessa lei, houve (i) a exclusão da publicação em Diários Oficiais e (ii) a simplificação da publicação em jornais de grande circulação (resumo na versão física e íntegra na versão eletrônica).

Essa mudança teve o objetivo de desburocratizar as publicações das sociedades anônimas, reduzindo o seu custo, mas nunca foi intenção do legislador suprimir a necessidade de publicação em jornal físico: a ideia foi simplificar tal publicação, que passou a ser resumida, mas acompanhada de outra publicação integral, esta em versão eletrônica.

Sempre defendemos que a Lei 13.818/2019 não eliminou a necessidade de publicações em jornais impressos. O que a lei criou foi um mecanismo de simplificação, redução de custos e aumento da transparência, por meio da combinação de uma publicação em meio impresso (versão resumida) com uma publicação em meio eletrônico (versão integral). Assim se garantiu, de um lado, a almejada redução de custos para as companhias e, de outro lado, a imprescindível difusão da informação para todos os interessados.

Essa interpretação foi a mesma exarada pela Presidência da República e pela Procuradoria Geral da República nos autos da ADIn 7.011, que questionava a constitucionalidade da Lei 13.818/2019.  Em que pese essa ação não ter sido julgada no mérito, visto que a Ministra relatora, Cármen Lúcia, negou seguimento à ação em razão da ilegitimidade ativa da parte autora, verificamos que não houve dúvidas, nas manifestações desses entes, sobre a publicação resumida determinada pela nova redação do art. 289 da LSA ter que ser realizada em jornal impresso.

O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), no Manual de Registro de Sociedade Anônima (Anexo V da IN 81/2020), também consagrou essa interpretação, sempre deixando claro que, quando a LSA menciona “jornal de grande circulação”, está se referindo a um veículo impresso.

Outro argumento que reforça essa interpretação é o seguinte: quando o legislador quis realmente eliminar a necessidade de publicações de sociedades anônimas em meio físico (jornal impresso), ele o fez de maneira muito clara e direta, mas com um recorte bem específico. Referimo-nos à Lei Complementar 182/2021, conhecida como o Marco Legal das Startups, que alterou o art. 294 da LSA, possibilitando que a companhia fechada com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) realize as publicações legais totalmente de forma eletrônica.

Por fim, no dia 4 de julho de 2024, foi publicado o acórdão do STF no julgamento da ADIn 7.194, que julgou improcedente a referida ação para declarar a constitucionalidade do art. 1º da Lei 13.818/2019, que deu a atual redação ao art. 289 da LSA.

No referido julgamento, o STF não apenas reconheceu a constitucionalidade da regra que dispensou as sociedades anônimas de publicarem atos societários e demonstrações financeiras em Diários Oficiais, mas também deixou claro que a correta interpretação da atual redação do art. 289 da LSA é a seguinte: publicação resumida em jornal de grande circulação na sua versão FÍSICA e publicação integral no portal eletrônico do mesmo jornal. A propósito, confira-se o item 2 da ementa do acórdão:

2. No intuito de se disponibilizarem as informações pertinentes às pessoas e entidades interessadas, embora dispensada a publicação em diário oficial, a norma manteve a obrigatoriedade de divulgação dos atos das sociedades anônimas em jornais de ampla circulação, tanto no formato FÍSICO, de forma resumida, quanto no formato eletrônico, na íntegra.

De acordo com o Ministro relator, Dias Toffoli, “a divulgação da íntegra dos atos societários na página da internet de jornais de grande circulação é medida que logra atingir grande número de pessoas interessadas e que se mostra acessível para o fim que se propõe. Ademais, a norma mantém a obrigatoriedade de divulgação dos atos societários na MÍDIA IMPRESSA, o que contempla a parcela da população que não costuma ou não consegue fazer uso de meios eletrônicos de acesso à informação”.

Vale ressaltar que o referido julgamento do STF se deu em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que tem efeito vinculante e erga omnes.

Portanto, sem qualquer espaço para dúvidas, de acordo com a atual redação do art. 289 da LSA, simplificou-se a regra geral de publicidade legal das companhias brasileiras, adotando-se um sistema híbrido de publicação: resumo em jornal de grande circulação FÍSICO e, simultaneamente, íntegra no sítio eletrônico desse mesmo jornal na internet.


André Santa Cruz é advogado, sócio-fundador do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.

Amanda Mesquita Souto é advogada associada no escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e ex-diretora do DREI.

Bruno Camargo Silva é advogado, sócio da Camargo Silva Consultoria. Professor de Direito Empresarial e Processual. Jornalista. Mestrando em Direito pela Universidad Europea Del Atlántico (Espanha). Especialista em Direito Processual pela PUC-MINAS.


Não incidência de honorários sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica: alguns aspectos relevantes sobre o tema à luz de recente precedente da 3ª Turma do STJ

André Santa Cruz & Jaylton Lopes Jr.

Com a edição da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), o Código Civil reforçou ainda mais a autonomia patrimonial das sociedades – e de todas as demais pessoas jurídicas –, ao receber em seu corpo normativo o acréscimo do art. 49-A.

1. Personalidade jurídica e autonomia patrimonial

No âmbito do direito empresarial, a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é sempre destacada como uma importante ferramenta de incentivo ao exercício de atividades econômicas, na medida em que assegura aos empreendedores responsabilidade subsidiária e limitada – esta a depender do tipo societário adotado – pelas obrigações sociais, o que permite um cálculo mais seguro e previsível do risco empresarial.

O Código Civil, na sua redação original, já consagrava a autonomia patrimonial das sociedades em seu art. 1.024, segundo o qual “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.

Com a edição da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), o Código Civil reforçou ainda mais a autonomia patrimonial das sociedades – e de todas as demais pessoas jurídicas –, ao receber em seu corpo normativo o acréscimo do art. 49-A, que assim dispõe em seu caput e no seu parágrafo único:

Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

A inserção dessa regra foi de suma importância para deixar claro que o respeito à autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, especialmente as sociedades empresárias, deve ser visto como algo positivo e imprescindível para o bom funcionamento do mercado[1].

2. Abuso de personalidade jurídica e desconsideração dos seus efeitos

A despeito da importância da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, não se pode considerá-la um princípio ou uma regra de natureza absoluta, sob pena de serem chanceladas situações em que a pessoa jurídica é usada, de forma ilegítima, como meio para que seus criadores se esquivem de seus credores, blindando seus ativos contra atos constritivos/expropriatórios.

A fim de evitar esse uso indevido das pessoas jurídicas, principalmente as sociedades, construiu-se há bastante tempo, na doutrina e na jurisprudência, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, fundada na ideia de coibição do abuso de direito.

No ordenamento jurídico brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica teve sua primeira previsão legal em 1990, com a edição da lei 8.078 (Código de Defesa do Consumidor), que foi seguida pela lei 8.884/94 (Lei Antitruste) e pela lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).

Em 2002, a desconsideração da personalidade jurídica deixou de ser prevista apenas em microssistemas legislativos específicos e passou ter uma regra geral, constante do art. 50 do Código Civil, cujo texto atual, modificado e ampliado pela lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), tem a seguinte redação:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Apesar de o Código Civil ter trazido para o nosso ordenamento jurídico uma norma geral importante sobre a desconsideração da personalidade jurídica, faltava ainda a sua disciplina processual, o que só veio a ocorrer com a edição do Código de Processo Civil de 2015, que em seus arts. 133 a 137 criou um incidente processual específico para tratamento da matéria:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.

§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Sobre essa disciplina procedimental da desconsideração da personalidade jurídica, algumas questões polêmicas já estão sendo debatidas pelo Superior Tribunal de Justiça, e uma delas é justamente a que se refere ao cabimento (ou não) de condenação ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais no referido incidente processual.

3. Honorários advocatícios: causalidade e sucumbência

Nos termos do art. 22 da lei 8.906/94, “a prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência”.

Os honorários de sucumbência são devidos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, nos termos do art. 85 do CPC (“a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”).

Embora o referido artigo tenha se referido a “sentença”, não é a natureza do pronunciamento judicial que definirá o cabimento (ou não) dos honorários sucumbenciais, mas sim o conteúdo da decisão e o tipo de procedimento, de modo que serão fixados honorários sucumbenciais, por exemplo, na decisão interlocutória que resolve parte do mérito (art. 356 do CPC) e na decisão interlocutória que acolhe preliminar de ilegitimidade passiva de um dos litisconsortes (art. 354, parágrafo único do CPC).

A fixação de honorários sucumbenciais decorre de dois princípios: princípio da sucumbência e princípio da causalidade. Pelo primeiro, será condenada a parte que foi derrotada no processo. Pelo segundo, será condenada a parte que deu causa à propositura da ação.

A inter-relação entre esses dois princípios é importante, porque nem sempre o vencido (princípio da sucumbência) será condenado ao pagamento da verba honorária. É o que ocorre, por exemplo, na denunciação da lide quando o denunciado, mesmo sendo derrotado, não tenha se insurgido quanto à denunciação[2]. Nesse caso, o princípio da causalidade se sobrepõe ao princípio da sucumbência.

4. Honorários advocatícios no IDPJ

A 3ª Turma do STJ, em 2020, firmou entendimento no sentido de que no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) não são devidos honorários advocatícios sucumbenciais. Vejamos a ementa do julgado:

RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DESCABIMENTO. ART. 85, § 1º, DO CPC/2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Não é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente processual, ressalvados os casos excepcionais. Precedentes.

2. Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais decorre da ausência de previsão legal excepcional, sendo irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente.

3. Recurso especial provido.

(REsp 1.845.536/SC, rel. ministra Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 26.05.20, DJe 09.06.20)

Para a ministra relatora, o não cabimento dos honorários sucumbenciais, no caso julgado, decorreria do fato de que a executada foi quem deu causa à instauração do IDPJ, porque não pagou a dívida e promoveu a dissolução irregular da sociedade (princípio da causalidade). Assim, mesmo tendo sido julgado improcedente o incidente, entendeu-se que a exequente (requerente do incidente) não poderia ser condenada ao pagamento dos honorários sucumbenciais.

Tal fundamento, contudo, não foi o prevalecente. Embora a conclusão dos demais julgadores tenha sido a mesma (não cabimento de honorários sucumbenciais no IDPJ), prevaleceu o fundamento expendido no voto divergente, no sentido de que é dispensável a perquirição acerca do princípio da causalidade ou mesmo da sucumbência, tendo-se em vista a ausência de menção ao IDPJ no rol do artigo 85, caput e § 1º do CPC.

O fundamento do voto vencedor é o que, de fato, melhor se coaduna com a sistemática do atual CPC, o qual se alinhou, em parte, à jurisprudência do STJ firmada ainda na vigência do CPC de 1973.

De início, faz-se necessário estabelecer uma importante distinção entre incidente processual e processo incidente.

No incidente processual, uma nova relação jurídica processual nasce de um processo pendente e nele se acopla, tornando-o mais complexo. Há um único processo, mas com duas ou mais relações jurídicas processuais (relação processual do processo e relação processual do incidente). São exemplos de incidente processual: (a) intervenção de terceiros, incluindo-se o IDPJ (arts. 119 a 138 do CPC); (b) incidente de suspeição ou impedimento do juiz (art. 146 do CPC); e (c) incidente de arguição de inconstitucionalidade (arts. 948 a 950 do CPC).

Já no processo incidente, uma nova relação jurídica processual nasce em razão de um processo pendente, porém não se acopla a ele e também não o torna mais complexo. O processo incidente é autônomo em relação ao processo principal, porém produz efeitos que o atingem. São exemplos: (a) embargos de terceiro (arts. 674 a 681 do CPC); (b) oposição (arts. 682 a 686 do CPC); (c) embargos à execução (arts. 914 a 920 do CPC); e (d) reclamação (arts. 988 a 993 do CPC)[3].

O processo incidente, por ser autônomo, se desenvolve como qualquer outro processo. Seu mérito é julgado por sentença (ex.: embargos de terceiro) ou acórdão (ex.: reclamação)[4]. Logo, haverá condenação da parte vencida ao pagamento dos honorários sucumbenciais, à luz dos princípios da sucumbência e da causalidade (art. 85 do CPC).

A Corte Especial do STJ, no julgamento do EREsp 1.366.014/SP, que ocorreu em 29.03.17 e teve como relator o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, firmou entendimento no sentido de que “a melhor exegese do § 1º do art. 20 do CPC/73 não permite, por ausência de previsão nele contida, a incidência de honorários advocatícios em incidente processual ou recurso”.

Ocorre que o atual CPC, no § 11 do seu art. 85, dispôs que “o tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o disposto nos §§ 2º a 6º, sendo vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento”. Assim, quanto ao não cabimento de honorários sucumbenciais em sede de recursos, o entendimento da Corte Especial do STJ encontra-se superado.

Em contrapartida, no tocante aos incidentes processuais, o legislador – ao que parece, conscientemente – não os contemplou no rol das situações ensejadoras de honorários sucumbenciais. Isso porque, conforme § 1º do art. 85 do atual CPC, “são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente”. Quisesse o legislador de 2015 admitir a incidência de honorários sucumbenciais no julgamento de incidentes processuais, teria feito previsão expressa no supracitado dispositivo.

O IDPJ tem natureza de incidente processual e seu julgamento se realiza, como regra, por decisão interlocutória (art. 136 do CPC).

Embora o referido incidente tenha mérito próprio (ocorrência ou não de abuso da personalidade), este não se relaciona diretamente com o mérito do processo[5], razão pela qual é equivocado pensar que a decisão interlocutória que resolve o IDPJ equivale a uma decisão parcial de mérito (art. 356 do CPC).

Destarte, a conclusão e o fundamento prevalecente do acórdão proferido pela 3ª turma do STJ no REsp 1.845.536/SC está em consonância com a sistemática atualmente prevista no CPC.

Ademais, não se pode perder de vista que é plenamente possível que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja julgado na própria sentença. Isso ocorrerá quando o pedido de desconsideração for requerido na petição inicial (hipótese que dispensa a instauração do incidente – art. 134, § 2º do CPC) ou quando o próprio incidente for decidido na sentença (a sentença julga, ao mesmo tempo, o incidente e o processo). Seja como for, não haverá condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais em razão do julgamento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

No entanto, julgado recente da 3ª Turma do STJ parece contrariar essa lógica: o REsp 1.925.959/SP. No caso, o juízo de 1°grau não fixou honorários sucumbenciais, alegando serem indevidos “por ser mero incidente”. Dessa decisão foi interposto agravo de instrumento pelo curador especial nomeado para a parte executada, eo TJSP deu provimento ao recurso, arbitrando R$ 1.500,00 a título de honorários advocatícios sucumbenciais.

Interposto recurso especial ao STJ, este rejeitou a pretensão da recorrente, por maioria, para manter a fixação da verba honorária sucumbencial.

Confira-se a ementa do julgado:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NATUREZA JURÍDICA DE DEMANDA INCIDENTAL. LITIGIOSIDADE. EXISTÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. FIXAÇÃO. CABIMENTO.

1. O fator determinante para a condenação ao pagamento de honorários advocatícios não pode ser estabelecido a partir de critérios meramente procedimentais, devendo ser observado o êxito obtido pelo advogado mediante o trabalho desenvolvido.

2. O CPC de 2015 superou o dogma da unicidade de julgamento, prevendo expressamente as decisões de resolução parcial do mérito, sendo consequência natural a fixação de honorários de sucumbência.

3. Apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídico tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido.

4. O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo.

5. Recurso especial conhecido e não provido.

(REsp n. 1.925.959/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 22/9/2023.)

O relator para o acórdão, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, destacou em seu voto que, “considerando a efetiva existência de uma pretensão resistida, manifestada contra terceiro(s) que até então não figurava(m) como parte, penso que a improcedência do pedido formulado no incidente, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide – situação que se equipara à sua exclusão quando indicado desde o princípio para integrar a relação processual –, mesmo que sem a ampliação do objeto litigioso, dará ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo, como vem entendendo a doutrina”.

Ademais, o Ministro pontuou que, “em caso de deferimento do pedido de desconsideração (direta ou inversa), […] o eventual sucumbimento destes somente poderá ser aferido ao final, a depender do juízo de procedência ou improcedência da pretensão contra eles direcionada”.

O Ministro Moura Ribeiro, em seu voto-vogal, aduziu o seguinte: “em que pese a decisão de resolução do IDPJ não ter natureza de sentença, nem tampouco estar presente no rol do art. 85, § 1º do CPC, não pode ser ignorado o fato de que a necessidade de pagamento das verbas honorárias decorre da existência de sucumbência de uma das partes, e não da natureza jurídica da decisão”.

Por fim, é importante mencionar que foi citado precedente da Primeira Seção (REsp 1.358.837/SP), de relatoria da Ministra Assusete Magalhães, julgado sob o regime dos recursos repetitivos em 10/3/2021, no qual se fixou a seguinte tese: “observado o princípio da causalidade, é cabível a fixação de honorários advocatícios, em exceção de pré-executividade, quando o sócio é excluído do polo passivo da execução fiscal, que não é extinta”.

Parece, desse modo, que caberá à Segunda Seção resolver a controvérsia, dada a existência de precedentes contrários ao cabimento de honorários advocatícios no incidente de desconsideração da personalidade jurídica na 4ª Turma do STJ[6]. Certamente, a questão será resolvida por meio dos embargos de divergência[7]. Esperamos que isso aconteça o quanto antes, de forma que a insegurança e a incerteza não prevaleçam em uma questão tão relevante como essa.

André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração. Autor de diversas obras jurídicas na área do Direito Empresarial.

Jaylton Lopes Jr. é ex-Juiz de Direito do TJDFT, e atualmente advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia. Professor nas áreas de Direito Imobiliário, Direito das Sucessões, Direito de Família e Direito Processual Civil.


[1] “Observe-se que ao Estado interessa essa permissão de formação de entes independentes inconfundíveis com a figura humana, principalmente na sociedade capitalista, entendida essa no sentido preconizado por Max Weber, ou seja, uma sociedade que busca o lucro renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional” (NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica. São Paulo: Atlas, 2004. p. 143).

[2] Nesse sentido: REsp 142.796/RS, Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, 3ª turma, julgado em 04.05.04, DJ 07.06.2004, p. 215.

[3] Cf. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil: parte geral e processo de conhecimento. 17ª edição. Salvador: JusPodivm, 2015, v. 1, p. 476-477.

[4] Impende ressaltar que se houver julgamento parcial de mérito, o pronunciamento judicial não será uma sentença, mas sim uma decisão interlocutória (art. 356 do CPC).

[5] Aliás, todo incidente processual terá um mérito próprio. A título de exemplo, o mérito do incidente de suspeição do juiz é a existência de uma das hipóteses do art. 145 do CPC.

[6] Vejam-se, por todos, AgInt nos EDcl no REsp 2.017.344/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023 e AgInt no AREsp n. 2.326.010/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 28/8/2023.

[7] CPC

Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que:

I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;

A importância do contrato de vesting na retenção de colaboradores estratégicos

André Santa Cruz & Ronan Santos

Com a garantia gradual aos empregados da propriedade de ações ou quotas da sociedade empresária, o contrato de opção de compra de participação societária promove o comprometimento e a visão de sócio do colaborador.

1. Por que o Vesting é importante para as empresas inovadoras?

As dificuldades em contratar e treinar colaboradores para uma empresa são amplamente conhecidas. Os empreendedores brasileiros sofrem, há muito tempo, com a escassez de mão de obra qualificada.

No âmbito das startups, essa caça aos talentos é ainda mais difícil, dado que ideias disruptivas costumam demandar alta capacidade técnica para saírem do papel. Ao mesmo tempo, pessoas competentes costumam aceitar uma proposta de trabalho cuja remuneração pareça atrativa.

Além disso, há uma prospecção de talentos feita, inclusive, a profissionais que já estão empregados. Portanto, é necessário montar a equipe com critério. Ao detectar um profissional de extrema importância e compatível com a visão dos sócios da empresa, é possível se utilizar o contrato de vesting para manter o colaborador-chave nela.

Trata-se de uma prática antes restrita a grandes companhias, mas que agora está se difundindo por todo o ambiente empresarial. Neste artigo, explicaremos o papel do vesting na atração e retenção de colaboradores estratégicos.

2. O que é o contrato de vesting?

O vesting consiste na venda de participação societária ao colaborador ao longo de determinado prazo, condicionada ao cumprimento de determinadas metas. Confere-se ao colaborador a opção de comprar as ações ou quotas por determinado preço, sob condições de desempenho e de tempo[1]. As partes acordam que haverá uma venda das quotas/ações da sociedade empresária, de maneira gradual e progressiva, com base em critérios específicos de produtividade[2].

No contrato de vesting, o empresário oferece a perspectiva de crescimento, e o funcionário faz jus a essa confiança, com um trabalho que se torna mais estratégico, uma vez que a visão de sócio, tão desejada pelos empreendedores em seus times, já se faz presente. Trata-se de uma relação de ganhos mútuos.

A previsão legal das chamadas stock options está no art. 168, §3°, da Lei das Sociedades Anônimas, que versa sobre o “plano de opção de compra de ações”, que pode ser implementado desde que a companhia o faça dentro dos limites do capital autorizado. Apesar de o plano de stock options estar previsto na Lei das S/A, não há impedimento à sua aplicação nas sociedades limitadas, desde que se observem as peculiaridades de cada tipo societário.

Isso porque o art. 1.055, §2°, do Código Civil veda a contribuição realizada diretamente em serviços. Contudo, nada impede que os créditos decorrentes da prestação desses serviços sejam usados para integralização de capital.

Existem duas formas de vesting: o tradicional (em que a participação aumenta de acordo com o tempo e as metas) e o invertido (em que a participação começa cheia e pode ser recomprada pela startup se os objetivos não forem alcançados). O primeiro tipo costuma ser mais utilizado, já que tende a dar mais incentivo ao colaborador, cujo esforço terá de ser contínuo e crescente para a obtenção de maiores recompensas. Aqui entra a importância de um mecanismo fundamental: a cláusula Cliff.

3. Cláusula Cliff

Um dos maiores problemas do contrato de vesting diz respeito ao interesse do colaborador em atender às expectativas e prestar um serviço de qualidade satisfatória. Para garantir que os objetivos acima sejam cumpridos, a cláusula Cliff estabelece um período de carência (1 ano, em geral) depois do qual o colaborador, cumpridas as condições estipuladas no contrato, terá o direito de iniciar a aquisição das ações/quotas[3].

Se o funcionário for demitido nesse período, ele não terá direito ao pagamento das quotas/ações, uma vez que detinha apenas expectativa de direito à aquisição das quotas (como explicaremos logo mais à frente). Esse período de teste é crucial para sanar os possíveis erros de percepção dos sócios sobre o colaborador.

4. Diferença entre vesting e stock option

As stock options são opções de compra de ações ou quotas. Nesse sentido, podem ser oferecidas a qualquer um que queira se tornar sócio e, por algum motivo, não possa adquirir a participação imediatamente. A stock option, portanto, é mais ampla e tem suas condições negociadas entre as partes. Já o vesting é uma espécie de stock option. Leva esse nome por causa da aquisição gradual das quotas ou ações, que são “vestidas” pelo colaborador. Está inserido dentro de uma relação de emprego ou de trabalho, especificamente.

5. Pontos de atenção na hora de elaborar o contrato de vesting

Na elaboração e execução do vesting, alguns pontos de atenção precisam ser considerados. Trataremos, nos tópicos a seguir, de cada um deles. É importante analisá-los não apenas antes da formação do contrato de vesting, mas principalmente durante o prazo de aquisição das ações ou quotas e depois dele (haja vista a futura relação societária).

5.1. Aspecto Trabalhista

O primeiro ponto de atenção envolve a parte trabalhista. É preciso que haja a efetiva compra das quotas/ações, isto é, que se assuma efetivamente o risco da atividade econômica[4]. Caso contrário, haverá a caracterização salarial da quantia, com o pagamento dos respectivos consectários legais. O preço tem de ser mais vantajoso do que o valor de mercado, mas não deve ser ínfimo, sob risco de ser tido por fraude à lei[5].

Ainda dentro do âmbito trabalhista, a questão da extinção do contrato de trabalho ou de prestação de serviços precisa estar detalhada no vesting. É preciso determinar o que ocorre quando o colaborador é demitido ou pede para sair antes de obter as primeiras ações/quotas.

O Tribunal Superior do Trabalho entende que, se ainda não houve a aquisição, não será devida indenização. Ou seja, a cláusula que prevê a perda do direito de adquirir as quotas ou ações pelo empregado demitido antes do fim do prazo de carência é lícita[6]. Isso porque ainda se trata de mera expectativa de direito.

É importante atentar também para os fundamentos da demissão quando o fim do período de carência está próximo. Isso porque os tribunais podem interpretar que houve má-fé do empresário. Em outras palavras: pode-se entender que o empreendedor estaria burlando o vesting, frustrando o implemento da condição para que o colaborador adquira as quotas ou ações[7].

O empregador ou contratante deve fundamentar, mesmo que de forma mínima, a dispensa do colaborador. Primeiro, tem-se que deixar claro no contrato de vesting os deveres daquele que vai adquirir as quotas ou ações e estabelecer penalidades pelo descumprimento – a demissão pode ser uma delas. Por fim, cabe documentar as razões para o desligamento daquele funcionário.

Convém prever, ainda, a dissolução parcial da sociedade em caso de demissão do colaborador após o período de carência. Deve-se computar, no cálculo dos haveres, os valores a título de rescisão ou de indenização, a depender do que motivou a saída[8].

Por fim, a determinação das metas também precisa de cuidado, para que não se atribua natureza trabalhista à opção de compra. As metas devem vincular-se não ao desempenho individual do colaborador, mas ao faturamento, expansão da carteira de clientes, captação de investimentos etc.

5.2. Aspecto Tributário

Outro ponto de atenção está no campo tributário. Caso a quota/ação seja adquirida a custo zero, sua natureza será remuneratória e incidirão as alíquotas do IRPF, até 27,5%. Caso sua natureza seja mercantil, a opção de compra será tributada nas alíquotas entre 15% e 22,5%. Ademais, uma vez que a sua natureza seja mercantil, não haverá a incidência de contribuição previdenciária. Esse é o entendimento do Judiciário[9] e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais[10].

5.3. Aspecto societário

Por último, mas não menos importante, o aspecto societário. É preciso saber o quanto do percentual será destinado para o vesting, de forma que não haja uma diluição prejudicial aos sócios fundadores. Também se deve analisar o perfil da pessoa que será beneficiada pelo vesting, a fim de evitar problemas.

A redação de um bom acordo de sócios, com a previsão de cláusulas para resolução de conflitos societários, proibição de venda a terceiros e opção de compra (call option) no caso de demissão. Nesse caso, você também pode variar os critérios, conforme a dispensa tenha sido com justa causa ou sem justa causa.

Aliás, é importante que o contrato de vesting contenha cláusula que vincule o colaborador ao acordo existente ou futuro. Desse modo, as expectativas de todos os envolvidos estarão alinhadas. Por exemplo, caso seja estabelecida uma cláusula de não concorrência, será necessário estabelecer a sua abrangência em termos de segmento de mercado, duração, territórios (em negócios que dependam de uma base geográfica). Caso contrário, há um grande risco de esse dispositivo ser afastado pelo Poder Judiciário[11].

6. Conclusão

Reter talentos é fundamental. Num contexto de ascensão das startups, cujas soluções disruptivas exigem alta competência técnica, o empresário não pode se dar ao luxo de perder uma peça-chave. Por isso, o contrato de vesting se torna um mecanismo imprescindível para atrair e reter talentos para todas as sociedades empresárias. Atendidas as peculiaridades que envolvem essa modalidade contratual, ambas as partes só têm a ganhar.


[1] OLIVEIRA, Fabricio Vasconcelos de; RAMALHO, Amanda Maia. O Contrato de Vesting. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 69, pp. 183  200, Jul/Dec. 2016

[2] OLIVEIRA, Fabricio Vasconcelos de; RAMALHO, Amanda Maia. O Contrato de Vesting. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 69, pp. 183  200, Jul/Dec. 2016, p.184.

[3] POLLI, Marina. Vesting: Inovação Contratual Popularizada pelas Startups. In: MORETTI, Eduardo; OLIVEIRA, Leandro Antônio Godoy. Startups: aspectos jurídicos relevantes. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2019, p. 130

[4] CLT, Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

[5] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade – 22. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019 p.108 e seguintes.

[6] ARR-2843-80.2011.5.02.0030, 8ª Turma, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 20/11/2015

[7] Código Civil, Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

[8] OLIVEIRA, Fabricio Vasconcelos de; RAMALHO, Amanda Maia. O Contrato de Vesting. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 69, pp. 183  200, Jul/Dec. 2016, p.194.

[9] Processo: ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL / SP 5009539-20.2017.4.03.6100, Relator(a) Desembargador Federal OTÁVIO PEIXOTO JÚNIOR, Órgão Julgador: 2ª Turma, Data do Julgamento: 10/01/2023, Data da Publicação/Fonte Intimação via sistema DATA: 17/01/2023

[10] Acórdão nº 2402-011.012  –  2ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 2ª Turma Ordinária.

[11] TJSP;  Apelação Cível 1005903-92.2020.8.26.0100; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 16/06/2021; Data de Registro: 16/06/2021


André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.

Ronan Santos é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, graduado em Direito pelo Centro Universitário IESB, em Brasília, e pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.


Principais aspectos jurídicos do mútuo conversível em participação societária

Conheça um dos principais contratos utilizados no financiamento de startups, que se revela uma excelente opção para negócios em estágio inicial ou intermediário de crescimento.

André Santa Cruz, Ronan Santos & Matheus Ferraz

1.    Introdução

O tema do financiamento é um dos mais sensíveis para qualquer sociedade empresária. No começo, quando as despesas superam em muito as receitas, a palavra de ordem é sobrevivência. Nesse cenário, até que se atinja o ponto de equilíbrio (também chamado de breakeven[1]), o capital de terceiros garante a entrada e a manutenção de muitos novos empreendimentos no mercado.

Para a busca desse capital existem, basicamente, duas modalidades de captação de investimento: debt (dívida) ou equity (participação societária). Pensemos no processo de montagem de uma cafeteria, por exemplo. Para fazê-la funcionar, é preciso investir dinheiro. Pode-se tomar um empréstimo no banco (debt) ou convidar uma pessoa para ser sócia (equity).

Cada uma dessas formas tem um risco: se a escolha recair sobre a tomada de empréstimos, os obstáculos serão os juros altos e o risco das dívidas bancárias, sem contar os problemas com possíveis garantias, que em estágios iniciais de qualquer empresa costumam ser raras. Por outro lado, a entrada de um sócio logo no começo pode ocasionar dificuldades na tomada de decisões.

Com base na experiência estrangeira, entretanto, outras formas de obter capital para a estruturação de um negócio surgiram. A dívida conversível em participação é a principal delas.

As debêntures conversíveis em ações representam o exemplo mais emblemático. Ocorre que as sociedades limitadas (maioria esmagadora das sociedades empresárias constituídas no Brasil) não podem emiti-las. Diante disso, outra modalidade de contrato se popularizou: o mútuo conversível, um tipo de empréstimo que, cumpridas certas condições, faz do credor sócio.

2.            O que é o mútuo conversível?

A autonomia privada, princípio basilar do direito empresarial, permite que os agentes econômicos possam agir dentro da esfera que a lei não lhes proíbe. Nesse universo estão contidos os contratos atípicos, autorizados pelo art.425 do Código Civil[2]. Em geral, esses negócios jurídicos são misturas de outros negócios típicos, a exemplo do leasing, que combina locação com promessa de venda[3].

O mútuo conversível, na prática, é a junção de dois contratos em um só: o empréstimo de capital com a aquisição de participação societária. O credor empresta o dinheiro, com juros, do mesmo modo que uma instituição bancária faria, porém sob condições mais favoráveis, seja pelo fato de não exigir garantias, seja pelo objetivo principal de que a empresa dê certo. 

3.            Como funciona o mútuo conversível?

O mútuo conversível funciona da seguinte maneira: transfere-se o dinheiro a juros com determinado prazo, ao fim do qual o credor pode optar ou por receber o dinheiro de volta (corrigido e com juros) ou por se tornar sócio, transformando o valor do empréstimo em parte do capital social da sociedade empresária.

Trata-se de uma solução boa não só para as startups, que se beneficiam de um aporte associado a expertise (smart money), mas também para os investidores, cujo patrimônio fica a salvo em caso de insucesso. Embora atenda aos interesses das duas partes, a solução não é isenta de problemas.

4.            Pontos de atenção durante a execução do contrato de mútuo conversível

4.1 Fiscalização no mútuo conversível

O primeiro e mais óbvio problema do mútuo conversível é o seguinte: como garantir a correta aplicação dos recursos sem o risco de ser caracterizado como sócio? Enquanto credor, aquele que investe não tem direito de voto, reservado aos sócios. Enquanto investidor, deseja que o seu dinheiro não sirva só como capital de giro ou fique no bolso de algum mal-intencionado.

Para evitar esse problema, o contrato deve prever o chamado voto afirmativo. Ele será restrito àquelas matérias que estejam previstas no contrato de mútuo conversível.  Dessa forma, somente com o consentimento do mutuante aquela matéria será aprovada. Porém, deve-se levar em conta o risco da caracterização de sociedade em comum[4].

Um exemplo disso envolve a transação com partes relacionadas, fato que a jurisprudência já reconheceu como apto a provocar a resolução do mútuo conversível, se houver tal previsão no contrato[5]. O não fornecimento dos balanços solicitados para o acompanhamento da evolução da sociedade empresária também pode ensejar a resolução do negócio jurídico, conforme a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[6].

4.2 Cálculo das participações antes e depois da conversão do mútuo em participação (cap table)

Outro ponto de extrema atenção no mútuo conversível é o cálculo do cap table (tabela com os percentuais de cada sócio, antes e depois da conversão). A elaboração dessa tabela permite calcular a diluição de cada fundador ou mesmo do mutuante, caso haja novas rodadas de investimento. É possível, inclusive, pactuar que o investidor pague um valor para que não seja diluído, sob pena de perder determinados privilégios. De qualquer modo, é importante realizar esses cálculos para evitar surpresas desagradáveis.

4.3 Auditoria da empresa que vai receber o mútuo conversível

A due diligence exerce um papel de destaque dentro da relação de mútuo conversível. Quem coloca o seu dinheiro num negócio quer estar por dentro de todos os riscos, até para decidir se vai ou não prosseguir com o investimento. Para os sócios, é importante estar com todas as informações reunidas, de modo que as respostas sejam precisas e rápidas.

O não fornecimento de balanços solicitados, por exemplo, pode frustrar a realização do contrato, porque o elemento de confiança não estará presente. Ou, se houver alguma contradição entre as informações apresentadas e os dados reais da empresa, é possível a resolução do contrato, inclusive com o pagamento de indenização por parte da empresa mutuária[7].

4.4 “Declarações e garantias” e covenants

À auditoria se seguem as declarações e garantias[8], com as quais os fundadores dão sua palavra de que prestaram informações verdadeiras ao credor e sócio em potencial. Para além do caráter moral (afinal, sem honestidade, a relação societária é impossível), as implicações jurídicas podem pesar no bolso (pagamento de indenização).

É importante haver cláusula expressa de covenant[9], por meio da qual o investidor terá acesso às informações e documentos que julgar necessários e poderá dar diretrizes para contratação de serviços pela sociedade. A clareza precisa presidir a relação desde o princípio.

4.5 Fixação do destino dos valores do mútuo conversível

O emprego dos valores emprestados ocupa posição importante dentro do mútuo conversível. Como dito antes, eles não podem se converter em capital de giro ou cash out. Devem servir para aperfeiçoar o produto ou serviço, isto é, melhorar o empreendimento. Por essa razão, utiliza-se a cláusula use of proceeds[10], que pune a destinação incorreta com o vencimento antecipado do mútuo.

4.6 Aspectos societários da relação pós-mútuo conversível

O objetivo de quem investe quase nunca é permanecer sócio. A meta é comprar as ações ou quotas a um valor baixo e depois revendê-las quando estiverem na alta. Desse modo, a previsão de eventos de liquidez permite que o investidor realize mais rápido o objetivo dele. Alguns exemplos dessas ocasiões são a venda da empresa, a incorporação, a oferta de ações na bolsa etc.

Contudo, uma vez que esse credor passe a compor a sociedade, é necessário redigir um bom acordo de sócios, para que as relações corram com segurança. O voto afirmativo, a eleição em separado de membros do conselho de administração ou a previsão de mecanismos anti-diluição são itens bastante comuns nesses acordos. A cláusula de lock up, vedando por certo período a saída de um sócio, também é usual. Do mesmo modo, merece menção a cláusula de non compete, vedando a concorrência por determinado tempo.

4.5 Aspectos tributários

Normalmente, a emissão de novas ações ou quotas é feita por um valor maior que o nominal (valor total do capital social/n° de quotas). Esse sobrevalor recebe o nome de ágio. Nas sociedades limitadas, essa quantia sofre tributação de 34%, somados IRPJ e CSLL. Considerando o possível custo, tornou-se comum a cláusula de transformação em sociedade anônima no mútuo conversível, já que nas companhias optantes pelo lucro real o ágio está isento de tributação[11].

5.    Conclusão

A busca por fontes de financiamento é fundamental para qualquer negócio, mas sobretudo para aqueles que oferecem produtos ou serviços inovadores, nos quais o mercado tradicional põe pouca confiança. O mútuo conversível foi uma solução para esse problema.

Apesar de trazer enormes vantagens, é necessário atentar-se para os riscos que esse contrato traz consigo, sobretudo no tocante à possibilidade da caracterização da sociedade de fato. Por isso, o instrumento contratual deve amoldar-se às circunstâncias do caso concreto. Dessa forma, a startup alcança a expansão, e os investidores lucram com a venda das participações que adquiriram. Uma mão lava a outra.


[1] https://www.insper.edu.br/noticias/o-que-e-break-even-point-e-como-ele-e-calculado/

[2] Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência – 22. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019 p.256

[4] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.93-94).

[5] (TJSP;  Apelação Cível 1113983-92.2016.8.26.0100; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 36ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/05/2022; Data de Registro: 01/06/2022)

[6] (TJSP;  Apelação Cível 1012467-48.2018.8.26.0071; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Bauru – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/08/2021; Data de Registro: 25/08/2021)

[7] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.90

[8] ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.89-90.

[9] Por meio dos covenants, a parte investida assume o dever de realizar determinadas obrigações de prestação de informações, de exibição de papéis e documentos da sociedade e de seus negócios, de contratar conforme o use of proceeds, bem como de não contratar senão de acordo com as autorizações dadas pela sociedade investidora/mutuante (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.87).

[10] É por meio da cláusula de vinculação do “uso das receitas”, que o mutuante, em acordo de vontades com a mutuária/investida, contrata a destinação do aporte para determinado(s) fim(ns) do planejamento estratégico da sociedade (ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.82).

[11]ZIRPOLI, Rodrigo Domingos. Contrato de mútuo conversível em participação societária. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2022, p.67-68.


André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.

Ronan Santos é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi e Santa Cruz Advocacia, graduado em Direito pelo Centro Universitário IESB, em Brasília, e pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

Matheus Ferraz é advogado inscrito na OAB/PE, graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, e pós-graduando em Direito Empresarial.


A impossibilidade jurídica do condomínio de quotas para cônjuges casados em regime de comunhão universal de bens

Pablo Arruda & André Santa Cruz

Maria Isolina e Joaquim Teixeira contraíram núpcias em 1976. Adotaram o que, na época, era o regime padrão: a comunhão universal de bens. Pretendem agora, em 2023, organizar seus ativos imobiliários destinados à locação em uma sociedade empresária cujo objeto será a compra, a venda e a locação de bens imóveis próprios. Mas, no meio do caminho, há uma pedra.

O Código Civil de 2002, em verdadeiro retrocesso, passou a proibir a participação, em uma mesma sociedade, de cônjuges casados nos regimes de comunhão universal ou de separação obrigatória.

Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

Aparentemente, a intenção do legislador era, quanto à comunhão universal, evitar uma sociedade de formação patrimonial única. Aqui, falhou duplamente: primeiro, porque há a possibilidade de existirem bens exclusivos na comunhão universal; segundo, porque também é possível que, em comunhão parcial, todos os bens sejam comuns, e nesse caso não há impedimento legal (ainda bem) para constituição de sociedade entre os cônjuges.

Quanto à separação obrigatória, a questão é ainda mais grave. Já não bastasse o absurdo da obrigatoriedade do regime de separação de bens quando ao menos um dos nubentes tem mais de 70 anos, o legislador inibiu a livre iniciativa entre aqueles casados sob esse regime. Importa constar, aliás, que a obrigatoriedade de separação de bens em razão da idade (art. 1.641, inciso II do Código Civil) está na mira do Supremo Tribunal Federal (Tema de Repercussão Geral 1.236), que pode (tomara que sim) reconhecer sua inconstitucionalidade.

Mas quaisquer que sejam o nível e o fundamento da nossa irresignação com essas limitações legais, o fato é que elas estão postas e vigentes. Diante do obstáculo, quais seriam as alternativas para o casal fictício que inaugurou esse texto?

A primeira solução – que se aplica aos dois regimes proibitivos – é a constituição de uma sociedade anônima. O manual de registro desse tipo societário, instituído pela IN 81/2020 do DREI (Anexo V), seguindo a orientação do enunciado 94 das Jornadas de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, estabelece que “a vedação da sociedade entre cônjuges contida no art. 977 do Código Civil não se aplica às sociedades anônimas”.

Sendo assim, optando os cônjuges pela constituição de uma sociedade anônima, o problema está resolvido, valendo lembrar ainda que a constituição de uma sociedade anônima tornou-se bem mais palatável nos últimos anos: possibilidade de ter apenas um diretor, permissão para que o(s) diretor(es) seja(m) residente(s) no exterior, previsão dos livros societários eletrônicos e simplificação das regras sobre publicações legais (as companhias fechadas que tiverem receita bruta anual de até R$ 78 milhões podem realizar suas publicações gratuitamente na Central de Balanços do SPED).

Outra solução é a constituição de uma sociedade limitada por apenas um dos cônjuges, já que atualmente é possível a unipessoalidade nesse tipo societário (art. 1.052, §§ 1º e 2º do Código Civil). Nesse caso, o cônjuge não sócio deve anuir com a integralização dos bens imóveis e poderá participar da administração da sociedade para resguardar seus interesses sobre as quotas que sejam sub-rogadas dos bens comuns aplicados à formação do capital social.

O fato de as quotas estarem registradas exclusivamente em nome de um dos cônjuges, na comunhão universal, não faz com que deixem de pertencer ao casal, na forma do art. 1.667 do Código Civil. Ademais, a administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges (arts. 1.663 e 1.670 do Código Civil), de modo que eles podem regular, no contrato social, de que maneira os poderes inerentes às quotas serão exercidos, a despeito de apenas um deles figurar como sócio.

Independentemente do regulamento inter cônjuges quanto à gestão das quotas, dos poderes políticos a elas inerentes e da própria pessoa jurídica, no caso de planejamento sucessório, a doação das quotas não poderá ser feita exclusivamente pelo cônjuge sócio (art. 1.647, inciso IV do Código Civil). Por outro lado, a reserva de usufruto poderá beneficiar ambos, ainda que apenas um deles seja sócio, já que a propriedade é comum. Cabe, inclusive, a previsão do direito de acrescer entre eles o usufruto em caso de morte (art. 1.411 do Código Civil). Isso garante que apenas com a morte de ambos o usufruto será extinto.

Não são essas as únicas soluções práticas para contornar de maneira legítima a vedação constante do art. 977 do Código Civil. Entretanto, não é esse o principal objetivo deste texto. O que realmente queremos tratar aqui é de uma suposta solução que vem sendo defendida e até mesmo aplicada com aceitação por parte de algumas Juntas Comerciais: o condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal.

Em um caso a que tivemos acesso, foi arquivada em uma Junta Comercial uma (primeira) alteração contratual em que o sócio único cedeu e transferiu suas quotas ao condomínio formado por ele e sua esposa (casados em comunhão universal). Na consolidação dessa alteração e na (segunda) alteração que se sucedeu, o “sócio” qualificado no instrumento passou a ser, então, o condomínio formado entre marido e mulher.

Parece-nos que essa “solução” não é possível, à luz do arcabouço normativo vigente, e vamos explicar o porquê a seguir.

O condomínio de quotas é um instituto jurídico previsto em lei e apto a solucionar uma série de questões. De fato, em que pese a indivisibilidade das quotas, o § 1º do art. 1.056 do Código Civil admite o condomínio formado por dois ou mais titulares de determinada quota. Tem-se, aqui, um condomínio voluntário.

Havendo condomínio de quotas, os direitos a elas inerentes serão exercidos por um dos condôminos, na qualidade de representante. No entanto, todos os condôminos devem figurar no contrato social como sócios, inclusive porque, como tais, respondem solidariamente pelas prestações necessárias integralização dessas quotas, e essa responsabilidade se dá em relação não apenas à sociedade, mas também em relação a terceiros (art. 1.056, § 2º, CC).

Essa necessidade de os condôminos figurarem como sócios no contrato social, por si só, já afastaria a possibilidade de se estabelecer condomínio de quotas entre cônjuges casados em comunhão universal. Afinal, eles não podem ser sócios em uma mesma sociedade limitada, em razão do disposto no já mencionado – e criticado, porém vigente – art. 977 do Código Civil.

Importa ressaltar que o condomínio voluntário não tem personalidade jurídica e, diferente de outros entes despersonificados, como o condomínio edilício e os fundos de investimento, não tem capacidade processual e contratual. Não pode, pois, ser titular de quotas em nome próprio. Tanto assim o é que, nos casos analisados por esses autores, constou como sócio no Documento Básico de Entrada-DBE um dos cônjuges e não o condomínio. Ou seja, no contrato social constou o condomínio como sócio, mas para todos os fins de direito, especialmente os contábeis e tributários, o sócio é um dos cônjuges (como de fato tem que ser).

Mas não se trata apenas disso. É juridicamente impossível se estabelecer relação de condomínio voluntário entre bens da mancomunhão de um casal. Primeiro, vamos tratar desse condomínio.

A seção I do Capítulo VI (Condomínio em Geral) do Título III (da Propriedade) do Livro III (Direito das Coisas) do Código Civil cuida do condomínio voluntário. É esse instituto que rege o condomínio de quotas. Não importa, pois, tratar aqui do condomínio necessário (Seção II), do condomínio edilício (Capítulo VII), do condomínio em multipropriedade (Capítulo VII-A) ou do condomínio especial em que se constituem os fundos de investimento (Capítulo X).

O condomínio voluntário caracteriza-se pela existência de frações de um determinado bem que pertencem, cada qual, a uma pessoa, o condômino. Essas frações serão na proporção em que se determinar entre as partes e, no silêncio, serão iguais, tantos quantos forem os condôminos (parágrafo único do art. 1.315 do Código Civil).

Imagine que Lucas e Carol, amigos que são, resolvem adquirir em conjunto um terreno no valor de R$ 400 mil. Lucas contribuirá com R$ 100 mil, e Carol contribuirá com R$ 300 mil. Nesse caso, ambos serão condôminos no terreno, detendo Lucas uma fração de ¼, e Carol uma fração de ¾ do imóvel. Observem que cada um deles detém seu próprio direito de propriedade sobre uma fração da coisa.

Cada condômino tem o direito de alhear (alienar ou doar) e gravar de qualquer ônus sua fração ideal, na forma do art. 1.314 do Código Civil. Tanto pode que, caso queira vender sua fração, deverá dar aos demais condôminos o direito de preferência aquisitiva (art. 504 do Código Civil).

Diferentemente do que ocorre no condomínio, na mancomunhão a propriedade é una, porém pertencente a duas mãos (ou até mais, no caso de poliamor com reflexos patrimoniais). Não se admite, enquanto persiste o casamento em comunhão (total ou parcial), que qualquer dos cônjuges disponha (por venda, doação ou gravame) daquilo que entende ser a sua parte sobre determinado bem comum do casal.

Perceba-se que não se trata de uma mera filigrana, mas de verdadeira diferença de institutos jurídicos que se mostram, pois, incompatíveis entre si quando nos referimos aos bens que compõem o patrimônio comum do casal.

Não são poucas as decisões dos tribunais brasileiros sobre o tema. Em 13/06/2023, por exemplo, o STJ decidiu que, “havendo separação ou divórcio e sendo possível a identificação inequívoca dos bens e do quinhão de cada ex-cônjuge antes da partilha, cessa o estado de mancomunhão existente enquanto perdura o casamento, passando os bens ao estado de condomínio” (REsp 2.028.008/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 16/6/2023).

O TJSP também já proferiu decisão sobre o assunto:

APELAÇÃO – PEDIDO DE ALVARÁ – IMÓVEL PERTENCENTE AO CASAL – MANCOMUNHÃO – PRETENSÃO DE O MARIDO DOAR SUA PARTE IDEAL DE 50% À FILHA, COM RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO – INADMISSIBILIDADE.

– Alienação de bem imóvel que integra o patrimônio comum do casal, em plena sociedade conjugal.

– Bem imóvel que se encontra em estado de mancomunhão, e não de condomínio.

– Licitude do negócio se houver outorga conjugal.

– Caso em que tal outorga inexiste e, pior, é vedada por lei, por se tratar o cônjuge de pessoa incapaz colocada sob curatela da filha donatária do imóvel.

– Artigos 1.647, I, e 1.749, I, ambos do Código Civil.

(TJSP – Apelação Cível 1001491-27.2019.8.26.0368 – Monte Alto – 8ª Câmara de Direito Privado – relator Desembargador Alexandre Coelho – DJ 15.05.2020)

No mesmo sentido, podemos colher algumas opiniões doutrinárias. Nas palavras de Rafael Calmon Rangel (Partilha de bens. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 105-106), “quando a comunhão de direitos se refere especificamente ao patrimônio amealhado pelo casal sob o abrigo dos regimes comunitários de bens, mostra-se tecnicamente adequado considerá-la como uma mancomunhão, que jamais pode ser confundida com o condomínio ou com a comunhão ordinária”.

Agora voltemos à estória que deu início a esse arrazoado: o casal Joaquim Teixeira e Maria Isolina, casados em comunhão universal de bens, detém mancomunhão sobre os bens do casal, bens estes que não podem ser fracionados entre eles até que se dê a partilha (ou, ao menos, a separação de fato, como prevalece na atual jurisprudência) ou uma expropriação forçada por dívida exclusiva de um dos cônjuges, quando caberá ao outro o resguardo à meação.

Ao integralizarem esses bens em uma sociedade da qual não podem ser sócios em conjunto, um deles assumirá a posição de sócio para fins registrais, mas a propriedade das quotas derivadas dos bens do casal estarão, agora, na mancomunhão em que aqueles antes se encontravam.

As quotas, pois, não podem pertencer em parte a um e em parte a outro, assim como nenhum deles detém uma fração disponível de cada uma delas, a qual poderia alhear ou onerar. Dessa maneira, não podem os cônjuges estabelecer condomínio sobre bens da mancomunhão, porque os institutos são incompatíveis para aplicação sobre os mesmos bens.

Portanto, entendemos que essa “solução” que vem sendo praticada em alguns casos, com respaldo de algumas Juntas Comerciais, não encontra amparo em nosso arcabouço normativo, trazendo insegurança para as partes que a adotam. O ideal, por conseguinte, seria uma regulamentação da questão pelo órgão competente – o DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração –, esclarecendo a impossibilidade dessa medida e orientando as Juntas Comerciais nesse sentido.

Pablo Arruda é advogado, sócio do SMGA Advogados, Mestre em Direito: Estado, Cidadanias e Mundialização das Relações Jurídicas pela Universidade Veiga de Almeida, professor de Direito Empresarial (FGV, IBMEC, PUC (RJ/SP/PR), Damásio-SP, CEPUERJ/UERJ; Escolas da Magistratura: EMERJ, ESMAGES e ESMAFE/PR).

André Santa Cruz é advogado, sócio de Agi & Santa Cruz Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.