Porque a Ética dá bons resultados – nova Política de Persecução Corporativa (FCPA)
Eduardo Molan Gaban & Ana Cristina Gomes
Não é recente a preocupação com temas atrelados a práticas que tenham relação com delitos econômicos, principalmente no âmbito da corrupção. Tema frequente nas agendas internacionais e em constante discussão já há anos. Como os delitos econômicos envolvem uma complexidade maior em relação aos demais delitos, inclusive no que diz respeito a exigência de expertise, no âmbito das investigações – sejam elas privadas ou públicas, internas ou externas – e essa expertise não está apenas relacionada com áreas típicas do Direito, vez que é necessário ter conhecimentos para além, como Economia, Contabilidade, Administração etc., o enfrentamento do problema torna-se um trabalho hercúleo.
É preciso entender que, assim como sistematizado por Klaus Tiedemann[1], o Direito penal econômico tem como ponto de partida aspectos supraindividuais referentes à organização econômica e social e por essa razão possui correspondência com as demais áreas do Direito: empresarial, tributário, regulatório, econômico, consumidor etc. O dinamismo e a complexidade são características dos delitos econômicos. Neste sentido, a atualização quanto as leis e regramentos que regem o enfrentamento destes delitos são constantes, de forma a serem sempre revistas e adequadas a realidade fática.
Uma demonstração dessa constante atualização se deu no início deste ano (janeiro de 2023), nos Estados Unidos da América, quando o Departamento de Justiça (Departament of Justice’s – DOJ) apresentou mudanças na Política de Persecução Corporativa (FCPA Corporate Enforcement Policy)[2]. Um dos principais objetivos é a potencialização dos incentivos concretos às corporações que tomam conhecimento de violações delitivas e que, voluntariamente, se antecipam levando o fato à autoridade responsável para seu conhecimento e providências.
Pontos interessantes foram inseridos com a nova Política a ser adotada. Interessante frisar que já de início o DOJ esclarece que, ao longo dos anos, em decorrência da experiência com a adoção de benefícios para as corporações colaboradoras, foi possível notar que a autodenúncia voluntária tem significado uma criação de incentivos positivos para o comportamento corporativo, ou seja, que não causem violações à legislação e, assim, mais ajustado às práticas de boa governança.
Outro ponto, é o fato de que, de forma nominal, mas sem ser taxativo, o DOJ descreve algumas das circunstâncias que podem ser consideradas como agravantes e que justificariam uma persecução criminal: envolvimento da direção executiva da empresa na má conduta; um lucro significativo para a empresa da má conduta; flagrância ou difusão da má conduta dentro da companhia; ou reincidência criminal. Este é um apontamento não só pertinente, mas também crucial para que, quando da instauração da persecução penal, possam ser aferidas não só a materialidade e a autoria, mas os níveis de culpabilidade.
Entretanto, mesmo que uma corporação não se qualifique para o declination[3], quando estiverem presentes as circunstâncias agravantes,poderá ser beneficiada com outra solução mais adequada que a persecução criminal se, por exemplo, quando ocorreu a má conduta ou no momento da divulgação deste fato, tinha um programa de compliance efetivo, bem como sistema de controles contábeis internos, instrumentos estes que levaram a identificação da má conduta e a autodenúncia voluntária da corporação.
Neste ponto fica evidente o ganho real de uma corporação ao introduzir um programa de compliance efetivo e bem estruturado em sua governança. Para além das fronteiras estadunidenses, essa é uma contribuição que pode ser adequada e adotada, de maneira a criar o incentivo positivo de boas práticas de governança, resultantes de programas de compliance estruturados, aplicáveis e efetivos, pensados a partir de estímulos normativos racionais, onde a conformidade beneficia aquele que a coloca em prática.
Outros incentivos também foram previstos neste caso, como a concessão ou a recomendação para que se aplique uma redução de 50% a 75% da condenação, podendo ser tomada como base a sanção mínima prevista nas diretrizes que regem a aplicação de multas nos EUA[4], exceto nos casos em que existir reincidência, onde não será tomada como base a sanção mínima prevista nas diretrizes; a não exigência da nomeação de um monitor quando a corporação demonstrar que implementou e comprovou um programa de compliance efetivo, de maneira a corrigir a causa que deu origem à má conduta. Se não ocorrer a autodenúncia voluntária segundo as especificações da nova Política, mas a corporação colaborar de maneira oportuna e adequada, a redução poderá ser de até 50% podendo ser tomada como base a sanção mínima, sendo aplicada a mesma regra anterior nos casos de reincidência criminal.
É possível notar um maior protagonismo dos programas de compliance que se revelem efetivos, adequadamente estruturados. O que significa concluir que há um real reconhecimento por parte das autoridades dos esforços das corporações em aplicar práticas de boa governança e que determinadas situações podem ocorrer mesmo com a existência de programas efetivos de integridade, mas que, tendo em vista a efetividade do programa de compliance implementado, uma vez descoberta a prática em desconformidade, essa será tratada de maneira a solucionar o problema, dando o devido encaminhamento, inclusive com a autodenúncia. Essa valoração cria estímulos para as corporações na adoção, revisão e atualização de seus programas de compliance, sendo capaz de mitigar inúmeras situações e ainda contribuir com a persecução quando essa for necessária.
Em termos de prevenção, uma Política preocupada em observar os pontos positivos, como a estruturação de um programa efetivo de compliance, constrói um cenário favorável para que as boas práticas de governança sejam cada vez mais uma escolha racional e lógica no ambiente corporativo. Essa é também uma questão a ser observada e que pode gerar contributos para os demais sistemas jurídicos, como no Brasil, por exemplo.
A importância de um programa efetivo de compliance merece destaque ainda, nos casos de fusões e aquisições corporativas (M&A). Há previsão para que, caso a corporação adquirente venha a descobrir a ocorrência de má conduta, por parte da corporação adquirida, seja por meio de due diligence, auditorias pós aquisição ou tendo em vista a pronta implementação de seu programa de compliance, e imediatamente realize a autodenúncia, tomando as medidas condizentes com a Política, a adquirente pode se tornar elegível para um declination, mesmo que existam circunstâncias agravantes para a corporação adquirida. Ou seja, um programa efetivo de compliance pode viabilizar operações de fusões e aquisições, podendo mitigar, de modo real, os riscos envolvidos.
A Política de Persecução Corporativa preocupou-se ainda em determinar as definições como autodenúncia voluntária, cooperação total. Ocupando-se também em estabelecer critérios que permitam observar a efetividade do programa de compliance das corporações, esclarecendo que este deve ser atualizado periodicamente, podendo depender do porte e disponibilidade de recursos das corporações, bem como os riscos envolvidos: 1) o compromisso da empresa em incutir valores corporativos afim de promover a realização da conformidade, incluindo a conscientização dos funcionários sobre a não tolerância de qualquer conduta delitiva; 2) os recursos que a empresa tem dedicado ao compliance; 3) a qualidade e experiência dos envolvidos com o setor de compliance, de maneira que possam identificar transações e atividades com potencial risco; 4) autoridade e independência, em todos os aspectos e níveis de hierarquia; 5) a eficácia da avaliação de risco e a maneira com que o programa de compliance da corporação foi adaptado em decorrência deste risco; 6) a forma de contratação das pessoas que ocupam funções dentro do setor de compliance da corporação; 7) a remuneração e o plano de carreira das pessoas que trabalham no setor de compliance, suas funções, responsabilidades etc.; e 8) a realização de teste para garantir a eficácia do programa de compliance.
Os incentivos à autodenúncia voluntária somados a atribuição de um maior protagonismo dos programas de compliance, principalmente quanto a possibilidade de maiores e melhores reduções nos valores das multas, criam um cenário propício para a sedimentação de boas práticas de governança e um ambiente de conformidade mais adequado, ao passo que, também contribui com a persecução penal de pessoas físicas que tenham praticado condutas delitivas, tendo em vista a cooperação efetiva da corporação que realiza a autodenúncia voluntária.
A observação da prática dos procedimentos adotados pela Política de Persecução Corporativa e a análise dos temas por ela tratados, pode possibilitar o melhor desenvolvimento dos programas de compliance e contribuir com a experiência brasileira no aprimoramento de questões relacionadas às práticas de boa governança.
[1]TIEDEMANN, Klaus. Decrecho penal económico. Introducción y parte general. Taducciones Manuel A. Abanto Vásquez et al. Trujillo/Peru: Grijley, 2009, p.77.
[2] Cf. 9-47.120 – Criminal Division Corporate Enforcement and Voluntary Self-Disclosure Policy
[3] Tendo em vista a sistemática do direito no Brasil, não há uma tradução capaz de descrever precisamente o instituto estadunidense. Porém, se comparamos com a legislação anticorrupção, no caso a Lei nº 12.846/13, é possível relacionar o acordo de leniência ao declination.
[4] U.S. Sentencing Guidelines (U.S.S.G.) – Diretrizes de Sentenças dos EUA (livre tradução).
EDUARDO MOLAN GABAN. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor Doutor de Direito Econômico nos programas de pós-graduação da FDRP/USP, PUC/PR e UEL. Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (IBCI – www.ibci.com.br). Visiting Fulbright Scholar at the New York University (2010-2011). Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Concorrência e Inovação da PUC/SP. sócio do escritório de advocacia de Nishioka & Gaban Advogados.
ANA CRISTINA GOMES. Bacharel e mestre em Direito pela Unesp. Doutoranda na Escuela de Doctorado da Universidad de Salamanca/Espanha, Estado de Derecho y Gobernanza Global. Advogada no escritório de advocacia Nishioka & Gaban Advogados.