A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores.

Publicado em 19/03/2025, às 09h35 – Atualizado em 19/03/2025, às 11h21

Apresentação

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A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores.

Herval Forny

Resumo:

O presente artigo científico tem por objetivo suscitar um debate sobre a cobrança indevida do ITBI pelos municípios na integralização de imóveis ao capital social. Demonstrando a inconstitucionalidade da prática à luz da CF/1988, do CTN e das decisões do STF e STJ. Partindo da premissa que a imunidade prevista no art. 156, § 2º, inciso I, da CF/1988 é incondicionada, e que o art. 37 do CTN, utilizado pelas prefeituras, como fundamento legal para cobrança, não foi recepcionado pela atual ordem constitucional.

Palavras-chave: ITBI; realização de capital; inconstitucionalidade de leis municipais; não recepção de norma do CTN; imunidade incondicionada; descumprimento ou interpretação equivocada de decisões dos Tribunais Superiores.

Abstract:

This scientific article aims to spark a debate on the undue collection of ITBI by municipalities when real estate is incorporated into share capital. Demonstrating the unconstitutionality of the practice in light of the 1988 Federal Constitution, the National Tax Code (CTN) and the decisions of the STF and STJ, including the analysis of specific municipal rules. Starting from the premise that the immunity provided for in art. 156, § 2, item I, of the 1988 Federal Constitution is unconditional, and art. 37 of the National Tax Code (CTN), used by city governments as a legal basis for collection, was not accepted by the current constitutional order.

Introdução:

A partir de um cenário onde se almeja um primado de uma sociedade justa, livre e solidária, que ainda espera pela sua consolidação como objetivo fundamental do País. Obrigando que as questões sociais sejam encaminhadas por uma reflexão e expansão da autonomia das vontades, do princípio da boa-fé, da segurança jurídica e da função social dos contratos. Onde se faz mais necessária a crescente adequação das leis infraconstitucionais aos preceitos e princípios constitucionais na nossa codificação.

Não há como criar obstáculos à efetivação de negócios jurídicos através de ferramentas de arrecadação Estatal, sob pena de comprometer a base principiológica que rege toda uma sistemática de efetividade da segurança jurídica, proporcionada por um Estado Democrático de Direito, compromissado com a solução de cenários futuros constituídos, para evitar conflitos e consequentes prejuízos ao ser cidadão, em seu contexto social, principalmente familiar.

Analise-se a contextualização do ITBI, a competência para a sua cobrança, limites desta competência, discorre-se sobre a imunidade tributária do tributo, na integralização de imóveis ao capital social. Para tanto, analisa-se a previsão constitucional e as exceções à esta imunidade. Discorrendo sobre o entendimento equivocado das prefeituras com relação às Cortes Superiores, tanto na questão da integralização (Tema de Repercussão Geral 796, do STF), quanto à questão do valor de mercado atribuído pelas Prefeituras, de forma unilateral, sem a abertura de um procedimento administrativo tributário, em afronta ao Tema Repetitivo 1.113, do STJ.

Aprofundando a questão da inconstitucionalidade das leis municipais, que utilizam como fundamento legal para a instituição de leis que permitam a cobrança do tributo, com base no artigo 37, do CTN.

Trazendo à discussão, a não recepção do citado artigo 37, do CTN, por não se amoldar à imunidade incondicionada prevista na primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156, da CF/88.

Apontando alguns julgados favoráveis aos contribuintes. E os impactos da manutenção da cobrança inconstitucional.

Apresentando propostas de soluções ao tratamento da questão.

Desenvolvimento:

1. Princípio da boa-fé

“A boa-fé traduz-se em uma atitude de lealdade e transparência, sem a intenção de lesar, locupletar-se ou obter vantagem indevida ou irrazoável. É a versão jurídica do mandamento ético de respeito ao próximo, do qual se extrai o dever de tratar o outro com a mesma medida com que gostaria de ser tratado.”[i].

Não podemos deixar de considerar que precebemos cada vez mais a crescente adequação das leis infraconstitucionais aos preceitos e princípios constitucionais na nossa codificação.

É a flexibilização normativa que procura se amoldar às evoluções culturais, científicas e tecnológicas dos tempos atuais sem desmerecer a base pricipiológica robustecida pela norma constitucional que firmou os princípios gerais interpretativos do sistema.

Por tal razão, FARIAS & ROSENVALD[ii] (2007, pág. 36) sinalizam:

“…Hodiernamente, o estudo da principiologia ganha relevância ainda maior em razão da norma constitucional, que estabelece os princípios gerais interpretativos do sistema.     Por isso, já se afirmou, lucidamente, que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”, conforme a firme advertência de Celso Antõnio Bandeira de Mello …”

Precisa a respeito do assunto, é a lição de FARIAS & ROSENVALD (idem, pág. 37):

“… Assim, com essa visão constitucionalizada, é possível apresentar como princípios basilares do Direito Civil: a) a personalidade (revelando que todo ser humano é capaz de titularizar obrigações e direitos); b) a autonomia da vontade (pelo qual se evidencia o poder de praticar ou se abster dos atos que lhes prover); c) a liberdade de estipulação negocial ou a autonomia privada (explicitando a possibilidade de escolher o conteúdo e as categorias dos atos jurídicos praticados); d) a propriedade individual (exprimindo a possibilidade de constituir patrimômnio); e) a intangibilidade familiar (querendo significar o equilíbrio entre a proteção da família e a dignidade da pessoa humana, constituindo-se a família verdadeira célua mater da sociedade e expressão imediata do ser);(g.n) f) a legitimidade da herança e direito de testar (decorrente do poder sobre os bens); (g.n) g) a solidariedade social (buscando conciliar as exigências coletivas com os interesses particulares)….”

Do mesmo modo, temos a colaboração do MINISTRO BARROSO, do Supremo Tribunal Federal no sentido de consolidar o processo de valorização da Constituição:

“…a ênfase recai em procurar-se propiciar a materialização, no mundo dos fatos (g.n), dos preceitos constitucionais, fazendo com que eles passem do plano abstrato da norma jurídica para a realidade concreta da vida.(g.n) A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho verdadeiro de sua função social…”(g.n)[iii]

As contribuições apontadas mostram que a constitucionalização inserida em nosso cenário codificado e de legislação infraconstitucional atende a referência do viés patrimonialista antecipado do texto constitucional, no sentido de que a demanda econômica que valorizará o trabalho humano, a livre iniciativa no objetivo de preservar a existência digna atendendo aos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade.

Logo, nas hipóteses em que se utiliza a integralização de bens imóveis ao capital social, como por exemplo, no planejamento sucessório, através de uma Holding Familiar, num contexto perfeitamente incluso nestas questões invocadas, não pode enfrentar embaraços do Estado Democrático de Direito. Pois, a Carta Política há muito já se posicionou. Nem tampouco, do Estado-Juiz sistematizado por esses valores.

Neste sentido, a cobrança do Imposto de Transmissão sobre Bens Imóveis (ITBI) na integralização de bens imóveis ao capital social, fere mortalmente a razão de sua estruturação, comprometendo o dogma do princípio da conservação dos negócios. Como bem expõe KONDER (2024, pág. 2):

“…No plano doutrinário, o problema foi abordado quase que exclusivamente pela perspectiva do dito princípio da conservação dos negócios (g.n). comumente, ele é invocado sob uma acepção ampla, como um princípio autônomo, inferido a partir de institutos como a redução e a conversão dos negócios jurídicos e que se aplicaria também em outros contextos – como a eficácia do negócio nulo – traduzido, no direito contyratual, em autêntico favor contractus. Nessa toada, a conservação dos negócios jurídicos é tida omo um princípio voltado à preservação dos efeitos da manifestação de vontade como um fim sem si mesmo, em decorrência de tomar-se a autonomia privada coomo um valor, sempre socialmente positivo, Sob essa abordagem, entende-se que “os negócios jurídicos são úteis à sociedade, do que decorre, logicamente, a conveniência de preservar seus resultados sempre que possível” …”[iv]

Não podendo, desta forma, se admitir a criação de obstáculos à efetivação de negócios jurídicos através de ferramentas de arrecadação Estatal, pelo ente estatal competente para instituir e cobrar o tributo.

2. Competência para legislar sobre o tributo

O ITBI é um imposto de competência municipal e do Distrito Federal. Em suma, incide sobre as transações imobiliárias realizadas de forma onerosa, como a compra e venda.

Esta competência é definida pelo inciso II, artigo 156, da CF/88.

A imunidade tributária deste imposto é estabelecida pelo inciso I, do §2º, do art. 156, do mesmo diploma legal, in verbis:

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

Pode-se observar que o referido inciso pode ser divido em duas partes. A primeira parte contém a seguinte expressão:

“I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital…”

A segunda parte contém a seguinte expressão:

“…nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;” (gn)

As duas partes são ligadas por uma partícula aditiva “nem”.

A análise do dispositivo permite concluir que a primeira parte do inciso (realização de capital / integralização) a imunidade é incondicionada. Enquanto que na segunda parte (fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica) estes se condicionam à análise da preponderância de transações imobiliárias (compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil).

Se todos os atos previstos no inciso precisassem ser submetidos à análise de preponderância de transações imobiliárias, não faria sentido a redação do aludido inciso. Bastaria que fosse redigido da seguinte forma:

“não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, ou nos casos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.”

Ou seja, o acréscimo da partícula “NEM”, deveria ser substituído pela partícula alternativa “OU”. Da mesma forma, a partícula” nesses” (sic) seria desnecessária. Da forma em que está redigido, ela se refere aos casos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica e não a todos os atos, onde se inclui a integralização.

3. Da interpretação equivocada das prefeituras quanto ao Tema de Repercussão Geral 796, do STF.

Primeiramente, cabe ambientar do que se trata o referido tema e em qual contexto ele foi decidido.

O Leading case versava sobre um processo originário de Santa Catarina, onde os contribuintes possuíam imóveis declarados na DIRPF (Declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física) no valor de R$ 802 mil, sendo que foram integralizados R$ 24 mil e o restante, cerca de R$ 778 mil, foram contabilizados como reserva de capital.

A prefeitura negou a não incidência sobre o valor que ultrapassou o capital social e foi lançado a título de reserva de capital.

Em razão dos inúmeros recursos, o processo chegou ao STF onde foi firmada a tese de Repercussão Geral 796, assim descrita: “Alcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado”.

Com a seguinte EMENTA: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, I DA CONSTITUIÇÃO. APLICABILIDADE ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. 1. A Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica (art. 156, § 2º,). 2. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 3. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. Tema 796, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado“.

Diante deste julgado, algumas prefeituras começaram a legislar cobrando o ITBI sobre a diferença existente entre o valor declarado na DIRPF e o valor de mercado atribuído unilateralmente pelas próprias prefeituras.

Entretanto, o julgado em nenhum momento autorizou que fosse cobrado o tributo entre a diferença existente do valor declarado na DIRPF e o valor de mercado.

O que o julgado firmou é que o valor que ultrapasse o capital subscrito incidirá o imposto. Em outras palavras. Caso todo o valor dos imóveis declarados na DIRPF seja utilizado para integralizar o capital social, SEM a utilização de parte do valor a título de reserva de capital, não poderá ser cobrado o tributo.

Ainda analisando o aludido julgado, na ratio decidendi, o Ministro redator do Acórdão Alexandre de Moraes sustenta e foi acompanhado pelos demais ministros no voto, que a imunidade da primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156 é incondicionada, como pode ser observado no seguinte trecho[v]:

Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.

Em outras palavras, todo o valor dos bens deverá ser utilizado para integralizar o capital social.

4. Da violação ao tema repetitivo 1.113, do STJ

Além de interpretarem de forma equivocada o Tema de Repercussão Geral 796, do STF, em detrimento dos contribuintes, os municípios adotam o valor venal atribuído por eles próprios, sem a obrigatoriedade de instauração de um processo administrativo tributário, para estabelecer de forma unilateral, o valor de mercado que será utilizado de forma ilegal por eles próprios, para calcular a diferença entre o valor de mercado e o valor de aquisição declarado na DIRPF dos contribuintes, para calcularem o ITBI a ser pago incidente sobre esta diferença.

Tese firmada:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.”(gn)

E aqui cabe um parêntesis, a legislação do Imposto de Renda (lei 9.249/95) autoriza o contribuinte integralizar bens ao capital social ou pelo valor declarado ou pelo valor de mercado, como pode ser observado a seguir:

Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.

Como a integralização pelo valor de mercado sujeitará a transação a eventual Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital, à alíquota de 15%, em regra, os contribuintes optam por integralizar pelo valor de aquisição.

E algumas prefeituras se aproveitam para cobrarem de forma ilegal o tributo sobre a diferença entre o valor de aquisição e o valor de mercado, atribuído, na grande maioria das vezes, sobre uma base de cálculo existente de uma base de dados, um valor de referência estabelecido unilateralmente.

Além de cobrarem de forma ilegal sobre uma diferença vedada na Corte Superior, se fundamentam nas disposições do Código Tributário Nacional (CTN).

5. Da não recepção do art. 37, do CTN

Não há dúvida que o CTN foi recepcionado pela atual Constitucional, com status de lei complementar.

Entretanto, traz-se à discussão, a tese de que os artigos 35 e 37, daquele diploma legal não foram recepcionados.

Para tanto, precisamos contextualizar a entrada em vigor de tal código perante a ordem constitucional daquela época e confrontá-lo com a entrada em vigor da nova Carta Cidadã.

Quando o CTN entrou em vigor em 25/10/1966, o ordenamento jurídico encontrava-se sob a égide da Emenda Constitucional 18, de 01/12/1965, que promulgou a Reforma do Sistema Tributário.

O art. 9º da citada Emenda Constitucional (EC) estabelecia:

Art. 9º Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sôbre imóveis, exceto os direitos reais de garantia. (gn)

§ 2º O impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquela cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

Ou seja, o ordenamento constitucional estabelecia que nos casos de integralização não incidia o imposto, salvo, se a pessoa jurídica possuísse atividade preponderante de transações imobiliárias.

Neste contexto, foi sancionada a lei 5.172/66 (CTN) que estabelecia em seu artigo 37:

Impôsto sôbre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a êles Relativos

Art. 35. O impôsto, de competência dos Estados, sôbre a transmissão de bens imóveis e de direitos a êles relativos tem como fato gerador: (gn)

I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;

Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

Parágrafo único. O impôsto não incide sôbre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I dêste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o impôsto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sôbre o valor do bem ou direito nessa data.”

Ou seja, os artigos 35 e 37, do CTN se amoldavam perfeitamente à norma constitucional então em vigor, em especial ao §2º, do art. 9º, da EC 18/65.

Entretanto, com a entrada em vigor da Carta Cidadã, esta estabelece:

a) competência:

 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (gn)

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

b) não incidência (imunidade):

Na primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156, a imunidade incondicionada, na integralização de imóveis ao capital social.  Só condicionando à análise da preponderância de transações imobiliárias, os atos de fusão, cisão, incorporação e extinção.

Esta imunidade incondicionada ou autoaplicável é defendida pelo Professor KIYOSHI HARADA[vi]. Sendo que: “as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.”.

Em outras palavras, no entendimento do Ministro redator do Acórdão do Tema 796, do STF: “É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.”.

6. Dos julgados favoráveis à tese da imunidade tributária

Diversos julgados têm sido prolatados favoravelmente aos contribuintes:

  • RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.449.120 MATO GROSSO DO SUL;
  • RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.485.056 GOIÁS;
  • INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE CÍVEL 0705115-03.2021.8.07.0018 – 6ª Turma Cível – TJDFT;
  • PROCESSO Nº 5022628-89.2021.8.08.0024 – MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL – TJES;
  • PROCESSO: 1007894-43.2022.8.11.0006 – TJMT – MANDADO DE SEGURANÇA;
  • APELAÇÃO CÍVEL Nº 5082610-43.2021.8.21.0001/RS;
  • PROCESSO 1008799-54.2022.8.26.0451 – MANDADO DE SEGURANÇA – TJSP
  • APELAÇÃO 1000084-08.2022.8.26.0456 – TJSP;

7. Impactos da manutenção da cobrança inconstitucional

A manutenção da cobrança pelos municípios acarreta um ônus financeiro para as empresas. Insegurança jurídica e judicialização da questão.

8. Soluções propostas

Para pacificar o entendimento sobre a questão, faz-se mister o julgamento do Tema de Repercussão Geral 1348, onde se discute o “Alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é compra e venda ou locação de bens imóveis”.

Uma vez julgado o mencionado Tema, urge a revisão das legislações municipais; o controle de constitucionalidade através do Poder Judiciário; a observância dos municípios de medidas administrativas com observância do devido processo legal; e por fim, a conscientização dos contribuintes sobre os seus direitos.

Conclusões:

Diante do exposto, não resta dúvidas que a cobrança de ITBI na integralização do capital social representa uma inconstitucionalidade.

Afirmação referendada tanto doutrinariamente, quanto jurisprudencialmente.

Referências e Notas:


[i] BARROSO, Luiz Roberto. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL. Tomo IV. Rio de Janeiro: Renovar. 2009

[ii] FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. DIREITO CIVIL – TEORIA GERAL. 6.ª Edição. Editora Laumen Juris. Rio de Janeiro. 2007.

[iii] Cf. O DIREITO CONSTITUCIONAL E A EFETIVIDADE DE SUAS NORMAS. Cit. P. 344. Nota de rodapé. TEORIA GERAL – DIREITO CIVIL. FARIAS & ROSENVALD (idem, idem).

[iv] KONDER, Carlos Nelson. FUNÇÃO SOCIAL NA CONSERVAÇÃO DE EFEITOS DO CONTRATO. Indaiatuba, sp: Editora Foco, 2024.

[v] Inteiro teor do Acórdão RE 796376/SC, fls. 22.

[vi] HARADA Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática, 3ª ed., ver. ampl. – Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021. 316 p.


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Cristiane Alkmin J. Schmidt, Cleveland Prates e Lucia Helena Salgado[1]

É comum que essas operações passem pelo crivo do autoridade antitruste das jurisdições onde ocorrem, que tem como objetivo impedir que estes “atos de concentração econômica” sejam prejudiciais ao consumidor final. No Brasil, o responsável por proteger a concorrência e o bem-estar do brasileiro chama-se Cade.

No dia 15/01/25, um Memorando de Entendimento (MoU) foi assinado entre a Gol e Azul, sinalizando uma possível fusão. A Gol, que estava em apuros financeiros, entrou com pedido de recuperação judicial (Chapter 11 nos EUA) no início de 2024, devendo sair desta situação em maio/junho. A Azul optou por fazer uma reestruturação em sua dívida. Ou seja, as duas, que tinham dívidas de cerca de R$30 bi cada uma, estão se reorganizando financeiramente, uma vez que, operacionalmente, elas são sólidas, estáveis e apresentam margem operacional melhor até que a LATAM[2].

É fato que a pandemia teve um impacto direto sobre a saúde financeira das empresas aéreas no mundo todo, uma vez que as pessoas pararam de viajar. Por isso, vários governos deram ajuda financeira e fiscal para o setor por um tempo determinado. Não obstante, nenhum deles propôs ou apoio fusões no setor. Ao contrário, nos EUA, por exemplo, a Jetblue foi obrigada a desistir da aquisição da Spirit com AA e com a Spirit, depois da manifestação contrária de um dos órgãos americanos antitruste (o DOJ). Na Europa, a IAG (dona da Ibéria e British) foi impedida de adquirir a Air Europe. No Brasil, a sugerida operação criaria uma empresa com mais de 60% de mercado e, dadas as condições estruturais do setor brasileiro, é forçoso reconhecer que caso aprovada uma operação dessas, o consumidor seria prejudicado.

Aliás, estudo do Cade[3] de 2017 já apontava que o nível de concentração vigente no mercado de aviação comercial era preocupante. De acordo com o órgão, o setor aéreo no Brasil apresenta um conjunto de condições que limita a competição. Barreiras legais à entrada, limitação de infraestrutura em aeroportos coordenados e altos níveis de investimento para a operação, por si só, criam um ambiente oligopolizado, com elevada concentração: são três grandes empresas que dominam os principais aeroportos. Some-se a isso o fato de o setor envolver características de economia de rede, que dificultam a entrada de um competidor efetivo no curto prazo. Não por menos existe a Anac, órgão regulador, que deve dirimir ou minimizar as falhas de mercado.

Dada a elevadíssima probabilidade de exercício de poder de mercado pela nova empresa originada, qualquer concentração estrutural pode trazer sérios prejuízos ao brasileiro que viaja de avião. Logo, a única justificativa para a aprovação dessa fusão seria a comprovação irrefutável de que a “não-fusão” (contrafactual) prejudicaria ainda mais o consumidor, o que nos obrigaria a avaliar dois aspectos: (i) as eficiências geradas; e (ii) a possibilidade de uma das firmas (ou as duas) falirem.

No primeiro caso, há que se analisar de forma minuciosa se as “eficiências” sugeridas seriam cumulativamente: (1) específicas da operação: (2) verificáveis por meios razoáveis e prováveis: (3) repassadas ao consumidor; e (4) passíveis de se materializarem em menos de 2 anos. Como se percebe, os pré-requisitos não são triviais. Falar de “economia nas compras”, por exemplo, não é algo por si só aceitável, na medida que se caracterizariam apenas como economias pecuniárias, ou seja, uma disputa de margem ao longo da cadeia do setor.

Mais absurda ainda seria apresentar a defesa pela “tese da empresa falida”[4], que, pela jurisprudência americana e brasileira, precisaria passar pelos seguintes requisitos: (1) a firma (supostamente falimentar) deveria ser incapaz de resolver suas obrigações financeiras no futuro próximo; (2) ela não seria capaz de se reorganizar de forma bem-sucedida, sob o capítulo 11 da Lei Americana de falências? (3) haver a comprovação de que a empresa fez esforços sem sucesso para conseguir alternativas razoáveis de aquisição de ativos da firma falida, de forma menos danosa à competição, para manter seus ativos tangíveis e intangíveis no mercado e; (4) haver a confirmação de que sem a aquisição, os ativos da firma falida sairiam do mercado. Sendo a resposta “não” logo para o primeiro quesito, ainda que seja o mesmo para o resto, resta claro que não se trata de um caso como este.

Vale lembrar que tanto o argumento de “eficiências” quanto o da firma falida tornam-se ainda menos aceitáveis quando existe a possibilidade da recuperação das duas empresas dar-se por meio de crescimento orgânico do mercado.  O setor, em 2024, apresentou a maior taxa média de ocupação desde 2002 (de 84%), início deste registro histórico. Já o volume de passageiros teve um aumento de 5% em 2024, com relação a 2023, chegando a 93,4 milhões transportados, número próximo dos 95 milhões de 2014 (quantidade mais elevada observada até hoje).

Em suma, apesar de não haver argumentos econômicos que justifiquem esta fusão, nota-se que, desde 15/01/25 a (con)fusão está no ar!


[1] Economistas e ex-conselheiros do CADE

[2] Dados dos DREs das três empresas corroboram essa afirmação.

[3] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-transporte-aereo-de-passageiros-e-cargas-2017.pdf

[4] Massimo Motta. Competition Theory: theory and practice, seção 5.1.

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